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1362 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 27(7):1362-1370, jul, 2011 Política e intermedicalidade no Alto Xingu: do modelo à prática de atenção à saúde indígena Politics and inter-medicality in the Upper Xingu: from model to practice in indigenous health care 1 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Brasília, Brasil. Correspondência M. P. Novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Esplanada dos Ministérios, Bloco A, sala 323, Brasília, DF 70054-906, Brasil. [email protected] Marina Pereira Novo 1 Abstract The indigenous healthcare model in Brazil is pre- mised on comprehensive care combined with the notion of differentiated care and provides for re- spect for cultural diversity, seeking to incorporate traditional therapeutic practices into the health services that serve indigenous peoples. This study aimed to determine how to reconcile universal access to health goods and services with a model of care that guarantees differentiation, without interfering in the quality of services. It is also nec- essary to define which parameters should be used for evaluating the quality and efficacy of such ser- vices in an intercultural context. Based on a case study – the implementation of health services in the Upper Xingu – the author addresses some is- sues related to the political uses and “dangers” associated with “health spaces” and the distinct concepts (indigenous and non-indigenous) of what constitutes health and quality of health ser- vices. These issues affect not only health services but also the local political situation. Indigenous Health; Health Care (Public Health); Health Care Quality, Access, and Evaluation Introdução A temática da saúde indígena no Brasil ganhou força no debate político nacional em meados da década de 1980, durante o processo de rede- mocratização. Nesse mesmo período, também ganhava espaço nas discussões políticas o mo- vimento de reforma sanitária que tinha por fun- damentos os princípios do modelo internacional da política de cuidados primários de saúde, pro- posta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) por meio da Declaração de Alma-Ata. Os princí- pios e diretrizes expostos nesse texto previam: o acesso integral e igualitário às ações e serviços de saúde; a criação de redes regionalizadas e hie- rarquizadas de atendimento; a descentralização; a participação comunitária por intermédio do chamado “controle social”; e, por fim, a atenção integral à saúde 1 . Durante esse período, o surgimento e o de- senvolvimento das organizações indígenas im- pulsionaram ainda mais os debates e, em função disto, foi possível um avanço nas discussões em relação à atenção à saúde indígena, culminando na realização da I Conferência Nacional de Prote- ção à Saúde do Índio, em novembro de 1986. Essa conferência estabeleceu as bases para a criação de um subsistema específico para a atenção à saúde do índio dentro do sistema nacional de saúde, propondo a “estruturação de um modelo de atenção diferenciada, baseado na estratégia de Distritos Sanitários Especiais Indígenas, como ARTIGO ARTICLE

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Política e intermedicalidade no Alto Xingu: do modelo à prática de atençãoà saúde indígena

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    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 27(7):1362-1370, jul, 2011

    Poltica e intermedicalidade no Alto Xingu: do modelo prtica de ateno sade indgena

    Politics and inter-medicality in the Upper Xingu: from model to practice in indigenous health care

    1 Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, Braslia, Brasil.

    CorrespondnciaM. P. NovoMinistrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome.Esplanada dos Ministrios, Bloco A, sala 323, Braslia, DF 70054-906, [email protected]

    Marina Pereira Novo 1

    Abstract

    The indigenous healthcare model in Brazil is pre-mised on comprehensive care combined with the notion of differentiated care and provides for re-spect for cultural diversity, seeking to incorporate traditional therapeutic practices into the health services that serve indigenous peoples. This study aimed to determine how to reconcile universal access to health goods and services with a model of care that guarantees differentiation, without interfering in the quality of services. It is also nec-essary to define which parameters should be used for evaluating the quality and efficacy of such ser-vices in an intercultural context. Based on a case study the implementation of health services in the Upper Xingu the author addresses some is-sues related to the political uses and dangers associated with health spaces and the distinct concepts (indigenous and non-indigenous) of what constitutes health and quality of health ser-vices. These issues affect not only health services but also the local political situation.

    Indigenous Health; Health Care (Public Health); Health Care Quality, Access, and Evaluation

    Introduo

    A temtica da sade indgena no Brasil ganhou fora no debate poltico nacional em meados da dcada de 1980, durante o processo de rede-mocratizao. Nesse mesmo perodo, tambm ganhava espao nas discusses polticas o mo-vimento de reforma sanitria que tinha por fun-damentos os princpios do modelo internacional da poltica de cuidados primrios de sade, pro-posta pela Organizao Mundial da Sade (OMS) por meio da Declarao de Alma-Ata. Os princ-pios e diretrizes expostos nesse texto previam: o acesso integral e igualitrio s aes e servios de sade; a criao de redes regionalizadas e hie-rarquizadas de atendimento; a descentralizao; a participao comunitria por intermdio do chamado controle social; e, por fim, a ateno integral sade 1.

    Durante esse perodo, o surgimento e o de-senvolvimento das organizaes indgenas im-pulsionaram ainda mais os debates e, em funo disto, foi possvel um avano nas discusses em relao ateno sade indgena, culminando na realizao da I Conferncia Nacional de Prote-o Sade do ndio, em novembro de 1986. Essa conferncia estabeleceu as bases para a criao de um subsistema especfico para a ateno sade do ndio dentro do sistema nacional de sade, propondo a estruturao de um modelo de ateno diferenciada, baseado na estratgia de Distritos Sanitrios Especiais Indgenas, como

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    forma de garantir aos povos indgenas o direito ao acesso universal e integral sade, atenden-do s necessidades percebidas pelas comunidades e envolvendo a populao indgena em todas as etapas do processo de planejamento, execuo e avaliao das aes 2 (p. 8).

    Nesse contexto poltico, cresce, portanto, a importncia dos movimentos indigenistas que deixam de tomar as questes de sade indgena somente como uma questo de sade no sen-tido de lhes proporcionar apenas melhores con-dies sanitrias e epidemiolgicas , passando a perceber e utilizar este espao como um dos principais instrumentos de insero no contexto poltico nacional, enfatizando suas reivindica-es por autonomia e pela autogesto das ativi-dades e recursos. Essas discusses culminaram nas proposies estabelecidas na Constituio Federal de 1988 e nas regulamentaes posterio-res, que previam uma nova forma de agencia-mento da sade nacional e consequentemente da sade indgena, baseada nos pressupostos de acesso universal e integral sade. A partir de 1990, finalmente, com a Lei n. 8080 3, uma nova forma de poltica pblica de sade passou a ser posta em vigor por meio da criao do Sistema nico de Sade (SUS), do qual a sade indgena passou a fazer parte.

    A partir desse momento, ao mesmo tempo em que o atendimento sade do ndio passou a fazer parte do SUS que visa a um acesso igualit-rio aos servios de sade , as populaes indge-nas tambm tiveram garantidos na Constituio Federal no s o direito ao acesso diferenciado a estes servios como forma de reconhecer e ga-rantir sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, como tambm ampliao (ao menos em teoria) de sua participao na pro-posio e deliberao a respeito das polticas de sade, por meio da criao dos Conselhos res-ponsveis pelo controle social.

    Apesar de todos esses avanos, somente em 1999 que se concretiza efetivamente a instau-rao de um Subsistema de Ateno Sade Indgena, por meio da criao de 34 Distritos Sanitrios Especiais Indgenas (DSEI) que de-veriam funcionar como interlocutores diretos das comunidades indgenas com as diversas instncias governamentais 4,5,6. De acordo com sua concepo, esses Distritos so um modelo de organizao de servios orientado para um espao etnocultural dinmico, geogrfico, popu-lacional e administrativo bem delimitado , que contempla um conjunto de atividades tcnicas, visando medidas racionalizadas e qualificadas de ateno sade, promovendo a reordenao da rede de sade e das prticas sanitrias e desen-volvendo atividades administrativo-gerenciais

    necessrias prestao da assistncia, com con-trole social 7 (p. 13).

    Considerando-se essas proposies, a gran-de questo que se coloca relativa criao desse subsistema de ateno sade entender de que forma possvel conciliar o acesso universal aos bens e servios de sade a uma ateno que ga-ranta a diferenciao, sem interferir, no entanto, na qualidade dos servios ofertados. Mais do que isso, que parmetros utilizar para avaliar a quali-dade e a eficcia desses servios ofertados em um contexto intercultural?

    Diversas questes merecem destaque nesse processo que, como qualquer processo que en-volva o contato intercultural, apresenta conflitos e ambiguidades que so gerenciados de manei-ras distintas pelos diferentes atores envolvidos. Na regio do Alto Xingu essa relao entre di-versidade e universalidade no se d de forma menos complexa, explicitando alguns conflitos e paradoxos inerentes ao modelo proposto pelos rgos gestores da poltica de sade no Brasil, como pretendo mostrar a seguir.

    O Alto Xingu

    O Parque Indgena do Xingu uma reserva fede-ral criada em 1961, situada ao norte do Estado do Mato Grosso, Regio Centro-oeste do Brasil. Em seus aspectos sociopolticos, o Parque pode ser dividido em trs partes, tendo em vista os povos que l habitam: uma ao norte, conhecida como Baixo Xingu; uma na regio central, o chamado Mdio Xingu; e outra ao sul, o Alto Xingu, regio que, apesar das diferenas lingusticas, apresenta certa homogeneidade no que diz respeito sua forma de organizao sociopoltica. Compem essa regio do Alto Xingu nove povos distintos que podem ser divididos em quatro grupos de acordo com sua variao lingustica: lnguas da famlia Aruak Yawalapiti, Mehinako, Wau-r; lnguas do tronco Tupi Kamayur e Aweti; e lnguas da famlia Karib Kalapalo, Kuikuro, Nahuku, Matipu. De acordo com informaes obtidas junto ao rgo responsvel pela oferta de servios de sade na regio, a populao alto-xinguana era, em 2007, de cerca de 2.720 pessoas, distribudas em 27 aldeias.

    Os servios de sade na regio do Alto Xin-gu so coordenados pelo DSEI Xingu, mas so executados localmente por uma organizao no-governamental (ONG) coordenada e gerida pelos prprios alto-xinguanos. essa ONG que responde pela contratao dos profissionais que compem a Equipe Multidisciplinar de Sade In-dgena (EMSI) mdico, enfermeiros, tcnicos e auxiliares de enfermagem, alm dos agentes in-

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    dgenas de sade (AIS) , responsvel pela oferta dos servios na regio.

    Metodologia e referencial terico

    Esta pesquisa foi realizada entre os anos de 2006 e 2008, ao longo do desenvolvimento de meu tra-balho de mestrado. Com a finalidade de realizar a pesquisa, utilizei diversas tcnicas, que vo des-de a observao direta dos trabalhos da equipe de profissionais que atua na regio, passando por entrevistas informais ou formais com estes ato-res, com representantes de diversas etnias e com lideranas/caciques, autoridades e representan-tes dos rgos gestores da sade, alm da anlise de documentos produzidos por estes rgos e pelos prprios indgenas.

    Meu principal espao para observao da re-lao intercultural que se estabelece nesse con-texto de ateno sade no Alto Xingu foi o Posto Indgena Leonardo. Esse Posto foi criado no ano de 1946, com a inteno de funcionar como um polo de agregao das aldeias alto-xinguanas, e acabou por se tornar o centro da distribuio de benefcios provenientes do mundo ocidental especialmente medicamentos e instrumentos de trabalho industrializados. Esse um lugar pri-vilegiado de contato entre os conhecimentos e prticas tradicionais e os conhecimentos e pr-ticas ocidentais dentro do territrio indgena, uma vez que l se concentram as informaes trazidas das cidades por meio da grande circula-o de pessoas (e consequentemente de notcias e fofocas), da realizao de cursos de formao de AIS e professores, alm de ser o lugar onde se realizam as reunies dos conselhos, ou mesmo onde permanece a equipe de sade multidisci-plinar para realizar os atendimentos. Por essas caractersticas, para melhor definir esse local uti-lizo a noo de fronteira, ou seja, um espao de encontro entre dois mundos, duas formas de saber, ou ainda, mltiplas formas de conhecer e pensar o mundo: as tradies de pensamento ocidentais (...) e as tradies indgenas 8 (p. 47).

    O Posto , por excelncia, um espao de flui-dez e trocas entre diferentes grupos culturais na medida em que foi criado no contexto do conta-to e tornou-se elemento de fundamental valor para os grupos alto-xinguanos, tanto no que diz respeito s relaes internas a esse sistema inte-rtnico quanto no que diz respeito aos espaos de negociao com organismos governamentais e no-governamentais dentro de um contexto poltico mais amplo. A questo da intercultura-lidade, ou da intermedicalidade (conforme defi-nido por Follr 9), est posta na medida em que estamos tratando de um espao onde convivem

    e se impem dois modelos distintos de se pen-sar a sade: de um lado, aparecem os conceitos prprios do modelo sanitarista nacional con-ceitos estes que se apresentam localmente por meio dos cursos de formao de AIS, bem como por intermdio da atuao de profissionais no indgenas em territrio indgena; do outro lado, esta discusso remete s concepes internas s sociedades indgenas com suas teraputicas tradicionais vinculadas cosmologia, organi-zao sociopoltica e ao ethos local, alm das di-versas incorporaes e ressignificaes que so feitas dos elementos provenientes da medicina ocidental entendida aqui como sinnimo de biomedicina, em contraposio s chamadas teraputicas tradicionais.

    O referencial terico desta pesquisa est an-corado nos conceitos da Antropologia da Sade, compreendendo a noo de cultura enquanto um sistema de smbolos que fornece um mo-delo de e um modelo para a realidade. Nesse sentido, considero que os significados dos even-tos culturais, incluindo os processos de sade/doena, emergem da relao que se estabelece entre os indivduos em um processo de significa-o e ressignificao contnuo que ocorre dentro das possibilidades lgicas internas aos grupos sociais. Desse modo, em momentos e espaos onde se efetivam as relaes entre diferentes sis-temas teraputicos, h uma participao ativa de ambas as partes, que atribuem significados s experincias vividas e possibilitam, assim, a criao de sistemas hbridos de tratamento 8. Essa hibridizao tem ocorrido com frequncia nos mais diversos agrupamentos indgenas, mas gera conflitos no que diz respeito s diferentes expectativas que se criam a respeito das polti-cas pblicas de sade, especialmente pelo fato de tais polticas serem em sua maioria orienta-das por princpios tecnicistas fundamentados nos termos da biomedicina. Nesse sentido, cabe inclusive o questionamento a respeito da forma como os servios so normalmente avaliados, propondo-se a incorporao do ponto de vista das populaes atendidas, a fim de que se possa, cada vez mais, aprimorar os servios de sade 10.

    Tambm nesse sentido importante recupe-rar os discursos nativos como uma forma de res-peitar seus pontos de vista, no como estratgia de dominao, mas para modificar os pontos de estrangulamento dos servios a que ela tem direito e que deve reivindicar 11 (p. 236). Isso faz com que a poltica de sade no seja entendida ape-nas como uma ao de estado em direo popu-lao, mas como um direito para o qual ela deve opinar em termos de efetividade e qualidade 11

    (p. 236), colaborando para a implementao de uma efetiva ateno diferenciada em sade.

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    Autores como Aug 12, Buchillet 13, Garne-lo 14, Langdon 15, Langdon & Garnelo 16 e Santos & Coimbra Jr. 17, dentre outros, contribuem e re-foram esse tipo de interpretao.

    Os espaos da sade e seus perigos: estrutura fsica e relaes polticas

    O Posto Indgena Leonardo contava poca da realizao desta pesquisa com cerca de vinte diferentes construes que serviam como mo-radia, escola, casa do rdio, alojamento, refei-trio/cozinha, alm do posto de sade (ou uni-dade bsica de sade UBS) e a Casa de Sade Indgena (Casai), utilizada como alojamento para os pacientes internados (em tratamento) no Posto.

    Um olhar mais atento a essa estrutura fsica j permite perceber algumas incongruncias re-lacionadas ao discurso oficial que faz referncia ateno diferenciada, sendo marcado, no en-tanto, pela questo cultural e da manuteno de tradies, sem deixar claro o que isto implica na prtica 18. Essas indefinies acabam geran-do conflitos de interesses com as populaes in-dgenas que reivindicam o acesso a servios de sade com qualidade e, ao mesmo tempo, que garantam suas especificidades. Um dos claros exemplos desse descompasso de expectativas est na antiga Casai do Posto Leonardo, constru-da dentro dos moldes tradicionais de casas, com uma estrutura em madeira e a cobertura feita em sap. Quando os rgos responsveis pelos atendimentos propem e constroem uma casa que deve abrigar os pacientes que esto em tratamento no Posto Leonardo nesses moldes, h uma clara pretenso de reforar as tradies, deixando de lado, entretanto, uma srie de fato-res considerados de extrema importncia pelos alto-xinguanos, sendo este local considerado por eles como inapropriado por diversas razes. Uma das questes vistas como um problema pelos pa-cientes so as noites frias, especialmente duran-te os meses de maio a setembro, no havendo uma estrutura apropriada (como h nas casas tradicionais das aldeias) para fazer fogueiras em funo da quantidade de pessoas ali hospe-dadas e do fato de abrigar muitos pacientes com problemas nas vias respiratrias, sendo impedi-dos pelos profissionais de sade de fazerem tais fogueiras para no piorar a situao de sade. Uma das solues encontradas pelos pacientes foi, contrariando as indicaes dos enfermeiros, arrancar as madeiras que serviam de paredes da Casai para fazer fogueiras, tendo sido esta ati-tude interpretada pelos profissionais da EMSI como vandalismo ou depredao como se

    simplesmente os indgenas no valorizassem o patrimnio que possuem.

    Outra dificuldade vivenciada pelos alto-xin-guanos em relao a esse espao diz respeito forma como se realiza a internao de pesso-as preocupao extensvel ao Posto Leonardo como um todo , na medida em que implica a convivncia forada entre ndios de diferentes etnias que se encontram em uma situao limi-nar de doena. Essa preocupao pode ser com-preendida porque, no contexto sociocosmolgi-co alto-xinguano, a doena entendida como uma agresso externa pessoa, materializada na forma de objetos ou substncias introduzidas no corpo do doente 19 (p. 65). Essa agresso origina-se ou pela ao de espritos devido quebra de regras restritivas, ou pela feitiaria, creditada prtica malvola de outros ndios invejosos. Os momentos liminares da vida de uma pessoa (sejam eles a recluso pubertria, a menstrua-o feminina e o ps-parto, alm das ocasies de adoecimento) so considerados extremamente delicados, pois favorecem a atuao desses es-pritos que causam doenas e podem roubar a alma das pessoas 20,21. Esses espritos agem so-zinhos ou em conjunto com feiticeiros, exigindo o cumprimento de um nmero considervel de restries alimentares e sexuais por parte do do-ente e de seu grupo de substncia, ou seja, todos aqueles que compartilham substncias corporais (sangue, smen, leite e outros alimentos) entre si. Esse compartilhamento de substncias, por sua vez, faz com que as aes de cada um interfiram diretamente tanto no processo de adoecimento quanto no tratamento e na cura do doente 22.

    De acordo com essa concepo de doena, a permanncia no Posto Leonardo, acompanha-da do contato direto com ndios de outras etnias e aldeias durante um processo de adoecimento pode se tornar potencialmente perigosa porque no somente impede o cumprimento das restri-es impostas (j que torna-se praticamente im-possvel a ingesto somente de alimentos per-mitidos, tanto pelo paciente quanto por todo o seu grupo de substncia) como tambm fora uma aproximao com fontes potenciais de ado-ecimento e feitiaria os ndios provenientes de outras aldeias e etnias.

    Em diversos momentos essa noo de perigo relacionada ao espao do Posto colocada em evidncia, marcando a forma como as pessoas interagem com este espao e com as pessoas que l habitam e circulam. Considero que essa noo de perigo remete a uma discusso mais ampla a respeito da demarcao de fronteiras identit-rias (internas e externas ao sistema xinguano), demarcaes estas que subjazem a grande parte das acusaes de feitiaria, sendo possvel se ob-

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    servar a presena marcante de um denominador hierrquico tnico.

    O contato (e as disputas) intertnicos entre os alto-xinguanos parecem estar associados no-o de perigo e s consequentes acusaes mtuas de feitiaria desde o perodo de apro-ximao destes povos e de formao de uma co-munidade moral na regio que remetem a finais do sculo XIX. Esse processo de pacificao ou de xinguanizao dos povos que ali se aproxi-mavam diz respeito, por sua vez, ideia de virar gente, deixar de ser ndio bravo e, portanto, se adaptar a um ethos pretensamente pacfico que marca da identidade xinguana atual 23.

    As acusaes interaldeias que marcam as alteridades internamente ao sistema alto-xin-guano so salientadas em espaos considerados neutros, ou seja, aqueles que a princpio no per-tencem a nenhuma etnia especfica, como o caso do Posto Leonardo. Esses locais neutros aqui classificados como espaos de fronteira na medida em que permitem o fluxo de pessoal e conhecimento e onde as diferenas sociais so construdas 9 (p. 65) impedem a efetivao do processo de segmentao hierrquica inte-raldeias, no momento em que impossibilitam delimitaes territoriais e espaciais (entendido aqui em um sentido mais amplo, compreenden-do tambm o espao sociocosmolgico), forne-cendo em um momento posterior as condies para a exacerbao de tais diferenciaes que se materializam nas acusaes mtuas de feitiaria. Tais diferenciaes, que so feitas mais facilmen-te nos espaos das aldeias, geram uma relao complexa neste contexto (espacialmente defini-do) intertnico, que ao mesmo tempo fonte de bens e servios, mas tambm perigoso e passvel de causar ou potencializar processos de adoeci-mento e de morte.

    Como se percebe at este ponto, tratar da questo da sade implica tratar no apenas dos atendimentos realizados e dos servios oferta-dos, mas fundamentalmente de tentar compre-ender como se relacionam as distintas formas de se pensar a sade e de se fazer a sade nesse contexto especfico. Nesse sentido, cabe tambm uma discusso a respeito da forma como cada um dos atores avalia os servios prestados, expli-citando ainda mais essas diferenas.

    Sobre as diferentes avaliaes dos servios de sade

    No pretendo neste espao avaliar propriamen-te os servios de sade oferecidos populao alto-xinguana, mas pretendo, partindo desses elementos mostrados at agora e com base nos

    referenciais tericos apresentados, levantar questionamentos a respeito dos critrios utili-zados pelos profissionais e usurios do sistema de sade para avaliar estes servios, apreendidos por meio de seus discursos e aes, e que possi-bilitam tambm a observao das diferentes l-gicas que esto em jogo quando se discute sade indgena.

    As avaliaes oficiais dos servios e da si-tuao de sade do Alto Xingu so feitas pelos gestores do DSEI, com base nas informaes es-tatsticas coletadas pelos prprios profissionais e agentes de sade por meio de seu trabalho coti-diano. Os AIS preenchem relatrios mensais com informaes sobre os atendimentos realizados, que so transformados posteriormente em da-dos estatsticos para justificar as prestaes de contas e mesmo as previses de gastos para os prximos perodos de convnio da ONG respon-svel pela prestao de servios de sade. Com relao a isso, os profissionais e gestores afirmam que sem dados no vem dinheiro do governo, ou seja, sem as informaes estatsticas que com-provem a qualidade dos servios prestados, no so feitos novos investimentos por parte do Go-verno Federal.

    Quando questionados a respeito da situao de sade geral no Alto Xingu, os profissionais muitas vezes, apesar de criticarem a infraestru-tura considerada precria, ressaltam que esto cada vez mais conseguindo realizar o trabalho e que por isto a sade est melhorando, dan-do como exemplo as campanhas de coleta de exames preventivos de cncer de colo de tero e principalmente as campanhas de imunizao de acordo com dados oficiais, as ltimas cam-panhas de imunizao atingiram uma cobertu-ra vacinal de praticamente 90% da populao alto-xinguana, proporo superior s atingidas nas realizadas junto populao nacional. Essas campanhas de vacinao organizadas pelo DSEI so vistas com bons olhos tambm pelas lideran-as indgenas que, junto com os AIS, ajudam a convencer as pessoas de suas aldeias que no querem participar.

    Os discursos das lideranas e da populao em geral em relao avaliao dos servios tambm so sempre no sentido de se reforar a melhora no estado geral da sade no Alto Xingu nos ltimos anos, mas baseando-se em outros critrios. Os alto-xinguanos valorizam nesses discursos o processo crescente de medicalizao muito criticado pelos profissionais , confor-me ressalta um dos Agentes de Sade: Antes no tinha remdio. Essa farmcia estava sem medi-cao, sem nada. Agora melhorou bastante. Tem muita medicao a que a gente precisa, alm de destacarem a importncia da mudana de com-

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    portamento percebida em relao equipe de sade que agora visita as aldeias e que, por-tanto, est mais prxima do ndio.

    Essa mudana de atitude dos profissionais vista de forma positiva pela populao local, que percebe neste processo no apenas um ganho qualitativo na sade, mas tambm em relao sua situao poltica dentro do contexto nacional de garantia de direitos diferenciados e que pos-sam, em alguma medida, ser controlados pelas prprias populaes e lideranas indgenas.

    Todavia, apesar dessa valorizao, a atuao dos profissionais de sade e sua relao com a populao local esto marcadas por diversas controvrsias e desentendimentos. No obstante a permanncia prolongada dos profissionais em campo, no raro ouvir reclamaes por parte dos ndios, afirmando que os profissionais per-manecem apenas no Posto Leonardo e no aces-sam as aldeias com frequncia.

    Nesse sentido, para as lideranas a situao considerada ideal a permanncia contnua des-tes profissionais nas aldeias, demanda que pode ser constantemente ouvida. Essa demanda est diretamente relacionada ao papel poltico de-sempenhado pelas lideranas dentro do sistema alto-xinguano, reforando o princpio difundido entre eles de que o controle e a posse de bens au-xiliam na garantia de legitimidade e poder no s dentro das aldeias, mas tambm na relao com os no ndios. Possuir um profissional na aldeia uma das maneiras das lideranas exerce-rem no s o seu papel de provedores j que predomina entre os alto-xinguanos o discurso de que so eles que conseguem os profissio-nais por meio de suas relaes pessoais como tambm possibilita uma maior autonomia com relao ao Posto e ao DSEI, cumprindo funes polticas na medida em que reforam tambm suas requisies por atendimentos e servios de melhor qualidade. O acesso a esses profissionais e servios, por sua vez, geralmente se v garan-tido porque remete a relaes de parentesco e aliana com outras lideranas ou mesmo com representantes dos responsveis pela execuo da poltica de sade, com quem mantm rela-es de reciprocidade e endividamento. Essas relaes entre parentes (especialmente afins reais ou classificatrios), assim como as relaes de amizade, so marcadas por ciclos necess-rios de prestaes e contraprestaes por meio de presentes ou favores que devem, portanto, ser retribudos, criando essa relao de endivi-damento a que me referi. Nesse sentido, todos os profissionais presentes nas aldeias (para alm inclusive dos profissionais de sade), so vistos como recursos muito importantes e esto, por-tanto, em processo contnuo de negociao.

    Os profissionais, por sua vez, no se reconhe-cendo como recursos, compreendem e explicam a importncia de sua permanncia nas aldeias sob a tica de garantia das necessidades estrat-gicas de atendimento (ou seja, para garantir a cobertura dos atendimentos), estando, ao mes-mo tempo, condicionada a uma noo vaga de boas condies de trabalho. Essa noo enten-dida por eles como a existncia de um local espe-cfico para sua moradia nas aldeias espao este que deve ser fisicamente separado da rea dos atendimentos , mas tambm envolve a manu-teno de boas relaes com as chefias das al-deias, para que seja possvel realizar o trabalho.

    De acordo com os profissionais, as frequentes brigas entre eles e as lideranas indgenas pare-cem ser um dos principais entraves sua perma-nncia nas aldeias. Os desentendimentos ocor-rem em grande parte por um motivo principal: os arranjos polticos locais que envolvem a reivin-dicao por uma maneira especfica de atuao desses profissionais brancos junto populao atendida. As questes mais valorizadas pelos alto-xinguanos com relao ao trabalho da EMSI so a distribuio de medicamentos vista pelos profissionais como muito negativa, como j res-saltei em outro momento e o acesso que esses profissionais possibilitam aos servios de sade nas cidades prximas. Seu trabalho apropriado muito mais como elemento poltico de acesso a bens e servios e de legitimao das posies de liderana, contrastando com uma viso que pri-vilegia mais a questo tcnica dos atendimentos e da rede hierarquizada de servios.

    Esse tipo de expectativa (que muitas vezes se traduz em exigncia) por parte das lideran-as e das comunidades cria desentendimentos com os profissionais que, com uma racionalida-de tcnico-burocrtica caracterstica do modelo ocidental de prestao de servios de sade, no se submetem s imposies feitas, gerando uma incompatibilidade de demandas (e, consequen-temente de avaliaes) com relao ao trabalho de sade.

    Paralelamente, os depoimentos dos profis-sionais mostram a expectativa de uma urgente transformao dos hbitos a fim de se adequa-rem aos preceitos (biomdicos) de higiene, res-saltando a importncia da participao dos AIS neste processo. Acho necessrio que eles [os n-dios] mudem de hbitos. (...) O AIS ndio e no vai deixar de ser ndio. Mas ele tem que aprender um pouco... (Mdico).

    O fato de os profissionais estabelecerem jul-gamentos morais a respeito do comportamento e de certos procedimentos teraputicos, acaba in-terferindo nas relaes que estabelecem com os ndios e consequentemente nas escolhas feitas

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    durante os processos de adoecimento. Alm dis-so, ao dizer que o AIS ndio e no vai deixar de ser ndio, percebe-se, alm da expectativa sobre a mudana de hbitos, tambm a imposio de um modelo de concepo da identidade, carac-terstico da civilizao ocidental, que enxerga os ndios como primitivos que precisam, por-tanto, ser civilizados por meio da aquisio dos conhecimentos biomdicos ocidentais.

    Os alto-xinguanos definem esse tipo de pos-tura da equipe como descaso, e reforam cons-tantemente a diferena da situao do trabalho na aldeia em relao cidade. E nesse sentido, os prprios alto-xinguanos tambm cobram uma mudana de atitudes por parte dos profissionais, que devem aprender a trabalhar no Alto Xingu, o que significa conhecer a cultura e se adequar s demandas locais, como se oberva na fala de um auxiliar de enfermagem indgena.

    Primeiro ele [mdico] era muito difcil. Ele no ia na casa dos pacientes que tem l no Le-onardo e no dava remdio noite. (...) Ele diz que mdico. Ele atendia paciente do jeito que os mdicos atendem na cidade, no hospital. A expli-quei pra ele que no assim, aqui diferente, no hospital, aqui o Xingu. Voc tem que mudar seu trabalho (...). Ele mudou um pouquinho (Auxi-liar de Enfermagem Indgena; grifo meu).

    Essa fala extremamente significativa para se perceber a disputa que est em jogo entre di-ferentes concepes acerca de sade, da qua-lidade dos servios e dos processos de adoeci-mento e cura. Ao dizer que o mdico diz que mdico, esse auxiliar de enfermagem indgena (teoricamente um representante da medicina ocidental em sua aldeia) refora que ser mdi-co no Xingu diferente, ou seja, que a legitima-o de seu trabalho mantm relaes profundas com sua atuao nos termos dos prprios ndios, devendo responder a demandas especficas que nem sempre condizem com as expectativas da medicina ocidental. Para ser considerado um mdico, ele precisa se fazer mdico em sua atu-ao; os profissionais precisam agir de uma for-ma distinta de quem trabalha na cidade para ter seu trabalho aceito e ter o apoio necessrio para trabalhar. Arrisco-me a dizer que esse discurso explicita a ideia de que preciso se tornar um pouco ndio, e mais do que isto, tornar-se um alto-xinguano, para que o trabalho dos profissio-nais seja legitimado pelos ndios. quase como dizer que o mdico branco e no vai deixar de ser branco, mas precisa aprender com o ndio. Salta aos olhos a semelhana desse discurso com o que proferido pelo mdico quando diz que o Agente Indgena de Sade ndio e no vai deixar de ser ndio, mas precisa aprender um pouco. Tra-ta-se de uma disputa entre diferentes esquemas

    lgico-simblicos que operam, neste caso, arran-jos semelhantes, com a inverso de smbolos.

    Essas disputas esto diretamente relaciona-das aos processos de sade/doena, e so reco-nhecidas e administradas pelos alto-xinguanos em seu cotidiano, refletindo-se nas escolhas de itinerrios teraputicos ou nas disputas por profissionais, equipamentos e medicamentos. Os profissionais no indgenas, por sua vez, tm mais dificuldade em lidar com essa situao, o que se traduz na impossibilidade de criao de espaos para a construo de conhecimentos e de prticas conjuntas, como se prope no mode-lo de ateno sade indgena em vigor.

    Com base nessas observaes, pode-se afir-mar que o trabalho dos profissionais apropria-do pelos alto-xinguanos como elemento poltico de acesso a bens e servios, de legitimao da posio dos lderes e de alto-xinguanizao da alteridade, contrastando com uma viso que pri-vilegia mais a questo tcnica dos atendimentos e da rede hierarquizada de servios. Os profis-sionais no indgenas, com uma racionalidade tcnico-burocrtica caracterstica da medicina ocidental, no se submetem s imposies feitas, gerando uma incompatibilidade de expectativas (e, consequentemente de avaliaes) com rela-o ao trabalho de sade.

    Consideraes finais

    Busquei aqui apresentar o modelo atual de aten-o sade das populaes indgenas no Brasil, e a situao especfica da oferta de servios no Alto Xingu. O que percebe-se nesse contexto de inter-medicalidade a convivncia complexa entre du-as formas de se definir o que sade e, portanto, de se lidar com a temtica. Os profissionais no indgenas se esforam para impor uma noo de sade pautada nos conceitos biomdicos de cui-dados e mesmo de corpo. Esse discurso muitas vezes apreendido e reproduzido pelos prprios alto-xinguanos, mas quando observa-se mais de perto suas prticas, percebe-se que quando falam de sade, os alto-xinguanos esto, para alm de reproduzindo um discurso externo, fazendo refe-rncia a um espao poltico, especialmente aces-sado e utilizado pelas lideranas. Isso fica ainda mais claro quando se observam seus itinerrios teraputicos havendo, em geral, um privilegio das formas tradicionais de tratamento e cura 24.

    Nesse quadro, a multiplicao das alternati-vas teraputicas e sua utilizao de forma con-junta no conduzem, necessariamente, diversi-ficao dos modelos explicativos de causalidade e extino de culturas ou de determinadas prticas profilticas. Percebe-se que os grupos

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    indgenas procuram as terapias da medicina oci-dental como uma alternativa frente a muitas ou-tras possveis, mantendo suas prprias formas de interpretao e de entendimento do processo de adoecimento. Todavia, apesar de ser apenas uma das opes possveis, os alto-xinguanos no dei-xam de cobrar que o atendimento biomdico se-ja feito com qualidade (entendida aqui nos seus prprios termos) e por profissionais qualificados que saibam trabalhar com o ndio. Para manter boas relaes de trabalho com as populaes (e as lideranas) atendidas, os profissionais da EMSI precisariam ter uma atuao diferente de como na cidade, reconhecendo as especificidades do trabalho na aldeia e respondendo s demandas locais, ainda que isto muitas vezes contrarie a lgica biomdica.

    Nesse contexto, os locais que possibilitam um maior contato entre diferentes prticas te-raputicas os locais de fronteira tornam-se privilegiados para a observao dessa relao complexa entre distintas concepes de sade, e tambm possibilitam o surgimento de respostas hbridas, como consequncia de uma releitura e ressignificao das prticas de tratamento e cura, com base na lgica de pensamento local.

    No entanto, a atuao dos profissionais de sade e demais representantes da medicina ofi-cial nem sempre condiz com essa multiplicidade

    de possibilidades de escolha e de expectativas, no havendo espaos para a construo de co-nhecimentos e de prticas conjuntas, como se prope no modelo de ateno sade indgena em vigor. possvel notar ento, que os confli-tos existentes entre as lideranas indgenas e os rgos responsveis pela gesto de sade no se localizam propriamente na coexistncia de distintos sistemas teraputicos, mas sim na for-mulao de um modelo de ateno diferenciada pouco claro e que muitas vezes no contempla as demandas especficas dos agrupamentos in-dgenas. O modelo sugerido acaba por propor aes padronizadas em sade que podem, even-tualmente, colidir tanto com o princpio de par-ticipao da populao indgena na gesto dos servios de sade quanto com o pressuposto da integrao dos sistemas teraputicos indgenas nos seus quadros 25 (p. 4).

    preciso ento que se faa uma reavaliao criteriosa dos impactos desse modelo de atendi-mento sade, levando-se em considerao as demandas e as necessidades especficas dessas populaes, bem como seus reflexos na cultura e na organizao sociopoltica das aldeias (e com certeza, no apenas naquelas localizadas na re-gio do Alto Xingu), considerando-se as distintas concepes e utilizaes deste espao eminente-mente poltico das aes de sade.

    Resumo

    O modelo de ateno sade indgena no Brasil tem como fundamentos a ateno integral sade, asso-ciada noo de ateno diferenciada, e prev o res-peito diversidade cultural, buscando a incorporao de prticas teraputicas tradicionais nos servios de sade destinados a atender estas populaes. A ques-to que se coloca entender de que forma possvel conciliar o acesso universal aos bens e servios de sa-de a uma ateno que garanta a diferenciao, sem interferir, no entanto, na qualidade dos servios ofer-tados. Para alm disso, preciso definir quais parme-tros utilizar para avaliar a qualidade e a eficcia des-

    ses servios oferecidos em um contexto intercultural. Com base em um estudo de caso a implementao dos servios de sade no Alto Xingu apresento ques-tes relacionadas aos usos polticos e os perigos asso-ciados aos espaos da sade e as distintas concepes (de ndios e no ndios) do que seja sade e qualidade dos servios de sade. Essas questes se interpem e afetam no apenas as aes de sade, mas tambm a situao poltica local.

    Sade Indgena; Ateno Sade; Qualidade, Acesso e Avaliao da Assistncia Sade

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    Recebido em 27/Out/2010Verso final reapresentada em 21/Jan/2011Aprovado em 16/Mai/2011