O acontecimento se perde na noite dos tempos...

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“O acontecimento se perde na noite dos tempos pré-

históricos, e dele não resta hoje traço algum.[...] um fato

é certo: houve um tempo em que o ser humano não

sabia contar.” (IFRAH, 1994, p.15, grifos do autor)

Onde surgiram os números?

Quando? Há

quinhentos mil anos?

Na Ásia? África?

Não sabemos...

Atualmente, várias tribos primitivas ainda têm pouco conhecimento, ou nenhum, acerca dos números. Este conhecimento se limita a um, dois e muitos, ou ainda só conhecem “dois nomes de números, um pra a unidade e outro para o par”. (IFRAH, 1994, p.15). Os zulus e pigmeus na África, os botocudos no Brasil, são exemplos desta situação. Alguns chegam a articular seus conhecimentos e conseguem exprimir 3 e 4 , como combinação de dois-um e dois-dois, porém não avançam para além destas articulações.

Para além destes conceitos aparece a imprecisão, utilizam termos que denominam muitos, vários, multidão, ... É muito difícil imaginar algo maior que cinco. “O número não é concebido por eles sob o ângulo da abstração.[...] O número se reduz, no espírito deles, a uma noção global bastante confusa e assume o aspecto de uma realidade bastante concreta indissociável da natureza dos seres e dos objetos” (IFRAH, 1994, p.16)

“Isto significa que estes indígenas não têm a consciência, por exemplo, de que um grupo de cinco homens, cinco cavalos, cinco carneiros, cinco bisões, cinco dedos, cinco cocos ou cinco canoas apresentam uma característica comum, que é precisamente ser ‘cinco’.” (IFRAH, 1994, p.16) As possibilidades numéricas destas tribos se reduzem a uma espécie de capacidade natural, chamada comumente de percepção direta do número, ou sensação numérica – como ilustra o exemplo do corvo já apresentado na Etapa 2. Esta aptidão natural não deve ser confundida com faculdade abstrata de contar, esta diz respeito a um fenômeno mais complexo e constitui uma aquisição relativamente recente da inteligência humana.

Certamente, o homem primitivo não era mais inteligente que os indígenas destas tribos, provavelmente eram também incapazes de conceber os números em si mesmos e suas possibilidades numéricas deviam ser limitadas em uma apreciação global do espaço ocupado pelos seres e objetos. Deviam, no máximo, estabelecer uma diferença entre unidade, par e pluralidade.

“É verdade que um e dois são os primeiros conceitos numéricos inteligíveis pelo ser humano. O Um é, com efeito, o homem ativo, associado à obra da criação. É ele próprio no seio de um grupo social e sua própria solidão face à vida e à morte. É também o símbolo do homem em pé, o único ser vivo dotado desta capacidade, como também do falo ereto que distingue o homem da mulher. Quanto ao Dois, ele corresponde à evidente dualidade do feminino e do masculino, à simetria aparente do corpo humano. É também o símbolo da oposição, da complementaridade, da divisão, da rivalidade, do conflito ou do antagonismo. E ele se manifesta, por exemplo, na ideia da vida e da morte, do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, etc. Inúmeras línguas e escritas, antigas ou modernas, trazem as marcas evidentes destas limitações.” (IFRAH, 1994, p.17, grifos do autor)

No Egito, por exemplo, conhecemos uma ortografia consignada nas inscrições pictográficas dos faraós.

Imagem: IFRAH, 1994, p.17

Na China, a ideia de floresta era representada repetindo três vezes o pictograma de uma árvore, a ideia de multidão, reproduzindo três vezes a imagem de um ser humano.

O número 3, desde os tempos remotos, sempre expressou pluralidade, multidão, constituiu uma espécie de limite impossível de conceber ou precisar.

Retomando a noção de senso numérico, seria um equívoco imaginar que poderíamos fazer muito mais se nos deixássemos guiar por nossas “faculdades naturais de conhecimento imediato dos números” (IFRAH, 1994, p. 20, grifos do autor). De fato, quando necessitamos distinguir duas quantidades, recorremos à memória ou a algum procedimento de comparação, agrupamento mental, decomposição ou à faculdade abstrata de contar. “Coloquemo-nos, no entanto, diante de uma série de seres ou de objetos análogos alinhados e proponham-nos a indicar a quantidade numa única e rápida olhada, isto é, sem recorrer a nenhum artifício. Até onde somos capazes de ir?” (IFRAH, 1994, p.20, grifos do autor)

Certamente, conseguimos distinguir dois, três elementos e até quatro elementos. Porém, além de quatro elementos nosso olhar se confunde, nossa visão global não nos auxiliará. Se, por exemplo, colocamos quinze ou vinte pratos numa pilha, “é preciso contar para saber. O olho não é um ‘instrumento de medida’ suficientemente preciso: seu poder de percepção direta dos números ultrapassa muito raramente – para não dizer nunca – o número 4!” (IFRAH, 1994, p. 21, grifos do autor).

CURIOSIDADE Os nomes que os romanos costumavam dar a seus filhos do sexo masculino (meninas não recebiam nome naquela época) eram até o quarto, designações particulares e normalmente compostas, como Appius, Aulius, Gaius, Lucius, Marcus, Servius, etc. Mas, a partir do quinto, eles se contentavam em chamar por simples números: Quintous (o quinto), Sextus (o sexto), Octavios (o oitavo), Decimus (o décimo), ou mesmo Númerius (numeroso). (IFRAH, 1994, p. 22, grifos do autor)

Outras civilizações confirmam o fato do homem ter inicialmente um senso numérico, não tinham a intenção da contagem, somente da comparação. Entre eles estão as civilizações egípcia, suméria, babilônica, fenícia, grega, maia, asteca, etc. No início da história de escrita, estes povos adquiriram o hábito de anotar os nove primeiros números inteiros, pela repetição de traços, círculos, pontos, ou outro sinal para figurar a unidade. Eram dispostos em única fila, semelhante ao exemplo a seguir.

IFRAH, 1994, p.23

Porém, esta maneira de registrar quantidades logo foi substituída, pois estas séries numéricas eram idênticas para números superiores a quatro, e não facilitavam a leitura da adição imediata das unidades correspondentes. Visando contornar esta dificuldade, egípcios e cretenses reuniram seus algarismos-unidades segundo um princípio que bem pode ser denominado de decomposição:

Imagem: IFRAH, 1994, p.23

Já as civilizações como as babilônicas e a fenícia utilizaram um princípio ternário, vencendo esta dificuldade:

Imagem: IFRAH, 1994, p.23

Ainda, outros povos, criaram um sinal especial para o cinco, com a ideia de solucionar este problema. (certamente esta ideia veio da influência dos cinco dedos da mão). Usaram um princípio quinário para representação dos números 6 a 9:

Imagem: IFRAH, 1994, p.24

Uma última constatação: quando, por exemplo, um comerciante de vinho ou cerveja mantém um quadro de seus clientes fazendo num pequeno cartão traços correspondentes aos pedidos ainda não pagos para cada um, ele efetua uma operação conforme as etapas sucessivas do procedimento a seguir:

Imagem: IFRAH, 1994, p.24

“Nestas condições não cabe nenhuma dúvida: as faculdades humanas de percepção direta dos números não vão além do número 4! Como uma capacidade numérica rudimentar mal ultrapassa a de certos animais, este é o núcleo primitivo de nossa aritmética atual. Se o espírito humano se tivesse restrito a esta única aptidão , sem sombra de dúvida ele nunca teria tido acesso, como esses animais, à abstração do cálculo. Felizmente, o homem foi capaz de ampliar suas limitadas possibilidades de sensação numérica inventando um certo número de procedimentos mentais. Procedimentos que teriam de se revelar fecundos, pois iriam oferecer à espécie humana a possibilidade de progredir no universo dos números... “(IFRAH, 1994, p. 24)

REFERÊNCIAS

CARAÇA, B. J Conceitos fundamentais da matemática. Lisboa: Tipografia Matemática Ltda, 1951.

DANTIZG, T. Número: a linguagem da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

DIAS, M. S.; MORETTI, V.D. Números e operações: elementos lógico-históricos para a atividade de

ensino. Curitiba: Ibpex, 2011.

GIARDINETTO, J.R.B. A concepção histórico-social da relação entre a realidade e a produção do

conhecimento matemático. Revista Millenium. Viseu, IPT, Portugal, ano 4, n.17,p. 239-271, 2000.

IFRAH, G. Os números: história de uma grande invenção. São Paulo: Globo, 1994