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O AGENTE DO DIREITO EM LIMA BARRETO THE AGENT OF LAW IN LIMA BARRETO Lucas Piccinin Lazzaretti RESUMO Na contemplação de uma obra literária a estrita observação de sua forma estética muitas vezes não é auto-suficiente. Caso é esse da obra de Lima Barreto, autor de grande impacto social que no começo do século XX absorve toda a transição entre império e república pelo qual o Brasil estava passando para tecer críticas pontuais no tocante a estrutura social que fundava o país. Dentro dessa estrutura se encontrará os agentes de direito, personagens centrais da obra de Lima Barreto que muitas vezes são avaliados não só de acordo com um caráter de moldura social, como também sendo os articuladores da estrutura social a que Lima Barreto tanto reprova. Usar-se-á no artigo o embasamento de Sérgio Buarque de Holanda como referência acadêmica, além dos romances e contos de Lima Barreto. Demarcar o papel do agente do direito na obra de Lima Barreto é uma forma de compreender como era visto o título de bacharel no início do século XX no Brasil. PALAVRAS-CHAVES: LIMA BARRETO, AGENTE DE DIREITO, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA ABSTRACT In the contemplation of a literary work the strict observation of his esthetic form many times is not enough. Case of this is the work of Lima Barreto, writer of a huge social impact that in the beginning of century XX assimilated all the transition between empire and republic for what the Brazil was passing to do annalistic critics about the social structures who sustain the country. Inside of this structure can be found the agents of law, central characters in the Lima Barreto work’s which many times are not assimilated just for their features in the social frame, but also as the articulators of a social structure that Lima Barreto reproves. It will be used in the article the theory of Sérgio Buarque de Holanda as an academic reference, beyond of the romances and tales of Lima Barreto. Restrict the place of the agent of law in the Lima Barreto work’s is one form to understand how was seen the profession of a lawyer in the beginning of century XX on Brazil. KEYWORDS: LIMA BARRETO, AGENT OF LAW, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA 3458

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O AGENTE DO DIREITO EM LIMA BARRETO

THE AGENT OF LAW IN LIMA BARRETO

Lucas Piccinin Lazzaretti

RESUMO

Na contemplação de uma obra literária a estrita observação de sua forma estética muitas vezes não é auto-suficiente. Caso é esse da obra de Lima Barreto, autor de grande impacto social que no começo do século XX absorve toda a transição entre império e república pelo qual o Brasil estava passando para tecer críticas pontuais no tocante a estrutura social que fundava o país. Dentro dessa estrutura se encontrará os agentes de direito, personagens centrais da obra de Lima Barreto que muitas vezes são avaliados não só de acordo com um caráter de moldura social, como também sendo os articuladores da estrutura social a que Lima Barreto tanto reprova. Usar-se-á no artigo o embasamento de Sérgio Buarque de Holanda como referência acadêmica, além dos romances e contos de Lima Barreto. Demarcar o papel do agente do direito na obra de Lima Barreto é uma forma de compreender como era visto o título de bacharel no início do século XX no Brasil.

PALAVRAS-CHAVES: LIMA BARRETO, AGENTE DE DIREITO, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

ABSTRACT

In the contemplation of a literary work the strict observation of his esthetic form many times is not enough. Case of this is the work of Lima Barreto, writer of a huge social impact that in the beginning of century XX assimilated all the transition between empire and republic for what the Brazil was passing to do annalistic critics about the social structures who sustain the country. Inside of this structure can be found the agents of law, central characters in the Lima Barreto work’s which many times are not assimilated just for their features in the social frame, but also as the articulators of a social structure that Lima Barreto reproves. It will be used in the article the theory of Sérgio Buarque de Holanda as an academic reference, beyond of the romances and tales of Lima Barreto. Restrict the place of the agent of law in the Lima Barreto work’s is one form to understand how was seen the profession of a lawyer in the beginning of century XX on Brazil.

KEYWORDS: LIMA BARRETO, AGENT OF LAW, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

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INTRODUÇÃO

A obra de Lima Barreto tende a ser resumida como um grande brado de protesto contra um Brasil decadente, em meio a uma estrutura social falha e corrupta, onde gritantes diferenças étnicas e sócio-econômicas se faziam visíveis a qualquer um que desejasse enxergar. Por mais que todo esse contexto pode ser realmente visualizado nos romances e contos de Lima Barreto, é infantil aos que passeiam por sua obra como um todo limitar e resumir um autor com tão grande capacidade literária a um simples escritor de panfletos políticos, como muitos o consideram.

Em obras como “Triste fim de Policarpo Quaresma” e “Clara dos Anjos”, fica evidente não só a avaliação institucional que Lima Barreto faz da sociedade brasileira do começo do século XX – com ênfase no Rio de Janeiro –, mas também das minúcias que aos poucos o autor vai explorando para por fim aflorar o que cada segmento dessa sociedade possui. Portanto, uma simples abordagem cômica da situação dos negros do Brasil logo após o início da república toma uma intenção sociológica de avaliação travestida que dá ensejo ao verdadeiro olhar que o autor fazia da sociedade de sua época. O uso da ironia e do cinismo são armas encontradas pelo autor que sofreu o preconceito da sociedade a que contesta e repudia para pronunciar-se da forma que deseja, sem ser taxado de pseudo-intelectual. Desnudado de suas armas pode se encontrar, principalmente em seus escritos menos visitados, um analista social de alta capacidade, que não se limita na produção literária de alto padrão, mas que, para além disso, preenche sua literatura com ensaios sociológicos, como pretendemos demonstrar.

Um dos alvos predileto de Lima Barreto era o agente do direito[1]. O autor não poupará esforços em minar a lenda do título de bacharel em direito e de todas as formas possíveis tentará mostrar o quanto são vagos e hipócritas os ensinos jurisprudenciais no início do século XX. Desde o ataque direto aos que criam e aplicam o direito, como pequenas inserções no campo intelectual onde um bacharel é sempre menosprezado intelectualmente quando posto em contato com alguém de formação verdadeiramente erudita.

Para contextualizar a obra e avaliação aqui proposta utilizaremos o livro “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda para estabelecer uma possível ponte entre um estudo realmente acadêmico e os ensaios sócio-literários de Lima Barreto.

1. EMBASAMENTOS TEÓRICOS.

No início do livro “Raízes do Brasil”, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda pontua algo que será de grande importância para a seqüência do presente trabalho. Afirma ele; “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas a sua tradição milenar, é, nas

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origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências”[2]. Deixando à parte a preocupação econômica substancial da formação brasileira e tomando como enfoque as estruturas sócio-estatais podemos aferir que quando o sociólogo pretende demonstrar o quanto somos efetivamente frutos de uma tentativa de extensão européia, acabamos por nos encontrar fortemente vinculados a toda tradição daqueles que aqui colonizaram. Os povos ibéricos que por toda a América estenderam seus domínios, não só trataram de aqui tentar cultivar as mesmas plantas que na Europa, houve também, mesmo que não tão intencionada quanto à agricultura, uma disseminação dos costumes e idéias que permeavam e constituíam o ínterim dos povos Ibéricos.

Dentre estes tantos costumes está a formulação de uma sociedade que se diferenciava em características da sociedade existente no restante da Europa. Uma discussão que perpassou toda a época renascentista na Europa – principalmente na Itália – sobre o embate entre ócio e negócio encontrará nos povos Ibéricos um belo exemplo de uma dessas preferências. Dados aos sentimentos e contemplações ao invés do trabalho, os portugueses e espanhóis passam às colônias americanas o seu pouco apego ao esforço braçal, como também a sua desestruturada noção de nobreza. Como foi por muitos autores ironizado, no Brasil, desde sua formação, era típica a disseminação dos títulos de nobreza. Todos eram nobres e todos nobres tinham seus devidos regalos. Enquanto a França e Inglaterra, bem como a Alemanha, prezavam em separar com grande distância os nobres dos burgueses, em Portugal a burguesia tinha se tornado um setor motor do estado português, isso motivado pelas grandes navegações, o que gerava então, juntamente com a preferência pelo ócio, um alargamento da camada “nobre” da sociedade. O pouco gosto pelo trabalho e a tentativa de ganho fácil fazia com que no Brasil “qualquer pessoa com fumaças de nobreza podia alcançar proveitos derivados dos trabalhos mais humildes sem degradar-se e sem calejar as mãos.”[3].

Será justamente essa mescla entre a preferência pelo ócio com a vasta existência dos títulos de nobreza, presente no Brasil, que fará com que mais tarde, quando novamente influenciado por idéias européias, o Brasil fundará e estruturará toda a sua nova república com idiossincrasias próprias, que serão então observadas e relatadas nos escritos de Lima Barreto.

Um dos últimos países da América a abandonar o regime escravocrata; um país que mesmo sendo herdeiro de toda falta de disciplina ibérica resolve recepcionar a vertente positivista – conhecida pela matematicidade e valorização dos preceitos morais – como embasamento para a mudança entre império e república; um país que mesmo tendo começado a se voltar para a urbanização ainda mantinha toda a sua estrutura rural, é o país que Lima Barreto verá nos tempos de transição entre o século XIX e XX.

O tempo de transição entre império e república se deu sob uma forma elitizada e pouco conturbada. Tomando por base os países que sofreram derramamentos de sangue para conseguir não só sua independência, como também para efetuar a mudança de império para república, pode se dizer que o Brasil teve uma certa vantagem quanto ao nível de brutalidade. No entanto, esse afastamento do povo fez com que os cidadãos que teoricamente deveriam ser os consultados para que a fixação de uma república democrática realmente ocorresse não tiveram noção sobre o que estava acontecendo, e segundo consta, nem sequer sentiram as mudanças entre império e república. É Lima Barreto quem evidencia isso no relato fictício sobre M. J. Gonzaga de Sá; “A república

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veio encontrá-lo quase só na seção, redigindo um decreto de Defensor Perpétuo e, ao lhe avisarem: ‘Seu’ Gonzaga, hoje não se trabalha; o Deodoro, de manhã, proclamou a República do Campo de Sant’Ana.”[4]. O personagem de Lima Barreto que trabalha para o Estado brasileiro nem sequer sabia sobre a importante mudança que ocorria em seu país. Apáticos os cidadãos acatam a mudança, primeiramente sugerida, e, posteriormente imposta pela elite, pois ao que tudo indica, pouco mudou-se na estrutura social. A ruptura esperada deu-se no alto âmbito do poder. Ao invés de um imperador um presidente; ao invés de acatar ordens de uma majestade acatariam ordens de um marechal.

Alterações feitas na estrutura do poder, logo a decorrência começa a se dar em forma mais impositiva também na estrutura social. O que antes se via como esporádico e valorizado de forma mesurada, começa a tomar tom de corriqueiro e a valorização se dá de forma desmesurada. É claro que a assimilação dos motivos que ocasionam essas alterações são sutis, mas de fáceis compreensão. Em um estado que se organizava na forma do império, onde as delegações eram legitimadas por um “juznaturalismo” a nobreza e a aristocracia não deviam decorrer diretamente de uma base legal e positivista. Durante o império o que ocorria eram concessões cedidas por aquele que é detentor do poder, segundo a legitimação “juznaturalista”. Na chegada da república o Estado começa a se estruturar de uma forma positivista. A legitimidade para a construção e delegação de poder não mais deve se dar de forma arbitrária, sendo que o contrato social força a existência de uma constituição que estabelece as competências, a nova aristocracia circundará os novos meandros do poder. É então que se fortalece o mito do bacharel. O que antes já vinha sendo ovacionado, porém de uma forma contida, passar a ter ares de nobreza, sempre lembrando a repudia cultural existente no Brasil aos trabalhos braçais. Evidente fica quando Sérgio Buarque de Holanda diz que; “Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza.”[5].

Dentre todos os conceitos em interseção entre a literatura de Lima Barreto e a sociologia de Sérgio Buarque de Holanda há um que se entrecruza de forma muito similar. Ao definir o “homem cordial”, o sociólogo torna sistemático e acadêmico um espírito que Lima Barreto já havia percebido anteriormente como intrínseco do homem brasileiro. Os homens do começo do século XX, segundo Lima Barreto, não sabiam bem ao certo o que era a definição de Estado, e, por conseqüência, também não era cientes da diferença entre vida pública e vida privada. O freqüente trato da vida pública como extensão da vida privada é o que, segundo os dois autores, levava o Brasil a um estado de pouca evolução organizacional e de fácil queda a corrupção e clientelismo. Lima Barreto irá ironizar isso em seus escritos, de forma que todas as coisas danosas e corruptas eram advindas por conseqüência direta da demasiada proximidade entre cargo público e vida privada. No capítulo dedicado ao “homem cordial” no livro “Raízes do Brasil”, há uma preocupação em iniciar a exposição através de uma idéia afirmativa sobre como deve se comportar a relação entre cidadão e estado. “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição.”[6]. Nesta definição, em que separa claramente o papel da família e do

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Estado, e, mais do que isso, afasta a possibilidade de se supor o Estado uma extensão agigantada da noção de família, é que o conceito de homem cordial se delimitará.

Junta-se todos as características antes citadas, em que uma forte influência ibérica faz com que o homem brasileiro dê preferência ao ócio em vez do negócio; onde a nobreza é disseminada e a aristocracia toma ares diferentes com a chegada da república, onde se fortalece o prestígio pela carta de bacharel; e ainda há uma confusão entre o papel de família e Estado, que facilmente se chegará ao conhecimento do que é um “homem cordial”. Pouco dado ao trabalho, as formalidades burocráticas do convívio estatal, como também a dificuldade em manter a impessoalidade, o “homem cordial” é o cidadão que é parcimonioso no sentido de que não pretende se indispor com nada. Pelo contrário, tem a verdadeira intenção de seguir o rumo de sua vida sem que com isso tenha que fazer grandes esforços. Segundo Antonio Candido; “O ‘homem cordial’ não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não são necessariamente profundas, que se opõe aos ritualismos da polidez. O ‘homem cordial’ é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.”[7].

2. UM AUTOR EM SEU TEMPO.

Quando nasceu Lima Barreto, em treze de maio de 1881, o Brasil ainda esperaria sete anos para ver assinada a declaração de que o regime escravocrata estava abolido do país. Tanto o pai quanto a mãe de Lima Barreto eram mulatos e tinham fortes ligações com a escravidão, sendo seu pai nascido escravo e sua mãe filha de escrava. No entanto, por mais que Lima Barreto tenha nascido livre, essa condição não era necessariamente uma certeza de inclusão social. A escravidão tem seu último suspiro dado em 1888, mas suas conseqüências se estenderam pela última década do século XIX, e, de certa forma, também perpetuarão pelas primeiras duas décadas do século XX. Lima Barreto, apesar das dificuldades impostas pelo ambiente em que nasceu teve uma boa educação. Estudou em liceu, e ao que tudo indica teve bom proveito do tempo em que foi estudante. É o próprio Lima Barreto quem explica a sua condição de necessidade de estudos em um de seus livros mais auto-biográfico, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”. O personagem do livro tenciona ser doutor, pretende tirar carta de bacharel. Essa perspectiva é um tanto quanto irônica por parte de Lima Barreto, que mesmo não tendo se formado em um curso dito como superior acabou por mostrar-se mais culto do que aqueles que se pretendiam cultos em sua época. Dizia o personagem do livro; “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor”[8]. A questão da cor será uma constante na obra de Lima Barreto, seja porque hora ele estará tentando provar o seu valor intelectual que sobrepõe a sua característica étnica, seja porque hora esteja denunciando as misérias que são impostas aos que tem a mesma ascendência que ele.

Outra crítica pela qual Lima Barreto é conhecido é a depreciação, por parte do autor, a toda a estrutura que se forma ao redor da “república velha”. Não é de se dizer que Lima

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Barreto seja um monarquista. A crítica feita à república se situa mais no âmbito ideológico. Ora, se a monarquia era um governo onde o imperador ditava as ordens, e, salvo exceção, não tinha o dever de ouvir com atenção os anseios do povo, e a república era onde o povo teria voz e vez, é de se imaginar a decepção que acomete um esperançoso que vê ruir em atos as ideologias republicanas. Como já foi dito a república foi algo que aconteceu no Brasil por meio das elites e para as elites. Uma mera questão de distribuição do poder. A grande decepção de Lima Barreto é com a manutenção de valores que ele julgava retrógrados e pouco virtuosos, como é o caso da demasiada valorização da carta de bacharel. Mais uma vez é na voz de um personagem que Lima Barreto se manifestará nesse ponto; “Gonzaga de Sá dizia-me (...). A mais estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia.”[9]. É na tentativa de galgar, e na admiração que tem a pequena-burguesia por uma falsa e pretensa aristocracia que está uma das mais ferrenhas críticas de Lima Barreto ao seu tempo.

O último ponto ao qual é pertinente se referir é justamente o ponto ao qual essa avaliação se propõe. Saber como Lima Barreto vê e descreve os agentes de direito em seu tempo. Antes de entrar na avaliação em si é preciso explicitar algumas coisas.

Quando o Brasil declara a sua República isso é feito por intermédio das mãos dos militares. Essa classe que há muito era bem cotada no país, vinha circundando os caminhos do poder e se mostrava para os integrantes das elites como a ferramenta necessária para a tomada do poder definitivo. As elites possuíam dinheiro, influências econômicas, por conseqüência, tinham todo um embasamento ideológico que justificava aparentemente suas intenções, mas não tinham as ferramentas necessárias para inverter as estruturas do poder, tal como queriam. Isso fez com que os militares fossem os escolhidos pelas elites como aliados para a realização dos seus intentos. Assim se dá e fica evidente com a observação de quem foram os primeiros presidentes brasileiros. É Marechal Deodoro da Fonseca a declarar a república e Marechal Floriano a tentar fixá-la definitivamente. Lembra-se aqui que o Marechal Deodoro nem ao menos era um republicano fervoroso, e muito pelo contrário era até bem relacionado com a família real brasileira. Assim ocorre a mudança de império para república no Brasil, uma troca de majestade por militares, em nenhum momento o povo é colocado em questão. Os cidadãos brasileiros são ponto passivo na discussão. Nessa confusão em que as majestades são afastadas e os Marechais governam como se fossem majestades é que a literatura de Lima Barreto se empenha em criticar. Falando sobre assuntos aleatórios, Lima Barreto aproveita a oportunidade para tecer comentários. Tal como, ao falar sobre ruas; “A antiga chamava-se Marechal Deodoro, Ex-Imperador; e a nova, Marechal Floriano, Ex-Imperatriz.”[10]. O escritor aproveita uma situação onde elenca uma descrição sobre ruas e suas possíveis mudanças de nomeações para demonstrar o seu desprezo e opinião sobre os presidentes republicanos. Fica então entendido que os tempos não eram virtuosos, além do que havia um grande escritor para criticar e satirizar tudo que rondava a “república velha”. Tendo em vista tudo que foi pontuado pode avaliar, por fim, de que forma se dará a avaliação de Lima Barreto sobre os agentes do direito.

3. AVALIAÇÃO SOBRE OS CONTOS.

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Começaremos a adentrar na obra de Lima Barreto pelos contos. Não porque sejam menos importantes ou porque tenham menos complexidade. Esse tipo de pensamento não pode ser tido pelo motivo que cairia em um juízo de valor que não é pertinente. Optamos por tal início porque a real avaliação sobre a obra foi feita em torno dos romances de Lima Barreto e a leitura dos contos foram a busca de um complemento às opiniões desenvolvidas pelo autor em seus romances.

Portanto nos limitaremos a avaliar dois contos em especial, que por mais singelos que pareçam dão a perfeita entonação para o que se pretende dizer nos romances. Assim fica entendido que os contos de Lima Barreto são, de certa forma, uma abertura para a leitura de seus romances, que é onde as idéias se fixam e se desenvolvem de uma forma até um tanto quanto similar em quase todas as suas obras. O primeiro conto, e mais conhecido, é o afamado “O homem que falava Javanês”. Trata sobre um encontro onde dois velhos amigos conversam acerca das mudanças e peripécias que aconteceram em suas vidas. Um deles, o narrador central da história, bacharel em direito diz o quanto já sofreu em sua vida até chegar à condição que se encontra no ponto em que os dois conversam. É esse conceito de sofrimento que dará uma das partes mais sutis, mas também mais importantes do texto. Ao dizer o quanto havia sofrido o narrador expõe; “Houve mesmo uma dada ocasião, quando tive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíram ao meu escritório de feiticeiro e adivinho.”[11]. O personagem quer dizer com isso que, para ele, não há nada mais vergonhoso do que ter que esconder a sua condição de bacharel. Isso denota mais aprofundado no decorrer da história, em que o narrador cita que em determinado momento viu em um anúncio de jornal que havia a vaga para um conhecedor de Javanês. Essa língua, que até então era desconhecida para o personagem passa a ser conhecida através de uma enciclopédia. Lima Barreto quer dizer com isso que o bacharel tem um conhecimento de aparências, ou seja, um conhecimento de passagem, nada erudito e aprofundado. Como se não bastasse toda a crítica feita aos bacharéis, e a falta de conhecimento suposta por Lima Barreto, o escritor segue criticando por fim toda a sociedade de “cultos” de sua época. Isso se dá porque o narrador, que é um falso conhecedor de Javanês, consegue o respeito e admiração dos “cultos” da sociedade, o que denota que não só os bacharéis são falsos conhecedores, mas também que toda a sociedade é possuidora de uma falsa erudição. Vê-se aí que a crítica aos agentes do direito se faz na forma de desconstruir a ferramenta usada por esses profissionais, ou seja, atacará diretamente a falta de conhecimento e erudição que Lima Barreto vê nos agentes do direito.

O segundo conto também parte do pressuposto que a sociedade em que Lima Barreto vive é pouco dada a erudição, mas o caminho a que esse conto leva é o que importará. Enquanto o primeiro conto levava de tal modo a perceber que a crítica final era feita aos supostos “cultos” e aos bacharéis em direito, o segundo tem por intenção criticar a estrutura estatal. Denominado “Como o ‘Homem’ chegou”, é um conto misto de crítica as estruturar burocráticas do governo que dão poderes a homens desumanos e indiferentes a sociedade, com a prova de que o conhecimento gera inveja aos que se portam como “sábios”. Um homem é tido como louco no norte do Brasil, por ter conhecimentos respeitáveis, isso faz com que aqueles que se julgam “sábios” se sintam desconfortáveis com a existência desse homem. Pelo fato dos “sábios” terem contatos com o poder uma “jaula” é fabricada com a intenção de levar o “homem” preso a sua penitenciária. Acontece que a penitenciária se encontra a milhares de quilômetros do local onde mora esse homem, e ele deve ser transportado dentro da sua minúscula

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cabine prisional. Por ser considerado louco e perigoso não há a possibilidade de sair da cabine, o que deixa no fim do conto subentendido que o “homem” faleceu durante o longo trajeto por inanição. Todos esses artifícios, até tidos como absurdos, são usados por Lima Barreto para demonstrar que aqueles que estão afastados do círculo do poder podem pouco contra aqueles que estão próximos. Isso fica claro quando Lima Barreto comenta sobre a polícia de uma forma jocosa; “A polícia da república, como toda gente sabe, é paternal e compassiva no tratamento das pessoas humildes que dela necessitam; e sempre, quer se trate de humildes, quer de poderosos, a velha instituição cumpre religiosamente a lei.”[12]. Junta-se essa crítica em que as estruturas do poder não servem a todos, mas sim unicamente aos que se estão próximos ao poder, com o fato de que aqueles que se inserem no controle do estado são falsos eruditos, e logo se chegará ao complexo molde crítico que Lima Barreto faz do Brasil em seu tempo. Por isso da importância desses dois contos supracitados para compreender os romances que serão avaliados. A junção das características de cada conto é em síntese a tese de Lima Barreto na maior parte de suas obras. Tal como veremos.

4. AVALIAÇÃO SOBRE OS ROMANCES.

Há, antes de entrar por fim na avaliação, algumas ressalvas que se mostram pertinentes serem feitas, com o intuito de esclarecer o trabalho aqui apresentado. Primeiramente delimitamos que nossa avaliação sobre os romances de Lima Barreto se dá de uma forma pontual e precisa, de modo que haveria muito mais para se explorar, mas que aqui extrapolaria as pretensões, sendo assim o que se busca fazer é uma conexão entre as teses antes apresentadas e trechos que confirmem tais teses dentro dos romances de Lima Barreto. Outro ponto importante é explicitar que de forma alguma se pretende aqui tomar partido em favor ou contra as colocações críticas de Lima Barreto. A avaliação se restringe a obra e as suas características, e a tese que Lima Barreto formula sobre os agentes do direito de seu tempo é importante tanto como conhecimento da história da literatura, como também a noção de formação cultural do Brasil.

Feitas as ressalvas. Dar-se-á início das conexões entre as teses formuladas com embasamento em Sérgio Buarque de Holanda, para por fim sustentar o que havíamos pontuado como a principal característica da crítica de Lima Barreto tomada dos dois contos supracitados. Comentar os romances de nosso autor em questão é sempre perpassar pelo romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, no entanto, há outras obras que ressaltam a qualidade de escritor de Lima Barreto da mesma forma que o seu mais afamado livro. A obra “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.”, é talvez uma das obras em que Lima Barreto deixa o seu lado crítico se equilibrar com o seu lado escritor, proporcionando assim ao leitor a verdadeira visão do que era realmente o conhecimento de Lima Barreto. Essa obra é de caráter imprescindível, pois o personagem principal – o senhor M. J. Gonzaga de Sá – não é de forma alguma semelhante aos outros tanto personagens de Lima Barreto. É um homem de classe, com vasta noção de mundo e um apreço gigantesco pelo conhecer. Tanto é apreciador da verdadeira erudição que evita transparecer-se sábio para não ser confundido com os pseudo-intelectuais que pululam por toda sociedade. O que lhe diferenciará de fato dos homens de sua época é sua formação. “Manuel Joaquim Gonzaga de Sá era bacharel em

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letras pelo antigo Imperial Colégio Dom Pedro II.”[13], e como se dirá de Gonzaga de Sá sobre suas opções; “Era preciso ser doutor, formar-se, exames, pistolões, hipocrisias, solenidades... Um aborrecimento enfim... Não quis; fez-se praticante e foi indo. Foi empregador assíduo e razoável trabalhador.”[14]. Ou seja, faz em uma só vez a opção de negar o caminho da falsa erudição, entendido por Lima Barreto como o bacharelismo em direito, e tomar um caminho que poderia conduzi-lo ao conhecimento sem falsas erudições. O que dará mais significância a escolha que fez Gonzaga de Sá é que por todo o livro terá situações de confronto em que a sua pessoa é posta a prova perante um daqueles falsos conhecedores. Os bacharéis serão um ponto em que mostrará o quanto está sendo forçada a convivência de um sábio – representado por Gonzaga de Sá – com uma sociedade de falsários. A desproporção do conhecimento do personagem principal em comparação com os bacharéis de direito é evidente pelos diálogos que desenvolve Gonzaga de Sá com o narrador do livro. O narrador do livro é um jovem amigo do personagem que decide escrever, após o falecimento do personagem, algumas memórias do que teria sido a vida daquele tão honrado homem a quem o narrador admirava. Dentre os diálogos a serem lidos haverá diversas citações de artistas, escritores e filósofos de todos os tempos e de todo o mundo emanando dos pensamentos de Gonzaga de Sá. Enquanto que dos lábios dos agentes do direito só se verá presunção e prepotência.

Enquanto em um livro Lima Barreto descreve os agentes do direito como seres opressores e falsos eruditos em outro ele os ridiculariza, dando a entender que qualquer homem que tivesse a intenção de se tornar um operador do direito não precisaria ter em verdade um conhecimento preciso e avultante, mas ao contrário, precisaria saber os jargões, usar roupas que dessem semelhança de profissão e praticar incessantemente algo que era de fácil aprendizagem. Isso demonstra-se no livro “Clara dos Anjos”, que segundo consta, era um dos livros com o qual Lima Barreto tinha suas maiores pretensões literárias. Neste livro surge o personagem de Praxedes, que por mais secundário que seja, é um fonte de escape da qual Lima Barreto usará para não romper o curso da história e mesmo assim tecer suas opiniões a cerca dos agentes do direito. “Chamava-se Praxedes Maria dos Santos; mas gostava de ser tratado por doutor Praxedes! A monstruosidade de sua cabeça o pusera a perder. Por tê-la assim, julgou-se uma inteligência, um grande advogado, e pôs a freqüentar cartórios, servindo de testemunha, quando era preciso. (...) Com o tempo, tomou luzes e atirou-se a tratar de papéis de casamento e organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos, de índices de legislação, etc. etc. (...) Não falava senão em leis e decretos.”[15]. Esse trecho é uma boa demonstração do quão ridículo Lima Barreto tenta transformar o agente do direito. Ao apresentar o personagem dizendo o seu nome, e em seguida, fazer a ressalva de que o personagem gostava de ser tratado por doutor é uma forma de o autor demonstrar o quanto eram prepotentes os agentes do direito. Se o personagem toma essa atitude não é somente porque ele considerava galanteadora sua “profissão”, mas porque o título de doutor lhe conferia respeito perante toda sociedade. No entanto, esse respeito é em seguida quebrado pela característica física que Lima Barreto descreve e associa a um traço do caráter. Ser macrocéfalo levou o personagem Praxedes a pensar que era inteligente, ou seja, Lima Barreto diz com isso que a capacidade intelectual de um agente do direito é externa, simplesmente aparente, tal como o traço físico de Praxedes, que como se pode perceber não dá garantia nenhuma de bom uso do que se há interiormente. Só então, depois de associar a falta de capacidade intelectual que Lima Barreto aplica o golpe de misericórdia. Só depois de deixar claro que Praxedes era apenas alguém pretensioso o autor narra como o personagem alcançou suas intenções.

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De uma forma simples e básica, apenas freqüentando os locais de aplicação do direito e observando os rituais, Praxedes já se torna apto a se tornar um agente do direito. O pedantismo que é tão conhecido nos agentes do direito em Lima Barreto fica claro no fim do trecho, quando o autor coloca que o personagem Praxedes organiza uma biblioteca particular com manuais jurídicos e que só fala em leis e decretos. Tira-se desse personagem cômico que, segundo Lima Barreto, em sua época qualquer um poderia ser agente do direito, sendo capaz ou não. O que precisava era ser pretensioso e pedante, sempre dando o devido respeito à falsa nobreza que exalava do bacharelismo.

No livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, tido como livro mais autobiográfico de Lima Barreto, a narração se dá de tal forma que o personagem principal, Isaías Caminha, além de recorda-se – como diz o próprio título – de fatos de sua vida, vai além e desenvolve alguns comentários que são a mais pura avaliação sociológica de Lima Barreto. A eterna desavença do personagem com os agentes do direito é advinda do fato de que o próprio personagem tinha intenções de tornar-se um bacharel em direito, mas teve suas esperanças frustradas. Como o livro é escrito com o intuito de fazer com que um personagem, que já com uma certa vivência observa os fatos ocorridos, é de se esperar que essa frustração tenha importante influência sobre os comentários do personagem. A eterna tese de que os agentes do direito, com ênfase nos bacharéis, não possuem conhecimento, e, no entanto, são quem distribuem ordens e possuem poderes também perpassa esse livro. O personagem lembra-se dos tempos em que sonhava ser bacharel, e elenca os motivos; “Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma.”[16]. Isso retoma a discussão de que a carta de bacharel, no caso o diploma, era o suficiente para cumprir a carência de nobreza de que o brasileiro sempre valorizou, dando todas as vantagens que acompanham e caracterizam a falta de aptidão ao trabalho típica do brasileiro, segundo Lima Barreto e corroborado por Sérgio Buarque de Holanda. Na seqüência do raciocínio há um trecho no livro agora em questão em que um amigo – de origem russa – do personagem faz oposição ao caráter passivo quanto ao trabalho por parte dos brasileiros. “Gregoróvitch incitara-me a trabalhar pela grandeza do Brasil; fez-me notar que era preciso difundir na consciência coletiva um ideal de força, de vigor, de violência mesmo, destinado a corrigir a doçura natural de todos nós.”[17]. Ou seja, o amigo de Isaías Caminha se opunha ao “homem cordial”, ao homem passivo que é dócil por natureza, que não se indispõe, e que evita ao máximo perturbar o padrão estabelecido com medo de ser prejudicado. Há ainda um trecho que é de importância relevante para ser observado; “Foram os primeiros legisladores que deram à carta esse prestígio extraterrestre... Naturalmente, teriam escrito nos seus códigos: tudo o que há no mundo é propriedade do doutor, e se alguma coisa outros homens gozam, devem-no à generosidade do doutor.”[18]. Nesse trecho, além da ironia presente, há também uma descrença, por parte de Lima Barreto, nas mudanças sociais. Quando diz que os primeiros legisladores deram o prestígio desmesurado aos bacharéis, Lima Barreto quer dizer com isso que a manutenção da classe no poder se deu com a mudança do império para república e que assim continuaria. Fica marcado nesse trecho que o poder dado aos bacharéis é o que realmente Lima Barreto quer criticar, se antes fossem sábios talvez não sofressem tais ataques. A preocupação de Lima Barreto não é só com a mudança social que gostaria de ver acontecer, mas é com todo um sistema que era falho e viciado, como foi visto nos embasamentos teóricos antes colocados.

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Percebe-se então o motivo pelo qual “Triste fim de Policarpo Quaresma” é tão afamado. O sistema era falho e dava vezes à corrupção, isso já foi prescrito. Justamente por isso é que ao colocar um personagem que têm todas as idéias e características contrárias as já estabelecidas na sociedade o conflito de um bom romance aparece. Policarpo Quaresma é um personagem quixotesco como já foi dito tantas vezes, é um homem sonhador, a lutar com gigantes que somente ele vê. No entanto, não é porque somente ele vê os gigantes que de fato eles não existam. A sociedade só não vê, porque ela mesma cega-se para isso. O “homem cordial” não pretendia cegar-se para com isso ter uma vida mais cômoda? É nisso que entra a magnificência da obra de Lima Barreto. O personagem sonhador, que se contrapõe a toda estrutura vigente pretende desempenhar mudanças, no entanto se vê barrado por pessoas ineficientes e frívolas. São essas pessoas, em sua maioria, os agentes do direito. Eis o porquê da importância dos dois contos antes explicitados. Se nos outros romances de Lima Barreto havia apenas uma crítica voraz aos padrões do bacharelismo e falsa nobreza de sua época, no “Triste fim de Policarpo Quaresma” há um personagem em conflito direto. O conflito se dá porque a prática não é permitida pelos seus concidadãos. Assim sendo que há um culto exacerbado a carta de bacharel, e que esses bacharéis são “homens cordiais”, covardes para a mudança e aptos a relações beneficiadoras, e que, para além disso, pretendem-se algo que não são, ou seja, sábios e eruditos, fica claro no romance de Lima Barreto que o personagem Policarpo Quaresma não luta pela preservação e crescimento do Brasil, como é mais aparente, mas que luta, em verdade, pela reestruturação de um sistema falho e corrupto. Por mais que suas idéias sejam tidas como tresloucadas e fora de aplicabilidade – como é o caso da agricultura –, Policarpo é o único que se esforça, que busca maneiras de tirar o seu país da pasmaceira. Mas não está lutando apenas com adversidades naturais, muito pelo contrário, seu maior inimigo são seus próprios conhecidos, a sua própria sociedade. As tentativas de Policarpo são todas frustradas. Os seus intentos satirizados por aqueles que o cercam. Não passa de um “qualquer sem título”, como pensarão muitos durante o decorrer do romance. E mesmo que conseguisse passar por sobre os preconceitos sociais teria ainda assim o bloqueio do Estado em sua frente. “Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transforma em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.”[19]. Policarpo Quaresma é um homem qualificado para cuidar de seu país, para inovar por seu país. É alguém que busca o conhecimento e não instituições que se dizem detentoras do conhecimento, alguém que visiona, alguém que não se limita aos seus redores. Mas acaba preso. É essa prisão uma ótima forma de representar como Policarpo deveria ter se sentido por todo livro. Enquanto idealizava enxergava gigantes, se via livre. Quando começa a ver a realidade passa a ver moinhos, ou seja, sua prisão. Lima Barreto prende seu personagem de fato, o que dará no último capítulo do livro um grande desabafo de Policarpo Quaresma. O personagem se pergunta se são possíveis todas as mudanças que pretendia, não pela viabilidade do projeto, mas pelos entraves sócio-culturais, dos quais os principais responsáveis são os agentes do direito. Aliás, isso é uma característica de todos os romances de Lima Barreto. Todos se finalizam com um questionamento de viabilidade, hora se é viável o projeto de Policarpo Quaresma, hora se a vida de Gonzaga de Sá serviu a algum propósito, hora se Clara dos Anjos é inserida na sociedade ou não, hora se Isaías Caminha fez as opções certas em sua vida. A incompreensão é corrente. Tal como evidencia Policarpo Quaresma em seu desabafo; “Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.”[20]. Se de um lado há em Policarpo

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Quaresma idiossincrasias típicas de um personagem quixotesco, por outro lado há também uma decepção social que transcende toda a desilusão de combate, típica de Dom Quixote. Os sonhos não são apenas frustrados, são também mitigados por seus opositores.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Tentamos através de uma conexão entre uma teoria acadêmica e um recorte sobre várias obras de um autor – no caso Lima Barreto – demonstrar como eram visto os agentes do direito no começo do século XX, e também ao fim do século XIX. A escolha de um autor como Lima Barreto para tal avaliação foi explicitada com as inserções de trechos das obras do autor. Através desses trechos percebe-se os motivos que nos levaram a optar pela obra de Lima Barreto em detrimento de outros autores de época semelhante, tal como Machado de Assis. Não foi levada em conta a preocupação literária do autor, por mais que Lima Barreto tenha se mostrado um autor de alta capacidade estilística, tanto em seus contos, quanto em seus romances. Como dirá o próprio Lima Barreto em um de seus escritos; “Não é o seu valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para o fim que almejo.”[21].

A intenção de tal trabalho não é simplesmente fazer uma intersecção entre artistas literários com o direito, mas é também, e principalmente, abrir uma nova visão sobre o mundo em que vivemos, no caso o mundo jurídico. A visão externa é de extrema importância, ainda mais quando é feita sobre um prisma tão minucioso e qualificado como nas obras de Lima Barreto. Por mais que todo o trabalho verse sobre fatos histórico-sociais que ocorreram na passagem do século XIX para o XX no Brasil, a tese e crítica de Lima Barreto deve servir como uma alerta à todos os tempos vindouros, para que de forma alguma se perpetue uma cultura viciada e baseada em tão baixos princípios. Se superamos hoje em dia a noção de “homem cordial” e nos encontramos em uma nova fase do Brasil, não podemos deixar que os costumes típicos de uma época em que a falsa nobreza se perpetuava se estenda até nós. O fato não é uma profissão ser digna ou não de respeito, o fato é o quanto se exacerbará o culto sobre uma ou outra profissão. A formação também deve ser uma preocupação para os leitores de Lima Barreto. Se vimos que a instituição de ensino jurídico não é garantia de um conhecimento humanístico e virtuoso devemos como homens esclarecidos nos empenhar para alterar a formação dos nossos bacharéis. Lima Barreto critica tanto os médicos quanto os bacharéis em direito por prepotência, presunção e arrogância, no entanto sua crítica maior se concentra nos agentes do direito, pois são esses que se relacionam diretamente com o poder, causando maior ou menor dano a sociedade. Um mundo injusto é fruto de uma herança cultural, porém optar por permanecer em um mundo injusto e corrupto é algo inerente a cada um.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

BARRETO, Lima. Clara dos Anjos e outras histórias. São Paulo, Editora Ediouro. (Publifolha). 1997.

_______. Os Bruzundangas. São Paulo, Editora Ática. 2001

_______. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo, 10 ed., Editora Ática. 1998.

_______. Triste Fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro, 1 ed., Editora MEDIAfashion. 2008.

_______. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo, Editora Ática. 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, 26 ed., Editora Companhia das Letras. 2007.

[1] O termo “agente do direito” que nesse trabalho será empregado deve ser entendido como o agrupamento daqueles que criavam o direito, como também aqueles que praticavam o direito. Deve ser levado em conta que no tempo de Lima Barreto muitos dos agentes do direito eram também militares.

[2] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Pg. 31.

[3] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Pg. 59.

[4] BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Pg. 26-27.

[5] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Pg. 83.

[6] Idem, Ibidem. Pg. 141

[7] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Pg. 17.

[8] BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Pg. 26.

[9] BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Pg. 32.

[10] BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Pg. 120.

[11] BARRETO, Lima. Clara dos Anjos e outras histórias. Pg. 209.

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[12] BARRETO, Lima. Clara dos Anjos e outras histórias. Pg. 237.

[13] BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Pg. 26.

[14]Idem, Ibidem. Pg. 26.

[15] BARRETO, Lima. Clara dos Anjos e outras histórias. Pg. 61.

[16] BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Pg. 27.

[17] Idem, Ibidem. Pg. 57.

[18] BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Pg. 27.

[19] BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Pg. 149.

[20] Idem, Ibidem. Pg. 232.

[21] BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Pg. 65.

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