O Barão - setembro de 2015

13
setembro ‘15

description

 

Transcript of O Barão - setembro de 2015

Page 1: O Barão - setembro de 2015

o barão

setembro ‘15

Page 2: O Barão - setembro de 2015

ÍndicePágina 2 - Editorial

Página 3 - “Ser mulher na universidade” por Coletivo MaGu

Página 4 - “A (r)existência negra na universidade” por NegraSô

Página 7 - “Sobre os muros e as pedras no meio do caminho” por Amanda Petraglia, Vanilda Chaves e Vinicius Mussato

Página 10 - “MINUSTAH: um relato do fracasso da paz liberal e dos abusos das missões de paz” por Lívia Damasceno, Marcela Tosi e Thais Bianchi

Página 12 - 5ª página por Fer Pina

1

Participe d’O Barão você também!

Procure qualquer integrante da equipe dessa edição ou mande inbox na nossa página no Facebook. Acompanhe nossas publicações no site: https://jornalcaripuc.wordpress.com/ ou no nosso Issuu: http://issuu.com/jornalobarao

Contribuíram nessa edição: Marcela Tosi, Mari Trevisan, Isadora Souza, Bárbara Blum, Lúcia Lucas, Gabriel Casnati, Vitor Bastos, Christian Kalousdian

Imagem da capa e ilustrações: Maria Fernanda Pina

Page 3: O Barão - setembro de 2015

editorial

Por bastante tempo a essência crítica de nós, internacionalistas, esteve abafada pela falta de um veículo que desse vazão à nossa voz. Existimos durante outras gestões do CARI e movidos pelo empenho de estudantes hoje já formadas e formados. Nesse ano de 2015, nasce uma nova empre-itada visando à revitalização do projeto. Fruto de muito empenho e dedicação o jornal dos(as) estudantes de RI da PUC-SP volta, primeiro em formato de blog e agora nessa edição organizada em torno dos temas de acesso e permanência universitária.

Buscamos ser espaço para expressão de todas e todos estudantes, ser a cara do curso. Mas, afinal, qual é essa cara? Falar da Pontifícia sempre foi falar de resistência. Entretanto, muitas pessoas existem e resistem para entrar e permanecer aqui e, frequentemente, são negligenciadas ou tem suas pautas marginalizadas.

Ausência de creche, corte de subsídios de alimentação, dificuldades burocráticas para bolsistas, aumento abusivo de mensalidades, fecha-mento de cursos compõem importantes pautas e foram causa de mui-tos dos acontecimentos no primeiro semestre. E não deixarão de ser pauta nesse semestre que começa.

Mais do pensar nas questões internacionais, essa edição vem para colocar em pauta todas as questões que nos cercam e, muitas vezes, a não ser que as vivamos, nos passam invisíveis. Universidades tidas como de excelência são de onde sairão muitas das pessoas que ocuparão altos cargos e serão responsáveis por importantes decisões no mundo. Precisamos, portanto, encarar como tem sido a formação desses profis-sionais.

Precisamos falar de machismo, racismo, segregação e exclusão.

2

Page 4: O Barão - setembro de 2015

Ser mulher na universidade

O Coletivo Feminista Maria Augusta Thomaz – MaGu, coletivo auto-organizado pelas mulheres do curso de Relações Internacionais da PUC-SP, formou-se em 2014 e se posi-ciona contra todas as formas de opressão.

MaGu

A formação acadêmica é um dos mo-dos para a melhoria econômica dentro da sociedade capitalista, incluindo as mulheres que, no contexto patriarcal vi-gente, buscam independência intelectu-al, política e financeira. Essa sensação de busca de emancipação dentro da univer-sidade nem sempre é concretizada. Apesar de parecer simples para alguns, o ganho de espaço nas universidades é uma luta árdua, já que ainda hoje é um lugar de opressões e machismo. O desconforto para as mulheres começa no translado (especialmente para as que estudam à noite), oferecendo vários riscos e empecilhos para a permanência e o acesso destas às universidades. Sa-be-se que, caminhar às 11h30 da noite, a pé e sozinha é sinônimo de medo e assédio. Desde pequenas passamos por diversos tipos de assédio por parte dos homens, que vão de um “Oi, gostosa”, como se tivéssemos perguntado a opin-ião de algum homem sobre o que ele acha do nosso corpo, a uma “encoxada” no metrô/busão e ao estupro. Esse medo é recorrente porque é real. Para além de chegar à universidade – seja pelos vestibulares, seja no próprio cotidiano – estar nela é estar sujeita a ambientes e festas extremamente de-sconfortáveis: brincadeiras sexistas, opressão e tentativa de sujeição da mul-her. Um exemplo disso é o caso da estu-dante de direito da PUC que se matou após ter sido estuprada numa festa do lugar onde fazia estágio. Isto é “comum” nas universidades brasileiras e passa batido pela mídia, pela administração das instituições e pelos organizadores que tem como responsabilidade garantir o bem estar de todas as estudantes. Na maioria dos casos, os trotes violentos e opressivos são mantidos pela palavra “TRADIÇÃO”. Assim como as músicas das baterias, que constantemente ob-jetificam a mulher e usam termos ex-tremamente agressivos - “Nós aqui (insi-ra um curso) PUC somo foda pra xuxu/Enrabamo a mulherada/E ainda pomo

no seu cu, o cu, o cu da sua mãe” ou então o “Puquiana não sente dor”, que no curso de RI deixaram de ser tocadas pela bateria, mas ainda se perpetuam em vários outros cursos. Tradição nada mais é do que a criação de uma ideia de que o passado não se modifica. Somos responsáveis pelo que é feito hoje, não podemos nos abster da mudança, que é concreta e necessária.Outros fatores de diferenciação e seg-regação devem ser levados em conta. A discussão se desdobra em muitas outras e merece muito mais enfoque e tempo para ser discutida do que essas poucas palavras, porém é extremamente im-portante citar que da mesma maneira que há diferença entre a dificuldade do ingresso de uma mulher em relação a um homem, há uma gritante diferença se formos por em pauta além do gênero, cor e classe. A quantidade de mulheres negras é baixíssima assim como a par-ticipação destas em coletivos e centros acadêmicos da instituição, isso porque o racismo e machismo velado (ou não) torna o ambiente hostil e não acolhedor. Assim como as e os estudantes prounistas que, entram semanas após o início das au-las, perdem matéria, perdem os momen-tos de integração e são muitas vezes segre-gados pelos demais colegas e professores. O movimento estudantil e os coletivos universitários também fazem parte de uma sociedade machista e não deixam de reproduzir os seus mecanismos. A abundância de falas de companheiros homens nas assembleias e reuniões em comparação as mulheres, que quando se pronunciam muitas vezes tem suas falas ignoradas, é exemplo disso. Outra questão muitas vezes de exclusão de mulheres ao ambiente universitário é o fato de ser mãe. Quais são os espaços que realmente acolhem essas mães den-tro da PUCSP e de diversas outras uni-versidades brasileiras? Como dividir o tempo entre ser estudante, trabalhar, ser mãe e ser mulher? Quantas pessoas uma mulher tem que ser pra ser considerada bem sucedida? Essas são algumas per-

guntas e cobranças que algumas mul-heres se fazem e não deveriam, porque o ambiente universitário deveria ser pensado também para elas. TODAS de-veriam ter o direito de ingressar em uma universidade se quiserem. Ser mãe não deveria ser empecilho para ninguém. Sabemos o quanto tal situação recai so-bre as mulheres e o quão importante é o planejamento de espaços pensado nelas e não só neles. Assim, é de grande importância que lute-mos por iniciativas como a Creche Popu-lar na PUC-SP, que com muita persistên-cia e movimento por parte dos estudantes, está acontecendo aos sábados - não só para estudantes responsáveis por alguma criança, mas também para funcionárias e funcionários terceirizados (funcionárias em sua maioria que precisam de algum espaço para seus filhos e filhas). Trata-se de uma vitória (e das grandes), porém não é vista assim pela faculdade. Esta, que continuou a funcionar para cursos da COGEAE no mês de julho, não permitiu o funcionamento do Cursinho Popular da PUC-SP (que também acon-tece aos sábados), nem da creche. Isso só demonstra o desrespeito que a uni-versidade tem em relação a essas mães e estudantes e a falta de preocupação com os direitos que deveriam ser garantidos e não negados por uma universidade que se diz católica e filantrópica. As mulheres entram na faculdade à procura de emancipação e se veem uma vez mais sujeitas à opressão e dificuldades tremendas que só po-dem ser vencidas por meio de vitórias consecutivas contra a tradição conser-vadora e o machismo. Espaços criados por coletivos feminis-tas, o apoio e a luta vigente das mulheres todos os dias que fazem com que a es-perança não se disperse ou sucumba no meio de barreiras. Falemos sobre mulheres nas universi-dades. Falemos sobre abuso, estupro, opressão. Falemos sobre vontade, força e união. Falemos sobre nós. Falemos sobre luta..3

Page 5: O Barão - setembro de 2015

NegraSô

4

Page 6: O Barão - setembro de 2015

NegraSô

ante. Ser negra e negro nas universi-dades brasileiras significa demonstrar a cada instante a farsa da meritocracia e a resistência que nunca irá esmorecer. É fato que as desigualdades de oportunidades no ingresso ao en-sino superior são ligadas a desigual-dades históricas e estruturais nas quais estamos inseridos. A negação ao ensino supe-rior representa uma das marcas mais profundas do quanto somos um país desigual e ao observar os estudantes ao nosso redor vemos um padrão bem definido do qual não somos parte. Esses estudantes têm classe, raça e são semelhantes em diversos aspectos: de um lado, aqueles que tiveram uma boa estrutura familiar, formados em um ensino de quali-dade, com preço exorbitante, com direito a apoio, reforço e cursos de extensão. Do outro lado, aqueles for-mados em escolas públicas, de baixa renda, muitos negros, que desde sem-pre suportam com a família a dificul-dade da ausência de serviços públicos de qualidade: atendimento na saúde, creches, escolas. E, em razão dessas lacunas, muitos ao mesmo tempo em que estudam têm que cuidar dos irmãos, filhos, sobrinhos, trabalhar e ajudar no orçamento familiar. Ain-da sem saber sobre as suas possibi-lidades de acesso ao ensino superi-or ou vendo esse acesso como uma realidade muito distante, apenas acessível àqueles que tiveram a sorte de oportunidades e escolhas. Visto que para uma parcela dos estudantes o acesso a uma universidade é um acontecimento inevitável, que in-dependente de suas vontades irá se con-cretizar e que a inscrição no vestibular se trata de um investimento particular estimulado pela família - que em nada se assemelha ao desenvolvimento esco-lar anterior, para a outra parcela, o aces-so é uma realidade distante e incerta, independente de rendimento escolar.

Na realidade em que vivemos um(a) negro(a) tem três vezes mais chances de morrer vítima da violência poli-cial do que um(a) branco(a). Nós enfrentamos o racismo disfarçado da “exigência da boa aparência” quando procuramos uma vaga emprego. Por mais que a ideologia da miscigenação e o mito da democracia racial per-meiem o ideário da população geran-do a negação do racismo, diariamente constatamos que o racismo estrutura as nossas relações e, portanto, deter-mina o lugar do negro na sociedade. Por todos esses processos de marginalização, por todos os aspectos do racismo profundamente estrutura-do é que observamos que nós negras e negros não estamos nas universi-dades produzindo conhecimento e explicitando os rumos do combate ao racismo na academia. Nesse sentido, a existência do coletivo pauta tanto a nossa ausência nesse espaço acadêmico enquanto es-tudantes e professores, quanto o que representa a presença negra hoje na uni-versidade e a importância de ocuparmos esses espaços cada dia mais elitizados e distantes da maioria da sociedade. Temos conhecimento também da existência do “Grupo Negro PUC” na década de 70 e 80. De forma a eluci-dar a importância de nossa organização e presença na PUC, é válido observar que as pautas desse antigo coletivo e as dificuldades que passavam eram as mesmas que enfrentamos ainda hoje! Estamos aqui pois somos su-jeitos de nossa história e falaremos de nós e pelos nossos. Entendemos que o racismo se sustenta enquanto uma ideologia que hierarquiza grupos humanos e organiza a sociedade de forma desigual de acordo com seu grupo étnico/racial. Não se trata de um comporta-mento pontual de alguns indivíduos, mas sim de uma ideologia estrutur-

Em vista dessa realidade, o Estado brasileiro se compromete com as políticas de ação afirmativa, que se constituem em políticas de iniciativa pública e privada que têm por obje-tivo diminuir desigualdades históri-cas impostas a determinados grupos sociais. No caso do nosso país, negros e negras, indígenas, pobres, ou quais-quer que tenham um tratamento so-cial negativado pela sociedade. Não se pode esquecer que tais políticas no Brasil, são resultado de intensa luta do Movimento Ne-gro que sempre pautou a profunda desigualdade persistente e demais contradições no sistema em que vive-mos, assim como a exclusão e mar-ginalidade imposta à população neg-ra em razão dos resquícios da “falsa abolição” do sistema escravagista. Por mais de 300 anos de es-cravidão com uma abolição que não propiciou oportunidades de inclusão na sociedade, exceto para prestação de serviços e mão de obra desvalorizada, a população negra começa, depois de mais de 100 anos após a abolição, a ingressar nos territórios brancos e elitizados que são as universidades brasileiras. De acordo com o Censo/IBGE 2010 os negros compõem pouco mais que 51% da população brasileira e representam apenas 24% da população com título de nível superior. Esses números têm mu-dado com as políticas de cotas, por exemplo, adotas em universidades públicas e federais pelo Brasil. Em São Paulo, as Universi-dades Públicas USP e UNICAMP se recusam ainda a adotar o sistema de cotas raciais, mantendo apenas a política de bônus para ingresso, o que é insuficiente e demonstra o quanto estamos atrasados no de-bate. No Brasil, há doze anos se uti-liza a adoção de cotas como forma de política das ações afirmativas de acesso a universidade.

O NegraSô - Coletivo de Negras e Negros da PUC-SP, se formou em 2014 a partir dos questionamentos: “onde estão os negros e negras na PUC?”, “onde estão os negros e negras nas universidades brasileiras?”

A (r)existência negra na universidade

5

Page 7: O Barão - setembro de 2015

NegraSô Na PUCSP, temos como meio de ingresso as bolsas de estudos do Prouni,oferecidas para alunos de baixa renda e estudantes de escolas públicas, com cotas para negras e ne-gros. Essa forma de acesso tem sido a única possível na Pontifícia, já que as mensalidades são altas e não há política de cotas e mesmo as “bolsas institucionais” da FUNDASP eram até então concedidas somente após o ingresso, pagamento de matrícula e aprovação no processo seletivo de bol-sas, ou seja, inviável para um estudante de baixa renda, já que cursos como Direito e Psicologia, por exemplo, têm mensalidades acima de R$2.200,00. Com mensalidades bem acima da renda da maior parte da população brasileira, ausência de outra for-ma de ingresso que não bolsas do Prouni ou Financiamento por in-termédio do FIES, configura-se o caráter elitizado e seletivo da PUC, universidade dita filantrópica. Entrar na universidade é algo a ser muito comemorado, porém ex-istem ainda questões negligenciadas. Muitos alunos bolsistas do Prouni ingressam na Universidade até 2 meses após o início das aulas, em razão dos prazos estabelecidos para chamada nas listas o que dificulta os primeiros meses de aulas. Já chegam com matéria atrasada e provas para acontecer. Abaixo, segue a entrevista que o NegraSô fez com uma aluna negra e Prounista da PUC-SP acer-ca das suas dificuldades no universo acadêmico e social da PUC.

NegraSô: Você, como bolsista e negra em uma universidade elitista como a PUC, sofreu com o choque de reali-dade que essa universidade induz?Nadja Aguiar, aluna do 3º ano de Ad-ministração da PUC-SP: Sofri sim, sen-timento de não pertencimento, que não deveria estar naquele ambiente. Demor-ei em torno de um mês para me aproxi-mar dos demais alunos, as diferenças da realidade foram o fator predominante para essa demora, visto que o diálogo na maioria das vezes era sobre compra de diversos bens que eu não conhecia, via-gens a lugares que desconheço, etc.

NS: Quais foram as dificuldades e vantagens que você teve com os “aux-ílios permanência” e acesso na PUC? NA: A pior parte foi o início, pois demorei para receber o vale trans-porte de estudante. As despesas com refeição e transporte tinham aumen-tado, pois ficava o dia todo fora de casa, mas meu orçamento não supor-tava tais despesas, eu levava lanches para comer, afim de evitar custos. Também economizava com trans-portes, pegava três ônibus ou mais, para usar a integração, e não pegava metrô, o problema era que o tempo de deslocamento era maior.

NS: Como você se sente no ambiente acadêmico, levando em consideração o ensino inferior que é dado na rede pública? Você se sente parte da comu-nidade acadêmica?NA: Atualmente me sinto, mas no início tinha muita vergonha das difi-culdades que apresentava, lembro da primeira aula de matemática, eu não sabia fazer a atividade, tinha perdido a explicação, pois entrei na segunda chamada, quase em abril, tive vonta-de de ir embora e não voltar mais.

Para além do acesso restrito, encontramos também a dificuldade da permanência no ensino superior. São necessárias diversas medidas em relação aos estudantes de baixa ren-da que ingressam nas universidades, dentre elas: moradia, transporte, ali-mentação, estágio remunerado desde o primeiro semestre, disponibilidade de creches, auxílio para material didático e acolhimento por parte da própria universidade e comunidade, de modo que o estudante não desista por não sentir-se parte daquele lugar. Temos conhecimento de situações de desistência por parte de alunas negras e negros, que além de enfrentarem racismo por parte de outros alunos e até professores, se deparam com a discriminação social em razão de serem bolsistas, morar na periferia, ter outro linguajar e modo de pensar - ser a tal “gente diferenciada” - e que, com isso, aca-baram desistindo do curso em péssi-mo estado emocional.

Nas universidades federais há políticas públicas direcionadas à permanência desses alunos, como bolsas (auxílio financeiro) para os alunos de baixa renda matricula-dos em cursos intensivos (5 horas por dia) e bandejão com preço mais acessível - na PUC atualmente ex-iste subsídio integral para os estu-dantes com bolsa integral, apenas para uma refeição por dia. Também em universidades públicas, há a moradia estudantil, que para os estudantes de universidades privadas é igualmente necessário, le-vando em consideração que muitos es-tudantes moram há mais de duas horas e meia da PUC, têm acesso a transporte público precário e fazem um caminho exaustivo todos os dias entre jornada de trabalho, estágio e faculdade. Nós do NegraSô lutamos para fortalecer e visibilizar os estu-dantes negros (as) e também os (as) bolsistas. As lacunas das políticas de permanência que não permitem uma efetiva inserção na Univer-sidade em todos os seus aspectos precisam ser evidenciadas. Não basta ingressar, temos que permanecer e com qualidade que não prejudique nosso desempenho acadêmico e nos faça desistir do curso. Em tempos de propostas de redução da maioridade penal devemos evi-denciar mais ainda a importância da educação de qualidade, do acesso e permanência na universidade para a juventude negra e pobre. Lutamos por uma universi-dade de fato plural, democrática em que tenhamos o espaço que insisten-temente nos é renegado para produz-ir conhecimento e adentrar no mer-cado de trabalho com a possibilidade de ser não apenas trabalhadores pre-carizados pela falta de opção. Que as catracas invisíveis im-postas pela Universidade sejam ultra-passadas. Para isso, acreditamos que devemos continuar afirmando que a universidade não pode permanecer o lugar de fala apenas da elite e o lugar de trabalho terceirizado do (a) negro (a).

A Universidade também é nossa!

6

Page 8: O Barão - setembro de 2015

ProUni

Ingressar em uma universidade no Brasil ainda é o sonho de muitos jovens. Segundo dados, somente 14,4% dos jovens entre 18 e 24 anos frequentam o nível superior; importante lembrar que este dado está totalmente relacionado com a condição so-cioeconômica, significando que a maior parte das pessoas que frequentam universidades no país são de classe alta. A desigualdade social é parte do nosso dia a dia, no aces-so a saúde, moradia, trabalho e educação. Precisamos ressaltar que nos últimos anos o Brasil

passou por um processo de as-censão da classe trabalhadora. Esta dita “classe C” teve suas condições financeiras estabiliza-das, porém, ascendeu através do consumo e não da expansão de sua cidadania, ou seja, se con-sidera melhoria de vida a com-pra de uma televisão maior, mas não de acesso pleno a serviços básicos, como saúde e educação. Dessa forma, para preencher es-tas lacunas surgem programas federais como o ProUni. O Programa Universi-dade para Todos (ProUni) cri-ado pelo Governo Federal em

2004, concede bolsas de estudo integrais e parciais (50%) em instituições privadas de ensino superior, em cursos de gradu-ação e sequenciais de formação específica, a estudantes brasile-iros, que ainda não possuem diplomação em nível superi-or. Os candidatos a esta bolsa devem possuir renda familiar mensal bruta, por pessoa, de até um salário mínimo e meio e ter frequentado todo o ensino mé-dio em escolas públicas, ou em particulares com bolsa de 100%. Todos os que conseguem uma bolsa através deste pro-

por Amanda Petraglia, Vanilda Chaves e Vinicius Mussato

Sobre os muros e as pedras no meio do caminho

7

Page 9: O Barão - setembro de 2015

ProUnigrama federal, precisam passar por um momento que mistura sentimentos que vão de felici-dade ao medo. Ao sermos noti-ficados que recebemos uma bol-sa, ainda precisamos passar por um processo avaliativo da facul-dade, que como sempre é mui-to burocrático, além de ser, por vezes, constrangedor e invasivo. O processo sem compreensão das diferenças no eixo familiar de um prounista se mostra desumano com o candidato; visto que este, na maioria das vezes, não possui uma família bem estruturada, nu-clear e com fundações sólidas. Temos exemplos de bol-sistas Prouni que tiveram que solicitar documentos de par-entes comos quais não possuem o mínimo contato ou relação para comprovar que está dentro dos critérios estabelecidos para estudar na faculdade. O proces-so é humilhante. Não podem-os desfrutar da “passagem no vestibular” como a maioria dos colegas, dado que passamos por momentos de constrangimento e apreensão, pois não basta ter ido bem no vestibular, é preci-so que nossa candidatura esteja dentro das exigências estabele-cidas pelo programa, além de outros que são de exigência da universidade. É importante res-saltar que este processo é cada vez mais penoso e constrangedor por conta de alguns que burlam o sistema para obter bolsa de forma indevida, porém, é algo que não justifica o processo ofensivo ad-otado pela instituição de ensino. Por conta de todo esse processo lento, bolsistas do ProUni quase nunca chegam no tempo certo de início das aulas e muitos outros chegam

até dois meses após o início do calendário. As aulas já foram dadas, a sala está integrada, a recepção foi um sucesso, mui-tas amizades feitas, muita in-tegração, muitos assuntos em comum: as viagens, as férias, o colégio, o intercâmbio. Chegar é difícil, mas permanecer é ainda mais. A in-tegração social com o grupo é complicada, uma vez que as re-alidades são muito distintas e as diferenças de vivência são mar-cantes. O ProUni ressalta e sa-lienta o abismo social entre dois “mundos”e o expõe dentro dos muros da universidade. As de-mais pessoas não estão dispostas a sair da sua zona de conforto, não querem sair do plano da discussão e do debate; e,com isso, normal-mente, só conseguem ressaltar a desigualdade e mal conseguem reconhecer seus privilégios. Prounista que chega de-pois quase não tem vez. O pre-conceito é grande, as roupas não são da moda, o corte de cabelo também não, nem a cor da pele, a maneira de falar, de se expressar e de se portar. A maioria passa por um momento de vergonha, vergonha de ser quem é -pobre- de vir da onde veio - periferia. Medo de não se encaixar, medo de perguntar e ser exposto por seu desconhecimento em relação a tópicos considerados básicos pelo restante dos estudantes. Ao chegarmos na sala es-tranhamos o ambiente, estamos pisando num lugar que nos pare-cia impossível e , em muitos casos, somos os primeiros da família a ingressar na universidade. A universidade que se diz filantrópica cria cada vez mais barreiras que têm como função di-

ficultar nosso acesso e permanên-cia. Nunca somos livres totalmente para nos envolvermos com as questões política da universidade, o medo de perder a bolsa está sempre conosco. As ações de per-manência que a faculdade oferece são insuficientes e não contem-plam todos os alunos bolsistas. O curso de Relações In-ternacionais possui demandas muito específicas que dificultam ainda mais a permanência do estudante bolsista, como por ex-emplo, a exigência da proficiên-cia em duas línguas diferentes para se formar, a frequência de textos acadêmicos em inglês e espanhol, o intercâmbio que é visto como um diferencial “es-sencial” no mercado de trabalho da área. Ouvimos dos colegas e professores que escolhemos o curso errado por não termos conhecimentos em outras lín-guas, mesmo que isto não seja um pré-requisito para se inscrever no curso. Professores, na sua maio-ria, não querem saber o por quê de você estar chegando depois e nem por que você não sabe o que, supostamente, deveria saber. O ambiente é hostil, senti-mos na pele tudo o que os colegas e professores de esquerda estão discutindo, sentimos na pele aq-uilo que indigna nossos colegas, sentimos na pele a opressão que dentro da universidade muitos estão “lutando” para acabar, mas que na maioria das vezes, esque-cem-se de que não são nada mais do que opressores no dia a dia, na suas ações mais simples den-tro da sala da aula. Prounista não tem des-canso: é opressão, medo, pressão e conflitos a todo o momento. Revolta, estudante prounista se

8

Page 10: O Barão - setembro de 2015

ProUnirevolta, se revolta com sua situ-ação, com a humilhação que sofre, com a falta de apoio, com o transporte público que o faz demorar duas horas para che-gar na faculdade, se revolta por não poder viver a universidade, se revolta ao perceber que mes-mo tendo conquistado aquilo que é de seu direito, nunca terá as mesmas chances, as mesmas oportunidades - não tivemos o mesmo começo. Muitos abusos psicológicos e emocionais são ger-ados nos prounistas, o sentimento de não pertencimento que per-meia nossa vivência na faculdade contribui muito para não conse-guirmos desfrutar da melhor ma-neira o ambiente acadêmico. Mesmo com essa sen-sação de não pertencimento que nos acompanha quando esta-mos nesse espaço que sempre nos foi negado, estamos todos os dias lá, resistindo, sem resig-nar frente ao sistema que insiste em nos excluir e oprimir. É preciso ser resiliente e buscar a igualdade, em um ambiente no qual todas e todos possam ter os mesmos direit-os, no qual a educação não seja mercadoria e todas e todos pos-sam ter acesso ao conhecimento sem segregação, sem barreiras. É ainda mais necessário buscar a igualdade no tratamento, dizer não à discriminação, não abaixar a cabeça, e mostrar o racismo e o preconceito tão latentes no Brasil e facilmente encontrados no am-biente de pessoas “esclarecidas” e estudadas como na universidade. Embora o quadro seja pessimista, é fundamental lem-brar e notar que as atitudes de exclusão e desconhecimento cometida pela maioria pode

ser revertida. E, sobretudo, é necessário que ao se olhar ao re-dor exista a tentativa de conhecer a realidade daqueles que sentam ao seu lado todos os dias. Se recon-hecer no outro é a forma primor-dial para começar a destruição de alguns dos muros e, com isso, se construir um ambiente universi-tário menos opressor. Aos prounistas, muita força e muita luta! “Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura?É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leituraFalar pra um favelado que a vida não é duraE achar que teu doze de condomínio não carrega a mesma culpa” - Criolo “No dia em que soube que con-segui uma bolsa integral na uni-versidade, fazendo a matrícula, chorei em frente ao atendente do SAE. Vi duas ou três pessoas mais chorando. No olhar de al-guns, era perceptível a emoção e a euforia. Outros olhares, ar-rasados. Não tinha ainda a malí-cia para perceber que o fato de haver vagas insuficientes era muito mais profundo do que “falta de sorte”. Segui com a minha matrícula. Cheguei à PUC no final de março e ganhei alguns codi-nomes, animada. Eu me vi sen-tada em uma sala universitária e me perguntava se o que eu estava vivendo era real. Na primeira semana, en-trei em desespero e não sabia por onde começar. Sabia que tinha um grande desafio à minha espe-ra. Vindo de escola pública não tenho grandes considerações pela minha educação formal e me sinto insegura grande parte

do tempo. Apesar de me sentir também acolhida pelos alunos, sabia que a luta era minha e só eu poderia provar que sou capaz de vencê-la. De forma alguma menosprezando todo o suporte que tive de alunos veteranos, verdade seja dita, o incentivo foi essencial, mas naquele momen-to eu precisava crescer. E cresci. A vida universitária me transformou completamente e to-das as falácias inocentes perderam forma. Outro olhar me foi dado pelo amadurecimento, o mesmo que me fez ver que sou recon-hecida dentro da universidade como aluna, como alguém que tem dificuldades, mas que podem ser sanadas, dificuldades que me ajudaram a perceber como tenho crescido intelectualmente. Hoje em dia, não vejo nos alunos “bolsistas” uma máscara tentando disfarçar suas origens, mas vejo o orgulho de ser quem são. Vejo o orgulho daqueles que, sem se colocar dentro da falsa mer-itocracia, se dão o direito de festejar a oportunidade de mudar de vida. Quando me propus a es-crever esse texto, pensei em es-crevê-lo na impessoalidade, colo-cando à mostra apenas algumas adequações da língua culta e não o que realmente sou. E não era e nunca será esse o meu desejo, quis dispor-me de verdade e de clareza, e é esse também o meu desejo para aqueles que agora chegam sem um “passo-a-passo” de autenticidade. Sejamos o que somos e cresçamos como temos que crescer. A vida nos dará caminhos diferentes, mas, enquanto estamos na mesma e curta caminhada, que haja igualdade e reconhecimento.” Dyenifer Gonçalves

9

Page 11: O Barão - setembro de 2015

Internacional

MINUSTAH: um relato do fracasso da paz liberal e dos abusos das missões de paz

por Lívia Damasceno, Marcela Tosi e Thais Bianchi

Quando se pensa em paz, logo se remete ao conceito da paz lib-eral democrática kantiana e suas definições de cosmopolitismo, do direito de todos os cidadãos, da pressuposição de que bas-taria que houvesse democracias para que não ocorressem guer-ras, bem como da existência de organizações internacionais como mediadoras e defensoras da paz no sistema internacional. É justamente com esse viés que as intervenções humanitárias tentaram se legitimar. Caberia aos Estados agir de forma re-sponsável como agentes morais que interviessem naqueles Esta-dos que falhem e violem os dire-itos humanos. Essa concepção de paz guarda diversas problemáti-cas quanto aos interesses das operações de paz e das conse-quências da concepção de paz única, burocrática e elaborada sem uma base na comunidade na qual se quer construir essa

paz, tornando invisíveis diver-sos casos de abuso e de violên-cia que provocam em campo. Pode-se começar a questionar o próprio conceito de paz liberal. Não seria uma criação ociden-tal e, no limite, dos países mais poderosos e que, não tão coin-cidentemente, são os que mais intervêm em outros países? Será que garantir a paz liberal é con-struir um melhor ambiente para a população? Um dos exemplos mais emblemáticos disso é o Haiti, que desde sua independência em 1804 sofreu diversos golpes de Estado. O país é o único do Hemisfério Ocidental que con-seguiu ter uma revolução de escravos bem-sucedida, mas uma longa história de opressão tem afetado significativamente a nação. França, Estados Uni-dos e outros países ocidentais intervieram repetidamente na política local desde a fundação do país. As ações humanitárias

podem ser postas nessa lista de intervenções estrangeiras oci-dentais. Existem dentro de uma lógica de Estado moderno e desenvolvimento que é por si só opressora. No início de 2004 sofreu uma crise política que levou à queda de seu até então presi-dente, Jean-Bertrand Aristide; um cenário que se agravou com os terremotos de 2010. Como resposta, o país passou a ser pal-co da missão de paz da ONU, a MINUSTAH. Diversos países passaram a enviar tropas, so-bretudo aqueles em desenvolvi-mento como o Brasil, empreen-dendo a proposta de um novo paradigma de intervenção sem truculência e imposições. Os princípios brasileiros de gen-erosidade e a sua diplomacia solidária promoveriam a paz de forma mais efetiva, ainda nos moldes liberais. No entanto, o que se ob-serva é que os interesses bra-

10

Page 12: O Barão - setembro de 2015

Internacionalsileiros no Haiti remetem a seu benefício próprio na promoção de sua imagem na região, con-forme a sua diplomacia pela di-versificação. O modus operan-di das tropas da ONU no Haiti revelam negligência das tropas, que conduz a abusos e desvios de conduta, sobretudo contra as mulheres, às quais as missões de paz pouco se dedicam. Após oito meses da in-stalação da MINUSTAH, o relatório Mantendo a Paz no Haiti?, realizado pela Faculdade de Direito e o Programa de Di-reitos Humanos de Harvard e pela ONG Centro de Justiça Global, concluiu que por falta de vontade política o “Haiti é tão inseguro quanto sempre foi”. Ainda em 2005, um relatório da Anistia Internacional apontava que a violência, a impunidade e a ausência do Estado de direito permaneciam como fenômenos generalizados. A troca de sexo ou atos sexuais para obter proteção, as-sistência, alimentos e itens não alimentares é frequente. Quan-do os recursos são escassos, as mulheres e meninas costu-mam usar o último recurso de que dispõem para garantir a proteção e assistência para si e suas famílias: seus corpos. Em tempos de conflito, essa situação determinada por uma estrutura social excludente e patriarcal – elaborada por conta dos proces-sos de colonização moderna – é levada a extremos. Entre 2004 e 2010, a missão recebeu diversas denún-cias de estupro, prostituição, abuso de menor. Através de sua rede de ativismo, a Comissão de Mulheres Vítimas para Víti-

mas (KOFAVIV), ONG local de mulheres, registrou mais de 250 casos de estupro em vários acampamentos durante os pri-meiros 150 dias após o terremo-to de janeiro de 2010. No entan-to, os números reais são difíceis de determinar. O prestígio conferido aos capacetes azuis deve ser notado. Forças de peacekeep-ing geralmente são utilizadas em lugares onde o tecido social foi dilacerado pela guerra civil, onde o Estado de direito está ausente, onde as estruturas fa-miliares se desintegraram, onde a população local sofre dificul-dades econômicas e psicológicas graves. Nesses cenários, os sol-dados frequentemente são vistos pela população local enquanto pessoas “superiores”. Como re-sultado, as forças de paz podem exercer um enorme poder sobre a população local. Sua condição de militares que servem no ex-terior molda as formas em que eles constroem masculinidades, constituídas em relação com as feminilidades percebidas das mulheres locais. O foco principal neste caso não é se as forças de paz podem agir de forma impar-cial, mas sim o que as reper-cussões de suas práticas sociais representam na comunidade local que necessita de maior consideração. A suposta paz liberal kantiana é uma máscara que encobre e legitima o poder político de uma intervenção. No entanto, sua legitimidade social é fraca, pois a população se vê fora dessa lógica, estando à mer-cê de um contexto de operações que se constituem sem sua base local. A intervenção se torna ar-

bitrária, pois segue a lógica dos interesses de governos ou Esta-dos específicos, sem levar em consideração as especificidades de cada local onde ocorrem as missões. Ao desconsiderar a pop-ulação local, a construção da paz liberal e das operações de paz para atingi-la vai de en-contro com algo que remete à própria construção da política internacional: ela inviabiliza e ignora a voz das mulheres como capazes de promoverem medi-das de política internacional que podem auxiliar na construção da paz, sobretudo em nível re-gional, além de considerarem apenas a perspectiva masculina nessa elaboração, quase como se mulheres não fossem atingidas diretamente por essas decisões. A elas resta a resistência a um quadro de violência constante e a construção de sua própria paz. Um número significativo das relações de gênero desiguais estão em curso, particularmente envolvendo jovens meninas. A ideia do Brasil ao participar da MINUSTAH era de invenção de um novo paradigma de não violência e não imposição de paz, o que se tornou apenas um discurso irreal, visto que foram observados diversos abusos em meio à missão. É improvável que isso mude até que seja en-tendido que as forças de paz do sexo masculino estão na posse de mais do que uma agência de motivação biológica “impul-siva”. Apenas através de uma compreensão mais elaborada de experiências de gênero na segu-rança e nas relações sexuais é que políticas e práticas mais efi-cazes poderão ser iniciadas.

11

Page 13: O Barão - setembro de 2015

5ª páginaA 5ª Página é nossa seção de entretenimento. Surgiu pela primeira vez na página 5 de uma edição e acabou ficando com o nome dado carinhosamente por nossas veteranas e veteranos, tão veteranos que já se formaram e depois de uma Via Crucis pegaram seus diplomas.

Fuinhapor Fer Pina

Era hora do almoço. Estava só. O arroz cozinhando, e o Caetano tocava alto. Estava eu só, então. E meus pensamentos, embalados pela voz que saia do DVD, vinha em espirais e tons subindo e descendo, tomando meu sentimento. O cigarro ia pela meta-de. Seguramente ouvindo a música, a vizinha, Dona Judite, lembrara-se de mim. Sua voz me chamando ali do muro do quintal. Pedi que esperasse. Chaves- porta - quintal.Ela me esperava pacientemente. Seus olhinhos me fitaram. E ela riu um “Olá”. Sua cabecinha, única parte visível por sobre o muro, com suas ruguinhas todas, com seu tamanhin-ho simpático, se movia muito ligei-rinha para todos os lados, como se a senhorinha quisesse registrar todo e qualquer fato que viesse a acontecer, provavelmente algum fato inédito nesses oitenta e poucos anos de vida.Nenhuma mosca passaria despercebi-da pela senhorinha. Nada. Ela atenta em cada movimentinho. E ela dá sua risadinha de dentinhos pequenos. Seu cabelinho branco também sorri. Per-gunta sempre da mãe, da irmã; “Está tudo bem, sim, Dona Judite, e com a senhora?”, responde-se, como pedem os bons costumes e a cordialidade vizinhistica do interior. -“Tudo bem, viu... Você sabe se ai tem fuinha?”Fuinha.Na verdade, até podia ser que houvesse, não só uma fuinha, como dezenas delas. Uma infestação. Eu poderia de repente ter passado por uma agorinha. Posso ter talvez sen-tado sobre uma fuinha ainda hoje cedo. Posso ter usado uma fuinha pra preparar o arroz. Ou talvez não... Não. É, certamente, não. Acho que não pu-demos comprar uma fuinha esta sem-

ana... Sabe como essas coisas andam caras, não é mesmo? Essas fuinhas de hoje não são como as de outro-ra... Não, não usamos mais fuinhas. Aliás, talvez não tenhamos usado-as há muito tempo.-“ Poxa, Dona Judite, na verdade eu acho que não temos, não... Mas se você quiser eu ligo pra minha mãe ela deve saber...”-“Não, não, eu trouxe uma pra vocês. Não é todo lugar que tem fuinha hoje em dia, sabe? Ontem eu dei uma pra meu neto... Trouxe uma pra sua mãe, já vou pegar!”Pude ouvir a felicidade em sua voz quando assegurou-me que, sem fuinha, certamente, se dependesse de nossa boa senhorinha, não ficaría-mos. Desceu da banqueta onde apoia-va seu corpinho. Sumiu do outro lado da parede que separava nossos quin-tais.Eu, então, apreensiva, esperei a fuinha. Acontece que não sabia o que vinha a ser uma fuinha. De repente minha vizinha poderia vir-me com toda sorte de coisas. Imaginei-a entregan-do-me por cima do muro uma cabaça, uma lontra, uma ferramenta para jar-dinagem, uma verdura, uma fruta, um inseto, uma bacia. Sim, qualquer coisa poderia ser uma fuinha.Lembrei-me a expressão já longín-qua na memória “Cara de Fuinha”. Provinda de não sei onde. Devia ser algo como uma tigela, ou uma rabeca, talvez. Ou uma vara de pescar. Mas, não. Pela sonoridade... Certamente era um roedor. Sim, devia ser uma chinchila ou algo similar. Fiquei só, então, de frente para o muro até que ela enfim voltasse.Se fosse um roedor eu realmente não sabia como alimentá-lo. Realmente não sabia o que comiam as fuinhas.

Ademais, não tinha uma jaula para guardar a fuinha. Sequer sabia o ta-manho de uma fuinha. E minha mãe ao chegar, não, ela não iria ficar com a fuinha. Me faria sumir com a fuinha. E a fuinha sozinha pela cidade. Não, não poderia esperar minha mãe che-gar. Teria que doá-la a outra pessoa. Talvez tentasse aplicar a mesma técni-ca que a senhorinha. Sim, isso era um golpe! Ela me induziu a aceitar uma fuinha, ela me persuadiu. Alguém o teria feito com ela. e... Sim, foi isso!Pude pressentir sua chegada ao outro lado quando voltava em seu passinho lento. Subiu na banqueta, apareceu com sua carinha enrugadinha nova-mente. Fraquejei na teoria. Ela não poderia...Deu-me um pacote com muitos limões. Era época, e deixar no pé é ju-diação. Minha curiosidade crescendo. Agradeci.-“Fuinha não tem, né?”-“Não, não Dona Judite... Não tem não...” - Rendi-me.-“Eu fui pegar lá naquela loja do lado da igreja sabe? Minha cozinha é de azulejo, mas meu filho colocou lá um preguinho pra colocar bem a vista... Deve dar pra colocar na porta, não sei...”Ao menos eram controláveis. Por na porta? A jaula? Com um prego?Ergueu algo que pareceu-me um pa-pel, uma cartolina quiçá.Deu-me um calendário. Folhinha. Sim, dita folhinha. No caso, em diale-to, fuinha.Agradeci, trocamos mais algumas palavras. Era realmente útil um calendário, breve entraremos noutro ano.“Muito obrigada, Dona Judite.”Entrei pra casa, o arroz já queimava.Colo-quei o calendário sobre o balcão.In-ofensivo e paciente. 12