O CARÁTER VERBO-NOMINAL DO ASPECTO EM ESPERANTO sem anexos

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS Coordenao dos Programas de Ps-Graduao em Letras Doutorado em Estudos Lingusticos Linha de Pesquisa: Descrio Lingustica rea de concentrao: Estudos de Linguagem

MARIA NAZAR DE CARVALHO LAROCA

O CARTER VERBO-NOMINAL DO ASPECTO EM ESPERANTO

NITERI 2009

ii

MARIA NAZAR DE CARVALHO LAROCA

O CARTER VERBO-NOMINAL DO ASPECTO EM ESPERANTO

Tese apresentada como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Estudos Lingusticos, rea de Concentrao em Estudos de Linguagem, Curso de Ps-Graduao em Letras, Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense.

Orientadora: Prof Dra. Maria Jussara Abraado de Almeida

Niteri 2009

iii MARIA NAZAR DE CARVALHO LAROCA

O CARTER VERBO-NOMINAL DO ASPECTO EM ESPERANTO

Tese apresentada como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Estudos Lingusticos, rea de Concentrao em Estudos de Linguagem, Curso de Ps-Graduao em Letras, Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense. Orientadora: Prof Dra. Maria Jussara Abraado de Almeida

Aprovada em 18 de agosto de 2009.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________ Prof Dr JUSSARA ABRAADO (UFF) - Orientadora __________________________________________________________________ Prof Dr CLUDIA RONCARATI (UFF) __________________________________________________________________ Prof. Dr. JOS PASSINI (UFJF)

________________________________________________________Prof. Dr. JRGEN HEYE (PUC-RJ) _________________________________________________________________ Prof. Dr. PIERRE GUISAN (UFRJ) __________________________________________________________________ Prof Dr MARIANGELA RIOS DE OLIVEIRA (UFF) Suplente __________________________________________________________________ Prof DR LCIA FURTADO DE MENDONA CYRANKA (UFJF) - Suplente

Niteri 2009

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A. L. L. Zamenhof, Apstolo da Paz, esta singela homenagem pelos 150 anos de seu nascimento.

v

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela oportunidade de poder ter feito este trabalho;

Profa. Dra. Jussara Abraado, pela orientao segura, compreenso e amizade;

Aos meus primeiros professores de Esperanto, ngela Faria e Saulo Salgado Wanderley, pelo entusiasmo, dedicao e disponibilidade;

Ao Prof. Eduardo Nadalin, pela solidariedade e apoio;

Aos meus filhos, Lucas e Flvia, pelo carinho e compreenso.

vi

EPGRAFE

Ni semas kaj semas, neniam lacias, Pri l tempoj estontaj pensante. Cent semoj perdias, mil semoj perdias, Ni semas kaj semas konstante. 1 (L. L. Zamenhof - La vojo)

1

Traduo literal: Semeamos e semeamos, nunca nos cansamos,/ Nos tempos futuros pensando./ Cem sementes se perdem, mil sementes se perdem,/ Semeamos e semeamos, nunca nos cansamos. (L. L. Zamenhof - O caminho)

vii RESUMO

Esta tese demonstra que a funo aspectual configurada em Esperanto por meio de estratgias discursivo-gramaticais em interao com o valor semntico ou Aktionsart da forma verbal ou participial. luz dos conceitos funcionalistas, adotamos como pressuposto o carter composicional do aspecto, o qual se manifesta como uma propriedade da predicao. Os corpora examinados atestam a ocorrncia de diferentes recursos de aspectualizao em Esperanto, corroborando a nossa hiptese geral de que o aspecto est presente e funciona no uso dessa lngua internacional. Explicitamos as estratgias que o usurio do Esperanto utiliza para codificar o aspecto, isto , o modo como ocorreu, ocorre ou ocorrer a ao, o evento ou o processo verbal no que concerne sua durao e / ou realizao, codificados como verbo ou nome verbal, isto , particpio.

Palavras-chave: Lingustico.

Esperanto;

Aspecto;

Aktionsart;

Predicao;

Funcionalismo

viii

ABSTRACT

This dissertation demonstrates that aspectual function is performed in Esperanto through grammatical discursive strategies that interact with semantic value or Aktionsart of participial and verbal forms. According to functionalist definitions we consider as presupposition the compositional character of aspect, which manifests as a property of predication. The corpora examined attest that different resources of aspectualization occur in Esperanto. This means that it corroborates our general hypothesis that grammatical aspect is present and it is functional in Esperanto language. We explicit strategies that Esperanto user utilizes to code grammatical aspect, i.e., the way the action, the event or the verbal process occurred, occur or they shall occur, focusing the duration and/or realization codified as verb or verbal name, i.e., participle.

Keywords: Esperanto; Aspect; Aktionsart; Predication; Linguistic Functionalism.

ix

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - Tabela de Bertinetto

40

TABELA 2 - Ocorrncia de sufixos participiais imperfectizadores

161

TABELA 3 - Ocorrncia de sufixos participiais perfectizadores

163

TABELA 4 - Ocorrncia dos sufixos participiais passivos: -ata / -ita

165

TABELA 5 - Ocorrncias de verbo esti + particpio-adjetivo

166

TABELA 6 - Ocorrncia de sufixos participiais ativos

168

TABELA 7- Ocorrncia de sufixos participiais passivos

169

TABELA 8 - Ocorrncia de sufixos participiais aspectuais prospectivos

171

TABELA 9 - Ocorrncia de sufixos participiais substantivos ativos e passivos

172

TABELA 10 - Ocorrncia do operador ek- em C1

173

TABELA 11 - Ocorrncia do operador ek- em C2

174

TABELA 12 - Ocorrncia de ek-(1) e ek- (2) em 04 narrativas

174

TABELA 13 - Aspectualizadores inceptivos

175

TABELA 14 - Operadores derivacionais perfectizadores

175

x

LISTA DE GRFICOS

GRFICO 1 - Estratgia de imperfectizao

162

GRFICO 2 - Estratgia de perfectizao GRFICO 3 - Verbo esti + particpio

164 168

xi

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Tipos de aspecto segundo Comrie

57

QUADRO 2 - C1 Narrativas originais em Esperanto

60

QUADRO 3 - C1 Narrativas vertidas para o Esperanto

61

QUADRO 4 - Morfemas razes

91

QUADRO 5 - Morfemas marcadores de classes de palavras

92

QUADRO 6 - Amostra de itens lexicais

92

QUADRO 7 - Paradigma verbal do Esperanto

98

QUADRO 8 - Particpios ativos e passivos

104

QUADRO 9 - Estrutura do particpio-adjetivo presente ativo

105

QUADRO 10 - Estrutura do particpio-adjetivo passado ativo

106

QUADRO 11 - Estrutura do particpio-adjetivo futuro ativo

106

QUADRO 12 - Estrutura do particpio-adjetivo presente passivo

107

QUADRO 13 - Estrutura do particpio-adjetivo passado passivo

107

QUADRO 14 - Estrutura do particpio-adjetivo futuro passivo

107

xii

QUADRO 15 - Aspectos gramaticais em Esperanto: operadores aspectuais (1)

135

QUADRO 16 - Aspecto imperfectivo: operadores aspectuais (2)

136

QUADRO 17 - Aspectos perfectivos: operadores aspectuais de perfectizao

145

QUADRO 18 - Operadores aspectuais adverbiais

184

xiii

LISTA DE ANEXOS

ANEXO I - Narrativas escritas em Esperanto e traduzidas em portugus ANEXO II - Manifesto de Praga ANEXO III - Fotos de livros ANEXO IV - Foto de falante nativo de Esperanto ANEXO V - Dois artigos de Joo Guimares Rosa ANEXO VI - Fotos de atividades educativas ANEXO VII - Fotos de atividades culturais e artsticas ANEXO VIII - Regras da gramtica do Esperanto

203 368 371 374 376 383 386 388

xiv

SUMRIO

LISTA DE TABELAS LISTA DE GRFICOS LISTA DE QUADROS LISTA DE ANEXOS 1 INTRODUO 2 DELIMITAO DO OBJETO DE ESTUDO 2.1 OBJETO E OBJETIVOS DA PESQUISA 2.2 HIPTESES E JUSTIFICATIVA 3 ORIENTAO TERICA E METODOLGICA DA PESQUISA 3.1 PRESSUPOSTOS FUNCIONALISTAS 3.2 ABORDAGENS SOBRE O(S) ASPECTO(S) 3.2.1 Problemtica do(s) aspecto(s) 3.2.2 Conceitos de aspecto e Aktionsart 3.2.3 Aktionsart ou classes aspectuais lexicais 3.2.4 Aspecto e tempo 3.2.5 Consideraes gerais sobre tipologia aspectual 3.3 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS 4 VISO GERAL DO ESPERANTO 4.1 ESPERANTO COMO LNGUA PLANEJADA 4.2 INTERLNGUA E INTERLINGUSTICA 4.3 CENRIO LINGUSTICO DO SCULO XIX 4.4 BREVE HISTRICO DO ESPERANTO E DO

IX X XI XIII

16 18 18 18 22 22 25 26 30 37 44 55 60 65 65 66 67 MOVIMENTO 69 84 86 89 94 97 104

ESPERANTISTA 4.5 ASPECTOS LINGUSTICOS DO ESPERANTO 4.5.1 Apresentao da gramtica do Esperanto 4.5.2. Aspectos da estrutura lexical do Esperanto 4.5.3. Processos de formao de palavras em Esperanto 4.5.4 O sistema verbal do Esperanto 5 A QUESTO DOS PARTICPIOS

xv 5.1 PARTICPIOS-ADJETIVOS NAS NARRATIVAS DOS CORPORA C1 E C2 5.2 A PREDICAO EM ESPERANTO 115 117

6 O ASPECTO EM ESPERANTO: ANLISE QUALITATIVA E ESTUDO DE FREQUNCIA ATA E ITA 6.2 A POLMICA QUESTO ATA VS. ITA 6.3 ESCOLAS ATISTAS VS.ITISTAS 6.4 TIPOS DE ASPECTO EM ESPERANTO 6.4.1 Aspecto imperfectivo 6.4.1.1 Aspecto imperfectivo inceptivo 6.4.1.2 Aspecto imperfectivo cursivo 6.4.1.3 Aspecto imperfectivo durativo 6.4.1.4 Aspecto imperfectivo terminativo 6.4.2 Aspecto perfectivo 6.4.3 Aspecto prospectivo 6.5 RELAO ENTRE ASPECTO E VOZ EM ESPERANTO 6.6 ANLISE DAS FUNES ASPECTUAIS DOS AFIXOS EK- E -I5. 6.7 ASPECTO ITERATIVO 6.8 ESTUDO DE FREQUNCIA 7 CONSIDERAES FINAIS 7.1 EXPRESSO DO ASPECTO PELAS PERFRASES VERBAIS 7.2 OPERADORES ASPECTUAIS ORACIONAIS 7.3ARGUMENTOS DO VERBO 7.4 ADVRBIOS E SINTAGMAS ADVERBIAIS ASPECTUALIZADORES 7.5 ASPECTUALIDADE E MODO DE ORGANIZAO DISCURSIVA REFERNCIAS REFERNCIA DAS NARRATIVAS DE C1 e C2 ANEXOS 141 143 144 152 154 156 157 161 178 178 179 182 183 188 194 200 202 122 6.1 A DISTINO ASPECTUAL ENTRE PARTICPIOS TERMINADOS EM 123 129 132 133 136 137 139

1 INTRODUO

Na presente tese, procuramos explicitar as estratgias que o usurio da lngua internacional Esperanto utiliza para decodificar o aspecto, isto , o modo como ocorreu, ocorre ou ocorrer a ao, o evento ou o processo verbal no que concerne sua durao e / ou realizao, codificados como verbo ou nome verbal, isto , particpio. Assim sendo, compartilhamos a concepo de que o aspecto permite que as dimenses temporais de uma situao sejam descritas a partir de diferentes pontos de vista, de acordo com as necessidades do modo de organizao discursiva. Convm observar ainda que as noes ditas aspectuais apresentam-se codificadas, em diversas lnguas, por meio de variados tipos de expresses lingusticas, abrangendo um continuum que se estende do lexical ao perifrstico. Quanto organizao deste trabalho, alm deste captulo de carter introdutrio, no primeiro captulo, so feitas a delimitao e a justificativa do objeto de estudo desta pesquisa bem como a formulao das questes e hipteses que fundamentam esta tese. No segundo captulo, apresentamos os pressupostos funcionalistas que orientam este trabalho e discutimos as diversas abordagens sobre aspecto, tempo e Aktionsart. Informamos ainda sobre os procedimentos metodolgicos adotados na presente anlise. No terceiro, fazemos um breve estudo sobre o Esperanto, apresentando-o sob o ponto de vista histrico e lingustico, com algumas informaes sobre o movimento esperantista nacional e internacional. No quarto captulo, debruamo-nos sobre a questo dos particpios, argumentando sobre a importncia do seu emprego como operadores aspectuais da predicao. No quinto captulo procedemos anlise qualitativa e estudo de frequncia dos dados, buscando a validao das hipteses formuladas. Tambm propomos uma tipologia aspectual esperanta.

17

No captulo sexto, que traz nossas consideraes finais, aduzimos diversos operadores aspectuais identificados nos dados dos corpora e tratamos da relao entre aspectualidade e modo de organizao discursiva, reiterando, assim, a validao das hipteses principais.

2 DELIMITAO DO OBJETO DE ESTUDO

2.1OBJETO E OBJETIVOS DA PESQUISA Elegemos como objeto de estudo o uso do aspecto em Esperanto2 lngua internacional planejada que funciona como meio de comunicao entre pessoas de idiomas diferentes, h cento e vinte e dois anos. O objetivo central de nossa proposta desvendar e descrever as estratgias discursivas e gramaticais, utilizadas pelos usurios desse idioma para decodificar o aspecto em narrativas escritas. [...] as estratgias dizem respeito ao modo como um sujeito (individual ou coletivo) conduzido a escolher (de maneira consciente ou no) um certo nmero de operaes linguageiras.(CHARAUDEAU; MAINGUENAU, 2004, p.219). Em outras palavras, as estratgias discursivas e gramaticais correspondem aos chamados espao de coeres e espaode estratgias, respectivamente.3

2.2 HIPTESES E JUSTIFICATIVA

Temos como base a hiptese geral de que o aspecto est presente e funciona no uso do Esperanto, apesar de no constar nas gramticas descritivas4 e normativas que tratam dessa lngua internacional.

2

Seguindo a tradio esperantista, grafamos com letra maiscula o nome da lngua, distinguindo-a do particpio esperanto , isto , aquele que espera. 3 [...] a estruturao de um ato de linguagem comporta dois espaos: [...] um espao de coeres, que abrange os dados mnimos aos quais preciso satisfazer para que o ato de linguagem seja vlido, [...] um espao de estratgias que corresponde s possveis escolhas que os sujeitos podem fazer da encenao do ato de linguagem. (CHARAUDEAU; MAINGUENAU, 2004, p.219) 4 So poucos os pesquisadores que trataram do tema em questo.

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Como segunda hiptese, postulamos o carter verbo-nominal do aspecto em Esperanto, isto , definimos o aspecto como a representao discursivo-gramatical da temporalidade interna do verbo e tambm do particpio. luz dos pressupostos tericos do funcionalismo lingustico norte-americano, as categorias lingusticas no so discretas ou binrias, mas distribuem-se numa escala gradiente, num continuum. Com base nessa abordagem, consideramos o particpio uma forma de transio entre o verbo e o adjetivo, como bem o definem Waringhien e Kalocsay (1980, p.132). O particpio em Esperanto pertence, pois, a uma classe sui generis: exerce funes prprias do adjetivo, do advrbio e at do substantivo, sem perder a caracterstica da verbalidade ou qualidade verbal. Segundo o modelo funcionalista adotado nesta tese, baseamo-nos em Hopper (1979, p.219) quando este define o aspecto como um recurso ou uma srie de recursos que existem com o objetivo de guiar o usurio da lngua no texto.5 6Aplicando-se os princpios gestaltistas da organizao da percepo7, aos planos discursivos do texto, isto , observandose a distino entre o que mais central (figura) e o que mais perifrico (fundo), depreendese tambm uma funo cognitiva do discurso, alm da sua funo comunicativa. Nos termos de Hopper:Os aspectos distinguem o caminho principal do texto e permitem ao ouvinte (leitor) armazenar os eventos reais do discurso como um grupo linear, enquanto simultaneamente processa o acmulo de comentrio e de informaes de suporte, que acrescenta textura, mas no substncia ao discurso propriamente dito. O aspecto, pode, portanto, ser comparado a um mecanismo de controle de fluxo (flow-control mechanism) metfora de Talmy Givn e como tal tem importante correlao psicolingustica.(HOPPER, 1979, p.220)8

Na percepo de eventos, normalmente identificamos alguns fatos como mais salientes do que outros. De acordo com o interesse e a inteno comunicativa, podemos codific-los linguisticamente, transformando-os em narrativas, ou seja, em reportagens lingusticas de um5 6

A maioria das tradues so de nossa responsabilidade. No original: Aspect considered from a discourse perspective is a device or set of devices which exists in order to guide the language user through a text. 7 Tendemos a organizar percepes no objeto observado (a figura) e o segundo plano contra o qual ela se destaca (o fundo). A figura parece ser mais substancial e destacar-se do seu fundo. Figura e fundo so reversveis, voc pode ver dois rostos ou uma taa (numa determinada ilustrao, por exemplo), a depender da maneira como organiza sua percepo.( SCHULTZ; SCHULTZ, 1992,p. 311) 8 No original: The aspects pick out the main route through the text and allow the listener (reader) to store the actual events of the discourse as a linear group while simultaneously processing accumulations of commentary and supportive information which add texture but not substance to the discourse itself. Aspect can therefore be likened to a flow-control mechanism, as such, it surely has significant psycholinguistic correlates.

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evento passado e acabado, estocado e disponvel na memria dos indivduos.(SILVEIRA, 1990, p.69). Por meio de uma anlise translingustica, Hopper (1979) identificou na narrativa dois planos distintos e complementares: o plano da figura (foreground), constitudo de clusulas que reproduzem iconicamente o eixo ditico-temporal em que os fatos se deram no real e o plano do fundo (background), formado por clusulas que formam uma espcie de moldura para os eventos, dando suporte, ampliando, esclarecendo ou comentando o que relatado pela figura. Para o autor supramencionado, por meio da figura, o falante destaca os fatos mais importantes do evento, orientando, assim, o seu ouvinte. Tais estratgias so usadas por diferentes lnguas, constituindo essa distino um universal, com origem em funes comunicativas centrais e talvez psicolgicas, conforme proposta de Hopper e Thompson (1980, p.283). Tal postura discutida por Silveira (1990, p.69) que, com base em McCleary (1982) e Klmar (1983), faz uma reviso dos conceitos de figura e fundo, enquanto propriedades perceptivas e discursivas, mostrando que nem sempre simples e claro precisar o que ou no importante para o desenvolvimento da narrativa. Em vez de aceitar a distino puramente dicotmica figura e fundo, em termos de relevncia, a autora em questo apresenta uma viso gradiente, postulando uma hierarquia de fundidade para caracterizar os diversos tipos de fundo. Tal abordagem parte do pressuposto de Slobin (1987), segundo o qual a relevncia (ou figuridade) codificada por uma escala funcional, onde a figura funciona como o pico altamente relevante e o fundo como uma depresso com o menor grau de relevncia. Alm de Silveira (1990), linguistas como Tomlin (1987) citado por CUNHA, 2003) postulam a necessidade de se redefinir a categoria planos discursivos e consider-la no mais em termos binrios, e, sim, como um continuum cujos polos seriam a superfigura e o superfundo. Dentro desse contexto escalar, no texto narrativo, as sequncias de eventos so geralmente expressas por formas verbais perfectivas9 mais frequentes na construo dos graus de fundidade do primeiro plano at chegar-se superfigura, instaurando um lado de maior

Do latim perfectivus, a, um, 'que acaba, que conclui completamente. Em uma primeira definio, entendemos como perfectiva a forma verbal que denota ao ou processo em sua plena finitude; como imperfectiva, a forma verbal que expressa ao ou processo no terminados, isto , ainda em desenvolvimento.9

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relevncia ou salincia; enquanto o superfundo, tpico do lado mais difuso e mais vago, caracterizado por formas verbais imperfectivas. Dado o exposto, tendo em vista as hipteses acima delineadas, esta pesquisa justificase, pois, no s pela oportunidade de aprofundamento no estudo do aspecto (lexical e principalmente gramatical) mas tambm pela importncia de trazer uma contribuio para os estudos lingusticos em geral, pela abordagem de fenmenos concernentes ao Esperanto, que, como lngua auxiliar internacinal, funciona como instrumento de comunicao e veculo de transmisso de cultura, para milhes de usurios, habitantes de cerca de cento e vinte pases.

RESUMO Elegemos como objeto de estudo o uso do aspecto em Esperanto. O objetivo central desta tese explicitar as estratgias discursivas e gramaticais, utilizadas pelos usurios desse idioma, para a codificao do aspecto em narrativas escritas. So duas as hipteses

consideradas: o aspecto est presente e funciona no uso da lngua; o aspecto tem carter verbo-nominal em Esperanto.

3 ORIENTAO TERICA E METODOLGICA DA PESQUISA

3.1 PRESSUPOSTOS FUNCIONALISTAS

Nesta tese, sob a orientao terica do funcionalismo lingustico, assumimos a proposta de Castilho (2002), quando esse autor descreve os diversos recursos lingusticos utilizados para codificar o aspecto em Portugus:

Vou fundamentar-me nessas fases para descrever as opes do falante ao codificar o aspecto: (1) a primeira opo escolher um item no lxico marcado pela Aktionsart requerida por sua necessidade expressiva; (2) a segunda opo confirmar tal Aktionsart, ou alter-la, por meio de recursos morfolgicos e sintticos; a terceira opo acomodar o aspecto assim configurado na articulao discursiva. (CASTILHO, 2002, p.85)

Adotamos, portanto, seu ponto de vista composicional quando o autor supracitado define o aspecto verbal como uma propriedade da predicao que consiste em representar os graus de desenvolvimento do estado de coisas a codificado, ou, por outras palavras, as fases que ele pode compreender. (CASTILHO, 2002, p.83) Guiado pelo funcionalismo, o olhar do linguista - antes centrado apenas na estrutura gramatical - busca abranger agora todo o fenmeno lingustico-discursivo. Pretende, portanto, dar conta da linguagem em uso no contexto social, dando relevo ao discurso, para melhor depreender as estratgias criativas do usurio para organizar funcionalmente seu texto, tendo em vista determinado interlocutor, em dada situao de comunicao. Na abordagem funcionalista, discurso e gramtica so conceitos que interagem dinamicamente, numa relao de reciprocidade; compreendidos de modo escalar. Desse modo, o discurso (interao lingustico-sociocomunicativa) e a gramtica relacionam-se na

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seguinte equao: a) a gramtica molda o discurso; b) o discurso molda a gramtica.(DUBOIS, 1993 a, p. 8 citado por NEVES, 2007, p.29) Segundo Givn, citado por Neves (2007, p.24), o paradigma funcionalista objetiva instaurar um quadro explcito, sistemtico e abrangente de sintaxe, semntica e pragmtica unificadas como um todo. Abandona-se ento a tradicional concepo modular da gramtica, optando-se pelo conceito de gradincia das categorias, que seriam mais bem explicadas em termos de extremidades de um continuum, conforme prope Taylor (1989, p.189-190). Em termos de Dik (1980, p.1), citado por Neves (2001, p.79), a teoria funcionalista distingue o sistema da lngua e o uso da lngua, mas evita estudar cada um deles fazendo abstrao do outro. De acordo com Pezatti (2004, p.168), no enfoque funcionalista, a pragmtica representa o componente mais abrangente, no interior do qual se devem estudar a semntica e a sintaxe: a semntica dependente da pragmtica, e a sintaxe, da semntica. Assim, ao incorporar a pragmtica na gramtica, o funcionalismo admite determinaes discursivas na sintaxe. (NEVES, 2007, p.25) Em suma, a teoria funcionalista tem como objetivo fundamental explicar as formas lingusticas por meio do seu uso real na situao de comunicao. Entende que a gramtica de uma lngua natural no obstante configurar um sistema de padres regulares apresenta uma maleabilidade estrutural que possibilita o sistema adaptar-se s presses externas motivadas por necessidades discursivas do usurio. Assim, luz do enfoque funcionalista, tambm entendemos o aspecto em Esperanto como uma escolha discursiva do usurio da lngua. Este decide, por exempo, entre a representao perfectiva ou imperfectiva da temporalidade interna de um estado de coisas, por meio de operadores de aspectualizao disponveis nessa lngua internacional. Segundo Atanasov (1983, p. 52), L. L. Zamenhof (1859-1917), criador do Esperanto10 no criou propriamente uma teoria sinttica da lngua. Esta, porm, oferece variados recursos gramaticais e discursivos para que o usurio possa representar a categoria 11 de aspecto. Tais recursos emergem no Fundamento de Esperanto (ZAMENHOF, 1991), na seo denominada Ekzercaro (Coleo de exerccios que contextualizam a gramtica por meio da

10 11

Desenvolvemos esse tema no Cap. 5 deste trabalho. O aspecto visto como uma categoria por diversos linguistas como Castilho (1968; 2002), Comrie (1976), Bybee (1985).

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exemplificao de enunciados-modelo) e nos primeiros textos originais em Esperanto, alm de tradues de obras literrias feitas pelo criador e iniciador12 do idioma. importante ressaltar que foi a partir desse primeiro contexto discursivo literrio que emergiu a sintaxe da lngua, imitada pelos primeiros usurios, mas, pouco a pouco, moldada pelas necessidades comunicativas dos variados falantes internacionais e enriquecida pela criatividade de poetas, romancistas, cronistas literrios, tradutores, ensastas, jornalistas e outros. Tal fato vem confirmar os postulados funcionalistas a respeito da maleabilidade (BOLINGER, 1977) e emergncia (HOPPER, 1987) da gramtica das lnguas ditas naturais, caractersticas que podem ser, com as devidas ressalvas, estendidas ao Esperanto, cuja evoluo monitorada pela Academia de Esperanto, rgo consultivo internacional, formado por linguistas e fillogos de diversas nacionalidades. Seu atual presidente, eleito em 2008, o linguista britnico J. C. Wells (University College London) e o vice-presidente o linguista indiano Probal Dasgupta (University of Hyderabad), o qual tambm o dirigente da UEA (Universala Esperanto Asocio), Associao Universal de Esperanto. Para melhor esclarecer a natureza da evoluo do Esperanto, valemo-nos da explicao de Passini :

O Esperanto evolui, mas no exatamente como as lnguas nacionais. Isso compreensvel, tendo-se em vista sua funo de interlngua, usada pela quase totalidade dos seus falantes como segunda lngua. Nessa condio, o processo inovador funciona menos intensamente, pela cautela natural do usurio e tambm pela predominncia do uso escrito, oratrio formal, sobre aquele de conversao descontrada, diria. (PASSINI, 2008, p.64)

Dado o exposto, a postura funcionalista aqui adotada possibilita-nos a investigao do uso do Esperanto que, h muito, superou a sua gnese, a saber, um projeto de lngua, a qual, evoluindo numa escala gradiente, encontra-se no ponto de interseo entre o artificial e o natural. Comporta-se, pois, funcionalmente, como as lnguas naturais, como instrumento de comunicao internacional, adaptada pelo usurio, s diversas situaes de interlocuo.

12

Zamenhof preferia ser chamado de iniciador em vez de criador do Esperanto.

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3.2 ABORDAGENS SOBRE O(S) ASPECTO(S)

Nossa pesquisa tem como base principalmente os conceitos de Castilho (1968; 2002), Bybee (1985), Comrie (1976) e Bertinetto (2001). A clssica definio de Comrie, a saber, aspectos so os diferentes modos de ver a constituio temporal interna de uma situao13 (COMRIE, 1976, p.3), retoma Holt (1943, p.6 ) quando este diz que aspectos so as diferentes maneiras de conceber o desenvolvimento do processo em si mesmo14, ou seja, a viso do contorno temporal interno de uma situao. E quando o aspecto definido como distinguindo modos diferentes de ver a constituio temporal interna de uma situao, ele claramente se qualifica como uma categoria gramatical de importncia translingustica.15(BYBEE, 1985, p.152) Os enunciados (1) e (2) abaixo, apresentados por Campos (1997, p.19), exemplificam o aspecto de ponto de vista16, isto , perspectivas distintas sobre o evento: um contraste entre os usos perfectivo e imperfectivo do verbo chover: (1) Chovia a cntaros esta manh, quando sa. (2) Choveu a cntaros esta manh, quando sa. A partir de um ponto de referncia temporal (quando sa), o uso imperfectivo chovia explicita um processo em curso, considerado no seu desenrolar; por outro lado, o uso perfectivo choveu remete para um processo considerado como um bloco que inclui as suas prprias fronteiras. Desse modo, a distino entre os usos aspectuais perfectivo e imperfectivo baseada na escolha de o usurio fazer uma referncia explcita constituio temporal interna de uma situao17 (COMRIE, 1976, p. 21) ou descrev-la como um todo inanalisvel nico. Adotamos nesta tese o ponto de vista composicional de Castilho (2002) quando esse autor define o aspecto verbal como uma propriedade da predicao e entendemos tambm como Comrie (1976, p.45) que as situaes no so descritas por verbos sozinhos, mas antes

13 14

No original: Aspects are different ways of viewing the internal temporal constituency of a situation. Definio de Holt: les manires diverses de concevoir lcoulement du procs meme, i.e, different ways of conceiving the flow of the process itself. 15 No original: When aspect is defined as distinguishing different ways of viewing the internal temporal constituency of a situation, it clearly qualifies as a grammatical category of cross-linguistic significance. 16 Aspecto de ponto de vista (viewpoint aspect) termo introduzido por Smith (1991), conforme Rothstein (2004, p. 01) 17 No original: (...) explicit reference to internal temporal constituency of the situation.

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pelo verbo junto com seus argumentos (sujeito e objetos)18 Desse modo, para corroborar nossos pressupostos tericos, acatamos as palavras de Campos:

O princpio da composicionalidade parece reger toda a atividade da linguagem na sua manifestao nas lnguas naturais. Nos estudos sobre a categoria de aspecto, este princpio particularmente sublinhado, ao pretender-se ir para alm de uma descrio / enumerao de formas e valores no contextualizados. (CAMPOS, 1997, P. 183)

3.2.1 Problemtica do(s) aspecto(s) Categoria gramatical de importncia translingustica, segundo Bybee (1985, p.152), o aspecto tambm a mais complexa e controvertida. O seu problema j comea pela ambiguidade do termo que, de acordo com o enfoque, pode designar dois conceitos distintos, embora fortemente interligados: aspecto gramatical (ou simplesmente aspecto), quer se manifeste por meio do sistema gramatical (isto , por meio de recursos morfossintticos de uma dada lngua) e aspecto lexical, quer se represente por meio de recursos lexicais dessa lngua. Devido sua frequncia de uso nos estudos aspectolgicos, para designar o aspecto na sua manifestao lexical, o vocbulo alemo Aktionsart (que significa modo de ser da ao, tipos de ao) estabeleceu-se como termo metalingustico, sem necessidade de traduo. No entanto, h autores como Comrie (1976) e Lyons (1977), entre outros, que preferem utilizar designaes como significado inerente (inherent meaning) e carter aspectual (aspectual character) respectivamente, por considerarem pouco clara a utilizao que se faz do termo Aktionsart. Assim, Lyons (1977, p.706) decidiu abandonar a palavra alem e introduzir a expresso carter aspectual, definindo-o assim: o carter aspectual do verbo, ou simplesmente, seu carter ser a parte de seu significado por meio do qual ele (normalmente) denota um tipo de situao em vez de outro, ou seja, as propriedades semnticas inerentes situao verbal. Em portugus, distingue-se, por exemplo,uma ao que principia, como em partir, uma que termina, como em chegar, uma que se desdobra sem aluso ao incio ou ao fim, como andar, viajar, uma que se repete como em saltitar, etc. (CMARA, 1967, p.141).

18

No original: () situations are not described by verbs alone, but rather by the verb together with its arguments (subject and objects).

27

Em substituio a Aktionsart, tambm ocorrem outras designaes como, por exemplo, aspecto lexical, usado preferencialmente por Rothstein (2004) e tambm por Vilela e Koch (2001). Tambm em lugar de Aktionsart, Bertinetto (2001) criou o termo acionalidade(actionality), isto , o carter de ao, acional do verbo. Distinguindo aspecto (gramatical) e acionalidade, assim afirma Bertinetto:

Ele (o aspecto) ento uma categoria completamente independente em relao acionalidade, considerando que esta est finalmente ligada ao significado lexical dos vrios predicados. Enquanto o aspecto veiculado por recursos morfossintticos, a acionalidade uma propriedade do lxico (embora processos derivacionais possam frequentemente estar envolvidos). (BERTINETTO, 2001, p. 184)19

De qualquer forma, cumpre-nos reafirmar, porm, que Aktionsart e aspecto so categorias lingusticas distintas, mas inextricavelmente entrelaadas. Comrie apesar de no adotar o termo Aktionsart apresenta duas distines entre aspecto e Aktionsart, que transcrevemos a seguir:A primeira distino entre aspecto como uma gramaticalizao de distines semnticas relevantes, enquanto Aktionsart representa uma lexicalizao das distines, independentemente de como tais distines so lexicalizadas; esse uso de Aktionsart similar noo de significado inerente. A segunda distino, que a usada pela maioria dos eslavistas, e frequentemente por cientistas de pases eslavos ao escrever sobre outras lnguas, entre aspecto como uma gramaticalizao da distino semntica, e Aktionsart como uma lexicalizao da distino, contanto que a distino seja por meio da morfologia derivacional. (COMRIE, 1976, p.7)20

Essa segunda distino, que restringe Aktionsart morfologia derivacional, torna ainda mais problemtica a questo aspectual, uma vez que os autores divergem quanto a conceitos como derivao e flexo. No sempre fcil traar limites precisos entre a morfologia lexical (derivacional) e a flexional, como tambm entre a morfologia e a sintaxe. Segundo Mathews (1974, p.38), a mais alta diviso entre flexo e formao de palavras (a

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No original: It is thus a completely independent category with respect to Actionality, considering that the latter is ultimately attached to the lexical meaning of the various predicates. In other words, while Aspect is vehicled by morphosyntactic devices. Actionality is a property of the lexicon (although derivational processes may often be involved). 20 No original: The first distinction is between aspect as grammaticalisation of the relevant semantic distinctions, while aktionsart represents lexicalisation of the distinctions, irrespective of how these distinctions are lexicalised; this use of aktionsart is similar to the notion of inherent meaning. The second distinction, which is that used by most Slavists, and often by scholars in Slavonic countries writing on other languages, is between aspect as grammaticalisation of the semantic distinction, and aktionsart as lexicalisation of the distinction provided that the lexicalisation is by means of derivational morphology.

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ltima cobrindo derivao e composio) definida precisamente pela distino entre formas do mesmo paradigma(flexionais), por exemplo, as formas do verbo CASAR: casar / casei / casamos / casando etc e formas de paradigmas separados (derivacionais): por exemplo, verbo CASAR e nome substantivo: CASAMENTO. Para Bybee (1985, p.11), os elementos semnticos podem ser expressos de trs formas, a saber: lexical, flexional e sinttica. A expresso lexical combina dois ou mais elementos semnticos em um nico item vocabular como, por exemplo, a forma verbal matar, que engloba significados como morrer e causar; em Esperanto murdi (assassinar). Por meio da expresso flexional, cada elemento semntico expresso normalmente por um sufixo terminal adicionado raiz ou base da palavra. Por definio, a flexo tem traos de obrigatoriedade e generalidade, como o morfema de nmero plural nos adjetivos em

concordncia com os substantivos: livros novos; em Esperanto, libroj novaj. Na expresso sinttica ou perifrstica expressam-se os diferentes elementos semnticos por meio de itens lexicais independentes, separados como, por exemplo, a expresso mais usada de futuro em Portugus: vou viajar (ao lado da forma verbal flexional viajarei). Em Esperanto podemos exemplificar com a expresso perifrstica do aspecto inceptivo komenci labori (comear a trabalhar). No entanto, ainda segundo Bybee (1985, p.12), a expresso lexical, a flexional e a sinttica (ou perifrstica) no constituem categorias discretas, mas abrangem reas em um continuum ou gradincia. Assim, a expresso derivacional, como tipo intermedirio, situa-se entre a lexical e a flexional. Os morfemas derivacionais assemelham-se a expresses lexicais no sentido de serem frequentemente restritos na aplicabilidade e idiossincrticos na formao ou significado.(BYBEE, 1985, p.12). Cumpre-nos ressaltar, todavia, uma peculiaridade do Esperanto com relao morfologia derivacional. Os afixos formadores de novas palavras, altamente produtivos em aplicabilidade tanto os prefixos quanto os sufixos tm autonomia sinttica na frase, identificando-se com itens lexicais independentes. Assim, por exemplo, a forma verbal mortigi (matar, assassinar) formada pelo verbo morti (morrer) e pelo sufixo ig (i) causar, fazer; o verbo konigi fazer conhecer (formado por koni- conhecer e pelo sufixo -ig (i) ); a forma verbal konstruigi fazer ou mandar construir; supozigi (fazer supor). O sufixo ig funciona como verbo independente, igi (fazer, mandar) tendo outro verbo como complemento. Assim, podem-se formar, por exemplo, expresses como igi konstrui (ou konstruigi) fazer ou mandar construir; igi supozi (ou supozigi) fazer supor.

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No que se refere ao aspecto, como informa Gonalves (2005, p.158), vale lembrar ainda que, por sua maior relevncia, o aspecto tem alcance morfolgico maior que o tempo no verbo: atua na flexo e na derivao. Tal se aplica tambm ao Esperanto como pode ser verificado nos captulos seguintes. Podem-se estudar o(s) aspecto(s) sob mltiplos enfoques: no mbito da tradio da lingustica eslava, oriental, ou no da ocidental, anglo-saxnica; podem-se enfoc-los, separadamente, a partir de uma perspectiva lxico-semntica de um lado, ou morfossinttica de outro, e ainda sob o enfoque discursivo (Hopper, 1979); ou optar por uma pesquisa que contemple todos esses enfoques como instrumentos necessrios para dar conta das oposies aspectuais. Como as distines aspectuais so de base semntica, elas gramaticalizam-se ou lexicalizam-se nas lnguas de maneiras variadas. Estudos translingusticos, que exploraram e compararam vrias lnguas, como os de Bybee (1985) e Comrie (1976), comprovam que h diversas expresses formais das distines aspectuais. Tambm Godoi aborda com propriedade essa questo:

(...) o aspecto necessariamente uma categoria semntica universal sujeita a variaes tipolgicas e especficas das lnguas particulares principalmente no que diz respeito a configuraes morfossintticas. (GODOI, 1992, p.285)

Assim, nesses ltimos cinquenta anos, sob diferentes abordagens, foi construda uma profcua aspectologia21 envolvendo mltiplas questes. Graas variedade de perspectivas tericas e classificaes muitas vezes divergentes e confusas, Godoi (1992), em sua tese de doutorado, Aspectos do aspecto, avalia a situao como catica, afirmando que nos encontramos diante de uma categoria mal compreendida. (GODOI, 1992, p.8) O problema complicou-se com a traduo francesa do termo alemo Aktionsart (modo ou tipo de ao) por aspecto, no se traduzindo tambm o termo alemo Aspekt (aspecto), por sua vez traduo da palavra russa vid, o que contribuiu para o estabelecimento da confuso, baralhando noes que diziam respeito a nveis lingusticos distintos (Aktionsart: nvel semntico; Aspekt: nvel morfolgico). (CASTILHO, 1968, p. 42).

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Termo usado pelo linguista e aspectlogo Prof. Dr. Ataliba de Castilho, em conversa pessoal, em setembro de 2006, na Universidade Federal de Juiz de Fora - MG.

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3.2.2 Conceitos de aspecto e Aktionsart

Comrie (1976, p.7) informa-nos que foi Agrell (1908) quem fez a primeira distino entre os termos aspecto e Aktionsart na lingustica eslava; o primeiro como a codificao gramatical da distino semntica relevante, o segundo como a lexicalizao da distino, desde que essa lexicalizao seja feita por meio da morfologia derivacional. Uma outra distino entre aspecto gramatical e aspecto lexical restringe menos o sentido de Aktionsart, que ento passa a representar a lexicalizao das distines semnticas, independentemente de como tais distines so lexicalizadas. Esse uso de Aktionsart contempla o significado inerente do lexema22 verbal. Para melhor desenvolver o tema proposto, arrolamos abaixo alguns conceitos de aspecto encontrados na literatura: (1) ComrieComo definio geral de aspecto, podemos tomar a formulao de que aspectos so diferentes modos de ver a constituio temporal interna de uma situao. (...) O aspecto no concerne relao do tempo da situao com qualquer outro ponto temporal, mas antes com a constituio temporal interna da situao; pode-se estabelecer a diferena como aquela entre o tempo interno da situao (aspecto) e o tempo externo da situao (tempo / tense) (COMRIE, 1976, p.3-5)

Essa definio geral apresentada por Comrie tornou-se o conceito clssico de aspecto, base de todos os estudos posteriores do referido tema. A estrutura temporal interna da situao distingue-se do tempo externo, que uma categoria ditica, a qual depende da instncia do discurso. Para ilustrar a definio acima citada, Comrie (1976, p.3) assim o exemplifica em Ingls, Russo, Francs, Espanhol e Italiano: a) Ingls: John was reading when I entered. b) Russo: Ivan ital, kogda ja voel. c) Francs: Jean lisait quand j`entrai. d) Espanhol: Juan lea cuando entr. e) Italiano: Gianni leggeva quando entrai. Complementando essa exemplificao de Comrie, acrescentamos as verses em Portugus e em Esperanto:

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Empregamos o termo lexema no sentido de unidade fundamental do lxico de uma lngua ( the fundamental unit of the of the language) ( Mathews, 1974, p.22); equivale ao semantema de Vendryes (1958, p. 133).

31

f) Portugus: Joo estava lendo quando entrei. g) Esperanto: possveis verses: (i) Johano estis leganta kiam mi eniris. (ii) Johano legadis kiam mi eniris. Segundo Comrie, em cada uma dessas sentenas, o primeiro verbo apresenta o pano de fundo para algum evento, enquanto o evento em si introduzido pelo segundo verbo. Trata-se da clssica funo discursiva do aspecto, j apresentada por Hopper (1979): sinalizar a distino figura e fundo de que tratamos no terceiro captulo desta tese. Prosseguindo com a apresentao das definies: (2) Bybee23

O aspecto, ento, refere-se exclusivamente ao ou estado descritos pelo verbo. Ele no afeta os participantes nem se refere a eles. Portanto deve-se dizer que o aspecto a categoria que mais direta e exclusivamente relevante para o verbo. (...) De fato, a funo do aspecto permitir que as dimenses temporais de uma situao sejam descritas a partir de diferentes pontos de vista, dependendo de como se pretende ajustar a situao ao discurso. (BYBEE, 1985, p.21; p.142)

Nessas consideraes, Bybee no s destaca a relevncia do aspecto em relao ao verbo mas tambm confirma a sua funo discursiva. (3) CastilhoO aspecto a viso objetiva da relao entre o processo e o estado expressos pelo verbo e a ideia de durao ou desenvolvimento. , pois, a representao espacial do processo. Esta definio, baseada na observao dos fatos, atende realidade etimolgica da palavra aspecto (que encerra a raiz * spek = ver ) e insiste na objetividade caracterstica da noo aspectual, a que contrapomos a subjetividade da noo temporal. [grifos nossos] (...) Aspecto, ao contrrio, o ponto de vista subjetivo (em relao ao modo de ao, bem entendido) do falante sobre o desenvolvimento da ao. Reduzse a uma compreenso stricto sensu do problema, pois se reporta apenas aos graus de realizao da ao e no sua natureza mesma, que a Aktionsart. Daqui se reduzirem as noes aspectuais a uma bipolaridade, segundo a ao dure (imperfectivo) ou se complete (perfectivo). [grifo nosso] (CASTILHO, 1968, p.14; p.41)

23

No original: Aspect, then, refers exclusively to the actions or state described by the verb. It does not affect the participants, nor does it refer to them. Thus, it might be said that aspect is the category that is most directly and exclusively relevant to the verb. () Indeed, the function of aspect is to allow the temporal dimensions of a situation to be described from different points of view depending on how the situation is intended to fit into the discourse.

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Essa definio de Castilho pode parecer contraditria, pois define aspecto ora como objetivo ora como subjetivo. A dita objetividade, todavia, caracterstica apenas com relao sua natureza simblica, isto , no ditica; esta ltima define o tempo verbal. Interessa-nos, sobretudo, o carter subjetivo do aspecto, o chamado aspecto de ponto de vista (viewpoint aspect) de Smith (1991), ou nos termos da acima citada definio de Castilho: o ponto de vista subjetivo (em relao ao modo de ao, bem entendido) do falante sobre o desenvolvimento da ao. (CASTILHO, 1968, p. ) (4) Dubois et alO aspecto uma categoria gramatical que exprime a representao que o falante faz do processo expresso pelo verbo (ou pelo nome de ao), isto , a representao de sua durao, de seu desenvolvimento ou de seu acabamento (aspecto incoativo, progressivo, resultativo, etc.) [...]. (DUBOIS et AL., 1973, p.53)24

O que especialmente nos interessa nessa definio de Dubois a identificao do aspecto nos nomes de ao, argumento por ns utilizado para caracterizar o aspecto em Esperanto. (5) TravagliaAspecto uma categoria verbal de TEMPO [grifo do autor], no ditica, atravs da qual se marca a durao da situao e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob diferentes pontos de vista, a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o da realizao da situao. (TRAVAGLIA, 1985, p.53)

Essa definio de Travaglia ampla e sinttica. O autor usa o termo TEMPO (com letras maisculas) para indicar o espao temporal ocupado pela situao (TRAVAGLIA, 1985, p.51), distinguindo, assim, o aspecto da categoria tradicional de tempo verbal, ditica como o faz Comrie (1976, p.3-5) (6) IlariAs formas do verbo, em portugus, exprimem simultaneamente tempo, modo e aspecto [grifo do autor]. Aspecto uma questo de fases. Dizemos que o verbo do portugus exprime aspecto porque ele nos d a possibilidade de representar o mesmo fato, ora como um todo indivisvel, ora como um composto por diferentes fases, uma das quais posta em foco. (ILARI, 2004, p.19)

24

No original: Laspect est une catgorie grammaticale qui exprime la reprsentation que se fait le sujet parlant du procs exprime par le verbe (ou par le nom daction), cest--dire la reprsentation de as dure, de son droulement ou de son achvement (aspect inchoatif, progressif, rsultatif, etc.)

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Ilari, por outro lado, em sua definio, enfatiza a caracterstica especial de o aspecto ser uma questo de fases. (7) CmaraJ em muitas outras lnguas que refletem outras culturas do presente e do passado -, a noo dominante que rege a distribuio das formas verbais, a que os linguistas alemes denominaram AKTIONSART, isto , - maneira de ser da ao. Em portugus a exemplo da nomenclatura francesa e inglesa, traduz-se o termo alemo por ASPECTO [grifo do autor]. Trata-se, com efeito, do aspecto por que se apresenta o processo verbal do ponto de vista de sua durao. (CMARA, 1967, 141)

Mattoso Cmara, em sua definio, mistura os conceitos de Aktionsart e Aspecto.Tratamos dessa questo nas sees seguintes.

(8)VerkuyilAktionsart e aspecto so a mesma coisa at que haja evidncia contrria aspectualidade o termo para cobrir os dois termos tradicionais sem nenhum compromisso a priori com o uso dos dois termos mencionados. [...] A aspectualidade pode ser vista como um fenmeno unificado concernente a certas propriedades da estruturao temporal para a qual as lnguas desenvolveram diferentes estratgias de codificao em sua morfologia ou sintaxe. (VERKUYIL, 1999, p.115-116)25

Verkuyil (como Mattoso Cmara e muitos outros) mistura Aktionsart e aspecto; em seu conceito introduz a expresso aspectualidade para cobrir os dois termos tradicionais sem nenhum compromisso a priori com o uso dos dois termos mencionados. No mbito das inmeras abordagens aspectolgicas, identificamos, portanto, aquelas que no fazem distino entre os aspectos lexical e gramatical e outras que distinguem esses dois conceitos a partir de critrios diversos. Uns linguistas operam com as distines formais entre as propriedades aspectuais expressas por uma categoria gramatical (na morfologia flexional como, por exemplo, o pretrito imperfeito e o perfeito em Portugus; em Francs o imparfait ou o pass simple; e as distines aspectuais que so lexicalizadas por uma morfologia derivacional (como dormir vs. adormecer ou dormir vs. dormitar) ou que no so de forma alguma caracterizadas morfologicamente, como a distino lxico-semntica em portugus entre partir e chegar.

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No original: [] Aktionsart and aspect are the same until there is evidence to the contrary aspectuality being the term to cover the two traditional terms without any a priori commitment to the use of the two terms just mentioned (.) Aspectuality can be seen as a unified phenomenon concerning certain properties of temporal structuring by natural language, for which languages have developed different strategies to encode it in their morphology or syntax.

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Outros postulam uma distino semntica, como Smith (1991) que distingue o aspecto de situao - ou aspecto lexical - do aspecto de ponto de vista - ou aspecto gramatical. Rothstein (2004), ao desenvolver uma anlise aspectual de base semntica, associa o aspecto lexical (seu objeto de estudo) ao aspecto de situao de Smith, correspondente a Aktionsart. A autora assim distingue os aspectos: (9) RothsteinO aspecto lexical, s vezes denominado Aktionsart e correspondente ao aspecto de situao de Smith, cobre distines entre propriedades de tipos de eventos (event-types) denotados por expresses verbais, as quais os linguistas tentaram capturar pela classificao dos verbos em classes. O aspecto gramatical, em particular o contraste entre perfectivo e imperfectivo, concerne distino de perspectiva sobre eventos, ou aspecto de ponto de vista de Smith. (ROTHSTEIN, 2004, p,1)26

De modo similar, Castilho (1968, p.41) atribui ao aspecto, em contraste com Aktionsart, o carter de ponto de vista subjetivo do falante sobre o desenvolvimento da ao. Aqui as noes aspectuais se distinguem da natureza mesma do verbo (Aktionsart), reportando-se apenas aos graus de realizao da ao: segundo a ao se complete (perfectivo), ou segundo a ao dure (imperfectivo). Tambm Bache (1982) discute essa questo, determinando que a distino entre aspecto e Aktionsart deve ser mantida no terreno da semntica. Assim afirma o autor:

O aspecto uma categoria mais ou menos SUBJETIVA na medida que ela envolve a escolha do falante / escritor entre uma descrio perfectiva ou imperfectiva da situao referida por um verbo, ao passo que Aktionsart uma categoria OBJETIVA na medida que ela envolve a constituio real da situao descrita.27 [grifos do autor] (BACHE, 1982, p.64).

Sob essa perspectiva, deparamo-nos com a objetividade simblica do aspecto lexical (Aktionsart) - que no depende do olhar do usurio, uma vez que diz respeito ao lxico, fazendo parte de um elenco de propriedades semnticas que caracterizam determinados itens lexicais verbais - e a subjetividade do aspecto gramatical - que uma opo do falante para suprir suas necessidades comunicativas e discursivas. Por outro lado, cumpre observar que26

No original: Lexical aspect, sometimes called Aktionsart and corresponding to Smiths situation aspect, covers distinctions between properties of event-types denoted by verbal expressions, which linguists have tried to capture by classifying verbs into verb classes. Grammatical aspect, in particular the contrast between perfective and imperfective, concerns the distinction in perspective on events, or Smiths viewpoint aspect. 27 No original: Aspect is a more or less SUBJECTIVE category in that it involves the speaker/writers choice between a perfective or imperfective description of the situation referred to by a verb, whereas Aktionsart is an OBJECTIVE category in that it involves the actual constituency of the situation described.

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mesmo essas propriedades lxico-semnticas no so estanques; Campos (1997, p.14), por exemplo, concorda com os que falam em [...] tendncia (ou orientao) aspectual dos lexemas que, em definitivo, s no emprego discursivo se confirma ou no, j que uma teoria lingustica deve dar conta - de maneira integrada - da semntica e da pragmtica.28 (HOPPER;TRAUGOTT, 1993, p. 69). Para Cora (2005, p.65), o aspecto limita-se com o modo de ser da ao (Aktionsart) e distingue-se dele, embora ambos possam frequentemente expressar o mesmo contedo. A autora caracteriza o aspecto como categoria gramatical e o modo de ser da ao como categoria lxico-semntica. Segundo Cora, a distino semntica expressa pelo aspecto reduz-se oposio imperfectivo / perfectivo, ancorando-se na definio de aspecto como tempo inerente ao evento. Costa (1990, p.23), ao fazer uma abordagem semntica do aspecto, opta por no postular duas categorias distintas, a saber, aspecto e modo de ser da ao. Justifica tal postura por ser mais econmica para a anlise. Baseando-se tambm no conceito de aspecto revelado por Comrie, a autora supramencionada (1976, p.33) postula que a oposio aspectual bsica em portugus caracteriza-se por opor a no-referncia constituio temporal interna (termo no marcado: o perfectivo) a essa referncia (termo marcado: o imperfectivo). Segundo Costa, distingue-se o perfectivo por no admitir subdivises quanto sua temporalidade interna; o fato expresso est referido no enunciado como um bloco inteirio. O imperfectivo, porm, expressa essa temporalidade interna, admitindo tais subdivises:

[...] pode referir o fato como em curso; pode referir uma das fases constitutivas da temporalidade interna do fato (inicial, intermediria, final); ou referir o fato como um estado resultante de um processo anterior. (COSTA, 1990, p. 33).

Por outro lado, Vilela e Koch (2001, p.70), utilizando-se de um nico termo, aspecto, distinguem dois tipos de aspecto: o aspecto lexical, isto , modo de ao, ligado ao significado do lexema verbal, e o aspecto gramatical, ligado aos tempos verbais. Nos termos dos autores supracitados:

Os verbos podem indicar o decurso (ou tempo interno) e a quantificao do acontecer verbal.[...] A aspectualidade pode insistir no tempo interior (princpio, durao, fim), na qualidade ou quantidade do acontecer verbal28

No original: [] linguistic theory should eventually provide an integrated account of semantics and pragmatics.

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(intensificao, diminuio, quantificao, etc.). (VILELA; KOCH, 2001, p.70)

A maioria dos manuais de gramtica define o verbo como a palavra que exprime um fato (ao, estado ou fenmeno) representado no tempo.(CUNHA, 1983, p.253). Tal definio, todavia, no contempla a complexidade dos significados gramaticais do verbo que se apresentam em uma ordem decrescente de relevncia, assim hierarquizados, segundo Bybee (1985, p. 24): [+relevante] [-relevante]

valncia > voz > aspecto > tempo > modo > concordncia de nmero> concordncia de pessoa. Segundo a autora, as relaes de valncia29 so mais relevantes, pois alteram substancialmente o contedo do verbo. Tendo investigado amostras de cinquenta lnguas, Bybee (1985, p.13) conclui que a relevncia depende da salincia cultural ou cognitiva. Alm disso, esse princpio pode determinar o tipo de expresso lingustica, por exemplo, significados reciprocamente importantes tendem a manifestar-se por meio de recursos lexicais ou morfolgicos. Com relao ao verbo, a autora supracitada afirma que uma categoria relevante na medida que o significado da categoria afeta diretamente o contedo lexical da raiz verbal.30(BYBEE, 1985, p.15) Exemplificando sua afirmao, ela compara a categoria de aspecto com a de concordncia de pessoa com o sujeito da orao. Retomando o conceito de aspecto apresentado por Comrie, Bybee demonstra a alta relevncia do aspecto para o verbo, j que aquele se refere exclusivamente ao ou estado descritos por este. Conforme essa autora, o aspecto lexical no afeta os participantes nem se refere a eles. Por isso, ele a categoria que mais direta e exclusivamente relevante para o verbo. Por outro lado, a concordncia com o sujeito algo menos relevante para o verbo, visto que ela se refere a um argumento dele, e no ao ou estado descritos pelo verbo em si.31 (BYBEE, 1985, p.15) Ainda segundo Bybee, quando o aspecto uma categoria gramatical flexional, a mudana de sentido efetuada por ele tende a ser pequena. A autora (1985, p. 21), citando Hopper (1977), afirma que o aspecto flexional serve para indicar como a ao ou estado29

Valncia diz respeito ao nmero de sintagmas nominais (argumentos) exigidos pelo verbo; por exemplo, o verbo dar trivalente: exige um sujeito e dois objetos como, por exemplo: Maria deu um livro a Joo. 30 No original: A category is relevant to the verb extent that the meaning of the category directly affects the lexical content of the verb stem. 31 No original: Subject agreement is somewhat less relevant to the verb, since it refers to an argument of verb, and not to the action or state described by the verb itself.

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descritos pelo verbo devero ser vistos no contexto do discurso como um todo. A informao de fundo expressa por formas verbais imperfectivas, e a informao de figura da linha narrativa principal aparece na forma verbal perfectiva. Esse uso discursivo do aspecto deixa o significado bsico do verbo no afetado, e somente muda sua relao com a unidade discursiva.

3.2.3 Aktionsart ou classes aspectuais lexicais

A tradicional classificao semntica dos verbos herdeira da filosofia do sculo XX. Foi, sobretudo, a classificao de Vendler (1967) - referncia indispensvel em estudos sobre Aktionsart e aspecto - que se tornou a mais influente nas pesquisas lingusticas dos ltimos quarenta anos. Na obra Linguistics in Philosophy (1967), Vendler trata dos esquemas temporais (time schemata) mais comuns pressupostos por vrios verbos ingleses. Esse autor (1967, p. 107) distribui os verbos ingleses em quatro classes semnticas32, a saber: a) estados (states): ter (have), possuir (possess), desejar algo,(desire something), querer algo (want something),gostar(like), amar(love), odiar(hate), saber(know), acreditar em coisas (believe things); b) atividades (activities): correr(run), caminhar (walk), nadar (swim), empurrar algo puxar algo (push something), puxar algo ( pull something ); c) accomplishments33: pintar um quadro (paint a picture), fazer uma cadeira (make a chair), escrever um romance (write a novel), ler uma novela (read a novel); construir uma casa (build a house); d) achievements: reconhecer (recognize), compreender (realize), localizar algo (spot something), perder um objeto (lose an object), encontrar um objeto (find an object), alcanar o topo (reach the summit ), ganhar uma corrida (win a race).

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Tal diviso remete-nos a algumas categorias aristotlicas como estado e ao. Os termos accomplishment e achievement j esto consagrados na literatura. O equivalente a accomplishment em espanhol realizacin; logro equivale a achievement; em portugus a traduo seria realizao e consecuo, respectivamente.

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interessante notar que a intuio de Vendler no distinguia apenas os verbos isoladamente, mas j contemplava os sintagmas verbais (verbos e seus complementos). Intuitivamente, os verbos ditos de accomplishment como em pintar um quadro, fazer uma cadeira, correr um quilmetro implicam uma tarefa a ser realizada e so processos que tm um ponto final natural. De modo geral, estados so situaes no dinmicas, tais como ser feliz, amar; atividades so processos de final aberto, como correr, brincar; por outro lado, achievements so eventos quase instantneos que acabam assim que comeam, tais como notar, achar, perder, conseguir. Os verbos de atividade e os de accomplishment compartilham a noo de progresso no tempo, isto , tm tempo contnuo. Todavia, enquanto os verbos de atividade seguem no tempo de modo homogneo, pois qualquer parte do processo da mesma natureza do que o todo, o mesmo no ocorre com os accomplishments do tipo de correr um quilmetro ou escrever uma carta. Estes predicados tambm seguem no tempo, mas continuam em direo a um trmino que logicamente necessrio para que o evento se efetive. (VENDLER, 1967, p.101-102) De acordo com Rothstein (2004, p. 7), a classificao vendleriana expressa uma intuio de que h duas propriedades que so cruciais na categorizao dos tipos de eventos: telicidade e fases. Um tipo de evento tlico se ele tem um ponto de parada natural, chamado ponto de culminao ou ponto de conjunto terminal; um tipo de evento (ou eventualidade nos termos da autora) tem fases, se podemos analis-lo como progressivo ou em desenvolvimento. A primeira propriedade [+ tlico] agrupa accomplishments e achievements, de um lado; e estados e atividades, de outro. Essa propriedade remete distino aristotlica kinesis vs. enrgeia. Eventualidades do primeiro tipo so [+ tlicos] ou tlicos, apresentando uma delimitao inerente ou potencial, isto , tendem para um telos, um ponto final, cujas propriedades so determinadas pela descrio do evento. Eventualidades do segundo tipo so [- tlicas] ou atlicas, pois no apresentam uma delimitao interna, no visam a um telos, isto , uma vez que elas comearam, podem continuar indefinidamente, j que a natureza do evento em si no determina seu ponto final.Em outras palavras, se algum parar de correr um quilmetro, ele no correu um quilmetro; se algum parar de desenhar um crculo ele no desenhou um crculo. Mas o homem que para de correr, de fato correu, e aquele que para de puxar uma carroa, realmente a puxou. (...) correr um quilmetro ou

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desenhar um crculo tm que ter um clmax, que tem que ser atingido. (VENDLER, 1967, p.100)34

semelhana da telicidade, a perfectividade ( na viso de alguns linguistas) tambm se refere ao ponto final do intervalo relevante (correspondente ao tempo do evento de dado predicado). Bertinetto (2001, p. 201), todavia, apresenta a seguinte distino terminolgica: terminatividade e delimitao, termos referentes a perfectividade e telicidade

respectivamente, ou seja, o primeiro ligado ao domnio do aspecto e o segundo ao campo da classe acional (acionalidade ou Aktionsart). Com relao perfectividade, o ponto final externo ao evento; condicionado pela viso perfectiva assumida pelo usurio, que escolhe ver o evento em sua inteireza, isto , como correspondendo a um intervalo fechado sua fronteira direita, independente da natureza acional do predicado envolvido. Quanto delimitao, porm, o ponto final interno ao evento tlico. A interpretao perfectiva a que tipicamente realiza a telicidade inerente do predicado tlico. Assim, por exemplo, em Joo construiu uma cadeira, h um estado de a cadeira estar construda, como uma consequncia do evento de construir. Conforme Bertinetto (2001, p.202), cumpre notar que o relacionamento entre delimitao e terminatividade no simtrico, tanto eventos tlicos quanto atlicos podem ser vistos como aspectualmente terminados.35 Apesar de a telicidade implicar a perfectividade (isto , a delimitao implicar a terminatividade), a perfectividade neutra com relao telicidade (isto , a terminatividade no implica a delimitao). Podemos exemplificar com o uso perfectivo de uma situao atlica, isto , uma situao aspectualmente terminada que se refere a uma situao no delimitada como: (3) Ontem o beb chorou a manh toda. Aqui a situao apresentada perfectivamente do ponto de vista aspectual, isto , como terminada (ou seja, limitada por um intervalo fechado) independentemente das propriedades semnticas inerentes do predicado, isto , de sua atelicidade. Por outro lado, uma situao tlica pode ser apresentada imperfectivamente, como no terminada, uma vez que o aspecto imperfectivo no implica atingir o telos como no enunciado a seguir: (4) Joo estava desenhando um crculo.

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No original: In other words, if someone stops running a mile, he did not run a mile; if one stops drawing a circle, he did not draw a circle. But the man who stops running did run, and he who stops pushing the cart did push it. () running a mile and drawing a circle do have a climax, which has to be reached. 35 No original: The relationship between boundedness and terminativity is not symmetric: both telic and atelic events may be viewed as aspectually terminated.

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Bertinetto (2001, p.183) diz que esse fato conhecido como o paradoxo do imperfectivo, embora o autor prefira outra denominao como o paradoxo da telicidade. Aqui a suspenso da telicidade deve-se construo imperfectiva. Em uma sentena de sentido aspectual progressivo como Joo estava desenhando um crculo, h um intervalo aberto, uma vez que o ponto final (potencial) do evento tlico deixado no especificado: o crculo pode ou no ter sido completado. As limitaes recprocas das classes vendlerianas podem ser avaliadas na base dos traos [ durativo], [dinmico], [ homogneo], conforme esta tabela de Bertinetto : TABELA 1 - Tabela de Bertinetto Durativo Estados Atividades Achievements AccomplishmentsFonte: BERTINETTO, 2001, p.178

Dinmico

Homogneo + +

+ +

+ + +

+

-

Com relao ao trao durao, estados, atividades e accomplishments so [+ durativos]. Por outro lado, como qualquer evento leva alguma quantidade de tempo fsico para ocorrer, a noo [-durativo] evidentemente deve ser interpretada em um sentido estritamente operacional, lingustico. Os verbos de achievement denotam eventos intuitivamente considerados [-durativos], quase instantneos, que acabam assim que comeam como reconhecer, localizar, notar, achar, perder, alcanar, morrer etc. O trao dinamicidade intuitivamente mais claro. Geralmente estados so considerados [-dinmicos] em oposio a atividades, accomplishments e achievements. Em termos de Bertinetto (2001, p.180) [...] estados, em oposio a eventos dinmicos, no tm granularidade interna: eles so densos, i. e., sua estrutura isomrfica com a estrutura do tempo.36 Todavia a diviso entre estados e eventos dinmicos no uma oposio dicotmica ntida, pois tais significados no so bem demarcados. Devem ser considerados os significados intermedirios entre o [+ dinmico] e o [-dinmico] nesses dois eixos do campo semntico, sendo fundamental a noo de continuum.

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No original: [] states, as opposed to dynamic events, have no internal granularity: they are dense, i.e. their structure is isomorphic with the structure of time.

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Bertinetto prope uma interpretao das classes vendlerianas com embasamento ontolgico e formal37 (2001, p.181). Para o autor, um evento composto de tomos dinmicos, instanciados por uma sequncia mnima de gestos. Analogamente, os estados podem ser tambm concebidos como compostos de tomos estticos. Entretanto h uma diferena entre os tomos dinmicos e estticos: os dinmicos correspondem a uma granularidade mnima permitida pelo dado evento considerado; por isso eles no so divisveis indefinidamente, diferindo dos estados que no tm granularidade e podem ser divididos vontade. Assim, ainda em termos de Bertinetto:

Eventos durativos so compostos de um conjunto de tomos (dinmicos ou estticos, conforme exigido), enquanto os no durativos (i. e. achievements) consistem idealmente de um nico tomo dinmico. Contudo, uma vez que achievements so eventos no homogneos, alm de um tomo dinmico eles tambm apresentam um tomo esttico, instanciando o telos atingido pelo completamento do evento. De modo semelhante, os accomplishments tambm envolvem um tomo esttico e acrscimo a um conjunto de dinmicos. (BERTINETTO, 2001, p.181)38

O trao homogeneidaderefere-se falta de uma fronteira interna, inerente ao evento. Estados e atividades so considerados [+ homogneos]. Segundo Bertinetto (2001, p.179) eventos atlicos possuem a propriedade de subintervalo (sub-interval property), pela qual se entende que se um evento f ocorre em um intervalo I, f tambm ocorre em qualquer subintervalo relevante de I. [...].39 Literalmente, essa propriedade somente funciona com verbos de estados, de modo que cada constituinte da situao exatamente igual a todo outro constituinte e, portanto, nenhuma fase pode ser distinguida. Por exemplo: (5) Maria amou Joo durante trinta anos Esse enunciado implica que em qualquer tempo, durante aqueles trinta anos, ela o amou. Cumpre observar que, com verbos de atividades, so permitidas lacunas pragmaticamente irrelevantes, como o caso do enunciado (6):

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No original: Ontological and formal grounds. No original: Durative events consist of a set of atoms (dynamic or static as required), while non-durative ones (namely, achievements) ideally consist of a single dynamic atom. However, since achievements are dishomogenous events, in addition to the dynamic atom they also present a static atom, instantiating the telos attained by the completion of the event. Similarly, accomplishments also involve a static atom in addition to a set of dynamic ones. 39 No original: Atelic events are generally said to possess the sub-interval property, by which it is meant that if event occurs at interval I, f also occurs at any relevant sub-interval of I.

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(6) Joo trabalhou o dia inteiro. Evidentemente, sabe-se que Joo no trabalhou sem parar: ele parou para descansar, almoar, etc. Todavia, as descontinuidades pragmticas no interior do evento podem ser desconsideradas para o propsito da propriedade de subintervalo. Ainda de acordo com Bertinetto (2001, p. 179), a interpretao correta dessa propriedade deve ser modulada pela granularidade distinta do evento dado. Uma anlise ligeira de exemplos de verbos de atividades como andar, chorar e esperar mostra-nos que a granularidade de chorar mais fina do que a de andar, mas mais grosseira do que a de esperar, que denota situao muito mais prxima de um estado, uma vez que qualquer subintervalo de esperar pode literalmente instanciar um ato de tal espcie. A classificao vendleriana dos verbos em estados, atividades, achievements e accomplishments til em termos de predio do comportamento lingustico de predicados verbais, ou seja, predio de como verbos de classes verbais particulares interagem com argumentos e modificadores. Embora no seja este o foco de nosso objeto de estudo, vlida a referncia s pesquisas sobre Aktionsart, pois, nos termos de Rothstein (2004, p. 4), as classes aspectuais lexicais no so generalizaes sobre os significados dos verbos, mas conjuntos de restries sobre como a gramtica nos permite individualizar eventos.40 Desse modo, estado, atividade, achievement e accomplishment so propriedades de verbos. Ainda na abordagem de Rothstein (2004, p.33), telicidade e atelicidade, porm, so propriedades de SVs (sintagmas verbais). O modo de determinao da (a)telicidade depender da caracterstica da classe verbal particular. Por exemplo: (a) construir uma casa e (b) construir casas, so respectivamente SVs tlico e atlico em cujos ncleos h um verbo de accomplishment (construir); (c) correr at o mercado ou (d) correr um quilmetro so ambos SVs tlicos, em cujos ncleos h um verbo de atividade. Com relao telicidade, o status do SV depende da interao do significado do V (verbo) com outros elementos no SV.41 a estrutura do objeto direto de um accomplishment como, por exemplo, construir que determinar se ele ncleo de um SV tlico ou atlico; no exemplo (b), o SN plural, sem determinante, casas, foi responsvel pela atelicidade. Assim, verbos como construir, escrever, comer so tlicos quando seus argumentos temticos tm determinantes definidos, quantificados, ou numricos, e so atlicos quando o mesmo argumento um nome de massa ou um plural nu (ing. bare plural), isto , constitudo

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No original: [] lexical aspectual classes are not generalizations over verb meanings, but sets of constraints on how the grammar allows us to individuate events. 41 Esse tema foi discutido originalmente por Verkuyil (1972).

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apenas do nome plural sem determinantes; como por exemplo, cartas, em ele escreve cartas. (7) Joo escreve trs cartas [em meia hora]. (tlico) (8) Joo escreve cartas [durante horas]. (atlico) Por outro lado, um SN denotando medida ou direo pode tornar tlico um SV cujo ncleo um verbo de atividade, atlico, como correr: (9) Joo correu de manh. (atlico) (10) Joo correu um quilmetro. (tlico) (11) Maria correu at o mercado. (tlico) O contexto tambm pode motivar a leitura tlica de um predicado encabeado por um verbo de atividade. Rothstein (2004, p.31) chama esse condicionamento de instncia de coero: o modificador em um tempo X fora uma interpretao do predicado verbal como tlico. No exemplo contextualizado abaixo, o verbo de atividade correr interpretado como ncleo de um predicado tlico com o sentido de correr uma distncia especfica, aceitando o modificador tlico em um tempo X. Exemplo de contexto: Todos sabem que Joo da Silva um maratonista e que, no domingo anterior, houve uma maratona em sua cidade, por isso ele pode dizer: (12) - Domingo passado eu corri (em) 2 horas e 20 minutos. (tlico) Como contribuio para a gramtica, a teoria vendleriana das classes aspectuais lexicais , portanto, vlida em termos de predio do comportamento lingustico de predicados verbais. Para Rothstein (2004, p. 196), a teoria do aspecto lexical no apenas restringe quais eventos so individuados. Ela restringe como predicados podem mudar de uma classe para outra. 42 Conquanto o aspecto lexical (ou Aktionsart) no seja o objeto de estudo primordial deste trabalho, a teoria do aspecto lexical de Rothstein e a abordagem de Bertinetto das classes semnticas verbais so pressupostos indispensveis para embasar a nossa proposta de descrio do aspecto em Esperanto, dando suporte leitura do uso aspectual das estratgias discursivo-gramaticais em narrativas esperantas originais e traduzidas. Os verbos do Esperanto tambm podem ser divididos semanticamente nas classes lexicais vendlerianas: estados, atividades, accomplishments e achievements. Essas propriedades semnticas, inerentes aos verbos, so muito teis em termos de predio do comportamento lingustico dos afixos participiais na codificao do aspecto, especialmente42

No original: The theory of lexical aspect doesnt only constrain which events are individuated. It constrains how predicates can shift from one class to another.

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quanto aos particpios-adjetivos passivos terminados em at(a) e it(a) que so estudados no prximo captulo.

3.2.4 Aspecto e tempo

Do ponto de vista filosfico, a tradicional aspectologia ocidental herdeira da classificao semntica aristotlica dos verbos. Aristteles distingue duas classes verbais: a dos estados e a dos processos e estes, ainda segundo o filsofo, subdividem-se em movimentos (kinesis) e atividades (enrgeia). Aristteles distingue os verbos de kinesis como construir, os de exis, como viver, os de praxis , como pensar. (NEF, 1995, p. 41) No contexto das abordagens filosficas da linguagem, o filsofo neoplatnico Plotino, por exemplo, preocupa-se em classificar as aes e apresenta sua prpria classificao dos verbos, ao distinguir atos instantneos e atos sucessivos. Conforme se l em Nef (1995, p.40), Plotino no segue a diviso aristotlica entre o agir e o sofrer, e questiona assim o primeiro: o agir, segundo eles [os peripatticos], compreende os atos e os movimentos, os atos que se produzem instantaneamente, e os movimentos que se produzem sucessivamente, como a ao de cortar? Em uma definio geral, bsica, o que caracteriza o aspecto a ideia de durao de um evento, processo ou estado, no implicando o tempo de sua ocorrncia com relao ao momento da enunciao. Conforme Vendryes, o indo-europeu preocupava-se mais com a durao do que com o tempo:

O que o interessava em uma ao no era indicar em que momento (passado, presente ou futuro) se executava, mas, sim, indicar se era considerada em sua continuidade ou somente em um ponto de seu desenvolvimento, se era um ponto inicial ou o final, se a ao se efetuava uma s vez ou se repetia, se tinha um trmino e um resultado.Da as distines que adotou a Gramtica Comparada entre verbos durativos, ou instantneos, perfectivos ou imperfectivos, incoativos, iterativos, terminativos, etc. (VENDRYES, 1958, p.153)43

Desse modo, de acordo com a histria das lnguas indo-europeias, a noo de tempo mais recente do que a de aspecto; em alguns casos, sendo este substitudo por aquele.43

No original: Lo que se interesaba en una accin no era indicar en qu momento (pasado, presente o futuro) se ejecutaba, sino indicar si se la consideraba en su continuidad o slo en un ponto de su desarrollo, si era el punto inicial o el final, si la accin se efectuaba una sola vez o se repeta, si tena un trmino y un resultado. De ah las distinciones que ha adoptado la Gramtica comparada entre verbos durativos o instantneos, perfectivos o imperfectivos, incoativos, iterativos, terminativos, etc.

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Cumpre-nos, todavia, esclarecer que no houve uma radical supresso da categoria de aspecto em proveito da de tempo. Como observa Cmara (1967, p.145), trata-se apenas de uma predominncia da categoria de tempo para a classificao e distribuio das formas verbais, isto , para o sistema de conjugao. No obstante, a noo de aspecto sobrevive nas lnguas modernas anglo-saxnicas e neolatinas, como Vendryes o demonstra, exemplificando com o alemo, o ingls e o francs e, com relao a este ltimo, o autor assim argumenta:O francs no , pois, inapto para expressar o aspecto, j que encontramaneira de faz-lo quando tem necessidade. Somente que o aspecto no em francs uma categoria gramatical regular. Dado um verbo francs, no se podem indicar seu iterativo ou durativo da mesma maneira que se indica o futuro ou o imperfeito. 44(VENDRYES, 1958, p.162)

Apesar disso, para compreender-se o sistema verbal do snscrito ou do grego antigos necessrio levar em considerao as noes aspectuais. De acordo com Lyons (1970, p. 12) deve-se tambm a Aristteles o reconhecimento da categoria de tempo no verbo grego, depreendendo noes como presente e passado a partir de certas variaes sistemticas das formas verbais. No entanto, foram os estoicos que identificaram nos verbos gregos algo mais do que a referncia apenas temporal, a saber, a realizao ou no-realizao da ao expressa pela forma verbal. Era o aspecto, portanto, que regulava o emprego do verbo indo-europeu. Em termos de Castilho:[...] os temas verbais mais relevantes eram o do aoristo, que expressava o processo considerado em si mesmo, o do presente, que indicava o processo em seu desenvolvimento, e o do perfeito, que representava o estado consequente a um processo cumprido. (CASTILHO, 1968, P.22-23)

Dentre as lnguas indo-europeias, somente as eslavas conservaram at hoje a categoria de aspecto como eixo principal do seu sistema verbal. Segundo Lyons (1977, p.705), o termo aspecto foi primeiramente empregado para a distino entre perfectivo e imperfectivo na flexo dos verbos do russo e de outras lnguas eslavas. O aspecto perfectivo lembra o termo que empregavam os gramticos estoicos para a noo bastante parecida com acabamento,

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No original: El francs no es, pues, inapto para expresar el aspecto, ya que encuentra manera de hacerlo cuando tiene necesidad. Solamente que el aspecto no es en francs, no se pueden indicar su iterativo o durativo de la misma manera que se indica el futuro o el imperfectivo.

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em oposio ao imperfectivo (durao). Por exemplo, em relao ao polons, nos termos de Nadalin:

[...] ao se consultar um dicionrio portugus-polons, comum encontrar para um determinado verbo portugus, pelo menos dois verbos correspondentes em polons. Por exemplo, o verbo portugus escrever corresponde, em polons, a pelo menos dois verbos pisa e napisa, sendo o primeiro imperfectivo e o segundo perfectivo. Correspondendo ao nico verbo portugus escrever, os verbos poloneses pisa (imperfectivo) e napisa (perfectivo) significam, respectivamente, estar escrevendo e escrever algo do comeo ao fim. (NADALIN, 2005., p.32)

Lyons (1970, p.241) informa-nos que, no sistema aspectual grego, alm da distino perfectivo vs. imperfectivo, h um terceiro termo, o aoristo que, em certas posies sintticas, est em oposio ao mesmo tempo com o perfectivo e com o imperfectivo. A distino imperfectivo / aoristo refere-se durao da ao descrita. Por exemplo, ao aoristo boulesasthai (decidir, sem indicao do fato de que a deciso momentnea ou no) opese o imperfectivo bouleesthai, que significa estar decidindo, ocupado em decidir. Por outro lado, como foi mencionado acima, a oposio perfectivo / imperfectivo, em grego, diz respeito ao acabamento; assim, ao imperfectivo bouleesthai estar decidindo ope-se o perfectivo beboulesthai, ter decidido. Tal sistema de trs formas pode ter sido uma caracterstica do indo-europeu, j que as noes aspectuais de acabamento e de durao encontram-se, em conjunto ou separadamente, em muitas lnguas. Nos termos de Cmara (1967, p.144) tambm uma distino de aspectos que constitui na conjugao latina a diviso entre formas IMPERFEITAS, ou de INFECTUM, e formas PERFEITAS, ou de PERFECTUM. [grifos do autor]. O infectum exprime o processo em sua realizao; o perfectum, a ao concluda; por exemplo, respectivamente, fcio (fao): fci (fiz), com alternncia voclica no tema do perfectum (fci), em contraste com o tema do infectum (fcio). Essa base aspectual manteve-se na conjugao do verbo em latim clssico. Segundo informaes de Castilho (1968, p.21), o gramtico comparativista alemo Georg Curtius, em 1846, ao estudar a formao dos tempos e modos dos verbos gregos , comparando-os com o sistema verbal das lnguas eslavas, identificou os graus do tempo (al. Zeitstufe), isto , o presente, o passado e o futuro, e a qualidade do tempo(Zeitart), de denotao aspectual: a) ao durativa, expressa pelas formas do tema presente; b) ao incipiente, indicada pelas formas do tema do aoristo, e c) ao completa, atualizada pelas formas do tema do perfeito. Para Curtius, Zeitart (posteriormente traduzida por aspecto) era

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uma categoria gramatical, morfolgica, mas foi compreendida pelos autores que o seguiram como uma categoria de base apenas semntica. digno de nota o fato de Curtius apresentar uma vinculao entre tempo e aspecto, j que o termo alemo Zeitart (aspecto) significa qualidade do tempo Naquela poca, pois, Curtius j intua o conceito tradicionalmente aceito de aspecto, introduzido por Comrie (1976). Em toda a literatura lingustica pesquisada, portanto, as noes de temporalidade e aspectualidade apresentam-se como intrinsecamente relacionadas. Em muitos desses estudos, porm, pode-se notar uma confuso terminolgica e conceitual entre as categorias de aspecto e tempo. Tal confuso herana da gramtica greco-latina, devido a um equvoco dos estoicos. Apesar de estes terem identificado o significado aspectual verbal de completo / incompleto (ou perfeito / imperfeito respectivamente), incluram tal noo na significao da categoria de tempo. Isso explica a classificao como apenas temporal do morfema que distingue o pretrito imperfeito nas lnguas romnicas como em portugus o sufixo va em cantava, por exemplo, descrito como modo-temporal, e no (modo-)aspecto-temporal. Segundo Lyons (1977, p. 705), em todas as lnguas do mundo, o aspecto mais comum e frequente do que o tempo: h muitas lnguas que no tm tempo, mas muito poucas so as que no tm aspecto, considerando ainda a possibilidade de o aspecto ser ontogeneticamente mais bsico do que o tempo. Em outra obra, o mesmo autor (1970, p.241) considera que as distines aspectuais relacionam-se com o tempo, medida que dizem respeito distribuio ou contorno temporal de uma ao, acontecimento ou estado de coisas. No entanto, ao contrrio do tempo, o aspecto no uma categoria ditica, pois no se refere ao momento da enunciao. O linguista Meillet (1948) v interferncias entre tempo e aspecto. Para o autor,H uma categoria que interfere frequentemente com a do tempo, a que se conhece em gramtica eslava sob o nome de aspecto e cuja caracterstica corresponde to bem, seno melhor, ao carter do verbo que a categoria do tempo. A categoria de aspecto, no menos variada que a de tempo, abrange tudo o que relativo durao e ao grau de realizao dos processos indicados pelos verbos. 45(MEILLET, 1948, p.183)

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No original: Il y a une catgorie qui interfre souvent avec celle du temps, cest celle quon connat en grammaire slave sous le nom d aspect et dont le caractre rpond aussi bien, sinon mieux, au caractre du verbe que la catgorie du temps. La catgorie de l aspect, non moins varie que celle du temps, embrasse tout ce qui est relatif la dure et au degr dachvement des procs indiques par les verbs.

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Essa interferncia ou inter-relao entre aspecto e tempo tambm tem sido pesquisada em abordagens sobre aquisio da linguagem. Com relao a esse tema, Wagner (1999, p. 661) levanta a hiptese de que as crianas inicialmente usam a morfologia verbal para codificar o aspecto, e no tempo; tal hiptse por ela denominada Aspect First Hypothesis (Hiptese da Anterioridade do Aspecto) . A autora fez uma experincia com quarenta e seis crianas de dois e trs anos de idade, falantes de lngua inglesa. Para testar-lhes a compreenso do tempo, enquanto categoria marcada no sistema auxiliar, essa linguista utilizou como mtodo uma tarefa de combinar sentenas com cenas apresentadas. As crianas operaram com mltiplas possibilidades do mesmo evento, sendolhes perguntado se um personagem is V ing, was V ing e is gonna V (aproximadamente em portugus: est V-ndo, estava/esteve V- ndo e vai V- r ). A pesquisadora percebeu que mesmo as crianas menores (de dois anos) puderam compreender o tempo, com sucesso, nesse experimento denominado Teste I. No obstante o sucesso do Teste I, ela obteve resultado diferente ao aplicar o Teste II. Neste foi mudada a informao disponvel nas cenas, questionando-se se o evento de tempo passado alcanava (sim ou no) seu ponto de completamento (ou concluso). Participaram trinta e seis crianas de dois, trs e quatro anos de idade. Os resultados mostraram que as crianas pequenas de dois anos de idade puderam somente compreender com sucesso os auxiliares temporais de passado e presente quando a informao de tempo passado nas cenas era coextensiva com a informao de completamento ou concluso contida nas mesmas. Ou seja, quando o evento de tempo passado apresentava-se incompleto, as crianas de dois anos demonstraram no entender o significado do tempo expresso pelos auxiliares. Assim, o resultado do Teste II sinaliza que as crianas de dois anos esto usando uma informao aspectual de concluso ou completamento (completion information), e no uma informao de ordenao temporal. Por sua vez, isso sugere que essas crianas podem estar fazendo um julgamento de aspecto (perfectivo / imperfectivo), e no um julgamento de tempo (passado / presente), ou que, no mnimo, o aspecto influencia a interpretao de tempo para tais crianas. A principal fonte de evidncia para a Aspect First Hypothesis vem do exame da distribuio da produo da morfologia verbal das crianas. A anlise de enunciados de crianas com a idade aproximadamente de dois anos e seis meses mostrou que a morfologia do tempo passado (em algumas lnguas, a morfologia do perfectivo) geralmente restrita a verbos tlicos, que descrevem eventos naturalmente delimitados, ao passo que a morfologia

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do tempo presente (em algumas lnguas, morfologia do imperfectivo) restrita a verbos atlicos, que descrevem eventos sem qualquer ponto final inerente. Portanto, nos dados da produo inicial de crianas de lngua inglesa, encontram-se expresses verbais tlicas e no tempo passado como broke (quebrou) e made (fez); e outras atlicas como playing (brincando, tocando) e riding (cavalgando), ao passo que as formas que combinam um verbo atlico com marcador de passado, ou um verbo tlico com um marcador de imperfectivo (ex.: breaking, played) so extremamente raras. Desse modo, pode-se pensar que, nessas gramticas incipientes das crianas, a morfologia verbal inicialmente marca o aspecto lexical; isto , o sufixo ed codifica um evento como um predicado tlico e o sufixo ing, como um predicado atlico. H, portanto, uma expectativa de que o significado dos morfemas verbais seja altamente especificado pelos verbos aos quais se adicionam. Segundo Wagner (1999, p. 663) essa distribuio da morfologia verbal de acordo com o tipo de aspecto lexical do verbo foi documentada em vrias lnguas, a saber, Ingls, Italiano, Francs, Polons, Turco, Japons, Alemo, Portugus, Mandarim e Hebreu. Ainda de acordo com Wagner (1999, p. 664), muitas lnguas fundem a informao de tempo e a de aspecto em um nico morfema como o Ingls, o Francs, o Italiano, o Japons e o Portugus. Nesta ltima, por exemplo, em verbos flexionados no pretrito imperfeito do indicativo como cantava ou partia, impossvel identificarem-se separadamente os morfemas de tempo e aspecto. No obstante a frequncia desse fato, a hiptese de Wagner (Aspect First Hypothesis) afirma com nfase que o aspecto marcado s custas do tempo nos estgios iniciais da aquisio da linguagem. O argumento a favor dessa ideia de que as crianas esto inicialmente ignorando a informao de tempo apoia-se no fato de que a morfologia distribuda de acordo com o tipo de aspecto lexical do verbo.46 (WAGNER, 1999, p.664). A grande fora dessa hiptese a de que a informao de tempo no codificada pela morfologia incipiente das crianas. Seguindo os passos de Wagner, Reis (2008), em estudo relativo aquisio do portugus brasileiro, apresenta uma pesquisa que estuda a produo de uma criana (nomeada G) de um ano e dez meses a trs anos e seis meses, para verificar a hiptese de que a morfologia verbal marca inicialmente aspecto. Segundo essa autora, foram analisados seis arquivos, cada um referente s idades de 1;10, 2;01, 2;03, 2:08, 3;00, 3;06, num tota