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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 1 O CASAMENTO NAS PROPAGANDAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA Márcia Elena de Brito* Célia Bassuma Fernandes ** RESUMO: O presente trabalho teve por objetivo analisar, sob o aporte teórico da Análise de Discurso de linha francesa, como vem sendo representado o casamento, bem como os sujeitos masculino e feminino no seu interior, em uma propaganda comercial que circulou na internet, no ano de 2004. Buscou, ainda, verificar que redes de memória são mobilizadas no discurso publicitário para representar essa instituição secular, bem como que efeitos de sentido delas decorrem. ABSTRACT: This study aimed to analyze, under the theoretical framework of French view of Discourse Analysis, how marriage is being represented, as well as the male and female subjects inside it in a commercial advertisement which circulated on the Internet on 2004. We sought also to check which memory networks are mobilized in advertising discourse to represent this secular institution as well as which meaning of effects they entail. PALAVRAS-CHAVE: Casamento, Discurso, Memória. KEYWORDS: Marriage, speech, memory. INTRODUÇÃO A publicidade está hoje em todos os lugares, tanto em revistas como em outdoors, televisão, internet, entre outros. Tem por finalidade persuadir, informar, vender, induzindo o consumidor ao desejo de obter produtos para sua satisfação. Dessa forma, há anúncios de todos os tipos, desde aqueles que promovem produtos de extrema necessidade, até aqueles que tentam convencer que algo supérfluo, é extremamente necessário. Nessa sociedade capitalista, consumidores buscam status social, comprando produtos por vezes desnecessários, mas que produzem o efeito de sentido desejado. Contudo, atualmente, propaganda não constitui apenas um meio de persuadir o consumidor, levando-o a compra, mas funciona também de modo a disseminar valores e atitudes, determinando até mesmo o estilo de vida dos sujeitos. Portanto, constitui um discurso, por meio do qual certos valores e representações são reafirmadas ou até mesmo modificadas.

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O CASAMENTO NAS PROPAGANDAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA

Márcia Elena de Brito*

Célia Bassuma Fernandes **

RESUMO: O presente trabalho teve por objetivo analisar, sob o aporte teórico da Análise de Discurso

de linha francesa, como vem sendo representado o casamento, bem como os sujeitos masculino e

feminino no seu interior, em uma propaganda comercial que circulou na internet, no ano de 2004.

Buscou, ainda, verificar que redes de memória são mobilizadas no discurso publicitário para representar

essa instituição secular, bem como que efeitos de sentido delas decorrem.

ABSTRACT: This study aimed to analyze, under the theoretical framework of French view of Discourse

Analysis, how marriage is being represented, as well as the male and female subjects inside it in a

commercial advertisement which circulated on the Internet on 2004. We sought also to check which

memory networks are mobilized in advertising discourse to represent this secular institution as well as

which meaning of effects they entail.

PALAVRAS-CHAVE: Casamento, Discurso, Memória.

KEYWORDS: Marriage, speech, memory.

INTRODUÇÃO

A publicidade está hoje em todos os lugares, tanto em revistas como em outdoors,

televisão, internet, entre outros. Tem por finalidade persuadir, informar, vender,

induzindo o consumidor ao desejo de obter produtos para sua satisfação. Dessa forma,

há anúncios de todos os tipos, desde aqueles que promovem produtos de extrema

necessidade, até aqueles que tentam convencer que algo supérfluo, é extremamente

necessário.

Nessa sociedade capitalista, consumidores buscam status social, comprando produtos

por vezes desnecessários, mas que produzem o efeito de sentido desejado. Contudo,

atualmente, propaganda não constitui apenas um meio de persuadir o consumidor,

levando-o a compra, mas funciona também de modo a disseminar valores e atitudes,

determinando até mesmo o estilo de vida dos sujeitos. Portanto, constitui um discurso,

por meio do qual certos valores e representações são reafirmadas ou até mesmo

modificadas.

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Trata-se, portanto, de uma relação assimétrica, desigual, pois o discurso produzido pelo

sujeito-enunciador tem um efeito de sentido de autoridade sobre o sujeito consumidor.

De acordo com a AD, o discurso publicitário funciona como um discurso doutrinário ou

autoritário1, em que não existe a reversibilidade, ou seja, o sujeito enunciador não

possibilita ao sujeito-consumidor questionamento. Segundo Orlandi (1996.p 240), o

discurso autoritário tende a estancar a polissemia, porque “[...] todo discurso é

incompleto e seu sentido é intervalar: um discurso tem relação com outros, é constituído

pelo seu contexto imediato de enunciação e pelo contexto histórico social, e se institui

na relação entre formações discursivas e ideológicas.” De acordo com essa noção, não

se pode fixar o locutor no lugar do locutor e o ouvinte no lugar do ouvinte, pois ao

serem afetados pelo simbólico da língua, eles podem perfeitamente transpor o seu lugar

de origem.

Além disso, no discurso publicitário se entrelaçam a linguagem verbal e a não verbal.

Para Orlandi, o sujeito está sempre interpretando, não se restringindo apenas ao verbal,

e há diferentes modos de significar, que afetam os gestos de interpretação. Segundo a

autora, “[...] os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem

com o sentido se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação

diversos: pintura, imagem, escultura, escrita, etc.” (ORLANDI, 2007, p.12).

Desse modo, não há como delimitar a compreensão do não verbal e do verbal, pois

como Orlandi (2002, p. 32) salienta cada discurso possui a sua “especificidade”. Trata-

se, portanto, de observar que efeitos de sentidos decorrem da relação entre a imagem e o

gesto de interpretação. Com base nisso, este trabalho tem por finalidade verificar como

o casamento é representado em uma propaganda comercial que circulou na internet,

observando se há nela, o entrecruzamento de discursos provenientes de diferentes

domínios do saber. Pretende-se verificar também, como são representados os sujeitos

masculino e feminino dentro dessa instituição secular.

O aporte teórico a partir do qual analisaremos os dados obtidos é a Análise de Discurso

de linha francesa, que busca observar os processos discursivos e os efeitos de sentido

desencadeados em discursos efetivamente realizados. Com isso, verifica-se o trabalho

da língua na história e são estabelecidas redes com outros já-ditos, que retornam, pelo

trabalho da memória discursiva, no fio do discurso.

1. ANÁLISE DE DISCURSO

1 De acordo com Orlandi (1996, p. 154), há três tipos de discursos: o discurso lúdico, o discurso polêmico

e o discurso autoritário. O critério adotado para a distinção desses discursos é a relação entre o referente

(objeto do discurso) e os interlocutores (locutor e ouvinte), e nessa distinção, é fundamental a noção de

reversibilidade.

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A Análise de Discurso de linha Francesa (AD) nasce em 1969, com o intuito de,

inicialmente, analisar discursos políticos. Seu objeto de estudo, como o próprio nome

indica, é o discurso, em sua relação com a ideologia e os sujeitos. Logo, não trata da

língua, nem da gramática, embora elas sejam de grande importância na produção dos

sentidos. Analisar o discurso significa observar, portanto, a língua em movimento. De

acordo com Orlandi (2010, p. 15)

a AD, como seu próprio nome indica não se trata de língua, não se trata de

gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E

a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, percurso, de

correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática

de linguagem: com o discurso observa-se o homem falando.

De acordo com a teoria proposta por Pêcheux, nenhum discurso é "novo", mas

estabelece sempre relações com outros, isto é, um discurso nasce do entrecruzamento do

interdiscurso – eixo vertical, no qual se encontram os dizeres já-ditos e esquecidos –

com o intradiscurso, eixo no qual os enunciados são sintagmatizados, linearizados, e

que corresponde, portanto, àquilo que o sujeito diz em determinado momento e sob

dadas condições de produção, que conforme Orlandi (2010, p.30), “compreendem

fundamentalmente os sujeitos e a situação”. Em sentido estrito, dão conta do contexto

imediato da enunciação; e em sentido amplo, incluem o contexto sócio histórico e

ideológico em que os discursos são produzidos.

Também a memória faz parte das condições de produção do discurso. Para a autora

citada, a memória é entendida como “o saber discursivo que torna possível todo dizer e

que retorna sob a forma do pré-construído2, é o já-dito que está na base do dizível,

sustentando cada tomada da palavra”. É a memória discursiva ou interdiscurso que

sustenta os dizeres, ou seja, ela é o lugar onde estão todos os discursos já ditos e

esquecidos que retornam no eixo da formulação, sob o efeito do “a se dizer”

(ORLANDI, 2010, p.31), embora o sujeito tenha a ilusão de que aquilo que diz nunca

foi dito antes.

Esse efeito ocorre porque ele é afetado por dois esquecimentos: um de ordem ideológica

e outro da ordem da enunciação. Pelo esquecimento ideológico, o sujeito tem a ilusão

de ser o primeiro a proferir um discurso, quando na realidade, apenas retoma discursos

já existentes. Já o esquecimento da ordem da enunciação, produz a impressão da

realidade do pensamento – também denominada ilusão referencial – e faz com que o

sujeito acredite que há uma relação direta entre o pensamento e a linguagem, ou seja, de

2De acordo com Pêcheux (1997a, p.164, grifos do autor), *..+ o “pré-construído” corresponde ao

“sempre-já-aí” da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalidade (o “mundo das coisas”)

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que o que ele diz só pode ser dito com aquelas palavras e não com outras. Todavia, é

necessário frisar que os esquecimentos são constitutivos dos sujeitos e dos sentidos

(PÊCHEUX, 1997a, p.173).

As condições de produções que constituem um discurso funcionam ainda, de acordo

com a relação de forças, tendo em vista que a sociedade é dividida hierarquicamente.

Assim sendo, de acordo com Orlandi (2010, p. 39), “o lugar a partir do qual fala o

sujeito é constitutivo do que ele diz”. A relação de sentidos diz respeito ao fato de que

todo o discurso estabelece relações com outros já ditos e outros que ainda estão por vir.

Por fim, o mecanismo da antecipação funciona como regulador da argumentação, pois

diz respeito à capacidade de o sujeito ocupar o lugar do seu interlocutor, antecipando

assim, os efeitos de sentido.

As formações imaginárias (FI) são mecanismos discursivos que não se manifestam em

sujeitos empíricos. São representações que o sujeito faz do lugar que ele e seu

interlocutor ocupam no discurso, ou do objeto sobre o qual falam. Para Orlandi (2010,

p.40) as FI são mecanismos que fazem com que os discursos funcionem nesse jogo de

imagens. Desse modo, não são os sujeitos físicos, nem os lugares empíricos que

funcionam no discurso, mas as imagens que resultam de projeções sustentadas pela

história, pelo social e pela ideologia.

Para compreender um discurso, além de analisar suas condições de produção e

estabelecer relações com os já-ditos, é necessário também remetê-lo a uma formação

discursiva, pois o sentido não existe por si mesmo. Pêcheux enfatiza que,

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc, não

existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade

do significante), mas, ao contrário é determinado pelas posições ideológicas

que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões

e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (Pêcheux 1997a, p.160

grifos do autor)

Isso significa que “[...] as palavras. Expressões, proposições, etc., mudam de sentido

segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam”, isto é, “[...] é a

ideologia que fornece as evidências [...] que fazem com que uma palavra ou enunciado

„queiram dizer o que realmente dizem‟ e que mascarem, assim, sob a „transparência da

linguagem‟, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos

enunciados (PÊCHEUX, 1997a, p.160, grifos do autor).

Dessa forma, os sentidos não estão pré-determinados na língua. Eles sempre são

definidos ideologicamente, e no discurso representam as formações ideológicas,

definidas como “um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem

„individuais‟ nem „universais‟ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições

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de classes em conflitos umas com as outras” (PÊCHEUX, 1997b, p. 166, grifos do

autor).

Para a teoria materialista do discurso, a noção de ideologia “é a condição para a

constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela

ideologia para que se produza o dizer”, e tem por finalidade “produzir evidências,

colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência”

(Orlandi, 2010, p. 46). Conforme a autora,

Atravessado pela linguagem e pela história, sob o modo do imaginário, o

sujeito só tem acesso a parte do que diz. Ele é materialmente dividido desde

sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é sujeito à língua e à

história, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos ele é afetado por

elas (ORLANDI, 2010, p. 48-49).

Contudo, ao mesmo tempo em que produz evidências, a ideologia, enquanto estrutura-

funcionamento, “dissimula sua existência a partir de seu próprio funcionamento”

(Orlandi 2010 p. 46), criando assim, a ilusão da transparência dos sentidos a partir do

apagamento da determinação da formação discursiva e mesmo do interdiscurso. Desse

modo, na AD, a ideologia não é considerada mascaramento/ocultação da realidade, mas

constitutiva do sujeito e dos sentidos,

No discurso, as formações ideológicas comportam, como um de seus componentes, uma

ou mais formações discursivas (FD), que determinam aquilo que pode/não pode ou

deve/não deve ser dito numa conjuntura sócio- histórica dada. De acordo com o

fundador da AD, uma FD é definida como:

[...] aquilo que, em uma formação ideológica dada, isto é, a partir de uma

posição dada em uma conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de

classes, determina o que pode e o que deve ser dito (articulado sob a forma de

uma alocução, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um

programa, etc.). (PÊCHEUX, 1997a, p. 160, grifos do autor).

Portanto, as FD representam, no discurso, as formações ideológicas. Isso significa que e

o sentido é determinado ideologicamente e passa a existir por meio do interdiscurso,

caracterizado por “algo que fala sempre antes, em outro lugar e independentemente”,

isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1997a,

p.162) .

“Para o autor, “toda formação discursiva dissimula, pela transparência de sentido que

nela se constitui, sua dependência com relação ao “todo complexo com dominante” das

formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas” e propõe”

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[...] chamar interdiscurso a esse „todo complexo com dominante‟ das formações

discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-

contradição-subordinação que [...] caracteriza o complexo das formações ideológicas"

(PÊCHEUX, 1997a, p. 162). Conforme ele,

“[...] uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que

lhe seria “próprio”, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se

constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras,

expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou

proposições da mesma formação discursiva. De modo correlato, se se admite

que as mesmas palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao

passar de uma formação discursiva a uma outra, é necessário também admitir

que palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem, no

interior de uma formação discursiva dada, “ter o mesmo sentido” [...]

(PÊCHEUX, 1997a, p. 161, grifos do autor).

Com relação à imagem Pêcheux enfatiza que ela funciona como um dispositivo que

opera a memória social, porque ela comporta em seu interior “[...] um programa de

leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar.” (PÊCHEUX, 2010, p.51).

Na AD a questão da imagem se dá pelo viés da opacidade atravessada e constituída por

um discurso, possui uma discursividade própria, não é mais uma imagem transparente,

pois é afetada por um discurso. Pêcheux evidencia que

A questão da imagem encontra assim a análise de discurso por um outro viés:

não mais a imagem legível na transparência, porque um discurso a atravessa

e a constitui, mas a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a

memória “perdeu” o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que jamais

deteve em suas inscrições). (PÊCHEUX,2010, p 55)

Vejamos como esses conceitos, que trabalham em rede, funcionam nas materialidades

selecionadas. Conforme já mencionado, para fins de análise, dividimos o corpus em

sequências discursivas (SD), entendidas por Courtine (2009, p. 55), como

“procedimentos de segmentação” de “dimensão superior à frase”.

2. ANÁLISE

O casamento existe desde os primórdios da história. Contudo, com o passar do tempo,

essa instituição foi sofrendo inúmeras transformações, que culminaram no modelo que

temos hoje. Pelos registros, já na Roma Antiga, o casamento tinha por objetivo gerar

filhos legítimos, que herdariam a propriedade e o estatuto dos pais. Nas classes mais

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prestigiadas, servia também para selar alianças de natureza política ou econômica.

Na França, o sujeito masculino tinha superioridade absoluta sob o sujeito feminino,

considerado incapaz, isto é, a partir do casamento o sujeito-feminino deixava de ser um

sujeito responsável3 pelos seus atos, não possuía direitos, mas somente deveres. Se

abandonasse o lar, era “obrigado”, pela força pública, a voltar para casa e cumprir seus

“deveres matrimoniais”.

O sujeito-feminino adúltero poderia ser condenado à morte, pois ameaçava o que havia

de mais importante na constituição da família: “a filiação legítima”. Em contrapartida,

se a traição viesse do sujeito masculino não lhe acontecia nada, pois ele não era passível

de “castigo”.

No Brasil colônia, fortemente influenciado pela igreja católica, não existia amor ou

paixão, porque o casamento era considerado, antes de tudo, um “negócio” e uma forma

de união indissolúvel, que condenava o sujeito feminino a ser um escravo doméstico,

totalmente submisso à vontade do seu outro. O sexo, por exemplo, só tinha a finalidade

de procriação, já que a contracepção era proibida, sendo “pecado” negar-se ao marido,

pois o sujeito feminino deveria estar sempre disponível. (DEL PRIORE, p. 26-32,

2011b).

No início do século XX, o casamento continua sendo considerado indissolúvel e o

divórcio imoral, somente podendo ocorrer “em casos excepcionais e depois de

rigorosíssimo processo” (DEL PRIORE, p.246,2011b). O sujeito feminino continuava,

portanto, sendo considerado incapaz e sustentando a posição de dependência e

inferioridade perante o marido.

Atualmente, tanto os sujeitos masculinos como os sujeitos femininos, possuem a

liberdade de escolher se querem se casar ou não. Além disso, os sujeitos femininos,

dadas às conquistas das últimas décadas, em sua grande maioria não são submissos e

nem dependentes tanto emocionalmente como financeiramente do seu outro.

A materialidade que compõe o corpus desse trabalho se refere a uma marca de cerveja

nacionalmente conhecida, e circulou no ano de 2004, na televisão e, atualmente,

encontra-se disponível somente na internet. Nela ressoa o discurso religioso,

discursivamente compreendido como um tipo de discurso autoritário, baseado na

contenção da reversibilidade. Caracterizado como aquele em que fala a “voz de Deus” –

seja um padre, pregador ou outro representante dele na terra – de acordo com Orlandi

(1996, p.243), nesse tipo de discurso fala um ser “imortal, eterno, infalível [...]”, e os

humanos ocupam a posição de ouvintes “mortais, efêmeros, falíveis, finitos dotados de

poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens”.

Ainda de acordo com a autora citada,

3 De acordo com Michele Perrot (2009, p.108), essa incapacidade, expressa no artigo 213 (“O marido

deve proteção à sua mulher e a mulher obediência ao seu marido”) é quase total.

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O discurso religioso não apresenta nenhuma autonomia, isto é, o

representante da voz de Deus não pode modificá-lo de forma alguma [...]. Há

regras estritas no procedimento com que o representante se apropria da voz

de Deus: a relação do representante com a voz de Deus é regulada pelo texto

sagrado, pela igreja e pelas cerimônias (1996, p. 245).

Dessa forma, o discurso religioso é aquele em que o sujeito é totalmente obediente e

submete-se às regras que lhes são impostas por essa FD. Ele reconhece o seu lugar e o

lugar de Deus.

Na SD1: “Eu, Antônio, prometo ser fiel, prometo ser [...]” faz ressoar, pelo trabalho da

memória na língua, o discurso religioso, que prega sentidos relacionados à fidelidade no

casamento. Na presença do padre – representante de Deus na terra – os sujeitos

feminino e masculino “prometem” serem fiéis um ao outro.

Contudo, de acordo com Del Priore (2011a, p.59), desde o Brasil colônia, a fidelidade

no casamento sempre foi mais cobrada do sujeito feminino, que caso traísse, estaria

arriscando a própria vida, pois “achando o homem casado sua mulher em adultério,

licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero”.

A traição do sujeito masculino era desculpável e sempre relacionada ao sujeito-

feminino, único responsável por ela, já que, ele supostamente não estaria cumprindo seu

“papel” corretamente. Outro motivo para justificar a traição bastante alegado pelos

sujeitos masculinos era o de que “os homens tinham necessidades sexuais diferentes e

bem maiores se comparadas com as mulheres – uma característica natural masculina”.

Esse sentido é reforçado, na materialidade em questão, pelo fato de quem faz o

“juramento” é o sujeito-masculino, isto é, aquele a quem é “permitido” trair.

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Na SD 2: “É.... peraí, eu preciso saber de uma coisa antes: se ela promete ficar gostosa

para sempre”, ressoa, no fio do discurso, pelo trabalho da memória discursiva, sentidos

relativos ao fato de que a traição masculina resulta do suposto “desleixo” feminino, pois

circulam, frequentemente, na nossa sociedade, discursos relacionados ao fato de que

quando casam, as mulheres perdem as formas, como se isso fosse regra geral e também

não acontecesse com os homens.

A quebra de expectativa gera o humor e leva ao riso, pois essa pergunta foge do que

seria “normal” dentro da cerimônia do casamento. Além disso, a “culpa” pela

possibilidade de traição é atribuída ao sujeito-feminino, que para evitá-la deve manter-

se dentro dos padrões, tidos como ideais para a sociedade, fazendo circular nitidamente,

um discurso machista, pois ao sujeito masculino só importa a aparência da esposa, como

se ela só lhe pudesse oferecer isso e nada mais.

Assim sendo, nessa propaganda, o sujeito-feminino é representado como apenas um

“corpo” sexualmente desejável e perfeito, colaborando para sedimentar o imaginário

coletivo de que ele seria o único responsável por uma possível traição. Colabora ainda,

para reforçar a representação que os sujeitos-femininos têm de si próprios dentro do

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casamento, isto é, aquilo que elas devem ser/parecer para serem felizes dentro do

casamento.

A SD 3 “ Não...é porque e sou fiel a Skol, a Skol é gostosa e não muda nunca”, reforça

esses sentidos, já que conforme o sujeito-masculino, assim como a cerveja, a esposa

deve continuar “gostosa”, pois uma suposta “mudança” no seu corpo avalizaria a

traição. O contrário acontece com a cerveja. O fato de “não mudar nunca” garante a

fidelidade. Sendo assim, ressoam pela memória discursiva, novamente sentidos

relacionados à aceitação da infidelidade masculina dentro do casamento e a

responsabilidade do sujeito-feminino diante dela.

Esses sentidos podem ser o resultado de uma representação de fidelidade dentro do

casamento e do “lugar” ocupado por cada um desses sujeitos no seu interior, que

permeia há muito tempo o imaginário coletivo, resultante do discurso da igreja, já que,

historicamente, até bem pouco tempo atrás, conforme Del Priore (2011, p.194b), “As

mulheres ocupavam-se da casa e iam à igreja: os homens bebiam, fumavam charutos e

divertiam-se com prostitutas.” Isso significa que ao sujeito-feminino cabia os afazeres

domésticos e a devoção à igreja, a qual atuava de maneira a controlar seus impulsos e

desejos. Já a infidelidade masculina era tolerada – homens que matavam adúlteras eram

desculpados e vista como um “mal necessário”, como uma forma de o sujeito-masculino

ter na rua aquilo que lhe era negado em casa. Ecoam, novamente, nesta SD, discursos

machistas fortemente cristalizados na nossa sociedade, segundo os quais, “homem que é

homem trai” e de que o único “culpado” por essa traição é o sujeito-feminino.

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Na SD 4; “Peraí gente, só tô perguntando se vai ser gostosa. A mãe, por exemplo, ficou

um bucho”, diante da reação do sujeito-noiva e também dos demais presentes na

cerimônia do casamento, o sujeito-noivo tenta explicar a sua pergunta e faz circular

sentidos relacionados ao imaginário coletivo sobre o sujeito-sogra, bem como as

relações estabelecidas entre ele e o sujeito-genro.

Reverberam, nessa SD, portanto, além dos sentidos já citados, discursos relacionados à

Figura do sujeito-sogra e muito comum nos discursos humorísticos, especialmente em

piadas, cujo fim é a dizer aquilo que não poderia ser dito em outras circunstâncias.

Nesses discursos, o sujeito-sogra é frequentemente representado como sendo feia

(“bucho”) e má, como um ser indesejável, que constantemente se intromete na vida do

casal. Também aqui a propaganda colabora para a manutenção e reforço de sentidos já

existentes no imaginário coletivo.

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A SD 5 “Quando a situação é quadrada, Skol a cerveja que desce redondo” produz o

efeito de sentido de fechamento, pois uma “situação difícil” (quadrada) como a de falar

o que não pode/deve em dadas circunstâncias, nesse caso, durante a cerimônia religiosa

do casamento, pode ser contornada pela ingestão da cerveja.

Criado em 1997, o slogan – cuja finalidade, além de convencer o sujeito consumidor a

comprar o produto por ela anunciado, é ser conhecido e repetido incansavelmente – “A

cerveja que desce redondo”, com certeza, foi um dos melhores já criados no mundo

publicitário, tornando-se uma representação da marca. De acordo com o site mundo das

marcas, pesquisas indicam que 80% das pessoas utilizam esse slogan voluntariamente,

ou seja, ele tornou-se parte do discurso dos brasileiros. “Quando algo dá certo no Brasil,

ouve-se a expressão desceu redondo, um sinal concreto da força do slogan”. (Mundo

das marcas, 2006).Contudo, na propaganda em questão, e contraditoriamente, o

desenlace do casamento parece não ter sido muito feliz, porque, na tela, o sujeito-noivo

surge, num plano inferior ao da garrafa de cerveja anunciada, em um bar, acompanhado

por um amigo.

A SD 6 “Não...Falou pouco, mas falou bonito” e o fato de o sujeito- noivo e o amigo

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brindarem com a cerveja da marca anunciada, ao final da propaganda, faz ressoar pela

memória, a ideia de que os homens são corporativistas e mesmo que façam/falem o que

não podem/não devem têm sempre o apoio e dos outros. Ecoa, portanto, o discurso do

corporativismo masculino, isto é, o discurso machista, que, aliás, prevalece em toda a

propaganda, reforçando sentidos de que é mais fácil ser fiel a uma marca de cerveja do

que a uma mulher.

Essa sedimentação do discurso machista fez com que, no ano de 2011, um grupo de

mulheres entrasse com uma ação no CONAR (Conselho Nacional de

Autorregulamentação Publicitária), solicitando que a propaganda – atualmente somente

encontrada no You Tube –fosse retirada do ar, por ser considerada desrespeitosa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve por objetivo analisar, sob o aporte teórico da Análise de

Discurso de linha francesa, como o casamento, bem como os sujeitos masculino e

feminino são representados em uma propaganda comercial que circulou na internet, no

ano de 2004. Buscou ainda, verificar que redes de memória são mobilizadas no discurso

publicitário para representar essa instituição secular, bem como que efeitos de sentido

delas decorrem.

Tal escolha decorre da observação de que, na mídia brasileira, mais especificamente nas

propagandas de cervejas, o sujeito-feminino é frequentemente envolto por forte apelo

sexual. Assim sendo, é considerado um objeto de satisfação masculino e quase sempre

submisso.

Na materialidade analisada, a cerimônia religiosa do casamento é representada como

uma brincadeira, pois não é o padre – representante de Deus na terra – quem fala, mas o

sujeito-noivo, o que produz o efeito de estranhamento, uma vez que foge daquilo que

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seria o “normal”.

Os sujeitos-femininos são representados negativamente. O sujeito-sogra é representado

como feio e desagradável, enquanto o sujeito-noiva – passível de ter o corpo modificado

pelo casamento ou pela carga genética da mãe – é comparado à cerveja da marca

anunciada, cabendo-lhe apenas o estranhamento diante da situação e a submissão.

Ecoam, portanto, no eixo da formulação, discursos referentes à infidelidade masculina,

ou seja, um discurso machista, dissimulado pelo humor e pelo riso. Há ainda, no

discurso publicitário, o embricamento de discursos provenientes de outros campos do

saber, como o discurso religioso, o discurso humorístico, bem como das campanhas de

prevenção de acidentes no trânsito, que se cruzam e interpõem de modo a constituir um

“novo” discurso, que colabora para a manutenção de representações já sedimentadas no

imaginário coletivo.

Isso ocorre porque, no discurso, os sentidos não são literais, mas sempre são

determinados ideologicamente, ou seja, tudo aquilo que é dito tem um traço ideológico

em relação a outros traços ideológicos, e isso não está na estrutura das palavras, mas na

discursividade e na historicidade. Segundo Orlandi (2001, p.14), “o discurso é um

processo contínuo que não se esgota em uma situação particular. Outras coisas foram

ditas antes e outras serão ditas depois. O que temos são sempre „pedaços‟, „trajetos‟,

estados do processo discursivo”.

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*Graduada em Letras Português e literatura, Universidade Estadual do Centro Oeste-

UNICENTRO, Guarapuava-PR. Mestranda em Interfaces entre língua e literatura,

Universidade Estadual do Centro Oeste-UNICENTRO, Guarapuava-PR. Email:

[email protected].

Orientadora, Linha de Pesquisa: Linguística – Análise de Discurso. Doutora em

Linguística – Universidade Estadual de Londrina, UEL.