O Cérebro é o Espírito - Revista VEJA 27set2007

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Ciência O cérebro é o espírito Nossa cultura fala do cérebro como se fosse um computador. Ele é a sede da razão, e a arte é reservada ao espírito. Mas agora a neurociência estuda a música e outras atividades que definem a essência humana Carlos Graieb O cérebro nunca recebeu o devido crédito pelas criações artísticas. Aplicado à pintura ou à música, o adjetivo "cerebral" tem inclusive conotações negativas. Implica frieza ou cálculo – como se o mesmo órgão não fosse responsável por processar as emoções. O cérebro é engrenagem, computador, razão. Mas não arte. Há também quem julgue que tratar as esculturas de Michelangelo ou as sinfonias de Beethoven como produtos de um emaranhado de células nervosas tira delas a transcendência. Devido à antiquíssima divisão da experiência humana entre o físico e o imaterial, foi e continua sendo mais comum associar a arte a abstrações como as musas e o espírito do que ao trabalho de nossa massa encefálica. Em boa parte, contudo, essas idéias se deviam à falta de instrumentos adequados para estudar as artes do ponto de vista da neurologia. Isso mudou. Técnicas como a ressonância magnética funcional, que permitem captar imagens do cérebro em funcionamento, associadas a pesquisas no campo da neuroquímica e, de modo menos divulgado, a refinados modelos de computador de nossas redes neuronais, puseram em marcha uma revolução. A nova ciência do cérebro fez explodir o número de estudos sobre essas atividades tão intimamente ligadas à nossa essência humana: a produção e a fruição das artes. "Está surgindo uma nova disciplina", afirma o inglês Semir Zeki, uma das maiores autoridades mundiais na neurologia da visão. "Podemos chamá-la de neuroestética." A neuroestética é uma via de mão dupla. Ajuda a entender melhor o cérebro e as artes. Cientistas que usam a música ou a linguagem como ferramentas para explorar nossa vida neural têm colaborado para derrubar velhos dogmas e refazer a cartografia do cérebro. O cérebro humano tem 100 bilhões de células nervosas e mais de cinqüenta substâncias neurotransmissoras. Estima-se que o potencial de conexões entre os neurônios chegue a 500 trilhões. Qualquer comportamento complexo depende de diversos grupos de células ligados por circuitos. A metáfora mais freqüente nos novos livros de neurologia é a das cascatas neurais – grandes seqüências de ativação de áreas do cérebro, às vezes bastante afastadas entre si. Uma das teorias destroçadas pelos achados recentes é o "localizacionismo". Ele remonta ao cirurgião francês Paul Broca, do século XIX, e postula que as principais habilidades humanas se devem única e exclusivamente a uma região do cérebro. Sim, é verdade que o órgão tem partes especializadas. Broca identificou uma delas, relacionada à fala. Como observa o biólogo americano Philip Lieberman, contudo, hoje é certo que a linguagem humana "pode ser rastreada até as respostas motoras dos répteis". Dito de outra maneira, ela envolve tanto partes primitivas do cérebro – aquelas que compartilhamos com cobras e lagartos – quanto outras que apareceram muito mais tarde na escala da evolução, como o lobo frontal esquerdo, que aloja a área de Broca. Especialização e coordenação – essa última em níveis às vezes insuspeitados – são dois princípios que governam o cérebro. Mais recente ainda é a descoberta da incrível plasticidade do cérebro. Não faz muito tempo, pensava-se que pela idade de 3 anos o cérebro tinha sua estrutura rigidamente estabelecida. Hoje, está comprovado que a organização que o tecido cerebral assume no começo da vida não é definitiva. Provas assombrosas de que o cérebro é capaz de encontrar VEJA TAMBÉM Nesta reportagem Quadro: O fascínio do cérebro através das idades Quadro: A neuroestética Nesta edição A grande orquestra do cérebro Enigmas da linguagem

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Espiritualidade

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Cincia

CinciaO crebro o esprito

Nossa cultura fala do crebro como se fosse um computador. Ele a sede da razo, e a arte reservada ao esprito. Masagora a neurocincia estuda a msica e outras atividadesque definem a essncia humana

VEJA TAMBM

Nesta reportagem Quadro: O fascnio do crebro atravs das idades Quadro: A neuroestticaNesta edio A grande orquestra do crebro Enigmas da linguagem

O crebro nunca recebeu o devido crdito pelas criaes artsticas. Aplicado pintura ou msica, o adjetivo "cerebral" tem inclusive conotaes negativas. Implica frieza ou clculo como se o mesmo rgo no fosse responsvel por processar as emoes. O crebro engrenagem, computador, razo. Mas no arte. H tambm quem julgue que tratar as esculturas de Michelangelo ou as sinfonias de Beethoven como produtos de um emaranhado de clulas nervosas tira delas a transcendncia. Devido antiqussima diviso da experincia humana entre o fsico e o imaterial, foi e continua sendo mais comum associar a arte a abstraes como as musas e o esprito do que ao trabalho de nossa massa enceflica. Em boa parte, contudo, essas idias se deviam falta de instrumentos adequados para estudar as artes do ponto de vista da neurologia. Isso mudou. Tcnicas como a ressonncia magntica funcional, que permitem captar imagens do crebro em funcionamento, associadas a pesquisas no campo da neuroqumica e, de modo menos divulgado, a refinados modelos de computador de nossas redes neuronais, puseram em marcha uma revoluo. A nova cincia do crebro fez explodir o nmero de estudos sobre essas atividades to intimamente ligadas nossa essncia humana: a produo e a fruio das artes. "Est surgindo uma nova disciplina", afirma o ingls Semir Zeki, uma das maiores autoridades mundiais na neurologia da viso. "Podemos cham-la de neuroesttica." A neuroesttica uma via de mo dupla. Ajuda a entender melhor o crebro e as artes. Cientistas que usam a msica ou a linguagem como ferramentas para explorar nossa vida neural tm colaborado para derrubar velhos dogmas e refazer a cartografia do crebro. O crebro humano tem 100 bilhes de clulas nervosas e mais de cinqenta substncias neurotransmissoras. Estima-se que o potencial de conexes entre os neurnios chegue a 500 trilhes. Qualquer comportamento complexo depende de diversos grupos de clulas ligados por circuitos. A metfora mais freqente nos novos livros de neurologia a das cascatas neurais grandes seqncias de ativao de reas do crebro, s vezes bastante afastadas entre si. Uma das teorias destroadas pelos achados recentes o "localizacionismo". Ele remonta ao cirurgio francs Paul Broca, do sculo XIX, e postula que as principais habilidades humanas se devem nica e exclusivamente a uma regio do crebro. Sim, verdade que o rgo tem partes especializadas. Broca identificou uma delas, relacionada fala. Como observa o bilogo americano Philip Lieberman, contudo, hoje certo que a linguagem humana "pode ser rastreada at as respostas motoras dos rpteis". Dito de outra maneira, ela envolve tanto partes primitivas do crebro aquelas que compartilhamos com cobras e lagartos quanto outras que apareceram muito mais tarde na escala da evoluo, como o lobo frontal esquerdo, que aloja a rea de Broca. Especializao e coordenao essa ltima em nveis s vezes insuspeitados so dois princpios que governam o crebro. Mais recente ainda a descoberta da incrvel plasticidade do crebro. No faz muito tempo, pensava-se que pela idade de 3 anos o crebro tinha sua estrutura rigidamente estabelecida. Hoje, est comprovado que a organizao que o tecido cerebral assume no comeo da vida no definitiva. Provas assombrosas de que o crebro capaz de encontrar rotas alternativas para atingir a mesma finalidade esto nas hemisferectomias operaes que extirpam um dos hemisfrios do crebro, atingido por um srio dano. Um dos casos mais famosos o do menino ingls Alex. Ele tinha uma anomalia no lado esquerdo, onde se concentram as estruturas responsveis pela fala, e aos 8 anos de idade era incapaz de se comunicar. Dez meses depois que o hemisfrio malformado foi retirado, Alex comeou a se expressar com sentenas complexas, num exemplo dramtico de como a massa enceflica consegue se rearranjar. Mas o fato que pequenas metamorfoses neurolgicas ocorrem todos os dias de nossa vida: a plasticidade tambm o mecanismo pelo qual o crebro responde ao mundo externo. Assim, reas mais requisitadas por algum tipo de aprendizado, como o estudo musical, podem transformar-se em verdadeiros latifndios neuronais. As conseqncias de constatar a maleabilidade do crebro so profundas. Com isso, a velha disputa sobre quem molda o comportamento humano, a natureza ou a cultura, pode estar fadada a resolver-se num empate. Embora condicione de muitas maneiras a nossa experincia do mundo, o crebro tambm possui uma capacidade espantosa de reconfigurar-se de acordo com a informao que recebe de fora. Enquanto ajudam a compor uma nova "teoria geral do crebro", cientistas interessados em arte fazem achados num terreno anteriormente percorrido apenas por filsofos e crticos culturais. Por exemplo: o que a beleza? Numa experincia realizada no University College de Londres, Semir Zeki e sua equipe pediram a um grupo de pessoas que classificassem 300 pinturas como belas, feias ou neutras, numa escala de 1 a 10. Depois, as mesmas pinturas lhes foram reapresentadas, enquanto seus crebros eram monitorados numa mquina de ressonncia magntica. Uma gama diversa de estruturas cerebrais reagiu durante a experincia. Concluiu-se, no entanto, que o crtex orbito frontal medial e o crtex motor eram as reas de fato ligadas ao julgamento do belo. O crtex orbito frontal medial, relacionado ao prazer e s recompensas, apresentou atividade mais intensa diante de quadros belos. A atividade era maior para um quadro que recebera nota 9 do que para um quadro nota 7. O oposto aconteceu com o crtex motor: maior atividade diante da feira. Como essa estrutura controla os movimentos, pode-se supor que a viso de algo feio deixa o corpo pronto a reagir, se necessrio: se algum diz ter vontade de "fugir" diante, digamos, de uma obra do artista brasileiro Tunga, talvez no esteja usando apenas uma figura de linguagem. "Tempos atrs, se voc dissesse estar maravilhado com uma obra de arte, eu no teria uma maneira objetiva de verificar isso", diz Zeki. "Agora, as mquinas de neuroimagem nos permitem avaliar estados subjetivos. Melhor, permitem quantific-los, pois a atividade numa regio do crebro tende a ser proporcional intensidade declarada da experincia. Filsofos especulam sobre a beleza. Eu diria que ela um aumento de fluxo sanguneo na base do lobo frontal." Semir Zeki escreveu um livro em parceria com o pintor francs Balthus e recita de memria trechos de poetas como T.S. Eliot. Ele diz que aprendeu com os artistas "neurologistas intuitivos", que exploram e desvendam regras da percepo. Ele gosta de citar uma frase de Picasso: "Seria muito interessante preservar fotograficamente as metamorfoses de uma pintura. Talvez assim se pudesse descobrir o caminho percorrido pelo crebro para materializar um sonho". Segundo Zeki, isso que a neurocincia comea a fazer. Desvendando um crebro que calcula, mas tambm cria. E to sutil quanto as musas ou o esprito.

Arte para qu?

Quem pensa nas artes como um produto do crebro logo chega a outras questes. Por que o rgo mais complexo do corpo nos capacita a criar pinturas e poemas? Qual a funo dessas atividades? Ser que despender energia inventando batidas de tambor e desenhos para a caverna ajudou nossos ancestrais a sobreviver? Essas perguntas remetem ao naturalista ingls Charles Darwin e sua teoria da evoluo. Darwin refletiu sobre uma arte em especial a msica e concluiu que ela teve papel evolutivo. Como a cauda nos paves, ela nos ajudava a atrair o sexo oposto. Era uma ferramenta a mais do processo que Darwin chamou de "seleo sexual". Essa uma de suas teses mais controvertidas. Para os cientistas que discordam, a arte apenas um subproduto do aparato sensorial. O fato de alguns estmulos nos darem prazer fez com que inventssemos formas de ter acesso a eles repetidamente. Para o psiclogo canadense Steven Pinker, arte um "doce mental" dispensvel mas saborosa. Ainda assim, Darwin pode estar certo? O fato de astros do rock, mesmo com as rugas de Mick Jagger, terem muito mais parceiras do que um homem comum seria uma confirmao da tese do papel da msica na seleo sexual. Seria mesmo? Em parte sim, mas Jagger as atrai pela msica, pela fama, pela riqueza ou pelo poder hipntico sobre as massas? O debate continua. S se sabe com certeza que, entre todos os grupos de homindeos que disputavam recursos escassos na Idade do Gelo, o mais bem-sucedido foi o que encontrou tempo para decorar com pinturas as paredes das cavernas.

A grande orquestra do crebroVEJA TAMBM

Nesta reportagem Quadro: A msica capaz de mudar a anatomia do crebro?Nesta edio O crebro o esprito Enigmas da linguagemAlguns personagens histricos se tornaram conhecidos por terem ouvidos de pedra. Os presidentes americanos Ulysses Grant e Theodore Roosevelt e o guerrilheiro argentino Che Guevara fazem parte desse grupo, assim como o romancista russo Vladimir Nabokov, que registrou: "A msica me afeta como uma sucesso arbitrria de sons mais ou menos irritantes". Por muito tempo, eles foram considerados exemplos da surdez para tons, uma insensibilidade relativa para a msica que se estima estar presente em 5% da populao. Nos ltimos anos, alguns cientistas passaram a se perguntar se eles no teriam sido portadores de algo mais raro. Em seu novo livro, Alucinaes Musicais (Companhia das Letras; traduo de Laura Teixeira Motta; 342 pginas; 49 reais), o ingls Oliver Sacks, o mais famoso dos neurologistas, especula a respeito de Nabokov para em seguida relatar o caso de uma paciente. Essa mulher, identificada como "L.", jamais percebeu a msica como tal. Desde a infncia ela se viu em situaes embaraosas por no reconhecer o hino americano ou um singelo Parabns a Voc. Sua condio causada por uma anomalia congnita no crtex auditivo, a amusia total. Eis como L. descreve um concerto: "Imagine que voc est na cozinha e algum joga todos os pratos e panelas no cho. isso que eu ouo". A disfuno de L. marcou-a como uma espcie de "aliengena". Para a maioria das pessoas, difcil at conceber uma situao como a dela. A msica carrega memrias e emoes e est profundamente entranhada em nossa experincia ntima. Mais que isso. Nenhuma cultura conhecida foi desprovida de msica, e alguns dos artefatos mais antigos encontrados em stios arqueolgicos so flautas e tambores. Ao nascer, os bebs j distinguem entre escalas musicais, preferem a harmonia dissonncia e so capazes de reconhecer canes. Seu crebro est pronto a decifrar musicalmente o mundo. Os caminhos neurolgicos da percepo musical esto sendo esmiuados como nunca. Como diz Robert Zatorre, professor do Instituto Neurolgico de Montreal, a msica se tornou alimento da neurocincia. Diversos estudos recentes demonstram como o crebro esculpido pela msica. Por exemplo, o corpo caloso, a grande comissura que liga os dois hemisfrios cerebrais, tende a ser maior nos msicos profissionais. Descobertas desse tipo levaram alguns a sugerir que expor crianas pequenas msica clssica lhes daria uma vantagem intelectual, mas essa idia no corroborada pela neurocincia. As mudanas causadas pela msica so muito especficas, e talvez se dem custa de outras funes cerebrais. Ouvir Mozart na infncia certamente ajuda a ouvir Mozart na idade adulta mas no traz necessariamente outros ganhos cognitivos. O que esses estudos ressaltam a plasticidade do crebro, a maneira como ele moldado, muito concretamente, pela experincia individual. No s estudar msica que resulta em diferenas relevantes. O tipo de aprendizado importa. Uma experincia com violinistas e trompetistas mostrou que a ativao do crtex auditivo maior quando eles ouvem seus respectivos instrumentos. Outra pesquisa aponta que crianas chinesas tm mais chance de adquirir ouvido absoluto, que identifica automaticamente a altura de qualquer nota. No pela raa, mas porque crescem ouvindo chins, lngua com grandes variaes tonais. Outro enigma desvendado a razo fisiolgica dos prazeres causados pela msica. No recm-lanado This Is Your Brain on Music (O Seu Crebro sob Efeito Musical), o neurocientista americano Daniel Levitin descreve as experincias que coordenou na Universidade McGill, do Canad. As concluses so tcnicas, mas possvel visualizar a orquestra cerebral em ao. "Primeiro o crtex auditivo entra em ao para analisar os componentes do som", escreve Levitin. "Depois vm regies frontais, relacionadas ao processamento da estrutura e das expectativas musicais. Finalmente, chegamos a um sistema de reas envolvidas na excitao e no prazer, na transmisso de opiides e na produo de dopamina, culminando na ativao do ncleo acumbens. Os aspectos agradveis e estimulantes da audio musical parecem ser resultado do aumento de dopamina no ncleo acumbens e da contribuio do cerebelo na regulao das emoes. A msica uma forma de melhorar o nimo das pessoas, e agora acreditamos saber por qu." O trabalho de Oliver Sacks em Alucinaes Musicais muito diverso desse. Ele narra casos peculiares, da mesma forma que em livros anteriores como Um Antroplogo em Marte. So 29 captulos com relatos sobre perdas e excessos de musicalidade, sobre a relao da audio com os outros sentidos, sobre canes que se incrustam em nossa conscincia, repetindo-se incessantemente, ou sobre ataques epilticos causados por sons especficos (como a voz de Frank Sinatra). Entre os personagens encontra-se Clive Wearing, um pianista que, depois de uma infeco no crebro, sofreu uma perda to devastadora da funo de memria que todo acontecimento novo esquecido imediatamente. Apesar disso, ele no s toca piano como um mestre, mas ainda improvisa e mais surpreendente aprende novas partituras. Outro exemplo o de Sheryl C., que subitamente se viu mergulhada numa situao angustiante. Qualquer pessoa capaz de relembrar, em silncio, uma msica conhecida. Mas, para ela, era como se uma orquestra estivesse dentro de sua cabea, tocando trechos de A Novia Rebelde. Reagindo a uma surdez progressiva, seu crebro agia espontaneamente e criava alucinaes musicais. Alguns dos captulos de Sacks falam sobre musicoterapia, vista com desconfiana por mdicos e psiclogos. Sacks tem respeito pela disciplina, cujas bases cientficas esto sendo reforadas pela neurologia. O Ncleo de Envelhecimento Cerebral (Nudec) da Universidade Federal de So Paulo mantm pesquisas nesse campo, coordenadas por Clo Monteiro Frana Correia. Uma de suas pacientes a pedagoga Zeni de Almeida Flore. Em 2001, aos 72 anos, ela mostrou os primeiros sintomas da doena de Parkinson. O parkinsonismo um distrbio motor, mas comum que danifique outras reas do crebro, acarretando afasia e demncia. Foi o que aconteceu com Zeni. medida que a doena avanava, ela se viu incapaz de manter um dilogo e, depois, at mesmo de nomear objetos. Havia uma nica situao em que ela conseguia pronunciar palavras com fluncia: ao cantar. H um ano, a capacidade musical de Zeni foi identificada. Encaminhada musicoterapia, ela teve ganhos lingsticos: recobrou certo poder de articular sentenas e responder a perguntas. Doenas diferentes requerem abordagem musical diferente, observa Sacks. Mas, lidando com o ritmo ou despertando emoes, a msica pode orientar um paciente quando mais nada capaz de faz-lo.

"NEUROLOGIA PESSOAL"

Eileen Barroso

Oliver Sacks: contra a "civilizao do iPod"

Numa das salas de seu consultrio em Manhattan, o neurologista ingls Oliver Sacks, de 74 anos, mantm um quadro com retratos de amigos, a foto de um polvo e a cpia xerogrfica de um texto de dicionrio sobre o "abaanamento", suplcio medieval que consistia em cegar a vtima encostando uma placa de metal incandescente nos seus olhos. Explicar o interesse por esse tipo de tortura fez com que Sacks revelasse a VEJA uma doena. Em 2005, ele descobriu um tumor no olho direito. Submeteu-se a tratamento por radiao e sesses de laser, verso benigna do abaanamento. A cura incerta, mas, em vez de fazer do assunto um tabu, Sacks registra sua vivncia da doena num dirio. Num desenho do globo ocular, ele mostra a mancha que atrapalha sua viso. Para explicar como os objetos se tornam invisveis para ele por causa dela, usa um conceito da astrofsica, os "horizontes do evento". Eles ocorreriam, segundo a teoria da relatividade de Albert Einstein, na periferia dos "buracos negros", dos quais nenhuma matria ou radiao consegue escapar. Como saber que os "buracos negros" existem se no emitem luz ou outra radiao? Justamente pelos "horizontes do evento", turbulncias detectveis que ocorrem na fronteira do espao-tempo e que sinalizam a existncia de um "buraco negro" nas proximidades. "Como nos 'horizontes do evento', h experincias quase impossveis de comunicar", diz Sacks. "Fazemos o possvel com metforas." O uso da experincia pessoal, assim como a luta para encontrar palavras que descrevam estados de conscincia incomuns, um dos pilares dos extraordinrios livros de Sacks. Em sua nova obra, Alucinaes Musicais, ele tambm relata episdios pessoais, como as ocasies em que sofreu de amusia, em 1974. Na primeira vez, ele ouvia uma balada de Chopin no rdio quando as notas musicais se converteram em "marteladas sem tom com uma desagradvel reverberao metlica". Dias depois, a experincia se repetiu, acompanhada de alteraes visuais que revelaram que o distrbio advinha da enxaqueca. A maneira como Sacks aparece em seus livros decorre de como ele lida com seus pacientes e entende sua profisso. Contra os limites da "neurologia clssica", de olhar puramente objetivo, ele busca uma "neurologia pessoal", calcada no entendimento global do organismo e da histria de cada pessoa. Alucinaes Musicais uma prova de que as interaes entre msica e neurocincia mal comearam. Mas o livro tambm atesta uma paixo pela arte. Sacks dono de um piano de cauda Bechstein fabricado em 1894 e tem opinies fortes sobre msica. "Amo Brahms", afirma. "No outro extremo, odeio Wagner com sua msica ertica e inflada. No gosto de arte que tenta me seduzir." Sacks enxerga um paradoxo na maneira como as pessoas hoje lidam com a msica. Ele um crtico da "civilizao do iPod". "No s porque a surdez juvenil est aumentando de modo alarmante. Com esses aparelhos, as pessoas se enclausuram nelas prprias." Diz ele: "No passado remoto, a msica uniu e sincronizou os homens. o que est se perdendo hoje".

Enigmas da linguagem

Fotos Great Ape Trust of Iowa

Sue Savage-Rumbaugh e o bonobo Kanzi: ele se comunica com desenvoltura usando os "lexigramas", tabuleiros que contm 384 smbolos e palavras do ingls

VEJA TAMBM

Nesta edio O crebro o esprito A grande orquestra do crebroDo americano Noam Chomsky se diz que um idiota em poltica, por anunciar o fim do capitalismo a cada espirro das bolsas, e um gnio na cincia por seus trabalhos de lingstica. Chomsky sustenta que a linguagem depende apenas de regras universais incrustadas no crebro, que no guardam relao nenhuma com as atividades pelas quais nos comunicamos falar, ouvir, gesticular. Assim como a poltica de Chomsky est errada, suspeita-se agora que sua cincia tambm caminha para a desmoralizao. Depois de quatro dcadas de hegemonia, sua abordagem abstrata est cedendo lugar a outra, naturalista. A evoluo da linguagem, tema que Chomsky havia banido, hoje uma rea de estudos efervescente. Como observa a lingista americana Christine Kenneally, autora do recm-lanado The First Word (A Primeira Palavra), trata-se de um problema extraordinariamente complexo. "A linguagem surgiu muito antes da escrita", disse ela a VEJA. "Como investigar sua origem se no h fsseis de palavras?" O uso da linguagem uma das caractersticas especiais dos humanos. H dois caminhos para explic-la na biologia. Sabe-se hoje que o genoma humano 98% igual ao dos chimpanzs. Uma alternativa buscar a explicao para a existncia da linguagem nos 2% restantes. A outra considerar que, para serem criados, os poemas homricos e as peas de Shakespeare dependeram tanto daquilo que exclusivo quanto daquilo que compartilhamos com outros animais. Esse o caminho adotado por cientistas como Sue Savage-Rumbaugh e Philip Lieberman. Savage-Rumbaugh ganhou notoriedade ensinando macacos a produzir e compreender alguns aspectos da linguagem. Em 2003, anunciou que Kanzi, um bonobo que j conseguia se comunicar com desenvoltura usando um tabuleiro de smbolos, havia pronunciado uma palavra em ingls. O trabalho de Lieberman se d no campo da neurologia e da fisiologia ou seja, das estruturas corporais ligadas ao fenmeno da linguagem. Uma de suas experincias o levou ao Monte Everest. Ele queria observar como os danos temporrios causados pela falta de oxignio a uma das estruturas mais antigas do crebro, o gnglio de base, responsvel por seqenciar movimentos, afetavam a fala. A bateria de testes que aplicou em alpinistas mostrou que no apenas sua fala piorava medida que eles subiam a montanha e o ar se tornava mais rarefeito: seu domnio da sintaxe tambm diminua. Foi a prova de que o sistema motor do crebro um dos pontos de partida para nossa capacidade de nos expressar. Em outras palavras, a linguagem humana tem razes numa estrutura que compartilhamos com as criaturas mais primitivas. Trabalhos recentes do autor ajudam a desfazer de vez a idia de que a capacidade de concatenar palavras depende de um compartimento milagroso em nossa mente. At mesmo o conceito de que as estruturas da linguagem esto concentradas no hemisfrio esquerdo do crebro j no se sustenta. Elas esto em toda parte. Mais incipiente do que a compreenso geral da linguagem no crebro a tentativa de entender nosso hbito de criar poemas e histrias. J existem alguns esboos. O pesquisador David Miall, da Universidade de Alberta, no Canad, desenvolveu um programa de computador que analisa variaes mtricas e fonticas em obras literrias. Depois, comparou esses padres com os da fala de uma me ao seu beb. Descobriu que a me enternecida repetia, de maneira um tanto exagerada, os mesmos ritmos encontrados na grande arte. Como a fala da me tambm transmite emoes, circuitos que relacionam a literatura experincia emocional poderiam comear a se formar a. Quanto habilidade narrativa, ela vem sendo estudada com base nos casos de pessoas que sofreram leses no crebro. Como talvez seja bvio, acidentes que afetam a memria costumam comprometer a capacidade de narrar. Pessoas com amnsia grave no conseguem transmitir sua vivncia aos outros. Curiosamente, porm, um subgrupo dos desmemoriados age de maneira oposta: de forma quase compulsiva, inventam verses contraditrias de um acontecimento cuja circunstncia real esqueceram. Ao contrrio do que ocorre com certos polticos, o objetivo no enganar: trata-se de um esforo instintivo de satisfazer curiosidade de quem lhes perguntou algo. Como mostram esses indivduos desafortunados, a atividade de narrativa est de algum modo entranhada na estrutura fsica do crebro humano.