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VESTINDO A FÉ: O CÍRIO DE NAZARÉ EM BELÉM Dressing the Faith: The “Círio de Nazaré” at Belém Fernando Hage 1 Universidade da Amazônia, Brasil [email protected] Resumo: Este artigo discorre sobre algumas nuances do uso do vestuário dentro do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, festividade organizada desde 1793 em Belém do Pará, a partir dos atos de vestir- se para a procissão e festas, e vestir a santa, através da confecção de mantos e da apropriação da imagem e outros símbolos em roupas e acessórios. Palavras Chave: Círio de Nazaré; História do Vestuário; Cultura Paraense. Abstract: This article discusses some sides of the use of clothing inside the Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a religious festivity organized since 1793 at Belém (State of Pará – Brazil), analysing the act of dressing up for the procession and festivities, and the act of wearing the holy imagens, by making mantles for the holy mother image and by using those images and other symbols on clothing and accessories. Keywords: Círio de Nazaré; History of Dress; Paranese Culture. O Círio de Nazaré Corre fama pelos brasis, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a maior procissão religiosa do país. Incalculável massa humana proporciona impressionante espetáculo de rua, no segundo domingo de Outubro. [...] A movimentação humana é extraordinária, do arrabalde mais pobre ao bairro mais elegante. [...] E quanta sugestão impressionista nos instantes de experiência humana que se observa nessa marcha apoteótica! (Tocantins, 1987, p.278-283) Em 2013, completam 220 anos de realização do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, festividade que transcende o plano religioso e toma conta da cidade de Belém durante todo o mês de outubro. Tombada pelo IPHAN em 2004 como patrimônio cultural de natureza imaterial, a festividade do Círio, como é chamada popularmente, começou na segunda metade do século XVIII com peregrinações de devotos que adentravam as matas do 1 Mestre em Moda, Cultura e Arte (C. Univ. Senac-SP), atua como professor e pesquisa na área de História da Moda, já publicou artigo no livro História e Cultura de Moda (2011) e desde 2006 organiza em Belém o projeto Caixa de Criadores (Prêmio Economia Criativa - SEC/MinC, 2012).

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VESTINDO A FÉ: O CÍRIO DE NAZARÉ EM BELÉM

Dressing the Faith: The “Círio de Nazaré” at Belém

Fernando Hage1

Universidade da Amazônia, Brasil

[email protected]

Resumo: Este artigo discorre sobre algumas nuances do uso do vestuário dentro do Círio de Nossa

Senhora de Nazaré, festividade organizada desde 1793 em Belém do Pará, a partir dos atos de vestir-

se para a procissão e festas, e vestir a santa, através da confecção de mantos e da apropriação da

imagem e outros símbolos em roupas e acessórios.

Palavras Chave: Círio de Nazaré; História do Vestuário; Cultura Paraense.

Abstract: This article discusses some sides of the use of clothing inside the Círio de Nossa Senhora de

Nazaré, a religious festivity organized since 1793 at Belém (State of Pará – Brazil), analysing the act of

dressing up for the procession and festivities, and the act of wearing the holy imagens, by making

mantles for the holy mother image and by using those images and other symbols on clothing and

accessories.

Keywords: Círio de Nazaré; History of Dress; Paranese Culture.

O Círio de Nazaré

Corre fama pelos brasis, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a maior procissão religiosa do país. Incalculável massa humana proporciona impressionante espetáculo de rua, no segundo domingo de Outubro. [...] A movimentação humana é extraordinária, do arrabalde mais pobre ao bairro mais elegante. [...] E quanta sugestão impressionista nos instantes de experiência humana que se observa nessa marcha apoteótica! (Tocantins, 1987, p.278-283)

Em 2013, completam 220 anos de realização do Círio de Nossa

Senhora de Nazaré, festividade que transcende o plano religioso e toma

conta da cidade de Belém durante todo o mês de outubro. Tombada pelo

IPHAN em 2004 como patrimônio cultural de natureza imaterial, a festividade

do Círio, como é chamada popularmente, começou na segunda metade do

século XVIII com peregrinações de devotos que adentravam as matas do 1 Mestre em Moda, Cultura e Arte (C. Univ. Senac-SP), atua como professor e pesquisa na área de História da Moda, já publicou artigo no livro História e Cultura de Moda (2011) e desde 2006 organiza em Belém o projeto Caixa de Criadores (Prêmio Economia Criativa - SEC/MinC, 2012).

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Utinga carregando grandes velas de cera, chamadas de Círios, para visitar a

Ermita que abrigava uma imagem encontrada pelo caboclo Plácido.

Em 3 de julho de 1793, o Governador e Capitão General D. Francisco

de Souza Coutinho abriu Editais para o estabelecimento de uma “feira geral

em cada ano, nos dias dos festejos de Nossa Senhora de Nazaré”, instituindo

a chamada Quadra Nazarena. Nesse mesmo ano, Souza Coutinho pediu à

confraria da Igreja que a imagem da Santa fizesse o percurso para a Capela

do Palácio do Governo na véspera da procissão, seguindo no próximo dia o

caminho contrário em direção ao recém instituído “Largo de Sua Ermida”

(Tocantins, 1987, p.280).

Assim nasce a procissão que hoje concentra mais de 2 milhões de

pessoas pelas ruas de Belém na manhã do segundo domingo de outubro, e

que se desdobra em outras dez romarias, como a Fluvial, Rodoviária e Moto-

rodoviária, além de diversas festividades religiosas e também profanas, como

o Auto do Círio, cortejo com música e dança que cruza a Cidade Velha; o

Arrastão do Pavulagem, cortejo de xote bragantino que sai após o fim da

romaria fluvial; a Festa da Chiquita, que acontece na noite anterior ao Círio

há mais de 30 anos reunindo o público LGBT logo após a passagem da

imagem da santa pela Praça da República; além da Feira de Brinquedos de

Miriti2 produzidos por artesãos de Abaetetuba.

Festa do povo, desde a Idade Média, as procissões jamais deixaram de sê-lo. Belém é o palco, e o povo belemense o ator na procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. E que montagem, que jeu de theâtre são encenados no Coliseu gigantesco em que se transforma Santa Maria de Belém! (Tocantins, 1987, p.279-280)

Dentro desta grande encenação, entre pessoas, promessas e

símbolos, o vestuário têm um papel importante na história do Círio de

Nazaré, pois através de relatos e textos publicados na imprensa, poderemos

perceber as diversas nuances do uso do vestuário como uma forma de

expressão da devoção, e ao mesmo tempo, do posicionamento do indivíduo

dentro do sistema social e cultural corrente.

2  Brinquedos feitos do tronco da palmeira do buriti.  

3

Assim, veremos a seguir algumas relações que são permeadas

através do vestuário dentro da festa mais importante para o Estado do Pará,

conhecida como o “natal dos paraenses”. Pretende-se, aqui, em uma

“desordem ordenada” (como se definiria o Círio nas palavras de Leandro

Tocantins), entender os diversos espaços ocupados pelo vestuário nessa

celebração.

Vestir-se para a procissão

Desde as sociedades mais remotas, o uso de vestimentas

diferenciadas em cerimônias religiosas já é algo notado. O ato religioso, em

muitos momentos, torna-se aliado do ato de vestir trajes ritualísticos mais

elaborados que os da vida cotidiana, por conterem em si e em seus usos

uma diversidade de significados.

A influência das missões religiosas e da imigração portuguesa

instalaram o culto católico de forma maciça no Brasil, construindo conventos,

capelas e igrejas, e trabalhando na conversão dos índios. Junto à isso,

grupos de católicos organizavam irmandades ou confrarias com seus santos

padroeiros, pelos quais uma vez ao ano esses grupos realizavam procissões,

missas, novenas e festividades (Del Priore, 2012).

Esses eram principalmente os momentos onde homens e mulheres de

todos os estratos sociais vestiam trajes mais elaborados, cada vez mais

seguindo os ditames da moda francesa, como veremos por exemplo, nas já

conhecidas imagens de Jean Baptiste Debret, e mais especificamente em

relatos de viajantes.

O historiador Ernesto Cruz demonstra que nos relatos de Alexandre

Rodrigues Ferreira, ao final do século XVIII, em Belém já se destacava o

hábito das mulheres que iam a missa de manto e vestido de seda,

carregadas em redes por dois negros e acompanhadas de índias e negras.

(Cruz, 1973, p.46). Em 1847, o viajante inglês William Edwards assim

relataria o hábito de ir à missa:

A missa das oito horas é notificada pelos fogos de artifício, e aqueles que se importam frequentam a capela. Dentro estão

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as mais elegantes3 senhoras e alguns cavalheiros; fora, no grande pórtico aberto, estão sentadas no chão as negras e índias, vestidas de branco, com flores no cabelo e profusamente perfumadas com baunilha. (op.cit., p.185).

Edwards, ao chegar em Belém em um dia de festividade religiosa,

também nota “a aparência singular e de bom gosto das mulheres, cada uma

vestida de branco, e com uma flor em seu cabelo”, participando de uma

procissão que cruzava, nas ruas, as varandas das casas de comércio e

residência “preenchidas com senhoras alegremente vestidas” (op.cit., p.6-8).

Preparar-se para a festividade é algo importante, e assim acontece

com o Círio de Nazaré, momento onde toda a cidade se reúne para cruzar os

principais pontos de Belém com suas roupas novas, mudando ano após ano

o trajeto de acordo com as próprias reconfigurações econômicas e sociais da

cidade. Durante todo o século XIX, o centro comercial, coração da cidade, foi

a passarela para a passagem do Círio de Nazaré em direção à sua Ermida, e

era este mesmo espaço urbano que semanas antes já oferecia muitos dos

produtos que comporiam os trajes usados no segundo domingo de outubro.

O Pará tem a semana de Nossa Senhora. À medida que nos aproximamos do sábado, a febre de preparativos sobe de intensidade. A Rua João Alfredo, a Rua de Santo Antônio, sede dos melhores estabelecimentos a retalho, regorgitam de transeuntes, asobreçando pacotes de variados feitios e tamanhos (...) Costureiras e alfaiates trabalham dia e noite sem descanso (Hage, 2010, p.72).

Como vemos pelos relatos na Folha do Norte em 1909, do autor do

livro Três Séculos de Modas, João Affonso, os estabelecimentos comerciais

eram a fonte do que seria visto durante as festividades. A importância dada

ao vestir-se bem durante a procissão faz com que em 1854 a procissão

passe a ser realizado pela manhã, pois na tardes a ocorrência das

constantes chuvas, que são uma características da cidade, “estragavam os

orçamentos da festa e ofuscavam a elegância das mulheres” (Montarroyos,

1992, p.61).

3  O autor usa o termo “fashionable”, anunciando uma predileção para itens da moda.  

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De acordo com a antropóloga Ivone Xavier Corrêa em sua tese de

doutorado intitulada Círio de Nazaré: A Festa da Fé e suas (re) significações

culturais (2010), é importante percebermos a festividade de Nazaré dentro

um princípio de alteridade, pois os devotos e participantes da procissão,

enxergam-se uns nos outros iguais na fé e na devoção à Santa, mas, ao

mesmo tempo, mesmo que difícil de ser percebida, existe uma diferenciação

desigual, que pode ser notada, entre outros fatores, através do vestuário

ligado ao fenômeno da moda.

Assim, no século XIX, podemos citar, em primeiro lugar é claro, que a

diferenciação estava ligada aos itens da moda europeia, que já mantinha sua

influência no vestuário paraense, e no caso específico do Círio de Nazaré,

acessórios como chapéus, luvas e leques também ganhavam destaque

durante as festividades.

Primeiro, adentrando no universo masculino, no jornal Treze de Maio

de 27 de setembro de 1843, é anunciado o Grande Tom Para a Festa de

Nazaré: “calça de casemira cor flor de alecrim, sobrecasaca verde, colete de

grodenaple (seda italiana) branco com flores de cor, Brudequins de duraque

gaspeados, Chapéu de Chili (Chile)” (Montarroyos, 1992, p.74). Nesse

contexto, percebe-se a clara influência dos itens europeus no vestuário para

o Círio de Nazaré, que regia não só o universo feminino como também o

masculino.

Dentro deste contexto de distinção, o uso dos chapéus ganha

importância após a passagem da procissão do Círio para as manhãs, não só

para os senhores, quase como um rigor do gênero, como também para as

damas. O estabelecimento Canto da Boa Esperança anuncia em 1861 seus

“chapéus modernos”, “dita4 de palha da Itália (nova moda)” e “pentes de

casco à rainha Vitória” para suas clientes.

Na Chapelaria Paraense, chapéus de “palha de trança” e junco

custavam o dobro dos chapéus de palmeira, mas ainda eram metade do

preço dos chapéus de pelos, e de seda que estavam em promoção, pois já

eram da “penúltima moda”, como anuncia o estabelecimento em O Liberal do

Pará de 9 de outubro de 1877 (op.cit., 1992, p.122).

4  Chapéu feminino  

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Em artigo publicado em 1868 no Diário do Gram-Pará, relata-se que,

durante o arraial montado no Largo de Nazaré, “as senhoritas da alta

sociedade [..] traziam o que havia de mais chique na moda parisiense”, e

“nas missas da igreja de Nazaré, os leques impressionavam não só pelo

tamanho exagerado, mas sobretudo, pela beleza artística que eram

confeccionados” (op.cit., p.66).

Chapéus e leques cruzaram a Belle Époque como grandes itens de

distinção dentro da festa de Nazaré, aliados sempre à detalhes e itens da

moda francesa, como as luvas de pelica da Suécia anunciadas por G. Gaudin

& Cia., da Rua João Alfredo n.98, que também anunciava rendas para pregar

nas luvas e transformá-las na “última moda de Paris” de 1892.

Entre 1883 e 1884, João Affonso ilustrou n’A Vida Paraense o esmero

que alguns personagens urbanos tinham na hora de se vestir para participar

das mais diversas atividades que acontecem durante os 15 dias de

festividades para Nossa Senhora de Nazaré.

Na coluna Galeria das Ruas (Figura 2) de 10 de Abril de 1884, João

Affonso apresenta o Janota de Procissão, tipo masculino que veste o seu

melhor conjunto para o momento do Círio de Nazaré. Ele veste um terno com

casaco com abotoamento duplo e cauda, além de gravata borboleta em

camisa de gola alta aberta, na cabeça chapéu côco, e nas mãos cigarrilha e

sombrinha para se proteger do sol da cidade durante a procissão.

Na edição de 20 de novembro de 1883, em “Últimas Notas Nazarenas”

(Figura 1), J.A. ilustra e descreve os últimos momentos da festividade no

arraial, destacando o perfil do “pechutter”, “rigoroso e impecável no colarinho

e no chapéu”, copiados, como continua o autor, do último “Jornal des

tailleurs” (id., ibid.).

Entre as belas moças presentes no local, como coloca J.A., a grande

atração era Joanna, “soberba e orgulhosa com as suas luvas de retroz e o

seu pince-nez acangalhado no nariz” (id., ibid.) uma personagem com um

jeito bem próprio de se vestir, que se compararia à “mulata paraense que

desfilava com seu corpete decotado, cobrindo os ombros com um lenço e

vestindo uma saia que batia nos tornozelos” citada em artigo do Diário do

Gram-Pará em 1868 (Montarroyos, 1992, p.65-67).

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Figura 1. Periódico A Vida Paraense - “Últimas Notas Nazarenas” (Esq.).

Figura 2. Periódico A Vida Paraense - “Janota de Procissão” (Dir.).

Fonte: Acervo Flávio Nassar (Affonso, 1884).

Além da procissão do Círio, o arraial também era um espaço de

exibição e diversidade. Nas palavras de Leandro Tocantins, ao descrever o

arraial em seu livro publicado pela primeira vez em 1963:

Qualquer coisa de mercado oriental paira nesse tumulto, nesse colorido de peles e de roupas, caboclos, pretos, brancos, cafuzos, curibocas - , indo-e-vindo, como brasileiro, que cheira a bafos de gente, a temperos de comida, que exala esquisitas fragrâncias de ervas, que escorre mistérios de cada barraca e das multidões transfundidas no ritmo morno dos corpos. [...] Ele era também, anos atrás, uma espécie de passarela da elegância feminina: senhoras e mocinhas primavam nas toaletes, fazendo roda no Largo (1987, p.287).

Voltando à procissão do segundo domingo de outubro, o uso dos

chapéus e leques femininos foram ganhando novas nuances com o passar

dos anos. No caso dos chapéus, no período da Belle Époque eles ganham

dimensões monstruosas, retratada nos textos de João Affonso, que

comentava, sob o pseudônimo de Pimentão, que durante a festividade do

Círio de Nazaré de 1909 os chapéus femininos eram tão grandes que um

lojista lhe diria que “os chapéus de senhora usam-se agora tão volumosos,

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que, com uma dúzia deles, tenho a casa cheia, e sou forçado a guardar o

mais...”, e então o intelectual finaliza: “imagine-se, por aqui, que monstros

vamos ver no dia do Círio” (Hage, 2011, p.7).

Esse exagerados chapéus gradativamente vão se simplificando, até

perderem espaço no guarda-roupa feminino a partir da segunda metade do

século XX, sendo os homens os únicos que ainda irão recorrer ao acessório,

que também ganha como aliado o boné, para o uso durante o sol da manhã

de procissão até os dias atuais.

Já os leques, estes sofreram uma tremenda transformação, chegando

nas últimas décadas do séculos XX aos populares leques ou ventarolas de

papel-cartão, que em uma das faces continha a imagem da santa padroeira

da Belém e noutra o hino oficial da procissão (Vóis Sóis o Lírimo Mimoso),

sendo que alguma das faces ou ambas continham a marca da empresa que

patrocina a impressão desses leques que se espalham pela cidade.

O uso do branco, esse no entanto, continua a principal característica

do vestuário para a procissão do Círio de Nazaré, uma tradição inventada

que já permeia por mais de dois séculos os hábitos dos participantes das

festividades. Seja pela intensidade do sol, seja pelo simbolismo ligado à paz

e à pureza, o branco é a cor que une (e também têm o poder de distinguir) os

diversos estratos sociais dentro da procissão.

Nas concepções de Malcolm Barnard (2003), esse seria um exemplo

de “anti-moda”, uma forma de se vestir que visa manter a tradição, reforçar-

se como símbolo, dentre outros vários que permeiam a festa de Nazaré, e na

disputa simbólica junto aos diversos modismos que surgem a cada ano.

Vestir a santa

Como cita Ivone Corrêa (2010, p.128), “na mesma proporção que a

cidade se veste para viver seu grande dia de Festa, o mesmo acontece com

o devoto”, e diversas são as nuances de como o devoto se veste, seja

através das últimas novidades da moda, como um fator de diferenciação, seja

através de códigos como o que se estrutura por trás do uso do branco,

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chegando até a relação do vestuário com a própria imagem de Nossa

Senhora de Nazaré, uma nova significação que reunirá vestuário e fé.

Sendo o vestuário, a partir destas diversas nuances citadas até aqui,

parte componente de alguns símbolos de religiosidade à Nossa Senhora de

Nazaré, a partir da segunda metade do século XX o próprio traje da imagem

religiosa começa a sofrer influência da devoção e das inspirações de seus

devotos. Começa-se a vestir Nossa Senhora de Nazaré.

Como consta na pesquisa de Corrêa (2010), a partir da década de

1960 a Congregação das Filhas de Maria inicia a confecção anual de um

manto com bordados feitos com materiais doados por promesseiros, que

veste a santa em seu trajeto durante as procissões. Entre os anos de 1973 e

1992, Ester França, ex-aluna de colégio de freiras Gentil Bittencourt, foi a

responsável pelos bordados da peça.

O ato de vestir a santa vai ganhando relevância popular, com o

surgimento do hábito de se confeccionar mantos para as imagens mantidas

nas residências. Depois de 1992, nomes de estilistas, bordadeiras e

arquitetas já assinavam os mantos confeccionados para a imagem oficial da

festa, que desfilava pela cidade em sua Berlinda.

Como exemplos, temos em 1999 o manto criado pela estilista Dilú

Fiúza de Melo, famosa por suas noivas, e em 2006, o manto projetado pela

arquiteta Maria Alice Penna e confeccionado pela estilista Paula Novelino

(Corrêa, 2010, p.20-21).

O ato de confeccionar mantos chegou ao campo da moda, e isso se

reflete atualmente inclusive em concursos criados a partir de 2011 por

instituições de ensino como a Universidade da Amazônia, seguida pela

Estácio Pará, para que estudantes de moda criem mantos para Nossa

Senhora de Nazaré.

Desde 2007, a mudança do manto é noticiada publicamente em uma

espécie de cerimônia de apresentação, com missa, sessão de fotos e

coquetel, tornando o evento um momento simbólico dentro das preparações

para a grande festa.

O manto, percebido na época de Dona Ester como elemento sacro, simbolizando proteção, amparo e abrigo espiritual aos devotos, e,

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por isso mesmo, se bastando nele próprio, já não apresenta a mesma eficácia simbólica nos dias atuais (op.cit., p.144).

O Círio, instituído em 1793 junto à uma feira de produtos regionais, já

nasce aliando a religiosidade ao comércio, e como vimos durante o século

XIX, o comércio de itens do vestuário e acessórios para a festa será um

grande aliado dos empresários, que também usavam a cidade como espaço

de propaganda para os mais diversos produtos durantes a Quadra Nazarena.

Ao longos das décadas, começarão a surgir diversos produtos

envoltos com os símbolos da festa, como a corda5, a berlinda, a Basílica de

Nazaré (com edificação final inaugurada em 1947), os brinquedos de miriti, e

o próprio manto de Nossa Senhora de Nazaré e sua imagem.

Embora continue sendo o manto, ele é milimetricamente multiplicado e transformado em vários signos, com novos traços e estilos. São, portanto, suas derivações convertidas em estampas de camisetas, bonés, em quadros da Santa, em chaveiros e em vários outros artigos que romeiros, promesseiros e devotos adquirem nas diversas procissões que compõem a Festa de Nazaré (op.cit., p.144).

Empresas de confecção de diversos tamanhos, com estilistas ou não,

vêm aumentando seus lucros sazonais com camisetas utilizando a imagem

de Nossa Senhora de Nazaré e outros elementos culturais relacionados, que

são compradas ou distribuídas para serem usadas durante a procissão.

Essa reprodutibilidade, que na visão de Adorno e Horkheimer seria

apenas a transformação de um ato cultural em valor (Costa, 2003), acabou

por tornar-se também, já que nesse caso também é um ato religioso, em uma

demonstração de devoção através do vestuário, assim como também um ato

de distinção, já que esses símbolos são cada vez mais apropriados de

formas segmentadas e com inconstantes significados.

Esse processo de disseminação de imagens em camisetas começou

com a distribuição desses itens promocionais por parte de grandes

empresas, principalmente a partir dos anos 70, e ganhou maiores proporções

quando os cartazes do Círio de Nazaré, que são criados anualmente desde 5  Desde 1855, na procissão do Círio e na Transladação (procissão da noite anterior), diversos fiéis puxam uma corda que faz o translado da Berlinda que carrega a imagem santa. Atualmente a corda chega à 800 metros e é um dos símbolos da festividade.  

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1882, puderam ser reproduzidos a partir dos anos 1990 através da técnica do

“transfer”, período que culminou com a própria valorização dos cartazes do

Círio de Nazaré, quando a partir de 1991 a renomada agência Mendes

Publicidade assume de forma voluntária a produção dessas peças gráficas

que se espalham pelas portas das residências e estabelecimento comerciais

e estampam o peito dos devotos em camisetas até os dias de hoje, ano após

ano.

A criação de produtos do vestuário e acessórios inspirados nos

símbolos da festividade de Nazaré tornaram-se uma “indústria sazonal” que

segue uma hierarquia no tocante aos seus produtos, que passam pela

simples cópias dos cartazes oficias do ano encontradas em camelôs e lojas

populares, passando por reproduções e ilustrações sem assinatura

disponíveis em lojas de departamento, até chegar nas coleções com itens

assinados por estilistas e artistas renomados.

Entre os exemplos, podemos citar o trabalho de marcas locais de

camisetas, bolsas e acessórios que preparam coleções novas todos os anos,

como Eubelem (Figura 3), Ná Figueredo, Mariana Bibas e Celeste Heitmann,

como também as coleções de jóias temáticas assinadas pelos designer do

Espaço São Liberto - IGAMA6. Essa estratégia também têm aberto os olhos

de empresários de outras localidades, como é o caso da marca de acessórios

Francesca Romana Diana, que assinou em 2011 e 2012 coleções especiais

inspiradas nos símbolos da festividade de Nazaré, comercializadas nas lojas

da cidade de Belém.

6  Instituto de Gemas e Joias da Amazônia.  

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Figura 3. Croquis da coleção EUBELEM – Círio 2012.

Fonte: Acervo do autor.

A roupa nova do domingo do Círio

Dentre as diversas manifestações culturais que há mais de 200 anos

constituem a festividade do Círio de Nazaré, o hábito da roupa nova (e

majoritariamente branca) é um deles, e como vimos até aqui, esse hábito

atravessa os modismos franceses da belle époque chegando até a camisetas

brancas e acessórios criados com inspirações nos mais diversos símbolos

que compõem esta festa tão importante para os paraenses, festa de um

tempo próprio que compõe a identidade cultural desse povo.

Pelo que foi discorrido, podemos entender o Círio de Nazaré não só

dentro do espaço da religião, enquanto um conjunto de regras que envolvem

crenças, preceitos e valores, mas também dentro de um plano de construção

da própria cultura paraense, pela amplitude de suas interferências e

elaborações na mentalidade de seus envolvidos, gerando importantes

questões, como o pertencimento, o que faz paraenses ao redor do mundo

virem à Belém durante esse período; e a renovação, que dá a dimensão do

porque a festa é chamada de “natal dos paraenses” e do uso do branco.

O vestuário, dentro dessas construções, é mais uma das tradições

inventadas, no conceito de Eric Hobsbawn (Silva, 2013), que compõem um

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conjunto de valores e normas de comportamento em relação à importância

do “vestir-se” para o Círio de Nazaré, relações essas que se conectam ao

passado, em repetição constante, mas que também não deixam de se

transformar ao longo dos anos.

Vestir a cidade e vestir a si mesmo com os símbolos da festa de

Nossa Senhora de Nazaré é apenas uma demonstração da múltiplas

interpretações, e da multiplicidade de análises que foram e vêm sendo feitas

sobre as relações do paraense como ator e participante deste movimento

“impressionista” e “impressionante” que é o Círio de Nazaré (Lopes, 2011).

Infelizmente o espaço (e o tempo) foram curtos para que outras

pesquisas, ou análises mais aprofundadas, fossem apresentadas neste

artigo, mas evidenciando as diversas dimensões em que o vestuário atua no

Círio de Nossa Senhora de Nazaré, desde seu início, pudemos perceber a

riqueza deste fenômeno cultural, que somente quando presenciado é que se

pode ter uma real dimensão de sua potencialidade, que infelizmente é

suprimida entre as margens de uma folha de papel.

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