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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 2105 O CULTIVO DE HORTALIÇAS NO ASSENTAMENTO SERRA DOURADA, EM GOIÁS/GO: UM OLHAR PARA O TRABALHO FEMININO E AS RELAÇÕES DE GÊNERO ENVOLVIDAS NA PRODUÇÃO NATALIA LUCAS MESQUITA 1 Resumo: O artigo tem o objetivo de refletir sobre o trabalho da mulher camponesa na produção de alimentos no Assentamento Serra Dourada em Goiás/GO. Os procedimentos metodológicos adotados pautaram-se na revisão da literatura sobre a temática; Levantamento de informações em órgãos públicos e; Pesquisa de campo com realização de entrevistas semiestruturadas e observação participante. O Assentamento destaca-se pela produção de hortaliças que são comercializadas em feiras e mercados da cidade de Goiás e também fornecidas à programas governamentais. Há uma divisão sexual do trabalho no cultivo das variedades de hortaliças. As mulheres exercem uma dupla jornada de trabalho, já que, além de trabalharem nas hortas, são responsáveis pela manutenção do lar e cuidado dos/as filhos. Observou-se a valorização do trabalho feminino na produção de hortaliças, porém, o mesmo não foi percebido no trabalho doméstico. Palavras-chave: Mulheres camponesas; Assentamento rural; Trabalho Abstract: The article aims to reflect about the work of the peasant women on the production of food in Serra Dourada Land Settlement in the state of Goiás, Brazil. The methodological procedures were the bibliographic review about the thematic; collecting data information public agencies and; field research with the performance of semistructured interviews and participant observation. The Land Settlement detachs itself for the production of greens which are commercialized in fairs and markets in the city of the municipality of Goiás and also provided to governmental programmes. There is a sexual division of labour in the cultivation of variety of vegetables. The women exercise a double journey of work, therefore beyond working in the kitchen-gardens, they are responsible for the home maintenance and care of their child/children. It was noticed the valorization of the female work in the production of vegetables, however the same was not realized on the housework. Keywords: Peasant women; Rural land settlement; Work. 1 Introdução A incorporação da agricultura às demandas da indústria, com o fim da segunda grande guerra, proporcionou a expansão territorial do capitalismo em diversos países, principalmente, no continente americano, indiano e africano, por meio da justificativa, propagandeada pelo programa norte-americano revolução verde, de combate à fome. 1 Acadêmica do Programa de pós-Graduação em Geografia do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG). E-mail de contato: [email protected]

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DE 9 A 12 DE OUTUBRO

2105

O CULTIVO DE HORTALIÇAS NO ASSENTAMENTO SERRA DOURADA, EM GOIÁS/GO: UM OLHAR PARA O TRABALHO FEMININO E AS RELAÇÕES DE GÊNERO ENVOLVIDAS NA

PRODUÇÃO

NATALIA LUCAS MESQUITA1

Resumo: O artigo tem o objetivo de refletir sobre o trabalho da mulher camponesa na produção de alimentos no Assentamento Serra Dourada em Goiás/GO. Os procedimentos metodológicos adotados pautaram-se na revisão da literatura sobre a temática; Levantamento de informações em órgãos públicos e; Pesquisa de campo com realização de entrevistas semiestruturadas e observação participante. O Assentamento destaca-se pela produção de hortaliças que são comercializadas em feiras e mercados da cidade de Goiás e também fornecidas à programas governamentais. Há uma divisão sexual do trabalho no cultivo das variedades de hortaliças. As mulheres exercem uma dupla jornada de trabalho, já que, além de trabalharem nas hortas, são responsáveis pela manutenção do lar e cuidado dos/as filhos. Observou-se a valorização do trabalho feminino na produção de hortaliças, porém, o mesmo não foi percebido no trabalho doméstico.

Palavras-chave: Mulheres camponesas; Assentamento rural; Trabalho

Abstract: The article aims to reflect about the work of the peasant women on the production of food in Serra Dourada Land Settlement in the state of Goiás, Brazil. The methodological procedures were the bibliographic review about the thematic; collecting data information public agencies and; field research with the performance of semistructured interviews and participant observation. The Land Settlement detachs itself for the production of greens which are commercialized in fairs and markets in the city of the municipality of Goiás and also provided to governmental programmes. There is a sexual division of labour in the cultivation of variety of vegetables. The women exercise a double journey of work, therefore beyond working in the kitchen-gardens, they are responsible for the home maintenance and care of their child/children. It was noticed the valorization of the female work in the production of vegetables, however the same was not realized on the housework.

Keywords: Peasant women; Rural land settlement; Work.

1 Introdução

A incorporação da agricultura às demandas da indústria, com o fim da

segunda grande guerra, proporcionou a expansão territorial do capitalismo em

diversos países, principalmente, no continente americano, indiano e africano, por

meio da justificativa, propagandeada pelo programa norte-americano revolução

verde, de combate à fome.

1Acadêmica do Programa de pós-Graduação em Geografia do Instituto de Estudos Socioambientais da

Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG). E-mail de contato: [email protected]

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No Brasil, esse processo, conhecido como modernização da agricultura,

provocou a marginalização de grande parcela da população camponesa, que não

possuía recursos para a compra do pacote tecnológico oferecido pela revolução

verde e pela necessidade do capital de novas extensões de terras para produzir,

foram impelidos a mudar para os centros urbanos ou a se tornarem empregados do

agronegócio.

O campesinato, por sua vez, não assistiu estático a esse processo de

desterritorialização, encontrando nos movimentos sociais, uma forma de lutar pelo

direito ao seu território, que diferente do capitalismo, tem sentido de vida.

A partir dos movimentos sociais, especialmente, aqueles de luta pela terra

e reforma agrária, diversos assentamentos rurais foram criados, proporcionando a

reterritorialização camponesa e o resgate de uma forma de se produzir, negada pelo

capital.

Observou-se, mediante a produção de alimentos, traço da cultura

camponesa, a criação do que Ruy Moreira intitula contra-espaço, ou seja, a criação

de espaços que não obedecem a ideologia hegemônica do capital.

O espaço, produto de trabalho, é permeado por relações sociais, dentre

as quais, as relações de gênero, visto que, conforme García (2004), o gênero

condiciona a forma como os indivíduos experimentam o mundo.

Diante disso, o objetivo do artigo é refletir sobre o trabalho feminino na

produção de alimentos no Assentamento Serra Dourada, em Goiás/GO,

respondendo as seguintes problemáticas: A mulher camponesa participa da

produção de alimentos no Assentamento? Seu trabalho é reconhecido socialmente?

Os procedimentos metodológicos adotados pautaram-se na revisão da

literatura sobre a temática; Levantamento de informações junto à Comissão Pastoral

da Terra (CPT), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Secretaria de Gestão e

Planejamento do estado de Goiás (SEGPLAN) e; Pesquisa de campo com a

realização de entrevistas semiestruturadas e observação participante.

O artigo foi estruturado em duas seções, exceto introdução,

considerações finais e referências, sendo elas: “(Re)Existência camponesa frente ao

movimento do capital: a luta pela terra em Goiás/GO e a criação do Assentamento

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Serra Dourada”, com o objetivo de discutir o processo de (Re)Existência do

campesinato no estado de Goiás, a criação de contra-espaços e a importância da

mulher nesse contexto, e; “Produção de alimentos e relações de gênero no

Assentamento Serra Dourada”, em que será abordado a produção de alimentos no

Assentamento e a divisão sexual do trabalho nessa atividade, bem como, a

visibilidade do trabalho feminino, com o intuito de compreender as relações

envolvidas na produção de alimentos.

Por fim, cabe informar que artigo é produto de reflexões preliminares da

pesquisa de mestrado, em desenvolvimento, intitulada “O espaço social da mulher

camponesa na produção de alimentos no Assentamento Serra Dourada em

Goiás/GO”.

2 (Re)Existência camponesa frente ao movimento do capital: a luta pela terra

em Goiás/GO e a criação do Assentamento Serra Dourada

2.1 A luta pela terra em Goiás/GO

O município de Goiás/GO está localizado na Microrregião do Rio

Vermelho, a noroeste no estado de Goiás (Mapa 01).

Sua população em 2010, correspondia a 24.727 pessoas, sendo 6.089

pessoas (25%) residentes no campo, das quais 3.309 eram homens e 2.780 eram

mulheres (IBGE, 2012).

Esse município foi fundado pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva,

que chegou na região a procura de ouro, ainda no período colonial. Goiás surgiu em

consequência de uma demanda da colônia portuguesa e portanto, é símbolo da

expansão de um capitalismo em ascensão.

Após um curto período de extração aurífera, Goiás/GO passa a ter a

agropecuária como principal atividade econômica, sendo marcadamente dominado

pelo poder das grandes famílias de coronéis, iniciando uma intensa concentração

fundiária, que se estenderia até a década de 1980, quando tem início as lutas pela

terra no município.

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Mapa 01- Localização do município de Goiás/GO.

Segundo Souza et al. (2009), embasados em pesquisa realizada com os

assentados do município, a “luta pela terra nessa região é intensificada quando os

trabalhadores rurais se despertam para uma interpretação da realidade desigual e

injusta, o que os leva a refletir e a lutar pela ‘quebra das correntes’ como dizem

alguns dos assentados.” (SOUZA et al., 2009, p. 08, grifo dos autores).

A luta pela terra em Goiás/GO se consolida mediante a ocupação da

fazenda Mosquito, de propriedade da família Berquó, uma das famílias oligárquicas

da região, conforme explica Souza (2012):

A luta pela terra, no município de Goiás, se consolidou mediante o assentamento do Mosquito que acampou nas terras da [...] família Berquó. Passando por um período de luta, muitas famílias ficaram em acampamentos na fazenda Mosquito, iniciando o processo de formação dos assentamentos, no município de Goiás até chegar à atual formação [...]. (SOUZA, 2012, p. 30)

Essa luta, por sua vez, não é reflexo de uma realidade local, mas sim de

uma estrutura fundiária regional e nacional que permanece concentrada ao longo do

tempo e que se intensifica ainda mais com o processo de modernização da

agricultura, a partir da segunda grande guerra.

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A modernização da agricultura, entendida como um processo de

substituição das bases técnicas de produção e modificação das relações de trabalho

e reordenação do território, ocorre de forma mais intensa no Brasil a partir da

segunda grande guerra, seguindo a ideologia veiculada pelo programa norte-

americano “Revolução Verde”, que anunciava o aumento da produção e

produtividade agrícola a partir da utilização de sementes melhoradas, defensivos

químicos e maquinários.

No estado de Goiás, a modernização da agricultura ocorreu,

principalmente, a partir da década de 1970, sendo o Estado o agente que

proporcionou as condições logísticas e financeiras para o processo.

Esse processo impactou, profundamente, o território camponês visto que

expulsou grande parcela dessa classe do campo e/ou inviabilizou a substituição de

suas forças produtivas devido aos altos custos demandados para a introdução de

novas tecnologias e as barreiras burocráticas impostas pelo Sistema Nacional de

Crédito Rural (SNCR), criado em 1975.

Diante disso, observou-se uma intensificação da concentração fundiária

no estado, de modo geral, que a partir dos movimentos sociais de luta pela terra e

Reforma Agrária, com início na década de 1980, foi contestada, demonstrando um

movimento de (Re)Existência camponesa.

Conforme Souza (2012)

O processo de luta pela terra, nesse estado, iniciou-se em 1986 no município de Goiás, com a territorialização camponesa, a partir da formação do assentamento Mosquito, com 43 famílias, e com o assentamento Acaba Vida, no município de Niquelândia, com 72 famílias. (SOUZA, 2012, p. 83)

O município de Goiás/GO é, portanto, um importante exemplo das lutas

pela terra no estado, sendo que essas ganharam força a partir da década de 1980,

como já assinalado.

Atualmente, Goiás/GO possui 23 Assentamentos rurais, criados entre os

anos de 1980 e 2014 (Gráfico 01).

Dentre esses está o Assentamento Serra Dourada, território desse

trabalho.

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Fonte: INCRA (2014); Org.: MESQUITA, N. L. (2015)

2.2 A criação do Assentamento Serra Dourada

O Assentamento Serra Dourada (Mapa 02) foi criado pelo ato nº 0045 de

17 de dezembro de 1999, segundo dados do INCRA (2014).

Mapa 02- Localização do Assentamento Serra Dourada, Goiás/GO

Esse Assentamento é o único do município de Goiás/GO cujas terras

foram obtidas por doação. Ele possui uma área de 239,3928 e atende a 15 famílias.

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Segundo informações das camponesas e camponeses do Assentamento,

esse foi criado em um local onde, anteriormente, funcionava uma escola chamada

Fama, ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Essa escola, que

recebia crianças carentes, foi desativada e as terras, devolutas, ficaram

desocupadas por, aproximadamente, 10 anos, quando representantes da Comissão

Pastoral da Terra (CPT) de Goiás/GO, liderados por Dom Tomás Bauduíno,

“descobrem” a propriedade e solicitam ao INCRA a divisão dessa entre famílias do

município que lutam pela terra.

Inicialmente, foram selecionadas 22 famílias das quais permaneceriam

15. Dessas famílias iniciais somente 09 permaneceram no Assentamento, sendo

outras 06 famílias selecionadas.

As mulheres tiveram um papel fundamental na obtenção da parcela e

formação do Assentamento Serra Dourada, conforme pode-se observar através do

relato de uma das mulheres camponesas que vivenciou a experiência da ocupação

e do acampamento:

[...] essa coisa de acampamento, essas coisa de participá desse movimento foi meu marido que ficô doido pra consegui uma terra, né? Es era doido por causa de uma terra pra plantá, era o sonho dele. Ai eu fui, eu fui [...] e ele trabalhava, né? Trabalhava no consórcio, ai ele num pudia saí assim prai, né. Ai foi eu. [...] Ai nós fomo, primeiramente fomos lá pro Costa Campo que nós fomo. Lá nós ficamo um tempo lá. Logo depois teve o despejo. Foi pro corredô perto de Heitoraí. Lá nesse corredô sabe quantas famílias eram? Trezentos e setenta e cinco famílias... gente até na cidade, era gente demais. Ai ficamo no corredô, até um determinado tempo. Eu num lembro mais quanto tempo nóis ficamo lá. Ai depois de lá nós viemo aqui pro vale do Uvá, ai repartiu a turma purquê a terra lá num cabia todo mundo. Ai a gente [...], ai repartiu setenta... num sei se setenta e cinco ou setenta e oito família [...] vei pro vale do Uvá [...] fica acampada. Aí o restante ficaro lá. [...] Do vale do Uvá [...] depois do vale do Uvá foi pru pichincha [...] já fica pra banda do Faina [...]. sabe o Rio formoso? [...] nós ficamos ali tamem. (ANTÔNIA

2. Informação verbal, Assentamento Serra Dourada, Goiás/GO,

mai., 2015).

Antônia ficou acampada durante quatro anos, sendo parte desse tempo

sozinha e a partir do acampamento no vale do rio Uvá, município de Goiás/GO,

acompanhada de seu filho.

2 Antônia é um nome fictício utilizado para preservar a identidade da entrevistada.

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Diante das dificuldades encontradas para permanência na terra, conforme

relatos das/os pesquisadas/os, seja pela extensão (2ha, aproximadamente), falta de

políticas públicas, etc., muitas famílias comercializaram as terras e regressaram às

cidades.

Aquelas que permaneceram no Assentamento tem como principal

atividade a produção de alimentos, tanto para autoconsumo como para

comercialização, sendo essa a temática da próxima seção.

3 Produção de alimentos e relações de gênero no Assentamento Serra

Dourada

A produção de alimentos é uma das principais marcas do território

camponês no Brasil, evidenciando que o campesinato não só continua a existir,

contrariando o discurso do capital, como é extremamente importante para a

soberania alimentar do país.

Segundo dados do último senso agropecuário, realizado pelo IBGE em

2006, os pequenos produtores rurais eram responsáveis por cerca de 70% da

produção de alimentos no Brasil, enquanto a modalidade de agricultura moderna

tinha sua produção direcionada para a exportação de commodities.

Através da produção de alimentos o campesinato (Re)Existente ao

movimento do capital, produz contra-espaços e reafirma uma racionalidade que

supera a obtenção de lucro, convergindo para a reprodução da vida.

Uma das principais características do Assentamento Serra Dourada é a

produção de alimentos para autoconsumo e também para a comercialização. Esse

Assentamento é o que mais se destaca, no município de Goiás/GO, pela produção

de alimentos, sendo responsável pelo fornecimento de 90% das hortaliças

consumidas ali.

Os principais produtos cultivados (Foto 01) pelas famílias do

Assentamento são as hortaliças (alface, couve, rúcula), que são comercializados nas

feiras e mercados da cidade de Goiás/GO, como também, fornecidas ao Programa

de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar

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(PNAE), por meio da Cooperativa de Pequenos Produtores de Goiás e Região

(COOPAR).

Foto 01- a) produção de couve e, b) produção de alface para comércio, no Assentamento Serra

Dourada, Goiás/GO. Fonte: Pesquisa de Campo (Abr, 2015).

A partir das práticas de manejo do solo, controle de pragas e doenças, é

possível observação uma transição agroecológica no Assentamento. Algumas das

práticas das famílias pesquisadas para manejo do solo e controle de pragas e

doenças são: uso de biofertilizantes, adubação orgânica (Biomassa, bokashi,

esterco), uso de carvão e cinza, defensivos naturais produzidos por elas, entre

outros (Foto 02).

Foto 02- a) Defensivo natural produzido por assentado; b) Bokashi (adubo orgânico feito à base de

terra, cinza, cal, torta de algodão). Fonte: Pesquisa de Campo (Abr, 2015).

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Na produção de hortaliças é possível observar uma divisão sexual do

trabalho. A mulher é responsável pela colheita de produtos frágeis e que exigem

cuidados. Além disso, é responsável por embalar os produtos para a

comercialização e pela produção de outros produtos derivados do leite e de frutas do

cerrado, como conservas, licores.

A mulher, no Assentamento, possui várias jornadas de trabalho. Além de

trabalhar nos lugares de produção de hortaliças (hortas), também é responsável pela

manutenção do lar e cuidados dos/as filhos/as.

Essa situação pode ser visualizada quando as mulheres camponesas

descrevem seu cotidiano. A maioria das pesquisadas realizam as seguintes

atividades durante o dia: acordam as 05h00min, fazem café, vão para horta trabalhar

na colheita e embalagem dos produtos para o esposo levar para a cidade; enquanto

os homens vão para a cidade entregar os produtos, permanecem na horta, onde

trabalham até 11h00min, quando retornam para a casa para preparação do almoço.

Após o almoço, organizam a casa e ao fim da tarde retornam para as hortas.

O homem é responsável pela confecção e manutenção da estrutura física

das hortas, tais como, confecção de canteiros e cercas, limpeza das hortas, bem

como, adubação e controle de pragas e doenças. Ainda, é ele o responsável pela

comercialização dos produtos na cidade de Goiás/GO e também o gerenciamento

do dinheiro.

A partir dessa divisão sexual do trabalho é possível observar que o

espaço feminino ainda é o doméstico, enquanto o espaço masculino é o produtivo.

Apesar disso, não se pode afirmar que há uma delimitação rígida desses espaços, já

que tanto a mulher quanto o homem transitam por ambos.

O processo de luta pela/na terra proporcionou, embora timidamente, uma

redução nos limites entre o espaço da mulher e o espaço do homem.

A mulher tem papel fundamental para a permanência da família no

campo, sendo, na maioria dos casos, responsável pela produção de alimentos para

autoconsumo, principalmente nos quintais. Essa importância proporcionou um

empoderamento da mulher e um reconhecimento de seu trabalho.

Todavia, somente no âmbito do trabalho no espaço produtivo.

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No Assentamento Serra Dourada, outro fator que contribui para a redução

das barreiras entre o espaço produtivo e reprodutivo, é o pequeno tamanho das

parcelas e a produção de hortaliças que ocorrem nos quintais das residências,

geralmente, espaço feminino.

Apesar da constatação de que há uma redução das barreiras entre o

espaço feminino e masculino, não é possível afirmar que as assimetrias entre

gêneros, reflexo da sociedade patriarcal, tenham desaparecido. A figura masculina

ainda é percebida como superior. Um exemplo pode ser visto na figura do homem

como representante da família na COOPAR, como também, nas escrituras dos lotes

que estão, na maioria dos casos, em nome dos homens.

Considerações finais

A produção de alimentos simboliza a (Re)Existência de uma classe que

foi negada pelos paradigmas do capitalismo agrário e representa a possibilidade de

uma produção agrícola pautada na sustentabilidade.

Mediante essa produção, que obedecendo uma divisão sexual do

trabalho, observou-se a criação de espaços, por meio de uma lógica que ultrapassa

a obtenção de mais-valia e converge para a reprodução da vida.

A produção do espaço, pelo trabalho, é permeadas por relações de poder

e assim, ao se pensar a produção de alimentos é preciso considerar o trabalho

feminino.

No Assentamento Serra Dourada, conforme constou-se, por meio da

pesquisa ainda em desenvolvimento, a mulher tem papel fundamental na produção

de alimentos, seja aqueles direcionados a comercialização ou ao autoconsumo.

Seu trabalho por sua vez, é parcialmente reconhecido. Isso porque, o seu

reconhecimento só ocorre quando direcionada a sua atuação no espaço produtivo.

Apesar disso, concluiu-se que a delimitação entre o espaço produtivo e

reprodutivo não é rígida, já que, como as parcelas do Assentamento são pequenas

(aproximadamente, 2ha), a produção de hortaliças para a comercialização é feita

nos quintais das casas, havendo uma transição pelas esferas produtivas e

reprodutivas, tanto pela mulher como pelo homem.

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Por fim, cabe enfatizar que diante das observações apresentadas vê-se a

necessidade de um maior reconhecimento do trabalho feminino, tanto ao se pensar

a esfera produtiva como a reprodutiva, o que pode ocorrer por meio de políticas

públicas que garantam a valorização do papel da mulher, para a permanência das

famílias no campo.

Referências

GARCÍA, María Franco. A luta pela terra sob enfoque de gênero. Os lugares da diferença no Pontal do Paranapanema. 2004. 224p. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente (SP). 2004.

IBGE. Censo demográfico 2010. IBGE, 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em: 22/01/2015. INCRA. Projetos de Reforma Agrária conforme fase de implementação. INCRA, 2012. Disponível em: <www.incra.gov.br.> Acesso em: 10/09/2014.

SOUZA, Francilane Eulália de. As “geografias” das escolas no campo do município de Goiás: instrumentos para a valorização do território camponês?. 2012. 380p. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente (SP). 2012.

SOUZA, Francilane Eulália de. et. al. Do assentamento Mosquito ao assentamento Serra Dourada: lutas pela conquista e permanência na terra no município da cidade de Goiás. In.: XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, 2009, São Paulo. Anais... São Paulo, 2009.