O DELÍRIO DE CIÚME NA TEXTOS GRAMÁTICA DA …delírio, e na sua gramática, do que trata esse...

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TEXTOS 55 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 55-61, jul./dez. 2009 Resumo: O texto aborda o debate promovido por Jacques Lacan nas primeiras lições do seminário As psicoses , sobre a nosologia psiquiátrica e a psicanalíti- ca, no que se refere à relação entre os delírios passionais e a paranoia. Basea- do em textos de Freud e Clérambault, Lacan situa a base da psicopatologia do discurso delirante na ordem da linguagem. Aprofunda sua tese tomando como exemplo a construção dos delírios passionais (erotomania, reinvindicação e ci- úme) e a paranoia. Palavras-chave: delírio de ciúme, delírios passionais, psicose paranoica, psicopatologia. JELOUSY DELIRIUM IN THE PSYCHOANALITICAL GRAMMAR: NOTES ABOUT THE PSYCHOPATHOLOGY OF PASSIONATE DELIRIUM Abstract: The text discusses the debate promoted by Jacques Lacan in the first lessons of the Seminar Psychoses on psychiatric and psychoanalytic nosology, regarding the relationship between passionate delirium and paranoia. Based on texts of Freud and Clérambault, Lacan situates the foundation of the psychopathology of the discourse in the language order. Lacan deepens his thesis taking as an example the construction of passionate delirium (erotomania, claims and jealousy) and paranoia. Keywords: jealousy delirium, passionate delirium, paranoic psychosis, psychopathology. 1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Ciúmes , realizada em Porto Alegre, abril de 2009. 2 Psicanalista; Psiquiatra; Membro do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e Membro da APPOA. E- mail: [email protected] O DELÍRIO DE CIÚME NA GRAMÁTICA DA PSICANÁLISE: Notas sobre a psicopatologia dos delírios passionais 1 Nilson Sibemberg 2

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 55-61, jul./dez. 2009

Resumo: O texto aborda o debate promovido por Jacques Lacan nas primeiraslições do seminário As psicoses , sobre a nosologia psiquiátrica e a psicanalíti-ca, no que se refere à relação entre os delírios passionais e a paranoia. Basea-do em textos de Freud e Clérambault, Lacan situa a base da psicopatologia dodiscurso delirante na ordem da linguagem. Aprofunda sua tese tomando comoexemplo a construção dos delírios passionais (erotomania, reinvindicação e ci-úme) e a paranoia.Palavras-chave: delírio de ciúme, delírios passionais, psicose paranoica,psicopatologia.

JELOUSY DELIRIUM IN THE PSYCHOANALITICAL GRAMMAR: NOTESABOUT THE PSYCHOPATHOLOGY OF PASSIONATE DELIRIUM

Abstract: The text discusses the debate promoted by Jacques Lacan in the firstlessons of the Seminar Psychoses on psychiatric and psychoanalytic nosology,regarding the relationship between passionate delirium and paranoia. Based ontexts of Freud and Clérambault, Lacan situates the foundation of thepsychopathology of the discourse in the language order. Lacan deepens histhesis taking as an example the construction of passionate delirium (erotomania,claims and jealousy) and paranoia.Keywords: jealousy delirium, passionate delirium, paranoic psychosis,psychopathology.

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Ciúmes , realizada em Porto Alegre,abril de 2009.2 Psicanalista; Psiquiatra; Membro do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e Membro da APPOA. E-mail: [email protected]

O DELÍRIO DE CIÚME NAGRAMÁTICA DA PSICANÁLISE:Notas sobre a psicopatologiados delírios passionais1 

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Freud ([1921]1981), no texto Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciú-me, na paranoia e no homossexualismo, coloca o ciúme, assim como a

tristeza, como um daqueles estados afetivos que podemos chamar de normais.Desses que, quando parecem faltar em alguém, pensamos que sucumbiram deforma enérgica à repressão; portanto, estariam desempenhando na vida anímicado sujeito um papel muito importante. No entanto, a clínica psicanalítica nosdefronta com casos de ciúme anormalmente intensos, os quais ele distribuiuem três estratos: o ciúme de rivalidade, o ciúme projetivo e o ciúme delirante.

O ciúme de rivalidade, concorrente, é por ele descrito como composto detristeza e dor, pela ideia de perda do objeto erótico, causa de uma ofensa narcísicaque se manifesta em sentimentos hostis contra o rival preferido e, com maior oumenor autocrítica, quer fazer do eu o responsável pela perda amorosa. Essaforma de ciúme pode ser tributária do complexo de Édipo ou do complexo frater-no do período sexual infantil.

O ciúme projetivo nasce, tanto no homem como na mulher, das própriasinfidelidades do sujeito, ou do impulso de cometê-las, recalcadas no inconsci-ente. Freud qualifica esse ciúme como de caráter quase delirante, já que nãoresiste ao trabalho analítico que revela as fantasias inconscientes de infidelida-de a ele subjacentes.

A terceira forma de ciúme, a que nos dirige neste trabalho, é a do ciúmedelirante. Freud ([1911] 1981), para abordar o tema, retoma a tese desenvolvidano trabalho Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso deparanoia. O delírio de ciúme foi tratado nesse texto também como projeção detendências infiéis reprimidas; no entanto, o traço diferencial estava colocado nocaráter homossexual do objeto amoroso. O ciúme delirante apareceria comodefesa de um impulso homossexual rejeitado pelo sujeito. Nos casos de ciú-mes delirantes podem aparecer, segundo Freud, as três graduações do ciúme.Ele nos apresenta um caso clínico de ciúme paranoico, mostrando como essedelírio passional ocupa um lugar entre as formas clássicas da paranoia.

Lacan ([1955-56] 1985) inicia a lição de 30 de novembro de 1955, doseminário As psicoses, fazendo uma crítica ao modo de explicar o caso dopresidente Schreber, e a paranoia em geral, pela simples rejeição das fantasi-as homossexuais dominantes no inconsciente do sujeito. Ele pergunta no queconsiste essa homossexualidade, a que ponto da economia do sujeito elaintervém?

Ele prossegue a construção do conceito do outro, parceiro imaginário daidentificação especular e do grande Outro, distinguido do primeiro pela letramaiúscula, representando o ordenamento simbólico da lei. O Outro aparece navida do sujeito pela palavra que carrega o interdito. No seu limite, essa instânciaterceira confunde-se com a ordem da linguagem.

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A falta da inscrição da função simbólica do Outro coloca o sujeito numaposição objetal diante de um Outro absoluto, onipotente e devorador, o que, noimaginário masculino, leva o sujeito a ficar situado em posição feminilizada. Daínos parece ser tão frequente o fantasma do empuxo à mulher nos delíriosparanoicos.

Ainda nessa lição, Lacan ([1955-56] 1985) traz uma abordagem sobre aestrutura do fenômeno delirante na sua relação com a linguagem, marcandouma posição diferencial entre a abordagem psicanalítica, a fenomenologia deJasper e a psiquiatria. É na estrutura da linguagem que ele assenta a base dapsicopatologia psicanalítica. Em se tratando de delírio, se é na fala que o fenô-meno se manifesta, é lá que podemos dissecar sua estrutura.

Freud ([1911] 1981) situou o delírio do ciúme como uma das formas clás-sicas da paranoia. Getan Gatian de Clérambault ([1921] 2006) propõe, pelo ladoda psiquiatria, a separação nosológica entre os delírios interpretativos e os delí-rios passionais do quadro geral da psicose paranoica.

Clérambault situava o delírio interpretativo no grupo da psicose paranoica.O delírio de ciúme, a erotomania e o delírio de reivindicação ficavam abrigadosno grupo das psicoses passionais. Enquanto o paranoico, nos termos deClérambault, delira com seu caráter, o passional parte de um nó ideoafetivopreciso, caracterizado por uma exigência consciente, imediatamente completa,ligada a uma emoção veemente e profunda.

A erotomania, para Clérambault, não tem como fonte principal o amor;sua marca recai no orgulho. O sujeito é objeto do amor de alguém muito impor-tante. Temos aqui introduzida a noção do narcisismo na esfera da paixão. Nodelírio de ciúme e de reivindicação, a indignação e a cólera são as emoçõespredominantes.

Jean-Jacques Tyszler, no artigo A propósito das psicoses passionais,defende a tese de que Lacan marca um tronco comum entre a interpretaçãodelirante, a erotomania, o delírio de reivindicação e o de ciúme dentro da estru-tura da paranoia, mas não deixa de observar uma diferença em como se estabe-lece a inércia dialética:

A dialética do ‘ou eu’ ou ‘o outro’, a abordagem pela duplicidade doeu, não explicita suficientemente a forma particular das psicosespassionais, que trabalham mais do lado do ‘eu’ (Je), do sujeito edo lado, digamos, mais normalmente compreensível desses te-mas delirantes (Tyszler, 2005, p.123).

Tyszler se coloca a pergunta de por que Clérambault excluiria os delíriospassionais da paranoia.

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A inércia dialética coloca o acento, como indica Lacan ([1955-56] 1985),do lado do “eu”, do sujeito, ao passo que nas formações paranoicas trabalhadaspelo automatismo mental ou pela alucinação, a inflexão está no diálogo impostocomo um “tu”.

A erotomania, que em Lacan está no centro da paranoia, mostra o amorcomo uma relação de eu a eu, na tentativa de formar o “um”. O objeto verdadeirodo amor erotômano porta os traços do próprio eu, traços trabalhados pelo orgu-lho.

No ciúme delirante, o duplo do ciumento carrega os traços ignorados dopróprio eu do sujeito, numa posição idealizada.

Outra característica que vem marcar a distinção entre os delírios passionaise o interpretativo está colocada no tempo de construção e eclosão do delírio.

Na paranoia, Schreber é aqui nosso maior exemplo, a construção deliran-te tem dois tempos. No primeiro momento, o saber sobre os fenômenos é exte-rior ao sujeito. Ele é objeto de um Outro onipotente, que partilha com o clínicoessa dimensão do saber. Essa posição objetal o coloca numa relação feminilizadafrente a esse outro todo potente.

No entanto, com o passar do tempo, um deslocamento do lugar do sabervai operando a ponto de o paranoico afirmar que domina sozinho o conhecimen-to de todas as coisas.

Nos passionais, a construção do saber delirante não se dá nesses doistempos, ela é imediata. O postulado se impõe como amor à primeira vista.

Essas primeiras notas nos colocam na questão da nosologia, mas o queé que, para a psicanálise, vem a constituir a base de sua psicopatologia?

Lacan diz ([1955-56] 1985, p. 43): “O sistema de linguagem, em qualquerponto em que vocês discirnam, nunca se reduz a um indicador diretamentedirigido a um ponto de realidade, é toda a realidade que está abrangida peloconjunto da rede de linguagem”.

De que realidade ele nos fala? Ao comentar o texto de Freud, ([1924]1981) A perda da realidade nas neuroses e nas psicoses, ele lembra que arealidade da qual Freud fala é a realidade psíquica. Portanto, a psicopatologiacomeça pela maneira como o sujeito se estrutura na linguagem.

O que define o delírio? Freud já deixava claro, no entender de Lacan([1955-56] 1985), que não se trata do falso ou verdadeiro no conteúdo do pensa-mento, em comparação com a realidade exterior compartilhada. Essa diferençapode aparecer no discurso neurótico. O sujeito, sabemos que existe, quando nafala aparece o engodo. O delírio se distingue por uma forma especial dediscordância com a linguagem comum. Se, na linguagem comum, uma signifi-cação remete a outra significação, no delírio psicótico a significação de algunspontos-chave na rede de significantes só remete a ela própria, permanece

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irredutível. Como lembra Lacan: “... a palavra tem peso em si mesma” (Lacan,[1955-56] 1985, p.43).

Avançando sobre o texto de Schreber, ele sublinha dois tipos de fenôme-nos de linguagem em que se projeta o neologismo. “A intuição delirante é umfenômeno pleno que tem para o sujeito um caráter submergente, inundante... apalavra do enigma é a alma da situação” (id., ibid., p. 44).

De outro lado temos a forma cuja significação não remete mais a nada. Éuma repetição estereotipada, manifestação de fala que pode ser encontrada nosquadros mais graves de esquizofrenia.

O que há de verdade ou mentira na fala de uma criança pequena que,após bater em outra, nos diz que foi a outra quem bateu nela? O transitivismoinfantil está presente no curso das identificações primárias definidas por Lacanno estádio do espelho. A fala da criança não é mentirosa, mas reveladora daverdade na estrutura do sujeito.

É, então, na ordem do discurso que podemos discernir que se trata dedelírio, e na sua gramática, do que trata esse delírio. A fala é comunicação,palavra dirigida a outros. A palavra falada é fundadora da posição dos sujeitosenvolvidos.

Em se tratando das psicoses passionais, é importante relembrar essaslições de Lacan, pois nos ajudam a diferenciar o ciúme na neurose do delírio deciúme na psicose.

No ciúme competitivo, o normal segundo Freud ([1921] 1981), temos umarelação triangular em que um quarto elemento, o falo, desliza entre os trêsvértices. Em tratando da psicose, Lacan vai situar o discurso paranoico no pro-longamento do eixo especular.

Ele diz: “O conhecimento dito paranoico é um conhecimento instauradona rivalidade do ciúme, no curso dessa identificação primeira que tentei definir apartir do estádio do espelho” (Lacan, [1955-56] 1985, p. 50).

O ciúme, diz Lacan, está na origem da construção do conhecimentohumano. O ciúme fraterno, descrito por Santo Agostinho, o de rivalidade e oconcorrencial são superados na fala pela intervenção do terceiro.

A carência de efeito simbólico, da palavra como pacto para chegar a umacordo, marca uma posição do Outro como afastada na dialética entre o eu e ooutro, outro do espelho, fonte de todo conhecimento. Na especularidade o outroé o eu.

Lacan pergunta de que nos fala o paranoico e responde: “ele fala comvocês de alguma coisa que lhe falou” (id., ibid., p.52).

Isso não significa que o paranoico é um papagaio a repetir a fala do outromaterno. Ele coloca que o fundamento da estrutura paranoica está no testemu-nho que o sujeito dá de que alguma coisa tomou forma de palavra falada, que lhe

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fala. Para entender como isso fala na estrutura do discurso paranoico, Lacanrecorre então a Freud ([1911]1981).

Sobre o enunciado “eu o amo, e você me ama”, Freud (ibid., p.1518)distingue três formas de negação.

A primeira maneira de negar é dizer: “não sou eu que o amo, é ela”, é aminha mulher que o ama. Nesse caso, o sujeito faz levar sua mensagem por umoutro, a(o) parceira(o). Eis aí a estrutura de delírio de ciúme. “O ego fala porintermédio do alter ego, que no intervalo mudou de sexo”, diz Lacan ([1955-56]1985, p. 53).

Freud coloca que mesmo no delírio de ciúme, no qual o que o paranoiconão suporta é o empuxo à mulher, o mecanismo projetivo (o segundo tipo deciúme) entra em jogo. No entanto, Lacan faz uma distinção. Não se trata desimplesmente imputar ao outro suas próprias infidelidades. No delírio de ciúme,a identificação se dá por alienação invertida. É a sua mulher que o sujeito fazmensageira de seu próprio desejo rejeitado. Encontramos aqui um mecanismoprojetivo que não é da mesma ordem da neurose. O delírio de ciúme paranoicose estende não para um homem, mas, como ele coloca, para um número dehomens mais ou menos indefinido. Isso, porque o delírio de ciúme é indefinida-mente repetível.

No segundo caso, ele diz: “não é ele que eu amo, é ela”, é ela que meama. Na erotomania, o outro ao qual se endereça o sujeito é um ser muitoespecial. Daí a ideia do orgulho do erotômano, descrita por Clérambault. O su-jeito tem com ele uma relação platônica, à distância. Porém, é o outro que oama primeiro. Por isso o erotômano, sujeito de um ser amado, é também objetode muito valor. A erotomania é, entre os delírios passionais, o que mais noscoloca a questão do feminino na psicose, já que sua prevalência é de cerca de80% em mulheres (Tyzler, 2005).

Na terceira possibilidade, “eu não o amo, eu o odeio”, uma simples inver-são não é suficiente como defesa. É preciso que intervenha o mecanismo daprojeção: “ele me odeia”. Aí está estabelecido o delírio persecutório. O amorrecusado virou ódio, o ódio projetado no outro retorna como objeto persecutório.Todo sistema de relação com o outro fica alterado. O que vem do outro aparececomo reflexo extensivo da sua interpretação do mundo. Como diz Lacan, é aperturbação imaginária levada ao seu máximo.

A gramática freudiana do delírio paranoico e de suas posições passionaisnos remete ao campo das identificações primárias próprias do estádio do espe-lho. Parece que esse outro contra o qual o passional se agita coloca em jogo aimagem ideal de si mesmo. Ou em que outra posição poderia estar situada aatriz vítima da violência passional de Aimée?

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REFERÊNCIAS:CLÉRAMBAULT, G. Gatien. Os delírios passionais: erotomania, reivindicação, ciúme.[1921]. Revista do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro, mar. 2006.FREUD, Sigmund. Observaciones psicoanaliticas sobre un caso de paranoia(Dementia Paranoides) autobiograficamente descrito [1911] In: _____. Obras com-pletas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva,1981. v.2.______. Sobre algunos mecanismos neuroticos em los celos, la paranoia y lahomosexualidad [1921]. In: _____. Obras completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981.v.3.______. La pérdida de la realidad en la neurosis y en la psicosis [1924] In: _____.Obras completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v.3.LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-56]. Rio de Janeiro: J.Zahar Ed., 1985.TYZLER, J. Jacques. A propósito das psicoses passionais. Revista do TempoFreudiano Associação Psicanalítica, Rio de janeiro, jan. 2005.

Recebido em 10/11/2009

Aceito em 15/12/2009Revisado por Beatriz Kauri dos Reis

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Resumo: A partir de Dom Casmurro, de Machado de Assis, acompanhamos anarrativa em torno de Bento e Capitu. Na vacilação inscrita pela posição dopersonagem-narrador ocorre uma fratura, e nesse lugar surge um terceiro anco-rado na certeza, que apaga todo o resto. Machado de Assis nos oferece, assimcomo Shakespeare, Proust e Edgar Allan Poe, algo da verdade do ciúme: fixi-dez que empurra o sujeito ao lugar de sua sombra.Palavras-chave: ciúme, fixidez, duplo.

A CLOVE OF JEALOUSY IN THE MACHADIAN FICTION

Abstract: In Dom Casmurro, by Machado de Assis, we follow the narrativesurrounding Bento and Capitu. In the oscillation embedded by the narrator-character perspective, there is a fracture, and out of this place comes out a thirdone, anchored onto a certainty which wipes off all the rest. Thus Machado deAssis grants us, as well as Shakespeare, Proust and Edgar Allan Poe do, withsomething from the truth of jealousy: a rigidity which impels the subject to thereign of his or her own shadow.Keywords: jealousy, rigidity, double.

UM DENTE DE CIÚMENA FICÇÃO MACHADIANA1

Lucia Serrano Pereira2

1 Este texto foi escrito na referência ao livro: Um narrador incerto entre o estranho e o familiar,a ficção machadiana na psicanálise (Cia de Freud, 2008).2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da AssociationLacanienne Internationale(ALI); Doutora em Literatura Brasileira (UFRGS). Autora dos livros: Oconto machadiano: uma experiência de vertigem – ficção e psicanálise (Cia de Freud, 2008);Um narrador incerto entre o estranho e o familiar, a ficção machadiana na psicanálise (Cia deFreud, 2004). E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 62-74, jul./dez. 2009

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Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimentopara proclamar de peito aberto, no instante mesmo

de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente umsentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher

como uma rosa. Senão, no instante seguinte elese fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta

Chico Buarque

Lembremos uma vez mais Capitu (Machado de Assis, [1900] 1997). É justo,pois não é em torno dela que se arma a grande expressão do mal-estar do

ciúme em nossa literatura?Dom Casmurro, calado, recluso, Dom por ironia, ares de fidalgo. Ele é o

narrador que reconstitui sua vida, suas memórias. Dom Casmurro, Bentinho,Bento Santiago. Três nomes do personagem-narrador desdobrando lugares dife-rentes na narrativa. Bentinho é o narrador enquanto jovem-menino que, aos 15anos, ouve atrás da porta uma conversa entre sua mãe e o agregado da casa,José Dias, conversa que indica sua condição: está apaixonado por Capitu, amenina da casa ao lado, e nem sabia. É José Dias quem aponta para DonaGlória o fato, tem observado os dois jovens em segredinhos, sempre juntos.Para Bentinho, as palavras de José Dias têm o efeito inusitado de revelação.

O romance: a primeira parte da narrativa apresenta esse tempo, em queBentinho vive o amor por Capitu. Vai ao seminário, estuda, e volta, tendo feitoum grande amigo, Escobar. Com a ajuda de José Dias e de Capitu, finalmente,consegue desfazer-se dos votos eclesiásticos, que eram compromissos mater-nos, já que Dona Glória havia feito a promessa de que o filho se tornaria padre.Diante dessa conquista, Bentinho retorna à casa da família e consegue realizarcom a moça o sonho compartilhado: o casamento.

Primeiro tempo de casados, tudo corre bem, Bentinho já passa a marido eproprietário, deixa para trás o menino tímido dominado pela mãe, D. Glória. Com-partilha a vida com Capitu e com o casal Sancha e Escobar. O filho demora a vir;quando nasce é festejado. Nesse primeiro tempo, tudo parece se encaminhar beme, então, a tragédia: Escobar, exímio nadador, morre afogado no mar. No velório,Bento Santiago encontra algo no olhar de Capitu, para seu amigo morto, que come-ça a transtorná-lo. O ciúme é deflagrado com violência; tudo vem a ser retroativa-mente lembrado como indício da traição e, para culminar, Ezequiel, o filho, começaa ser visto por Bento como refletindo a imagem de Escobar (padrinho do menino).

Filho do outro, ele conclui, como Otelo (Shakspeare, [1604]1999) deduza culpa de Desdêmona. A tragédia shakespeariana de Otelo compõe o pano defundo da história de Bento e Capitu, jogando especularmente uma história den-tro da outra, estabelecendo a construção em abismo (mise-en-abîme).

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A narrativa é produzida desde o ponto de vista de Bento Santiago, certezada traição de Capitu, certeza essa que o romance ao mesmo tempo desautorizaem sua trama.

O mal-estar e a crueldade ganham a cena – Bento Santiago desfaz-se deCapitu e do filho, mandando-os para a Europa, mantendo as aparências com umexílio sem volta para Capitu. Ela morre no estrangeiro, Ezequiel retorna jovemadulto. Bento oscila entre fugazes impulsos amorosos que sucumbem em umvoto de morte dirigido ao filho: “bem que ele poderia pegar lepra [...]”. O rapazefetivamente morre em uma viagem, Bento diz sobre o dia em que soube damorte do filho: “Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro” (Machado de Assis,[1900] 1997, p. 944).

A pergunta que Dom Casmurro se faz, para concluir, é se afinal, a Capituque trai já estava dentro da Capitu menina. Estrategicamente, o narrador induzo leitor a convir que sim, que uma já estava dentro da outra como:

[...] a fruta dentro da casca. […] a minha primeira amiga e o meumaior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quiso destino que acabassem juntando-se e enganando-me...A terralhes seja leve! (Machado de Assis, [1900]1997, p. 944).

Se a fruta já estava dentro da casca (como na metáfora do repolho e darosa, em Chico Buarque), de que maneira a pergunta percorre Bentinho na tra-ma do ciúme?

A transformação da menina em mulher atrai Bentinho e ao mesmo tempo operturba. O canapé, simplesmente o nome dessa peça do mobiliário intitula ocapítulo que diz da posição e do lugar de um e de outro. Um canapé que ofereceem sua palha (sua trama), lugar aos dois, alia a intimidade e o decoro. Um canapécompartilhado por dois homens pode ser lugar do debate, do destino de um impé-rio; por duas mulheres, o interesse por um vestido, diz o narrador, mas se por umhomem e uma mulher, ali se abre à fala sobre si mesmos. Bentinho e Capitu, ajura de amor, os dedos entrelaçados, as cabeças quase juntas, muito próximas...até que entra o pai da moça. Bentinho se levanta depressa, lembra da cena e deseu constrangimento, metendo os olhos pelas cadeiras. Ela, ao contrário, semnenhum ar de mistério, envia as saudações à mãe dele, dá o até breve, estende amão, e sai de cena. Confirmação para Bentinho de que ela é mais mulher do queele, homem. “Tudo isso é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo,que perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista”.

Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras, as formas arredon-davam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a

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mesma cousa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita eà esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até a cabe-ça. [...] de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e maischeia; os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca outro império(Machado de Assis, [1900]1997, p.892).

Como sustentar o lugar de homem frente, justamente, a essa mulher quevai surgindo e que o deseja? A posição de Bentinho vacila, ele ainda guarda algodo rapazinho que decide contar a D.Glória que, afinal, estava crescido, gostavada Capitu e não queria voltar para o seminário, mas que quando se encoraja,afinal, só consegue dizer “Eu só gosto de mamãe” (id., ibid., p. 853).

A mulher Capitu cresce aos seus olhos, metáfora que articula toda asequência, essa mulher dos olhos e olhares. São destacados os olhos queJosé Dias apontou como de “cigana, oblíqua e dissimulada”, e sempre em tornodo olhar vai se armando a cena dos naufrágios, dos mares e das marés queorganizam os olhos de ressaca, redemoinho, “umbigo” do romance.

É no velório de Escobar que Bento se depara com o olhar de Capitu parao morto. Ele repara, em meio à confusão geral, Capitu olhando o cadáver:

[…] tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltas-sem algumas lágrimas poucas e caladas. […] Momento houve emque os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem opranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vagado mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador damanhã (Machado de Assis, [1900] 1997, p. 927).

Aqui se concentram os cruzamentos e o ciúme ancora-se de uma vez portodas. A relação com o olhar de Capitu para o morto, tal qual olhou para ele,Bentinho, um dia (olhar de delícias, mas também de risco, mortífero); odeslizamento de Capitu para “olhos de viúva”, de fixidez para paixão.

Escobar, o amigo atraído pelo desafio dos mares bravios, morre justa-mente afogado. Por Capitu? Fica o suspense.

O que vem imediatamente antes dessa morte é a narrativa do encontro,na noite anterior; dos dois casais de amigos, a pedido de Sancha, que anunciaum projeto para os quatro, um convite, uma viagem à Europa. Bento percebequalquer coisa diferente naquela mulher, uma excitação naquela noite, uns olha-res quentes e intimativos de Sancha para com ele, toda a cena pontuada pelaobservação do mar batendo com força, e da ressaca na praia. Bento, na despe-dida, com o toque dessa mulher, tem um momento de vertigem e pecado. Asituação é totalmente inusitada, ele tenta achar disso algum registro anterior, e

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observa: “Tive uma certeza só, é que um dia pensei nela como se pensa na beladesconhecida que passa” (Machado de Assis, [1900]1997, p. 924).

Machado trabalha no intertexto, nos leva a associar a bela desconhecidaque passa com a poesia de Baudelaire (1980), a incrível ”passante”3 , que deixaseu rastro de forma indelével, inesquecível, com o envio de um raio, de um olharfulgurante, derradeiro, antes de desaparecer na multidão. Para Bento, Escobarhavia recebido defunto, aqueles olhos.

O ciúme, para Bento Santiago, é rememorado desde o momento em queo Otelo, de Shakespeare ([1604] 1999), é introduzido no capítulo Uma reformadramática. Bento brinca com a possibilidade de “reformar” a peça, de maneiraque ela começasse pelo fim. Otelo mataria Desdêmona e a si mesmo no primei-ro ato, os três seguintes para a ação do ciúme e, por último, uma saída irônica,com o conselho de Iago, o de meter dinheiro na bolsa. Tudo isso como umapergunta sobre o destino que os dramaturgos não anunciam como a vida – nadase sabe ao certo, até que o pano caia. Nesse ponto da narrativa, tratava-se dacuriosidade de Capitu sobre a companhia de Bentinho, com quem ele ficara narua até tarde; é a introdução de Escobar entre eles. Esse outro que serve paraintroduzir no romance o que o narrador chamou de “o segundo dente de ciúme”(o primeiro vem depois, em retroação). A mordida se dá quando Bentinho vê umrapaz a cavalo passar pela rua e voltar seus olhos para Capitu, ao modo dosnamoros de antigamente.

Ora, o dandy do cavalo baio não passou como os outros; era atrombeta do juízo final e soou a tempo; assim faz o Destino, que éo seu próprio contrarregra. O cavaleiro não se contentou de ir an-dando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, eolhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça dohomem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente deciúme que me mordeu (Machado de Assis, [1900]1997, p. 884-885).

3 “À une passante. La rue assourdissante autour de mon hurlait. Longue, mince, em granddeuil, douleur majestueuse, Une femme passa, d’une main fastueuse Soulevan, balançant lefeston et l’ourlet; Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je bouvais, crispé comme unextravagant, Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan, La douceur qui fascine et le plaisirqui tue. Un éclair… puis la nuit! – Fugitive beauté Don’t le regard m’a fait soudainementrenaître, Ne te verrai-je plus que dans l’éternité? Ailleurs, bien loin d’ici! Trop tard! Jamaispeut-être! Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui lesavais! (Baudelaire, 1980, p. 68-69)

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O “primeiro dente de ciúme” é relatado em seguida. O narrador lembra dotempo do seminário, quando José Dias comenta que Capitu não sossegaria atépegar algum peralta da vizinhança que casasse com ela. Bentinho logo pensaque essa era uma alusão ao cavaleiro, mas ao mesmo tempo se pergunta: “Talrecordação agravou a impressão que eu trazia da rua; mas não seria essa pala-vra, inconscientemente guardada, que me dispôs a crer na malícia de seusolhares?” (Machado de Assis, [1990] 1997, p.885).

A partir daí, a consistência desse terceiro vai delineando-se, insistindo. EmEmbargos de terceiro, o capítulo, Bento vai ao teatro, mas volta logo preocupadocom Capitu, que havia dito não se sentir bem e preferira ficar em casa. Ele encon-tra Escobar descendo as escadas, o amigo teria ido para falar com ele sobre unsembargos. Antes desse encontro inesperado, o narrador vinha ponderando:

Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par devalsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror edesconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meiomais próprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver tam-bém, e não há ver sem mostrar que se vê (Machado de Assis,[1900]1997, p. 918).

Fica claro que o “terceiro” dos embargos vai se armando em torno deEscobar. Este, que desde a adolescência de Bentinho, aparecia como o amigodevotado, mas também aquele que tinha os olhos “um pouco fugitivos, como asmãos, como os pés, como a fala, como tudo” (id., ibid., p.868).

Escobar nos é apresentado metonimicamente, por contiguidade, as par-tes pelo todo, os olhos e as mãos. Suas mãos, diz o narrador, são daquelas quenão apertam as outras e também não se deixam apertar, dedos que quando secuida de ter entre os seus, já não estão mais (também dissimulados?).

Duas vertentes fortes em Dom Casmurro apontam o surgimento e desdo-bramento do ciúme: o olhar de Capitu para Escobar morto, que faz com queBento Santiago localize algumas situações que lhe retornam, lembranças deepisódios ambíguos que poderiam indicar para a cumplicidade entre Escobar eCapitu, e, a outra vertente ressaltando a semelhança que passa a ver entre seufilho Ezequiel e Escobar (portam o mesmo nome de batismo, Escobar chama-se Ezequiel de Sousa Escobar).

A primeira via nos remete mais propriamente para a relação de ciúme, e asegunda, para uma possibilidade que poderia indicar o caminho do “estranho”,quase na constituição de um outro que retorna da tumba para vir, de certa ma-neira, assombrá-lo (referimos “poderia indicar” o estranho por acharmos queessa seria uma aproximação que o texto permite, mas não fecha; a semelhança

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pode ser lida em Dom Casmurro também como algo mais rarefeito, indefinível,que vem surgindo aos poucos, sem acentuar seu contorno). Nesse percurso,Bento, que era protagonista do amor por Capitu, se vê progressivamente empur-rado para um lugar de sombra, de perda do lugar desejante, de homem e de pai.Ele é aquele de quem a pintura mal disfarça o corpo da autópsia, derrocada desua posição de sujeito.

Tomemos a questão do ciúme em certa transversal, na relação com suapossível participação na construção do efeito de “estranho”, que termina por fazerBento Santiago achar-se sentado à mesa com esse que “sai da sepultura”.

O ciúme, Freud ([1922] 1969) aponta em Sobre alguns mecanismos neu-róticos nos ciúmes, a paranoia e a homossexualidade, assim como a tristeza,pertencem àqueles sentimentos que, de alguma forma, participam da vida nor-mal; ou seja, vão compor em maior ou menor grau a vida amorosa comum, commais ou menos recalque. Destaca ainda três formas: o que seria o ciúme ditonormal, o ciúme projetado (quando se deseja fora da relação amorosa e a seguirse projeta esse desejo “infiel” ao parceiro) e o ciúme delirante. Podemos nosperguntar se, no final das contas, essas fronteiras seriam tão delimitadas, seesses elementos não estão constantemente imbricados. Mas, de qualquer ma-neira, há um traço do ciúme que sempre comparece: o de ser fixador, o detransformar tudo em sinal, em indício, um total desmantelamento da dimensãopolissêmica da linguagem. É nessa via que Lerude (1995) faz uma aproximaçãoda leitura do ciúme em Proust. Façamos um breve desvio até seu texto, referidoa Em busca do tempo perdido (Marcel Proust, 2006), na direção de certo encon-tro entre o ciúme em Bento Santiago e Swann, o personagem da Recherche que,como nosso narrador machadiano, se vê tomado em um delírio de ciúme – comrelação a Odete, essa mulher de condição social inferior (nesse ponto tambémcomo Capitu, guardadas as diferenças, Odete era uma cocotte francesa).

Em Quelques remarques a propos d’un amour de Swann, M. Lerude co-menta o ciúme de Swann, na obra de Proust, com relação a Odete:

E o ciúme consiste em um esvaziamento da equivocidade da lín-gua, dos fenômenos: tudo faz signo, cada palavra, cada situaçãoindica que Odete está alhures, com um outro, em um outro gozoque ele ignora, do qual ele é privado, amputado. A vida de Odetenão lhe é, no fundo, mais desconhecida neste momento do queantes, mas é um “desconhecido” reconhecido como tal que setrata a partir daí, de preencher infinitamente” (Lerude, 1995, p. 119)4 .

4 Tradução da autora.

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A autora indica o desencadeamento do ciúme no momento em que Odetenão se encontra mais no mesmo lugar. Há o surgimento de um duplo, um seme-lhante, nomeado Forcheville (que frequenta o mesmo círculo social de Swann).Ela não é mais totalmente dele, assim como Capitu não o é de Bento; cai amiragem de que um homem pudesse possuí-la toda – a mulher – pontuar todosos momentos de sua vida.

Capitu é mulher casada, tem relações sociais, o marido observa que elagosta disso; e, ponto principal, tem um filho, o que evidencia a não totalidade deseu olhar na direção de Bento. O ciúme demanda essa exclusividade que éimpossível.

Roland Chemama (1995) na introdução da Révue Le TrimestrePsychanalytique – La Jalousie aponta para o fato de que o ciúme, pelo menosem parte, corresponde ao desconhecimento disso que podemos situar comouma falta fundamental, uma defesa contra essa falta, defesa contra o que pode-ríamos situar como a castração (é na defesa contra a castração que Freuddesenvolvia a noção do estranho); sendo assim a impossibilidade, o limite emrealizar o que se quer fica totalmente posto na conta do outro. No lugar de poderreconhecer um limite que é da estrutura da subjetividade (cada um se constitui,subjetivamente, através da identificação com o outro – o semelhante – mas issotem limite) acha-se alguém que, supostamente, deve arcar com essa conta. Ociúme reforça o risco que o imaginário designa como relação de exclusividade:só há lugar para um, então é um ou outro. Ao mesmo tempo, essa relaçãoindica, mais do que a rivalidade, um movimento identificatório, e é nisso que osujeito pode se ver questionado a respeito de sua posição; entra em cena apossibilidade de sua queda, ligada à colocação em jogo de seu desejo.

Na relação Bento-Ezequiel-Escobar, as coisas iniciam por um aponta-mento sutil, no texto, com respeito a um tecido de semelhanças, portanto, deidentificações. No capítulo intitulado O retrato, Bentinho vai à casa de Sanchapara encontrar Capitu com a amiga, e o pai de Sancha refere-se à semelhançado retrato de sua mulher, já falecida, com a amiga tão querida da filha. Reforçaa opinião com o comentário de todas as pessoas que haviam conhecido a mu-lher. Pondera, como que falando de casualidades, “Na vida há dessas seme-lhanças assim esquisitas” (Machado de Assis, [1900]1997, p. 829).

Assim o assunto semelhanças tem início. A sequência vem no capítuloAs imitações de Ezequiel. Um só “defeitozinho”, Bento comenta com a mulhera habilidade do menino em imitar os gestos, os modos, as atitudes. Imita tiaJustina, José Dias, até um jeito dos pés e dos olhos de Escobar... Há que secorrigir com tempo, concordam. É depois da morte de Escobar que o assuntoserá problematizado, assumindo, aos poucos, o contorno de estranho. Capitucomenta um dia com o marido:

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Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esqui-sita? […] Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defun-to Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado depapai, não precisa revirar os olhos, assim, assim… (Machado deAssis, [1900]1997, p. 931).

É pela mão de Capitu que Bento é levado a estabelecer a conexão quevirá a torturá-lo.

Em especial nesse desenvolvimento do texto, Machado de Assis nosoferece, na construção e na trama, toda a maestria de seu estilo: na narrativa,do ponto de vista do narrador, o trato com a semelhança vai tomando a direçãodo sentido único e fixo, tudo leva a Escobar; cada detalhe só confirma a “presen-ça” de um no outro. Do outro lado, simultaneamente e também pela voz donarrador, apresentam-se aqui e ali todas as pequenas observações que desautori-zariam a convicção de Bento, mas que ele não pode enxergar, tão obcecadocom esse duplo que escolhe encontrar para usurpar seu lugar de pai, e dehomem, no desejo de sua mulher.

A ambiguidade tem seu desenvolvimento maior. Se José Dias fosse vivo,Bento diz, “acharia nele minha própria pessoa” (id., ibid., p. 931). Acontece queJosé Dias, ao mesmo tempo, é apresentado ao leitor como alguém não confiável,o agregado da família que se movimenta sempre pela contingência das conveni-ências.

Tia Justina pede para rever Ezequiel quando este retorna da Europa; po-deria ser aí outro momento de dar provas ao leitor de que suas fantasiascorrespondem (ou não) à realidade. Bento trata de evitar essa visita, até o fale-cimento da tia. E fica-se com a dúvida, pois o fato de Capitu mesma levantar aquestão da semelhança não serve para alimentar a dúvida de uma possível ino-cência.

Bento pega o que lhe impõe o ciúme e joga o resto fora. Capitu haviasalientado a semelhança do filho, lembrando dois homens, um dos quais Bentodescarta imediatamente – o amigo do pai – para manter a exclusividade: “Apro-ximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar”(Machado de Assis, [1900]1997, p. 931). Aposta até o fim nessa duplicaçãoidentificada. A perplexidade de Capitu, desde então, só conta como um olhar deplateia, excluído da possibilidade de qualquer palavra que faça diferença. Ela jáfoi cortada da cena. Como o é Desdêmona (Shakspeare, [1604] 1999), na tramaarmada por Iago; Otelo não vê mais nada a não ser a mulher e o amigo traidor.

A partir daí, o que se apresenta como semelhança passa a vir diretamen-te associado com o morto, é uma identificação que vem como se “desde atumba”:

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Dos olhos de Ezequiel vai ressurgindo Escobar.

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoainteira, iam apurando-se com o tempo. Eram como um debuxo primi-tivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figuraentra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a família pendura oquadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aquipodia ser e era. […] Escobar vinha assim surgindo da sepultura, doseminário e do Flamengo para sentar-se comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noitea benção do costume (Machado de Assis, [1900] 1997, p. 932).

Lacan ([1962-63]1997) aponta para a figura de um “hóspede” que surgede repente, com relação à angústia. Ele vem desenvolvendo a questão doenquadramento da angústia, como ela surge: se a angústia seria relativa aotempo de espera, de estado de alerta, como resposta de defesa a algo que vaiacontecer; termina por dizer que a angústia é outra coisa, e que se a espera temsua importância nesse enquadramento, a angústia é quando surge, quando apa-rece nesse contexto, “aquilo que já estava muito mais perto, em casa, Heim, ohóspede, dirão vocês.” (id., ibid., p.83).

Segue, dizendo que esse hóspede que surge inopinadamente tem tudo aver com o que se encontra no unheimlich, mas que designá-lo assim é muitopouco. Ressalta que o termo em francês hóspede, hôte, em seu sentido corren-te, é já alguém bem trabalhado pela espera:

Este hóspede, é o que já havia passado no hostil (hostile) [...] Estehóspede, no sentido comum, não é o heimlich, não é o habitanteda casa, é o hostil apaziguado, abrandado, admitido. O que é heim,o que é Geheimnis, nunca passou por estes rodeios... (Lacan,[1962-63] 1997, p. 83).

Nunca passou pelas redes, pelas peneiras do reconhecimento, continuaLacan, ele permaneceu unheimlich:

[...] menos inabituável que inabitante, menos inabitual que inabitado.Esse surgimento do heimlich no quadro é que é o fenômeno da angústia,e é por isso que é falso dizer que a angústia é sem objeto (id., ibid., p. 83).

Machado de Assis nos faz bem ter a noção dessa dimensão do cercoque se fecha com a chegada do hóspede, ao dizer: “Eu, posto que a ideia da

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paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Àsvezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava eria, e o defunto falava e ria por ele” (Machado de Assis, [1900] 1997, p. 942-943).

E quanto mais Escobar ressurge, sendo sempre ressaltado nesse apare-cimento algo da vida, da alegria, do acolhimento e da satisfação do encontro(afinal, é um menino, depois um rapaz no entusiasmo dos encontros e dasdescobertas, como Bentinho o era), mais Bento vai virando uma sombra, dei-xando-se perder a vida, abrindo mão das relações, passando aos pensamentosde morte para consigo, para com Capitu e Ezequiel, o hostil e o agressivo semdisfarces. No “par maléfico” que reúne o eu a um outro fantasmático, o real nãofica situado do lado do eu, e, sim, colocado do lado do fantasma. Interessanteefeito de torção dos lugares, pois não é o outro que duplica a mim, mas, sim, euque sou o duplo do outro, observa Clèment Rosset (1998) em seu trabalho sobreo real e o duplo. O outro é quem fica com o real, e o sujeito propriamente com asombra.

Voltemos a Proust por um momento: no estudo de Grimaldi (1994) sobreo ciúme em Proust, podemos seguir algo do cruzamento que com Lerude esbo-çamos, na trajetória pelo ciúme em Bento e em Swann:

Mas a imaginação ciumenta sempre há de finalmente passar doque ela ignora ao que já sabe, e recriar o desconhecido como umasimples excrescência do que já é conhecido. Pois em qualquersituação, por infame, horrível ou ignóbil que seja, como figurar umapessoa a não ser pela própria experiência que dela se tem? Eisporque embora Swann soubesse muito bem, de maneira abstratae geral, ’que a vida dos seres é cheia de contrastes’, nem assimconseguia imaginar tudo o que não conhecia da vida de Odetesenão ‘como idêntico à parte que [dela] conhecia’ (p.186). Dessemodo, assim como a memória é o sótão da imaginação, assim ociúme só pode reconstituir os amores que ele ignora com o que eleconheceu do amor. É, portanto, com aquilo que foi o tecido da suafelicidade que lhe cumpre agora talhar a roupa de sua infelicidade.Como a sombra é o duplo de cada um, Proust pode então dizerque o ciúme é a sombra do amor, já que lhe faz imaginar na escu-ridão e no dilaceramento o duplo daquilo que ele viveu na claridadee na alegria (Grimaldi, 1994, p. 41-42).

Swann fica com Odete, mas vive entre ela e o caminho de Guermantes,divisão que não se atenua; Bento mata, exila a mulher e o filho; quando o rapazretorna, moço, oscila entre o amor por ele e o voto de morte.

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Seguindo o desenvolvimento de Rosset (1998) sobre o eu e a sombra, háo apontamento para um cuidado: o pior erro a ser cometido por quem se consi-dera perseguido por um duplo, mas que é, na verdade, o original que ele próprioduplica, é o de tentar matar o seu duplo:

Matando-o, matará ele próprio, ou melhor, aquele que desespera-damente tentava ser, como diz muito bem Edgar Poe no final deWilliam Wilson, quando o único (aparentemente o duplo de Wil-son) sucumbiu aos golpes de seu duplo (que é o próprio narrador):’Venceste e eu sucumbo, mas, de agora em diante, também estásmorto. Morto para o mundo, para o céu, para a esperança! Existiasem mim, e agora que morro, vê nessa imagem que é a tua, comomataste na verdade a ti mesmo’ (Rosset, 1998, p.78-79).

Proust, Edgar Alan Poe, Machado. A pintura mal disfarça o corpo daautópsia, Bento Santiago já desertou de si mesmo. No ciúme ocorre uma espé-cie de irrupção real do terceiro, relativo a uma precariedade no campo das iden-tificações e da identidade. Bento “não era tão homem quanto ela mulher” nãopode legitimar a paternidade, e nessa vacilação do lugar surge um terceiro,ancorado na certeza, que apaga todo o resto. Machado de Assis nos oferecealgo da verdade do ciúme, na sua face dura: a pintura mal disfarça o corpo daautópsia – Bento, ou mesmo o crime da paixão, exílio de Capitu.

REFERÊNCIASASSIS, Machado de. Obra completa [1900]. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.BAUDELAIRE, C. Oeuvres completes. 1. ed. Paris: Éditions Robert Laffont, 1980.BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.CHEMAMA, Roland. Introduction. Le Trimestre Psychanalytique, La jalousie. Paris:Association Freudienne Internationale, 1995, n. 2, p.1-7.FREUD, Sigmund. Sobre alguns mecanismos neuróticos nos ciúmes, a paranoia ea homossexualidade [1922]. In: _____. Edição standard brasileira das obras psico-lógicas completas de Sigmund Freud. 2. ed. Tradução de Jayme Salomão. Rio deJaneiro: Imago Editora, 1969.v. 18.GRIMALDI, Nicolas. O ciúme, estudo sobre o imaginário proustiano. São Paulo: Edi-tora Paz e Terra, 1994.LACAN, Jacques. Seminário 10: a angústia [1962-1963]. Recife: Centro de EstudosFreudianos do Recife, 1997. Publicação não comercialLERUDE, Martine. La jalousie: quelques remarques a propos d´un amour de Swann.Le Trimestre Psychanalitique, La jalousie . Paris: Association FreudienneInternationale, 1995, n. 2, p. 113-128.PEREIRA, Lucia Serrano. Um narrador incerto entre o estranho e o familiar – a ficçãomachadiana na psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

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PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Em busca do tempo perdido. Rio de Janei-ro: Editora Globo, 2006.ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Tradução de José Thomaz Brum. Porto Ale-gre: L&PM Editores, 1998.SHAKSPEARE, W. Otelo [1604]. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999.

Recebido em 07/09/2009

Aceito em 11/10/2009

Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

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Resumo: Discute-se, neste artigo, a temática do amor e dos ciúmes através daobra de Ibsen O pequeno Eyolf. Os fios desta obra entelaçam-se com a análisedo Homem dos ratos e com questionamentos sobre o que seria o tempo do pós-lacanismo. Tecem-se, também, considerações sobre os efeitos e o fim de umaanálise.Palavras-chave: amor, ciúmes, tragédia, drama.

ON LOVE AND JEALOUSY: VARIATIONS AND MISADVENTURETHE LITTLE EYOLF

Abstract: The present article discusses love and jealousy on Ibsen´s work. Thelines of this work are interlaced with The Rat Man analysis and with some questionsabout the time of post lacanism. The end of analysis and analysis efects arealso appreciated in this text.Keywords: love, jealousy, tragedy, drama.

1 Texto elaborado a partir de aula proferida pelo autor.2 Psicanalista. Membro fundador da Escuela Freudiana de Buenos Aires, dentre suas maisrecentes publicações encontram-se: Las intervenciones del analista (Agalma, 2004), El sujetoborgeano (Agalma, 2005), Lectura del seminário L´etourdit (Escuela Freudiana de BuenosAires, 2007). E-mail: [email protected].

SOBRE O AMOR E OS CIÚMES:variações e desventurasO pequeno Eyolf1

Isidoro Vegh2

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 75-86, jul./dez. 2009

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No título que escolhi, Sobre o amor e os ciúmes: variações e desventuras, aordem não é arbitrária. Estamos acostumados a falar de como se relacio-

nam o amor, o desejo, o gozo, como se enlaçam ou desenlaçam. Também peloensino de nosso mestre Freud temos um trânsito pela questão do intrincamentoe desintrincamento das pulsões, pulsões de vida, pulsões de morte. Mas talveztenhamos menos percurso em pensar que há distintos tipos de amores, quepodem jogar de modo propiciatório, ou bem como barreira para a realização doamor.

O tema que escolhi foi a tragédia do Pequeno Eyolf, desse grande escri-tor norueguês que foi Henrik Ibsen (1966), e o tomei porque, além disso, é umclássico dentro da psicanálise. O pequeno Eyolf é uma associação que faz umpaciente de Freud ([1909]1980), a quem conhecemos como O homem dos ra-tos. Tem interesse para nós vermos como se situa nesse histórico a direção dacura. Por que digo isso? Porque estamos, como venho insistindo, em temposdo pós-lacanismo, assim como houve um tempo do pós-freudismo: é um tempoem que está em jogo a desvirtuação, no pós-freudismo, do ensino de Freud, eno pós-lacanismo, do ensino de Lacan. Está em jogo de distintos modos. Um éa acentuação de apenas uma faceta, desconhecendo as demais. Por exemplo,temos colegas que sublinharam, e muito bem, o valor que tem que o analistaesteja atento ao som do significante, como joga com o equívoco com a letra, oque se chama de homofonia. No entanto, dizemos que reduzir a isso a retóricado inconsciente é desconhecer o que nossa prática nos ensina, o que nosensina a obra de Freud, o que nos ensina a própria obra de Lacan, quando nosdiz, no último capítulo de Encore (Lacan, 1975), que esse significante que retornarepresentando o sujeito pode se jogar ao nível do fonema, da palavra, da frase,do enunciado ou de um conjunto de enunciados. Creio que este tema que esco-lhi, a tragédia de Ibsen, vai nos servir para testemunhar do empobrecimento quesignificaria para nossa prática desconhecer essa variedade que o próprio Lacansublinhou.

Do histórico do Homem dos ratos vou ler a vocês onde Freud o cita ([1909]1980, p. 168-169): “No entanto, em desafio a todo este rico material, durante longotempo não se fez luz alguma sobre o significado de sua ideia obsessiva – a ideiaobsessiva tinha a ver com os ratos, com a tortura dos ratos que um capitão lhehavia contado enquanto ele estava no exército como suboficial de reserva: con-sistia em pôr no ânus do torturado uma lata com ratos que se introduziam pelointestino destruindo-o por dentro – até que um dia apareceu a Senhora dosRatos, do Pequeno Eyolf, de Ibsen, e tornou-se irrefutável a conclusão de queem muitas configurações de seus delírios os ratos significavam também filhos;quando se investigou a gênese deste novo significado, tropeçou-se em seguidacom as mais antigas e substantivas raízes”. Então fala também dos ratos que

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poderiam ter saído da tumba do pai, ratos que ele podia ter visto no cemitério,etc. Freud diz “ratos eram, então, filhos”.

Neste percurso, vamos nos encontrar com algo já não da magnitude deum rato, mas tão grande quanto um elefante: me surpreende que nem Freudnem Lacan o tenham sublinhado.

Lembro a vocês brevemente: o Homem dos Ratos é um jovem de 27anos que vai a Freud desesperado, com fantasias de suicídio (cortar sua jugular)por certas ideias obsessivas das quais não pode se desprender. A última, odesencadeante, é que tem de pagar uns óculos desses que se apoiam no nariz,que se chamam pincenê, em alemão Zwicker (Zwicken quer dizer beliscar), queele havia perdido durante as manobras militares. Ele sabia, mas decidiu seguire encomendar outro. A empregada do correio o recebeu, ele acreditou que odevia ao Tenente A, resultou que era o Tenente B, mas como o capitão lhe disse“tens que pagar ao Tenente A”, essa ordem se impôs a ele. O que era umabsurdo, porque em definitivo ele sabia que não devia nem ao Tenente A nem aoTenente B, mas à empregada do correio. Com essa dúvida obsessiva, e com aideia de inventar uma cena absurda, em que ele paga a um, que dá ao outro, eeste à mulher da estafeta, vai ver Freud, desesperado porque, para ele, tudoisso não era piada. Na primeira entrevista conta a Freud ([1901] 1980) que foi vê-lo por coisas que leu em Psicopatologia da vida cotidiana e que pensava quepodia ajudá-lo. Mas, por sua neurose, pede a Freud um certificado para que ostenentes se prestem a sua cena. Freud lhe diz que de maneira alguma, queunicamente vai se prestar é a ajudá-lo com o que ele pode, que comece aassociar e ele vai ver como o ajuda. Já desde o começo lhe conta, na segundaentrevista, uma fantasia, que é a dessa tortura que acabo de descrever, a dopróprio capitão que lhe disse “tens que pagar ao Tenente A”. Ou seja, um capi-tão que funciona como um Supereu cruel e sádico, e que tem em seu mandatoa própria estrutura do Supereu, um sintagma coagulado, imodificável. Avançan-do o histórico, vamos ver que essa tortura dos ratos terá a ver com um jogosignificante, homofônico, que em alemão se escreve assim:

Ratten = ratosRaten = dívidaQuando a análise avança, Freud descobre que há algo em relação aos

ratos que tem a ver com uma dívida. Vamos ver logo de que dívida se trata. Agora irei ao relato de Ibsen, O pequeno Eyolf (1966). Ibsen escreve este

relato em sua última etapa, no ano de 1894. Pensemos que grande parte de suaobra foi escrita entre 1860-1870; já era um dramaturgo muito renomado. Háantecedentes na biografia, mas que não nos servem para articular uma respostasobre por que escreveu isto. Efetivamente, dizem que houve uma tia que eralouca e que dizia que era a mulher dos ratos. Também é verdade que havia um

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irmãozinho que ficou paralítico por um acidente, coisas que aludem à trama datragédia. Mas não são suficientes para explicar por que o autor escreveu estatragédia.

O pequeno Eyolf nos convida a reconhecer uma série de personagens;para facilitar a trama, vou escrevê-los deste modo:

Estes são os personagens que a tragédia de Ibsen nos propõe. Iremosapresentando-os com suas próprias palavras.

Quem é este pai? É alguém que volta, antes do tempo, de uma viagemque havia feito às montanhas, com a ideia de escrever o grande livro de sua vida,um livro que se intitularia “Sobre a responsabilidade humana”. E diz a sua mu-lher, que o esperava, e a sua irmã, que estava de visita, que mudou de ideia, quenão escreveu nada, nem uma letra, e que daqui em diante a obra de sua vida vaiser outra. Perguntam-lhe o quê e diz:

Alfredo Allmers: Pensei em Eyolf, querida Rita […] Desde aqueladesgraçada queda da mesa…, e mais ainda desde que sem lugara dúvidas soubemos que o acidente seria irreparável…Rita: Mas, Alfredo, já não podes te ocupar mais dele!Alfredo Allmers: Não como um mestre de escola, mas sim comoum pai. E um pai é o que quero ser de hoje em diante para Eyolf.Alguém diria “que maravilha!” Não, escutem.Alfredo Allmers: Eyolf será o varão mais completo da família. E euempregarei toda minha vida na nova obra de convertê-lo em umhomem cabal (Ibsen, 1966, p. 36).

Vocês imaginam o que é ter um pai dedicado a alguém desse modo?Sublinho como se inspirou:

Alfredo Allmers: Sim! E ao subir até as infinitas solidões, ao con-templar o sol nascente iluminando os cumes, ao sentir-me mais

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perto das estrelas, quase em comunhão com elas…, foi quandoconsegui meu desígnio.

É um pai que se autopropõe no lugar do Ideal e que estende até seufilho esse Ideal. Mas não o Ideal que põe limite ao Eu. Não é San Martíndizendo “serás o que deves ser ou não serás nada”, quando o futuro estádizendo que San Martín, nosso pai da pátria, não pensava o Ideal idêntico aoEu, mas com uma distância, é o Ideal propiciatório. Este, no entanto, ali nasalturas, encontrou-se em comunhão com as estrelas, ele passa a ser essasestrelas e descobre seu desígnio: vai fazer de seu filho um homem cabal,completo, através de seu filho vai lograr o Ideal que não pôde realizar atravésde sua obra.

Quem é a mãe? Vamos apresentá-la com algumas de suas frases. Quan-do menciona o cortejo que o engenheiro Borgheim faz a sua cunhada, diz:

Rita: Para mim seria uma verdadeira alegria vê-lo casado com Asta.Alfredo Allmers: E isso por quê?Rita: Porque ela iria para longe e não viria como vem agora. […]Porque assim serias ao final só para mim. Mesmo que…não;tampouco assim me pertencerias por inteiro. (Rompe em soluçosconvulsivos) Alfredo, Alfredo! Não posso renunciar a ti!Alfredo Allmers: Mas, Rita…, sê razoável!Rita: Não quero sê-lo! Não me importa nada no mundo mais que tu(Abraçando-o) Tu, só tu!Começa o crescendo da tragédia.Alfredo Allmers: Por Deus, mulher! Estás me estrangulando!Rita (separando-se dele): Ah! Se, efetivamente, eu pudesse sufo-car-te! (Lançando fogo pelo olhos) Se soubesses quanto te odiei!Alfredo Allmers: Odiar-me, tu..?Rita: Sim. Te odiava vendo-te passar horas e horas junto à tuamesa de trabalho. (Com uma expressão de desaprovação) Quehoras tão longas! Oh Alfredo, não sabes quanto odiei teu trabalho!Alfredo Allmers: Bem; pois já acabei com ele resolutamente; nãofalemos mais disso.Rita: Não; mas agora há algo pior ainda.Alfredo Allmers: Ainda pior? Te referes ao pequeno?Rita: Sim, me refiro ao menino! Em nossas relações ele se mani-festa pior ainda que o livro. O menino é algo vivo, que palpita. (Comcrescente calor) Mas isso eu não suportarei, Alfredo! Te digo quenão suportarei!

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Diz mais algo:

Rita: Sofri cruelmente ao dá-lo à luz; mas suportei tudo gozosa porteu amor.Alfredo Allmers: Eu sei, eu sei!Rita: Acabou-se! Quero viver contigo sem limitações! Não possoconformar-me em ser só a mãe de Eyolf! Não posso, não quero!Quero ser tudo para ti!

E diz uma frase que é digna de atenção: “Rita: Eu estava destinada a sermãe, mas não a seguir sendo mãe”.

Rita propõe a seu marido um amor possessivo. Agora, vamos ver se issosurge sem razão ou porque há algo que a situa no mau lugar.

E Eyolf? Nos é dito que é um menino de nove anos, pálido, que anda comuma muleta porque ficou paralítico desde que teve um acidente.

Neste primeiro ato aparece um personagem estranho, que faz limite coma lenda: é a Mulher dos Ratos, uma versão feminina do flautista de Hamelin.Dedica-se a tirar os ratos dos lugares onde esses pequenos animaizinhos inva-dem a vida cotidiana. No relato clássico, o conto que vocês talvez tiveram opor-tunidade de escutar em sua infância, O flautista de Hamelin vai com seu instru-mento, sua flauta, com a qual seduz os ratinhos que o seguem e, desse modo,os retira dos lugares aonde o chamam. O conto relata como em um povoado lhepediram ajuda e, quando tiveram de lhe pagar, se negaram. O flautista se vingoulevando, em vez dos ratos, as crianças. Daí surge a associação de Freud, ratos= crianças. Até aí a agudeza de nosso Herr Professor. A Mulher dos Ratos diz,fazendo sua apresentação, que está de visita na zona, pergunta se precisam deuma ajuda; dizem-lhe que não, mas fazem-na passar. O pequeno Eyolf escutaque ela conta como, ajudada por seu cachorrinho, que se chama Mopsemand,que significa ratoeiro3 , um cachorrinho preto que causa desgosto, trabalhamjuntos: ela os seduz com seu instrumento musical, o cachorrinho vai guiando-os, ela sobe num barco, os ratos não podem deixar de seguir o cãozinho, quevai nadando, vão adentrando no fiorde – penetrações do mar na terra – até quetodos os animaizinhos se afogam. A Mulher dos Ratos (Ibsen, 1966, p.41) dizassim: “a Mulher dos Ratos: a bem da verdade, não se deveria cansar jamais de

3 No original, ratonero. Significa “caçador de ratos” e é também uma raça de cães.

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fazer bem a essas pobres criaturas odiadas e perseguidas tão duramente. Maschega a ser algo esgotante…” (Ibsen, 1966, p.41). Ambiguidade com que opoeta nos descreve “essas pobres criaturas”: se refere, no manifesto, aos rati-nhos, mas com o que a mãe de Eyolf confessou, há um desejo de morte e ódiopara com Eyolf que vem de sua própria mãe, e que o condena ao lugar de pobrecriatura.

O primeiro ato termina assim que Eyolf sai ao jardim; os adultos ficamconversando entre si. Subitamente, chegam gritos, algo aconteceu. Um meninose afogou. É Eyolf.

No ato seguinte duas cenas resultam terroríficas para esses pais. Houveum tempo em que o corpo de Eyolf esteve no fundo do fiorde, na água transpa-rente viam-se os olhos abertos. Esse olhar que persiste, dirão eles, os persegui-rá por toda a vida. Também a muleta, flutuando na superfície. Quando averiguamcomo foi que o menino morreu, descobrem que seguiu, até afogar-se, a Mulherdos Ratos. A Mulher dos Ratos aparece como a voz da morte que conduz opequeno Eyolf a seu final.

Segundo ato, Eyolf já morreu. Ficamos sabendo o que antecede essedesenlace: tinha havido um tempo no qual esses pais, segundo Rita, haviam seamado, haviam estado juntos. Quando Eyolf era bebê ela tomou Alfredo ardente-mente em seus braços, ele estava cuidando da criança, mas, apaixonado peloabraço, tiveram uma relação e ele esqueceu o bebê, que caiu da mesa e ficouparalítico para o resto de sua vida. O poeta não necessita ler Freud ou Lacanpara reparar em quando o amor de um casal pode fazer cair, no real, o fruto darelação. Nesse encontro amoroso, sexual desses pais, não havia lugar para umbebê. Cai, cai no real. E fica para sempre excluído, além disso, do jogo com asdemais crianças, porque nos inteiramos de que não só caiu e a partir daí teveque usar as muletas, mas de que, desde esse momento, o pai não podia supor-tar vê-lo com elas. Então, condenou-o a não brincar com as demais crianças, ianotar a diferença. Reclamou que estudasse, que estivesse sempre trancado,lendo. Mesmo que Eyolf dissesse que no dia de amanhã queria ser um soldado,nem mais nem menos que um soldado.

A tragédia vai subindo de tom. Alfredo, totalmente acabado, pensa emsuicidar-se. Sua mulher, desesperada. Alfredo fala com sua irmã Asta, lembra-se de que quando eram pequenos o pai havia morrido, e em seguida a mãe deAsta, eram meios-irmãos. Quando ficaram órfãos, ele começou a cuidar de suairmã e a chamava “pequeno Eyolf”. Amor fraterno. Podemos intuir que o amorpossessivo de Rita não é produto de um genoma ou de que tivesse um impulsonatural ao amor possessivo. Ele havia lhe contado uma vez, como que de pas-sagem, em meio a uma relação sexual, em plena intimidade, que chamava suairmã, quando eram pequenos, de “meu pequeno Eyolf”. Ela sabia que atrás

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desse pequeno Eyolf estava o outro, esse amor pela irmã, da qual Rita disse“quisera que desaparecesse”. Há um ódio que se translada do ciúme a esseamor fraterno ao ciúme e ao desejo de morte do próprio filho.

A tragédia avança no horror, quando alcança a verdade

Quando digo que estamos no tempo do pós-lacanismo, assim como an-tes Lacan se enfrentou com o pós-freudismo, estou dizendo que estamos notempo em que, mais uma vez, a verdade tende a se perder. Por exemplo, diz-seque o povo judeu é o povo escolhido. É o povo escolhido para perder sistemati-camente a verdade. A série dos profetas é a daqueles que, uma e outra vez,tinham que recordar-lhe a verdade que voltava a ser abandonada. Porque o des-tino da verdade é seu esquecimento. Quando Newton desenvolve sua fórmula daatração dos grandes corpos celestes não diz “senhores, eu venho porque estamosem pleno pós-copernicanismo, a verdade de Copérnico se perdeu”. Porque aciência moderna exclui a dimensão do sujeito. Não se trata de uma verdade queconcerne ao sujeito, essa de que ninguém quer saber, que só chega quando nãohá outro remédio. Quando Einstein produz sua fórmula da relatividade não diz“venho recuperar a verdade de Newton”; abre um novo espaço onde as fórmu-las de Newton delimitam o lugar de sua eficácia. Mas na psicanálise, que tema ver com a verdade, e é a verdade do sujeito, tende a ser reprimida. Cada novolivro de psicoterapia surge porque o anterior já fracassou e precisa ser propos-ta uma nova opção. Para quê? Para voltar novamente a velar a verdade doinconsciente.

Leiamos como surge o horror da verdade. Rita recorda continuamenteesses olhos abertos de seu filho. Alfredo também, lhe diz “por favor, não sigas”.Inclusive alucina a palavra “mu-le-ta”, que ficou flutuando desde que seu filho seafogou.

Alfredo diz, lentamente, com olhar severo:

Alfredo Allmers: De hoje em diante, é forçoso que haja um muroentre nós dois.Rita: Por quê?Alfredo Allmers: Quiçá nos observem dia e noite os olhos desme-suradamente abertos de um menino (Ibsen, 1966, p.55).

Retorna do real o que havia sido expulso do simbólico. Ter um filho deverdade instaura uma dívida, não é um bichinho de pelúcia, uma boneca.

Alfredo Allmers: Cedo ou tarde, isso havia de terminar assim, Rita.

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Rita: Que havia de terminar assim o que começou por um amormútuo?E aqui começa o horror.Alfredo Allmers: Por minha parte não foi tal desde sempre.Rita: Então, que sentimento te inspirei…ao princípio?Alfredo Allmers: Espanto.Rita: Entendo. Mas como pude, pois, conquistar-te?Alfredo Allmers (entre dentes): Com tua atração irresistível, Rita.Rita (Lançando-lhe um olhar de incredulidade): Nada mais que porisso, Alfredo? Nada mais?Alfredo Allmers (com esforço): Não…, havia algo mais também.Rita (em uma exclamação): Já adivinhei! Era minha “generosidadea mãos cheias”, como costumavas dizer. Não é certo, Alfredo?Alfredo Allmers: Sim.Rita: Como pudeste…, como pudeste fazê-lo?Alfredo Allmers: Tinha que velar por Asta (Ibsen, 1966, p. 62).

Asta, a quem quando menino chamava “pequeno Eyolf”. Freud não o per-cebeu e Lacan não o percebeu: é a mesma história do Homem dos Ratos. A dívidado pai, a verdadeira dívida, é que se casou com a mãe do Homem dos Ratos pordinheiro. Em plena transferência com Freud, quando Freud aumenta os honorári-os, o Homem dos Ratos diz a Freud “tantos ratos, tantos florins”. É seu fantasmafundamental. Um homem dá ratos = filhos a uma mulher em troca dos florins querecebe. É o que seu pai e sua mãe lhe transmitiram. Quando chega a Freud, equer suicidar-se, é porque, tendo terminado seus estudos de direito, chegou omomento, como se diz coloquialmente, de assentar a cabeça. O que lhe diz suamãe? Querido, tens que te casar. Repete-se no real a história: ele ama sua primapobre (como seu pai amava uma namorada pobre) e a mãe e o pai, antes demorrer, lhe dizem que tem de se casar com a prima rica. Quando o Homem dosRatos associa com o pequeno Eyolf, o analista faria bem em ir ler a tragédia. Estácontada a trama na qual ele está preso. Uma trama da qual o pequeno Eyolf sópôde sair no real, com sua morte. Só lhe restava um caminho: completar o idealdo pai e suportar o desejo de morte de sua mãe. Era um lugar invivível. O chamadoda morte que lhe é oferecido pela Mulher dos Ratos era a única liberdade que lherestava. As duas cenas se somam: quando ele contou a sua mulher que chamavasua irmã de “pequeno Eyolf” com o momento em que o bebê caiu da mesa. É umametáfora realizada, posta no real. Eyolf cai como filho quando se revela que seulugar, em realidade, era o lugar de um amor fraterno incestuoso.

Temos, então, o amor narcisista desse pai que quer se igualar ao lugar doIdeal, um filho posto como complemento desse Ideal (“será o homem cabal da

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família”), uma mulher que nisso se sente excluída do amor desse homem –porque vamos diferenciar: no momento em que a verdade é dita, Alfredo revelaque se casou com Rita por seus bens e porque a deseja e goza com ela, masnão porque a ama. Como diz Lacan ([1960-61] 2003), a fórmula forte do amor:dar o que não se tem a alguém que não o é, põe em jogo a falta. Alfredo não põeem jogo a falta, ele anela identificar-se ao lugar do Ideal, da completude. E senão pode sê-lo, porque o livro não o logra, propõe que seu filho seja sua obra.Percebem por que o título Variações e desventuras do amor e os ciúmes? Umamor narcísico pode impedir o amor de um casal. O amor de um casal podearticular-se de tal modo que não deixe lugar para o desejo de um filho. Um amorfraterno incestuoso pode fazer obstáculo para que um homem ame uma mulher.Variações do amor. E é chamativo, como nem Freud nem Lacan registraram,que, além da equivalência criança = rato, o pequeno Eyolf, como o Homem dosRatos, fosse o filho de um intercâmbio, o que a frase “tantos ratos, tantos florins”resume.

O final da tragédia foi discutido nos tempos de Ibsen (1966, p. 78). Astadecide ir-se porque conta a seu irmão que descobriu uma carta que sua mãehavia deixado. Nessa carta, que Alfredo não quer ler, ela lhe diz que há algo quetem a ver com a história. E ele diz “eu dessa história já tive o bastante, eu tiveque me encarregar de ti porque nosso pai te tratava mal. Eu vi que ele te tratavamal e me parecia injusto”. A história remonta à terceira geração. Asta lhe contaque descobriu uma carta de sua mãe na qual revela que ela não é irmã deAlfredo, que a mãe de Asta a havia concebido com outro homem. Por isso, o paide Alfredo, e supostamente de Asta, a odiava. Estrutura de tragédia. Até estedado poderia se dizer de Alfredo “que porcaria de tipo”, mas não, é uma vítima.Ele tenta reparar com sua irmã o mau tratamento do pai , mas, por sua vez,esse homem maltrata a menininha porque evidentemente sabia que não era suafilha. Como Ibsen é um grande dramaturgo, ninguém se salva. Cada persona-gem não apenas tem a contradição com o outro, mas consigo mesmo. Porqueesse homem, o suposto pai, foi traído por sua mulher, casa-se com ela sendoum homem mais velho. Temos muitas comédias – faz pouco apresentou-se DonPascuale, que conta as aventuras de quando um homem ancião quer desfrutardos encantos maritais de uma jovem dama. Mesmo sendo uma especulaçãoprópria dos psicanalistas, que pensamos mal e acertamos, pergunto: por queessa mulher jovem, a mãe de Asta, casou-se com um homem mais velho, aquem depois enganou? Como diz o ditado, “bilheteira mata galã”. Não há nin-guém inocente nessta história. Salvo o pequeno Eyolf que é, como diria nossoamigo Lênin, o elo mais frágil da cadeia, o que paga com sua vida.

No final da obra, Alfredo, que se sentiu muito mal, mas não o suficientepara se matar, aceita uma proposta que sua mulher lhe faz. Quando lhe diz que

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irá à montanha, à solidão, ela o convence de que poderia fazer algo melhor doque morrer na solidão. Anuncia-lhe que vai encher a casa de meninos pobres,os que vivem nos casebres à margem do fiorde, a quem Alfredo havia queridomatar. Ela lhe diz “mas não pensas que esses meninos não ajudaram Eyolf asalvar-se quando caiu no fiorde porque nós nunca fizemos nada por eles?”(p.82). Assim decidem dedicar sua vida a oferecer-lhes sua casa, os brinque-dos de Eyolf, a fazer algo por eles. Reparação altruísta, como tentativa detransformar a tragédia em drama? Ibsen não era tão ingênuo. O último diálogode Rita e Alfredo diz:

Rita: E para onde convém olhar, Alfredo?Alfredo Allmers: Para cima.Rita (com um gesto de conformidade): Sim, sim…, para cima.Alfredo Allmers: Para cima…, para os cumes, para as estrelas. Epara o grande silêncio (Ibsen, 1966,p 101).

A morte está à espreita

A psicanálise propõe outra resolução. Sabemos que o Homem dos Ratosconcluiu sua análise com Freud, o que lhe serviu para liberá-lo do mandato deseu pai e de sua mãe, cortar com a que teria sido a repetição trágica da história,e casou-se com a prima pobre. Lamentavelmente morreu, como tantos milharesde jovens, como soldado na Primeira Guerra Mundial. Mas é certo que pagou adívida simbólica. A diferença entre tragédia e drama é que o drama tem resolu-ção, a tragédia nos propõe um destino inexorável, progride de modo inexorávelpara seu fim. Uma psicanálise, se tem desenvolvimento adequado, propõe umcorte que poupa a tragédia. É a maneira de recordar o aforismo lacaniano: o quese expulsa do simbólico, retorna no real. Eu o digo mais forte: o que se expulsado simbólico, retorna pior no real. Na análise do Homem dos Ratos, se nãoretornou pior foi porque a análise permitiu esse corte.

REFERÊNCIASFREUD, Sigmund. A propósito de un caso de neurosis obsesiva: el Hombre de lasRatas [1909]. In: ______. Obras completas. Buenos Aires : Amorrortu Editores, 1980.Tomo X.______. Psicopatologia de la vida cotidiana [1901]. In: _______. Obras completas.Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1980. Tomo VI.GRIMM, Jacob e GRIMM, Wilhelm. El flautista de Hamelin [1816/18]. Disponível em < http://www.flautistico.com/articulos/el-flautista-de-hamelin-grimm>. Acesso em: 3 jan. 2009.IBSEN, Henrik: El pequeno Eyolf [1894]. In: _________. Teatro completo . Madrid:Ediciones Aguilar, 1966.

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LACAN, Jacques. El seminario de Jacques Lacan, libro 8: la transferencia [1960-61].Buenos Aires: Paidós, 2003.______. Le seminarie, livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975.

Recebido em 11/11/2009

Aceito em 30/11/2009Revisado por Sandra Torossian

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TEXTOS

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Resumo: O presente texto, a partir da obra Em Busca do Tempo Perdido – NoCaminho de Swann, narra o desdobramento de uma cena cotidiana que se pas-sa numa família aristocrática. Temos como ponto-chave dessa narrativa o ciúmeque Swann experimenta em relação à Odette. A partir desse sentimento, apare-ce o desejo e se desenrola uma relação amorosa, que os inscreve simbolica-mente, por meio do casamento. É isso que a autora analisa, tomando o ciúmecomo componente essencial e cuja trajetória finalizaria no enigma do amor e dodesejo.Palavras-chave: ciúme, desejo, amor.

OBSERVATIONS ON A LOVE OF SWANN

Abstract: This article, based on In search of the lost time – On Swann’s way,narrates the unfolding of a daily scene that takes place in an aristocracy family.As key point of this narrative there is the jealousy Swann feels towards Odette.From that feeling, comes desire and a love relationship develops, which marksthem symbolically, through marriage. That is what the author analyses, takingjealousy as an essential component, whose trajectory would end in the enigmaof love and desire.Keywords: jealousy, desire, love.

1 Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard (UFRGS).Todas as citações em português são extraídas da obra PROUST, Marcel. No caminho de Swann.Tradução de Mario Quintana. 20. ed. São Paulo: Globo, 1999; a ela se refere a indicação daspáginas.2 Psicanalista, Psiquiatra; Membro da Association Lacanienne Internationale (ALI).

ALGUMAS OBSERVAÇÕESACERCA DE UM AMORDE SWANN1

Martine Lerude2

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 87-101, jul./dez. 2009

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Isolado do restante da obra Em busca do tempo perdido, No caminho de Swann(Proust, 1999) poderia ser lido como um percurso amoroso que teria o ciúme

como componente essencial e cuja trajetória finalizaria no enigma do amor e dodesejo nesta frase famosa:

E com esta grosseria intermitente que lhe voltava logo que ele nãomais sofria e que rebaixava o nível de seu caráter moral, exclamouconsigo mesmo: “E dizer que estraguei anos inteiros de minha vida,que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher quenão me agradava, que não era o meu tipo” (Proust, 1999, p. 365).

Tal conclusão parece deixar Swann livre para mais uma rodada, para umnovo amor. Nada disso; não se trata de um amor, mas do Amor de Swann, e asequência imediata de Em busca do tempo perdido nos oferece um Swanntransformado, pai de Gilberte, marido de Odette, além de toda uma parte deÀ sombra das raparigas em flor dedicada à senhora Swann, a ex-mundana,que se tornou excelente esposa, uma mulher “rodeada por sua toalete comopelo aparato delicado e espiritualizado de uma civilização”, que fascina onarrador.

O ciúme de Swann assume então valor bem diferente e se inscreve – eisnossa hipótese – como um momento decisivo de ruptura, como tempo deflutuação a partir do qual o sujeito, Swann, vai poder realizar um ato, envolver-se,não ser mais exatamente o mesmo; ele deixará então de ser “o filho Swann”.

Para além da descrição sutil dos fenômenos, o ciúme de Swann nosinteressa:

– porque levanta a questão do casamento, isto é, a questão do ato e dadoação simbólica do nome. Esse nome, que ele não pode exaltar, e o título quelhe falta percorrem implicitamente todo o romance.

– porque a posição de Swann em relação ao conhecimento e ao reconhe-cimento do outro se refere ao ceticismo e permite situar a dimensão da alteridadedo outro sexo do ponto de vista masculino.

– e porque essa posição cética, inteligente, tem analogia com a neuroseobsessiva.

Como esse ciúme vem se inscrever em relação ao ceticismo?

De início, um rápido olhar sobre o romance

Seu pano de fundo é o salão da casa dos Verdurin, verdadeiro organismosocial, cujas discussões são reguladas por afirmações peremptórias e por certatolice.

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Odette de Crecy é uma das raras mulheres assíduas; ali ela se beneficiade favores e de certa promoção social. Odette é apresentada ao leitor quasecomo uma mundana, uma cortesã, “sem grande inteligência e com pouca virtu-de”. É uma mulher sustentada ou já o foi. Seu passado é vago, incerto, suafortuna se baseia em uma carreira sexual junto aos homens. Ela “é charmosa,seu corpo é admirável”. Demonstra saber lidar com os homens: Proust insistena descrição de sua toalete, de seus enfeites e de seu estilo britânico. É a únicamulher a suportar a ortodoxia e o radicalismo dos Verdurin.

Como nesse ponto eram as mulheres mais rebeldes do que oshomens [...], foram levados a rejeitar sucessivamente todos os“fiéis” do sexo feminino (Proust, 1999, p. 187).

Sua beleza não é do tipo que agrada a Swann:

[...] ela se afigurara a Swann não por certo sem beleza, mas de umgênero de beleza que lhe era indiferente, que não lhe inspiravanenhum desejo, que até lhe causava uma espécie de repulsa física(Proust, 1999, p. 194).

É uma mulher livre, sem homens, sem família, uma espécie de duplofeminino de Swann. Assim como ele, teve muitas relações amorosas. Swann éum sedutor, enquanto ela conduz o jogo e procura conquistá-lo. Ele a deixa agir,sem reagir. Mesmo não lhe agradando, Odette se inscreve progressivamente noquadro da mulher amada e se torna objeto de uma paixão avassaladora, por trêsmotivos:

– em razão de uma imagem estética; de fato, Swann reconhece nelacertos traços da Céfora de Botticelli (Roma, Capela Sistina);

– em razão da vulgaridade das palavras que acompanham Odette – “mu-lher sustentada” – e de tudo que essa fórmula tem de mau gosto, de falsochique, de ignorância mundana, fórmula que a coloca no oposto da imagemestética e que acompanha seu desejo;

– e também em razão de uma imagem sonora, a da “pequena frase” dasonata de Vinteuil que, ao longo de todo o romance, acompanha o personagemde Odette.

Não mais apreciou o rosto de Odette segundo a melhor ou piorqualidade de suas faces ou a suavidade puramente carnal quelhes supunha encontrar ao contato dos lábios, se jamais ousas-se beijá-la, mas sim como uma meada de linhas sutis e belas

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que seus olhares dobravam, seguindo a curva de seu enrolamento,ligando a cadência da nuca à efusão dos cabelos e à flexão daspálpebras, como num retrato dela em que seu tipo se tornavainteligível e claro. Contemplava-a: transparecia em seu rosto eem seu corpo um fragmento do afresco, que desde então procu-rou vislumbrar sempre que estava junto de Odette ou quando ape-nas pensava nela, e embora certamente só se ativesse à obra-prima porque nela encontrava a sua amada, todavia tal parecençaconferia a Odette maior beleza, tornava-a mais preciosa (Proust,1999, p. 220).

Em um primeiro momento, Odette parece conduzir o jogo de sedução.Ela o visita, lhe envia mensagens e ele – “contradizendo os rumores – espera”,não reage e a deixa assumir pouco a pouco um lugar no quadro, instalar-se emsuas convicções estéticas. “Eu te peço para pedir” parece ser sua posição.Assim, ele se apresenta como o que não é: um tímido respeitoso de uma mu-lher, enquanto Proust o descreve como um galante que sabe forçar os favores.Ela o corteja: “Eu nunca tenho nada que fazer! Sempre estou livre, e para você oestarei sempre”; leva-o à casa dos Verdurin, “Nada me diverte tanto como fazercasamentos”, diz o pintor ao recebê-los. Todo um jogo de trocas de cartas, devisitas, de espera começa entre eles, jogo regulado por uma surpreendentefalsa moralidade (ainda que ambos sejam libertinos).

Swann é um homem refinado, mundano, reconhecido, que evolui no me-lhor clã e que gosta das mulheres. Para conquistar uma mulher, seja duquesaou criada, está disposto a fazer uso de todas suas relações, desentender-secom amigos; seu laço social é fundado nas mulheres. Ele gosta daquelas debeleza bastante vulgar, “A profundeza, a melancolia da expressão, lhe gelavamos sentidos, que despertavam, ao contrário, ante uma carne sadia, abundante erosada”.

Ainda que seu nome seja comum e não tenha nenhum título, é recebidonos melhores salões da aristocracia. É um cético, inteligente, e seu ceticismose manifesta por suas tendências à denegação. Deste modo, enquanto Odettetem a fama de não ser nem virtuosa nem inteligente, contrariando esse julga-mento, ele a trata como uma mulher virtuosa (o que surpreende Odette e todo omundinho dos Verdurin) e inteligente, expondo-lhe teorias musicais. Isso nãosignifica que a julgue inteligente ou que a creia virtuosa, mas ele saboreia ainversão dos julgamentos.

E se gosta do mau gosto de Odette, se não a contradiz em sua concep-ção de elegância (como tampouco corrige seus erros), é porque considera queo mau gosto de Odette se iguala a seu gosto refinado e que o senso de elegân-

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cia que ela tem talvez não seja mais inepto do que o seu próprio, é um cético.Voltaremos a isso.

Tendo aliás deixado enfraquecerem as crenças intelectuais da suajuventude, e havendo o seu cepticismo de mundano penetrado atéelas, sem que o soubesse, pensava (ou pelo menos o pensaratanto tempo que ainda o dizia) que os objetos do nosso gosto nãopossuem em si mesmos um valor absoluto, que tudo é questão deépoca, de classe, tudo consiste em modas, as mais vulgares dasquais valem tanto como as que passam por mais distintas (Proust,1999, p. 241).

O pano de fundo de seu vínculo com Odette é o discurso que anima o clãdos Verdurin. Cada membro desse clã “tem um lugarzinho” à mesa, seu lugar.Swann vai lá todas as noites, tarde, após ter encontrado sua amante, umajovem operária; sua existência é clivada, bem organizada. Ao contrário de sualiberdade sexual respectiva, Swann e Odette percorrem um Mapa da Ternura3

regulado pelo estilo obsessivo de Swann: ele não se move, não faz um gesto,não vai ao fim do que sugere e suscita no outro.

Assim, o simples funcionamento daquele organismo social queera o pequeno “clã” proporcionava automaticamente a Swann en-contros cotidianos com Odette e permitia-lhe fingir indiferença de aver, ou até desejo de não mais a ver, que não lhe trazia grandes riscos,visto que embora lhe tivesse escrito durante o dia, forçosamente averia à noite e a conduziria até em casa (Proust, 1999, p. 222).

Odette fica perplexa e interpreta o comportamento de Swann como o deum ser ideal e tímido.

Cá entre nós, disse a Sra. Verdurin, acho que Odette faz mal e seporta como uma verdadeira tranca. [...] Como está sem ninguémno momento, eu lhe disse que deveria deitar-se com Swann (Proust,1999, p. 223).

3 Carte du Tendre: mapa de um país imaginário, na obra de Madeleine Scudéry (1607-1701),cujos sítios simbolizam as diferentes fases dos sentimentos amorosos (N. de trad.).

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Ela precisa apenas estar presente todas as noites na casa dos Verdurin,no lugar e no horário determinados. Swann a seduz, demonstra-lhe seu interes-se, mas não conclui o laço sexual, embora acene para ele, tratando-a com umrespeito que aparentemente contradiz seu desejo. Trata-se de uma estratégia?De uma denegação obsessiva ou de uma posição cética de suspensão do julga-mento? Insidiosamente, Odette se instala no quadro, ela é ao mesmo tempobela e carnal, tal como a Céfora de Botticelli, primeiro pintor das virgens e dasmulheres de carne velada.

Assim, Swann só se interessa por Odette porque ela vem ocupar umlugar determinado, por seus traços estéticos e pela promessa de gozo quea expressão “mulher sustentada” nele suscita. Ele não tem por ela nenhumacuriosidade, nem outro interesse. É quando Odette vem a faltar nesse lu-gar, que é também um lugar à mesa, que o amor e o ciúme se desencadei-am.

O desencadeamento do amor e do ciúme é simultâneo e brutal: umanoite, por ter se demorado com a jovem operária, Swann chega mais tarde emcasa dos Verdurin. Odette fora embora. Ela falta a seu lugar, e Proust voltarácom frequência ao momento que ele considera decisivo:

O mal se declarara na noite em que não a tinha encontrado nosVerdurin. Talvez a essa angústia devia Swann a importância queOdette tomara para ele (Proust, 1999, p. 231).

É por faltar ao lugar que ele lhe atribuiu, por sair da composição, indican-do um espaço aberto e desconhecido (ele parte à sua procura em Paris), quesurge a angústia e que ele consegue enfim, ao reencontrá-la, realizar um ato, nocaso, o ato sexual – isto é, ser homem e reconhecê-la como Outro sexo, tratá-la como mulher. Desse modo, parece que, para possuí-la sexualmente, paraconcluir, ele deva necessariamente passar pela perda da imagem, pela realiza-ção de sua ausência, pela abertura da composição.

Mais tarde, depois de Odette ter se tornado sua amante, a relação delesprossegue de acordo com um recorte preciso do tempo, seus encontros sãosempre sustentados pelo fundo social dos Verdurin e ordenados graças às mo-dalidades de clivagem, de defesa que Swann aplica.

Novamente, seu amor é bem regulado, ele a encontra todas as noites,acompanha-a em casa, passa um tempo com ela, depois volta para casa após“fazer catleia”. Swann continua sua vida mundana aparentemente sem grandesmudanças. No entanto, gradualmente, ele faz em sua vida certo número decortes de ordem material, de renúncias que não lhe são solicitadas. “Ele sacri-fica interesses intelectuais e sociais àquele prazer imaginário” (Id., ibid., p. 232)

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e começa a dar dinheiro a ela. De Odette, de sua pessoa, de seus interesses,de sua vida, ele não quer saber nada:

Só ia vê-la de noite, e nada sabia do emprego do seu tempo duran-te o dia, como nada sabia de seu passado, de modo que lhe faltavaaté esse insignificante dado inicial que, permitindo-nos imaginar oque não sabemos, nos dá desejos de o conhecer... Sorria apenasalgumas vezes ao pensar que, anos atrás, quando não a conhecia,lhe haviam falado de uma mulher que, se bem se lembrava, deviasem dúvida ser ela. Como de uma cortesã, uma mulher sustenta-da...” (Proust, 1999, p. 234).

Ainda que reconheça em Odette as mulheres pintadas por Botticelli, aponto de dar a seu pescoço, por exemplo, a inclinação do quadro ou de cruzarsuas mãos à maneira de uma virgem, ainda que a ame de acordo com umconhecimento estético, seu desejo está ligado a esta fórmula insistente de “mu-lher sustentada”.

Odette realiza a imagem narcísica da dama, ao mesmo tempo que fazsurgir o caráter “fundamentalmente perverso” das mulheres sustentadas, mas éao preço de uma negação de sua pessoa, de sua subjetividade que ela seinscreve tão perfeitamente na construção de Swann. “E a vida de Odette, duran-te o resto do tempo, como ele não conhecia nada a seu respeito, lhe apareciacom o seu fundo neutro e sem cor. ..” (Id., ibid., p. 235).

É preciso que um amigo intervenha e que lhe relate ter cruzado comOdette para que repentinamente ele perceba “[...] que Odette possuía uma vidaque não era inteiramente dele” (Id., ibid., p. 235).

Após esse período preparatório, o ciúme explode com violência em ummomento de precipitação: em um jantar na casa dos Verdurin, Odette convida oConde de Forcheville, que se instala à mesa ao seu lado; honrado por MadameVerdurin, que se arrumou com muito esmero, Forcheville ocupa junto a Odette olugar habitualmente atribuído a Swann. O ciúme se expressa então pela associ-ação de duas ideias. Primeiro, uma denegação que invoca imediatamente aideia de casamento:

Por certo não tinha mínima veleidade de ciúmes... e quando Brichot,começando a contar a história da mãe de Branca de Neve “queestivera durante anos com Henrique Plantageneta antes de casarcom ele”, quis que Swann corroborasse, dizendo-lhe: “não é, Sr.Swann?”. (Proust, 1999, p. 248).

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O ciúme irrompe quando Odette não está mais no mesmo lugar, quandosurge um duplo, um semelhante (Forcheville e Swann frequentam o mesmomundo), mas semelhante com nome, com título.

De repente, a vida de Odette se mostra a ele com tudo o que tem dedesconhecido, como uma possibilidade infinita de gozos outros, sem ele, comForcheville, com outros homens – primeiro, todos os homens, depois, as mulhe-res, ou seja, como um lugar inapreensível em que gozos fora de seu conheci-mento, de seu alcance, de seu próprio imaginário se encadeariam infinitamente.Ela não é “inteiramente dele”, assim como a sonata de Vinteuil, da qual eleapreende apenas um fragmento, “a pequena frase”. E o ciúme consiste em umesgotamento da equivocidade da língua, dos fenômenos: tudo é signo, cadapalavra, cada situação indica que Odette está em outro lugar, com um outro, emoutro gozo, que ele ignora, do qual é privado, amputado. No fundo, a vida deOdette não lhe é mais desconhecida agora do que antes, mas é um “Desconhe-cido” reconhecido como tal, que é preciso então preencher infinitamente. A ver-dade se torna sua paixão, diz Proust, mas de que verdade se trata? Verdade dadistribuição do tempo? Verdade sobre o gozo? Ela goza? E com que goza? Sãoas perguntas masculinas usuais.

Imaginando Odette nos braços de outros homens, ele tenta desespera-damente trazê-la de volta para a composição da qual ela escapa, tenta manteruna sua imagem narcísica de virgem e de puta, sem espaço desconhecido,Outro. Podemos entender essa paixão pela verdade como a questão impossívelsobre o gozo feminino e como o esforço infinito para que ela permaneça essamulher, conforme a imagem narcísica ideal que a aliena.

E, para garantir essa imagem total, ele paga com joias, com dinheiro.Não há nem troca, nem doação, mas um pagamento que jamais é suficiente.

O amor de Swann parece ser essencialmente um amor ciumento. E Proustdescreve perfeitamente o tecido de signos no qual o sujeito se debate. Ou omundo é desinvestido, inexistente, ou ele não deixa de falar do outro. O apaixo-nado, o ciumento não é mais o mesmo; ele é submetido a uma espécie deloucura que o exclui do senso comum. Homens e mulheres podem se reconhe-cer no ciúme de Swann, no desvio de sentidos que ele cria, no túnel em que osujeito entra e no qual coloca seu ser à prova. Verdadeiro esgotamento do ser, ociúme só interessa pelas saídas que levar o sujeito a encontrar. Entretanto, ociúme não parece ter valor de experiência. Para Swann, ele constitui um verda-deiro “fanatismo”, fanatismo privado, individual, suscitado pela dimensão intole-rável da alteridade de sua parceira, que lhe lembra sua própria divisão.

Ele instala Odette em um lugar que organiza seu pensamento, suas in-terpretações, sua língua. Ela é colocada no lugar do Outro enquanto desconhe-cido, no lugar do gozo, do qual nada se sabe, no lugar da verdade impossível. É

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sua imagem de “virgem-mulher sustentada” que, tal como uma nova metáfora,regula agora as relações de Swann com o mundo. Ela é tudo o que ele não é, eele, em oposição, se apequena, fenece. Swann paga em dinheiro, em joias, emoferendas, faz dela uma mulher sustentada (ele a humilha, saberemos maistarde) e nada ouve de sua demanda.

E aquela voluptuosidade de estar enamorado, de só viver de amor,de cuja realidade outrora duvidava, o preço que em suma lhe custa-va, como diletante de sensações imateriais, vinha ainda aumentar-lhe o valor... (Proust, 1999, p. 260).

Swann dá, mas sem fazer nenhuma doação. A dialética da troca estáagora suspensa, porque não é isso e porque seu ciúme é uma verdadeira nega-ção da alteridade, isto é, da divisão subjetiva (a sua própria, a de Odette). As-sim, ele dá sem dar verdadeiramente nada que o comprometa e é o dinheiro deseu pai que, no fundo, ele redistribui.

Então, de súbito, indagou se aquilo não seria precisamente“sustentá-la” (como se, de fato, essa noção de sustentar se pu-desse inferir, não de elementos misteriosos ou perversos, maspertencentes ao fundo cotidiano e privado de sua vida, tal comoaquela nota de mil francos, doméstica e familiar...) e se não sepoderia aplicar a Odette, desde que a conhecia, aquela designa-ção de “mulher sustentada” que julgara tão incompatível com Odette(Proust, 1999, p. 261).

Quando surge a ideia do casamento, ela é imediatamente rejeitada.

Ah! Se o destino houvesse permitido que Odette e ele não tives-sem mais que uma só morada, que Swann, estando em sua casa,estivesse também em casa dela... e se o seu dever de bom espo-so o obrigasse... (Proust, 1999, p. 289).

Logo abandona essa hipótese, temendo perder seu mal, sem o qual elenão seria mais nada.

Ao longo de todo o texto, o ciúme de Swann se encontra relacionado adois termos: a inteligência e o conhecimento. Enquanto Swann é descrito comoum homem inteligente, Odette é apresentada como uma “famosa tranca, semgrande inteligência”. Proust propõe um paradoxo: é Swann, o homem inteligen-te, que vai se alienar em uma tolice incompreensível para os outros (“O quê? Por

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essa mulher, que nem mesmo é inteligente?”, dizem os comentários), ao passoque Odette tem a inteligência da neurose de seu parceiro e sabe utilizar seusintoma.

Os significantes conhecimento e reconhecimento balizam o texto. Ainteligência e o conhecimento constituem os fundamentos do ceticismo deSwann. Para Proust, como para Montaigne, a dúvida é a inteligência, é arecusa do dogmatismo. O ciúme, ao contrário, efetua uma verdadeira inversãodessa posição: ele constitui uma verdadeira humilhação da inteligência, umarecusa em reconhecer o outro, ele enceta um processo de interpretaçãodogmática do outro. O ceticismo inteligente cede o lugar a um fanatismo indi-vidual bestificante.

Um pequeno desvio pela questão do ceticismo

Skepis significa exame, em grego. O uso da palavra ceticismo sofreuinúmeros contrassensos (em filosofia) e seu sentido habitual designa uma atitu-de negativa do pensamento, uma mente hesitante, incapaz de se pronunciarsobre algo; é um erro comum tomar o ceticismo por uma posição de recusa, deretraimento. O filósofo cético não se permitiria nenhuma posição radical, inclusi-ve dizer “sei que nada sei”.

Seu fundador, que não deixou textos, é Pirro de Élida (fim do século IVa.C.). A filosofia cética é conhecida graças aos historiadores gregos DiógenesLaércio (século II a. C.) e Sexto Empírico, que Montaigne leu e traduziu, e,evidentemente, graças aos historiadores latinos Cícero e Aulus Gellius.Diógenes Laércio e Sexto Empírico estabelecem distinção muito estrita entreos acadêmicos que sustentam a impossibilidade de nada conhecer (Cícerodefende essa ideia) e os céticos, tais como Pirro, que tomam a vida e a expe-riência como critérios de sua conduta e para quem o conhecimento é relati-vo.

Os acadêmicos são a fonte daqueles que, como Sêneca, Santo Agosti-nho, Hume, Kant ou Hegel, apresentam o ceticismo antigo como um niilismoradical, que leva à indiferença e à inação. Em contrapartida, para Sexto Empíricoou Diógenes Laércio, o ceticismo é uma filosofia do conhecimento e da experi-ência. Os céticos são então pesquisadores que praticam a suspensão do julga-mento (epoché), o relativismo. São filósofos do inconveniente, da solução nãoencontrada. Eles não recusam a ciência e o saber, são, ao contrário, solidáriosdo desenvolvimento da física da percepção. Eles têm o conhecimento dos fenô-menos (o conhecimento do real), mas este permanece relativo ao observador, àépoca, à sua cultura, isto é, parcial, incompleto, sempre marcado por uma di-mensão desconhecida. A dialética é o instrumento de uma terapêutica destina-

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da a dividir a alma em duas partes (o lugar da alma em que se exerce a dúvidaé a memória), isto é, a impedir o juízo de dogmatizar, confiando nos sentidos(sensações), ou na vida, na experiência. Para o cético grego, o conhecimento érelativo, subjetivo, diríamos. Os fenômenos jamais são apreendidos senão par-cialmente, não há conhecimento total universal, mas um real opaco, desconhe-cido. Mesmo que o conhecimento progrida, mesmo que o conhecimento permi-ta vencer o real, sempre subsiste o desconhecido.

O modelo cético de Montaigne, que Proust conhecia, é estritamentepirrônico. Sua convicção é aquela do relativismo universal. Ele está intimamentepersuadido de que o sujeito é incapaz de ultrapassar a singularidade de suasimpressões, de seus sentidos e de sua imaginação para alcançar um conhe-cimento universalmente válido. O conhecimento é limitado, relativo, dependede sua posição e não pode valer para todos. Montaigne jamais praticou odesespero acadêmico, mas “ele foi pirrônico de ponta a ponta”, ao julgar que ahonestidade o forçava a falar de maneira singular como ele via o mundo atravésde si mesmo, ao invés de adotar um ponto de vista universal definitivo edogmático sobre o mundo. Por essa razão, declara ser ele mesmo a matériade seu livro, ou seja, que todo conhecimento é relativo a um sujeito, a senti-dos, a uma imaginação particular, o que em termos lacanianos poderia serexpresso por: não há outra realidade além da realidade psíquica, aquela recor-tada pela fantasia.

O ceticismo de Swann, de Proust, filia-se a Montaigne. A pouca inteligên-cia de Odette se iguala à inteligência de Swann. O mau gosto de Odette seiguala ao gosto sutil de Swann. Sua ideia de chique talvez seja tão verdadeiraquanto a de Swann.

Observemos que o ceticismo antigo exalta o espírito de tolerância (eSexto Empírico foi traduzido para o francês no início do século XVII com essapreocupação) e que a relatividade faz parte de nosso saber científico. Einstein eHeisenberg revigoraram o relativismo de Pirro.

Deve-se a Santo Agostinho o contrassenso absoluto no nível do ceticis-mo. De fato, ele inaugura a dúvida vivenciada. Não se trata mais de separar emduas partes as funções da alma. A unidade do espírito humano confere à dúvidaa dimensão total de um desespero integral, e a dúvida se torna então a experiên-cia crucial no percurso cristão: é um momento de negação que transforma osaber humano em certeza fundada na fé em Deus. Para Pascal, o ceticismotem função apologética: humilhar a inteligência, rebaixar o saber humano, mani-festar a miséria do entendimento abandonado por Deus. Assim, a busca céticadeixa de ser, com os pensadores cristãos, a busca zetética dos meios de sus-pensão do julgamento e se torna o momento de busca de uma verdade que nãose possui ainda e que a ciência não pode possuir. Dá-se então um deslizamento

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do sentido grego da busca cética para o sentido cristão de uma busca da verda-de, una, integral, a de Deus. O ceticismo grego acabou se desviando, de certomodo, para uma espécie de dogmatismo, até mesmo de fanatismo cristão, quevisava a estabelecer Deus como termo último do conhecimento.

Voltando a Swann

Proust o descreve várias vezes como um cético (Id., ibid., p. 215, 250,353). Ele suspende seu juízo, aprecia a denegação, sabe que o juízo é relativoà imaginação, ao lugar social, à língua, às tradições, à cultura a que se perten-ce. É inteligente, mas o ciúme vem inverter essa posição, ele se torna desespe-rado, embrutecido, com uma ideia fixa, em busca de uma falsa verdade, engajadoem uma verdadeira negação do conhecimento, do reconhecimento do outro e dodesconhecido irredutível que o constitui. Protege-se da alteridade de sua parcei-ra, que nada mais é do que a expressão de sua própria divisão. Odette, emcompensação, entende seu parceiro, sua neurose obsessiva, sua clivagem, suadistância. Distanciando-se, ela sabe se apegar a Swann de maneira bem maisradical do que com todas suas coqueterias. Desse modo, o ciúme, ao contrárioda dúvida inteligente, instala um fanatismo individual privado. Qual é portantosua função?

Antes de conhecer Odette, “Swann gozava da companhia de mulherescada vez mais grosseiras, a sedução de obras mais e mais refinadas...”(Id.,ibid., p. 241).

Odette alia o objeto obsceno do desejo à estética da pintura antiga. Elacarrega em si – sem o saber – uma representação da clivagem de Swann. Ociúme corresponderia então ao momento em que é identificada ao objeto causado desejo, ao passo que, no amor, ela se confundiria com a imagem perfeita demulher de Botticelli. Mas talvez as coisas não sejam tão simples.

Pode-se pensar que Swann instala Odette em posição de ídolo e que, aomesmo tempo, ela se torna uma figura da morte, de sua destruição. Com seuciúme, ele tenta desesperadamente manter a unidade dessa imagem da mulherToda (virgem e puta) que organiza seu pensamento de ciumento. O que Swannrecusa, nega, graças ao processo do ciúme, é que Odette possa ser uma mu-lher que não seja inteiramente apreensível.

Abrindo o quadro da fantasia de Swann, Odette designa um outro lugar, umalém da fantasia desconhecida do sujeito, lugar de um outro gozo que ele supõe,mas que a linguagem é insuficiente para dizer. Odette presentifica esse desco-nhecido para além da linguagem, para além do conhecimento de si mesmo e daimagem narcísica. Colocada no lugar do Outro, ela designa um real impossível dedizer, isto é, esse gozo desconhecido que o sujeito Swann submete à dúvida. A

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dúvida em ação no ciúme masculino pode ser entendida como uma dúvida queincide sobre o gozo feminino. Onde o reconhecimento de Deus suspendia a dúvi-da e a delimitava, uma mulher colocada nesse lugar não pode senão relançá-lainfinitamente, a menos que seja trazida, reconduzida para a ordem simbólicaorganizada pelo falo, graças ao casamento, por exemplo, ou por uma outra doa-ção simbólica de seu parceiro, que lhe garanta enfim um reconhecimento.

A metáfora da sonata de Vinteuil é uma ilustração disso. Swann conhecesomente um fragmento dessa sonata, a “pequena frase” (que cabe em 5 notas).Infinitamente repetida, tocada pelo pianista, depois por Odette, ela provoca omesmo prazer, o mesmo gosto conhecido (Id., ibid., p. 338-339).

Quando ele escutar mais tarde toda a sonata, descobrirá fragmentos no-vos, sonoridades insuspeitas, sem nunca conseguir “possuí-la inteira”. A sonataé a metáfora de Odette; nela, como em Odette, ele encontra – para além dofragmento conhecido cujos efeitos antecipa – o desconhecido, o não-todo, ouseja, a dimensão inconsciente de seu desejo, aquele mesmo do qual se defen-de pela denegação famosa “ela nem mesmo é meu tipo.”

Dando-lhe dinheiro, joias, ele lhe oferece tudo salvo o que ela espera, istoé, uma aliança, um nome. Ela pede uma doação simbólica, um reconhecimentodiferente daquele de “mulher sustentada”, mas em troca recebe presentes ape-nas. Mesmo não sendo muito inteligente, ela tem um saber sobre o outro sexo,sobre os homens: sabe exaltar o objeto sexual (cf. a cena de sedução em seusalão, as flores, o penhoar que desliza, os braços desnudos) e, com Swann, elasabe encontrar outras soluções. Com suas ausências e suas viagens, ela dese-nha territórios desconhecidos onde se precipita o imaginário de Swann, seuciúme; ciúme que levará finalmente ao casamento.

Ela sabe finalmente fazer com que ele a despose. Também sabe seposicionar como sua mulher, por exemplo, apontando seu retraimento, o reco-lhimento de sua subjetividade em seu estudo sobre Vermeer. E o ciúme deSwann se resolve por meio de um sonho (o sonho de Napoleão III, que parte comOdette), sonho que faz surgir uma imagem paterna narcísica em relação àquelada dama. A posição cética de Swann não deixa de ter relação com a neuroseobsessiva sobre os pontos seguintes. De fato, se o obsessivo “sofre por devercolocar em discussão todas suas referências, todos seus conhecimentos ad-quiridos e, portanto, por não poder se fiar em nada nem ninguém ao mesmotempo” (Melman), para o cético isso é, ao contrário, um imperativo ético e nãoum sofrimento. A dúvida cética não é um sintoma, não é nem forçada nemimposta, faz parte da dialética filosófica de seu conhecimento do mundo.

Em contrapartida, a neurose obsessiva de Swann parece poder seridentificada em sua relação com o tempo e com o imobilismo (sua divisa pareceser de que tudo permanece no mesmo lugar) e sobretudo em sua preocupação

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de evitar concluir (o ciúme parecendo constituir seu paroxismo), de evitar reali-zar um ato, de pôr um ponto final (por mais provisório que seja). Todos os esfor-ços de Swann – ciúme inclusive – consistem em evitar um tipo de conclusão, decomprometimento. É necessária uma situação de surpresa, de pressa, paraque ele realize um ato. O ciúme fracassa na medida em que o sujeito nãoconsegue, apesar desse processo, evitar dizer sim – ou dizer não. Mesmo queele ganhe tempo, essa política de retraimentos sucessivos, de despojamentodo ser, leva-o necessariamente a se retirar do jogo com o outro, ou a encontrarsaídas, e então uma doação simbólica é necessária, tal como o casamento, afim de restabelecer a dialética. As ofertas diversas que substituem essa doaçãosimbólica que ele recusa a Odette não fazem senão aumentar seu tormento esuas preocupações libidinais.

Conclusão

Que o ciúme possa constituir um tempo para compreender (tempo deloucura, em que a língua perde sua equivocidade, em que o mundo é desinvestido),um tempo necessário para realizar um ato, para reconhecer a negação que estáem jogo (negação de seu desejo, negação da alteridade, negação de sua pró-pria divisão) para chegar ao termo do que se passou com o outro sexo, conclu-são que pode ser um fim, o final de um laço, ou um casamento (o casamentosignificando o comprometimento simbólico do sujeito, e não forçosamente o juizde paz), é com certeza a leitura que propomos desse texto.

No fundo, o ciúme pode ser o caminho paradoxalmente cego e necessá-rio de um reconhecimento do desejo inconsciente que nos conduz e do amor, namedida em que ele se dirige àquilo que, do outro, desconhecemos e nos esca-pa, e que visa um além da imagem narcísica, isto é, a dimensão inconscientedo outro.

No fundo, Swann passa de “eu te amo por este objeto inominável que tuescondes sob teu belo adorno ou atrás de tua bela imagem de virgem de Botticelli,pelo qual pago com dinheiro e múltiplos presentes a um eu te amo por essegozo que não me pertence, do qual nada sei, e te dou meu nome”.

Reconhecer que não se pode saber com o que goza o outro, mas que sepode ouvir e responder a seu desejo por uma doação simbólica, talvez seja esteo ponto a que pode levar o caminho tortuoso do ciúme. Reconhecer o outrocomo sujeito de uma falta, de um desejo, de uma divisão, e não mais como belaimagem, adorno soberbo que cerca o objeto a (o que destina ou à idolatria ou aolixo), não se dá sem danos. O ciúme pode ser então como a passagem obriga-tória que permite se inscrever com o parceiro em uma dialética interessanteinventiva e não somente no fechamento narcísico e mortal.

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Algumas observações...

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Talvez seja necessário que o obsessivo perca a mulher ideal para poderencontrar uma mulher e talvez seja isso que está em jogo nesse tempo desuspensão e de alternância que o ciúme testemunha.

REFERÊNCIASMELMAN, Charles. Le scepticisme et le phenomena. Paris: J.P. Dupont, 1972.PROUST, Marcel. A la recherche du temps perdu. Paris: Bibliothèque de la Pléiade,Gallimard, 1954. Tome I. [Ed. bras.: PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradu-ção de Mario Quintana. 20. ed. São Paulo: Globo, 1999].

Recebido em 07/08/2009

Aceito em 20/09/2009Revisado por Gláucia Escalier Braga e Valéria Rilho

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TEXTOS

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Resumo: O presente artigo discute a relação das fratrias e a irrupção do ciúmeentre os irmãos, como elemento sintomático frente à demanda materna de tota-lidade, especificamente entre gêmeos. Para tanto, utiliza a obra de MiltonHatoum, Dois irmãos, como ilustração dessa questão.Palavras-chave: demanda, ciúmes, fratrias, rivalidade, gêmeos.

BROTHERS

Abstract: This article discusses the relationship of brotherhood and the irruptionof jealousy among brothers as a symptomatic element in response to the mother´sdemand of totality, specifically among twins. The article takes the work of MiltonHatoum, The brothers, as an illustration of this issue.Keywords: demand, jealousy, brotherhood, rivalry, twins.

SER O MANO!

Otávio Augusto Winck Nunes1

1 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia doDesenvolvimento/UFRGS; Mestre em Psicopatologia e Psicanálise – Universidade Paris 7. E-mail:[email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 102-111, jul./dez. 2009

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[...] Nem parece o homemque eu conheci, é como se

fossem duas pessoas,Ninguém é uma só pessoa, tu,

caim, és também abel, [...].José Saramago

Otema das fratrias é sempre atual. E dentre as questões emergentes sobreas fratrias, a do ciúme tem, sem dúvida, lugar privilegiado Não houve tempo

em que o desdobramento dessa temática não estivesse presente no interior dasdiscussões familiares, sociais, religiosas ou políticas. Basta lembrar os primei-ros irmãos de que se tem notícia: Caim e Abel, filhos de Adão e Eva. Passagemevocada pelo mais recente romance de Saramago (2009). De maneira maisampla, a discussão sobre as fratrias passa pelos ideais da Revolução France-sa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Pelos “irmãos” e pelas “irmãs”, tantodas congregações religiosas quanto da maçonaria. Até os atuais “mano” ou“brothers (“brô”) das tribos e, mesmo, no interior de muitas organizações comer-ciais, como se todos pertencessem à mesma família2 .

Na psicanálise não seria diferente. Talvez, não ainda em toda a complexi-dade teórica que o tema comporta, mas sem dúvida, muitas associações livressobre o divã giram em torno dessa caudalosa temática.

Freud ocupou-se do tema das fratrias em diversos textos, de maneirasdistintas. Em Sobre as teorias sexuais infantis, texto de 1908, Freud ([1908]1976) indicava que o conhecimento adquirido em relação à diferença3 sexual,inicialmente, passava pelos pais, e poderia acontecer junto aos irmãos. Totem etabu (Freud, [1912-13] 1976) talvez seja o texto mais contundente a respeito dacomplexidade que a relação das fratrias apresenta na psicanálise. É para as-sassinar o pai, o momento em que os irmãos se reúnem para formar uma novaunidade, rebelando-se contra a autoridade paterna – única –, resultando numanova forma de relação com o estabelecimento da lei.

Por sua vez, no texto de Freud ([1922] 1976), Alguns mecanismos neuró-ticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo, encontramos a indicaçãoprecisa a respeito dos processos psíquicos que estão envolvidos na questão

2 O recente blockbuster Avatar, de James Cameron (2009), começa pela substituição, na missãoespacial, de um irmão gêmeo morto, pelo outro, vivo. Sem falar da atual novela da rede Globo,Viver a vida, de Manoel Carlos (2009-2010), em que a substituição de um irmão gêmeo, pelooutro, ocorre no campo amoroso. E ainda o Big Brother...3 A esse respeito, ver o livro A função fraterna, Maria Rita Kehl (org.), Relume Dumará, 2000.

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das fratrias, em sua imbricação com o ciúme. Segundo Freud, os ciúmes divi-dem-se em três camadas: o normal ou competitivo, o projetivo e o delirante.

No ciúme normal ou competitivo, o que está em jogo é a própria constitui-ção subjetiva. Ou seja, o ciúme aparece tanto pela sua origem no complexo deÉdipo, quanto pela relação entre irmãos. Então, na perspectiva da normalidadepostulada por Freud, ninguém escaparia da experiência desse “estado emocio-nal como o luto que pode ser descrito como normal” (Freud, [1922] 1976, p.271); antes de qualquer derivação, o ciúme é constituinte do sujeito, e suaorigem está no mecanismo psíquico por excelência da neurose, o recalque. Orecalque, quando opera na produção da neurose, não extingue o conflito psíqui-co. Ele, apenas, faz com que a expressão do conflito apareça com outra confi-guração. Então, o recalque, produzido a partir do complexo de Édipo, age sobreo ciúme, mas não é capaz de acabar com ele. Ele retorna sob diferentes mati-zes, indo da sua negação (os mais ciumentos, diria Freud) até os mais violen-tos, como vemos em situações-limite, agressão, sequestro e assassinato deparceiros amorosos.

Inicialmente, a origem do ciúme era vista a partir da rivalidade presente narelação vertical entre pais e filhos, em que a disputa pelo amor de um dos genitoresseria a matriz, tendo como objeto de amor privilegiado a mãe, o que desencadeiano filho o ódio pelo seu opositor, o pai. Mas, fez-se necessário pensar, ainda, oque acontece na horizontalidade das relações fraternas, fato que não passoudespercebido por Freud. Nesse mesmo texto, ele evidencia que a rivalidade exis-tente entre os irmãos pelo amor dos pais é, também, própria ao ciúme.

Dessa forma, no ciúme encontramos a estrutura triangular como caracte-rística privilegiada desse afeto. Por seu turno, a inveja, que muitas vezes podeser confundida com o ciúme, apresenta estrutura dual, marcada, no mais dasvezes, pela disputa e pela posse de um objeto. Aliás, tanto um quanto o outro,o último um dos sete pecados capitais, são alvos constantes de críticas pelapresença permanente nas relações amorosas.

Aqui vale a recorrência a um texto de Santo Agostinho (1996), que viveuno século III, na sua obra Confissões, livro I, A infância, pois retrata de maneiraexemplar o que, posteriormente, começamos a entender a partir da psicanálise.

Assim, a debilidade dos membros infantis é inocente, mas não aalma das crianças. Vi e observei uma, cheia de ciúme4 , que ainda

4 As traduções dessa obra não são unânimes, podem-se encontrar tanto ciúmes quanto inveja,nessa passagem, que embora não sejam a mesma coisa, apresentam certa proximidade. Refor-çada inclusive pela origem etimológica da palavra. A referida passagem faz parte de Prognósti-cos de vícios , justamente antes de Como aprendi a falar, capítulo que segue suas Confissões.

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não falava e já olhava, pálida de rosto colérico para o irmãozitocolaço. Quem não é testemunha do que eu afirmo? Diz-se até queas mães e as amas procuram esconjurar esse defeito, não seicom que práticas supersticiosas. Mas, enfim, será inocente a cri-ança quando não tolera junto de si, na mesma fonte fecunda doleite, o companheiro destituído de auxílio e só com esse alimentopara sustentar a vida? Indulgentemente se permitem estas másinclinações, não porque sejam ninharias sem importância, masporque hão de desaparecer com o andar dos anos. É este o únicomotivo, pois essas paixões não se podem de boa mente sofrer,quando se encontram numa pessoa mais idosa (Santo Agostinho,1996, p.45).

Essa passagem é prototípica da experiência do ciúme. Os trabalhos quetratam do tema fazem sistematicamente referência a ela. E é, justamente, apartir dela que Jacques Lacan dá um passo a mais na sua releitura da obrafreudiana, pois Lacan acrescenta a conhecida rivalidade, a identificação mental,com o irmão, como elemento constituinte da subjetividade.

A imagem do objeto perdido para aquele, o irmão, que goza, em seulugar, do corpo materno, como se o lugar fosse seu, é impactante. Como nãoodiar esse outro, que pode ser visto como o desdobramento de si mesmo? Seráessa visão – mesmo mítica – condensadora e aprisionante das relações frater-nas? Enfim, o gozo do olhar é privilegiado no ciúme? Seja pelas evidências queo ciumento encontra como prova cabal da traição sexual ou privilégio amoroso,tanto em seu aspecto real quanto imaginário?

Vemos coincidir na afirmação de Santo Agostinho um dos momentoscruciais da constituição subjetiva, o estágio do espelho. Qual é o principal enfoquedado por Lacan nesse momento? Que, frente à imaturidade biológica, haja umaoperação psíquica que se antecipa ao motor. Se lermos que a alma, apontadapor S. Agostinho, é o equivalente ao conceito de eu proposto pela psicanálise,vemos que há uma coincidência, a alma ou o eu seriam capazes de, apesar dadebilidade dos membros físicos da criança, depositar no olhar toda a cargaemocional que a experiência da amamentação do rival desperta.

Lacan ([1938] 2003), no texto Os complexos familiares, utiliza a passa-gem acima para ilustrar a experiência do ciúme, em seu estado embrionário.Nele, Lacan, retomando Freud, apresenta a instituição familiar como o núcleo detoda a construção subjetiva. Divide o texto em três partes, que dizem respeito àrelação entre o sujeito e a família. O momento inicial é o complexo de desmame,o segundo, o complexo de intrusão, e a seguir o complexo de Édipo. Ou seja,apresenta o mais básico da intricada experiência humana para a psicanálise.

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Mas, para o que interessa aqui discutir, irei me deter no segundo momen-to, no complexo de intrusão, o recorte que me parece necessário paraproblematizar a questão do ciúme entre irmãos, especificamente, de gêmeos5 .Lacan pergunta-se, ao final do complexo de intrusão, se a fórmula que ele apre-senta seria confirmada pelo estudo de gêmeos6 , mas, afinal, de que intrusão setrataria nos casos de gemelaridade? Na medida em que o tempo, em toda a suaextensão, em que se dá a intrusão é aparentemente suprimido ou suspenso?

Referimo-nos, normalmente, a gêmeos quando se fala de crianças nasci-das no mesmo parto, o que poderia aparentar ser um nascimento no mesmotempo, mas não é precisamente isso que ocorre. Então, como acontece emoutras fratrias, estabelece-se uma série, o que nasceu primeiro e o que nasceuapós; o primeiro e o segundo, ou o primeiro e o último, o primogênito e o caçula.Enfim, a linguagem bem que tenta recobrir a ordem que a natureza propõe aoshumanos, e nessa tentativa acaba produzindo seus efeitos. O que poderia sertomado como igual, desde o início já se mostra diferente.

Inventariando o imaginário familiar, não é difícil encontrar a ideia de que,naquelas famílias em que existam irmãos, particularmente gêmeos, incida so-bre eles a expectativa de que sejam amigos/companheiros/camaradas. Ou ain-da, muito frequentemente, complementares. Mais especificamente, a culturafamiliar invariavelmente espera que os irmãos tenham uma relação marcadapela ausência de conflito, pela ausência de rivalidade, por vezes pela ausênciade diferenças, por uma identificação completa. Pois bem, essa não parece sera característica das relações fraternas, pelo menos de um bom número delas.Mas, o que será que acontece nas relações fraternas em que a consanguinidadenão assegura a esperada união? As respostas às demandas de apaziguamentoainda podem se tornar as relações fraternas mais belicosas?

Atribui-se a consanguinidade como sendo um dos limites reais aos quaisé preciso deparar-se na família. Por outro lado, o nome de família poderia servircomo o grande “guarda-chuva” que acoberta as divergências existentes no inte-rior das mesmas, privilegiando a filiação. O problema é que nem um nem outroconseguem garantir a inexistência de diferenças brutais nas relações humanas,pois elas precisam de uma costura que garanta a manutenção dos laços, permi-

5 A etimologia latina da palavra gêmeo remete a duplo, dobrado, duplicado.6 A ciência, em geral, deposita no estudo de gêmeos expectativas muito grandes em relação àconfirmação de hipóteses, pois não são poucos os protocolos científicos que se utilizam deestudos com gêmeos, em especial, univitelinos, por causa da carga genética idêntica, o quepareceria esclarecer muitas questões.

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tindo a aproximação, sem fusão, e o afastamento sem ruptura. Ou seja, osregistros do real, simbólico e imaginário exercem suas funções sem que ocorrao predomínio de um sobre o outro.

Então, é no interior da cultura familiar que encontraremos os elementosque poderão fornecer algumas pistas para elucidar algumas dessas questõesque aparecem com bastante frequência na clínica, e que não é matéria vencidaem outros âmbitos.

Assim, gostaria de propor uma apreciação sobre o tema a partir de umrecorte literário. O texto é o já clássico romance Dois irmãos, de Milton Hatoum,editado em 2000. Texto e autor que ganharam inúmeros prêmios, tal a pertinênciae apropriação que a leitura do romance suscita.

Na introdução do livro, poder-se-ia dizer o seu ponto zero, a questão quecentraliza o romance. Zana, mãe dos gêmeos Yaqub (o primogênito) e de Omar(o caçula), está no leito de morte, agonizando, e enuncia em árabe (sua línguamaterna) a pergunta: “Meus filhos já fizeram as pazes?7 ” (Hatoum, p. 10). Aresposta é o silêncio. A passagem é contundente.

A partir dessa introdução, o romance passa a ser dividido em capítulos.Em cada um deles é remontada toda a história dessa família, de origem libane-sa, estabelecida em Manaus, composta por Zana e Halim, os pais; Omar, Yaqube Rânia, os filhos; além dos agregados. O narrador do livro é filho de um dos doisirmãos: Yaqub ou Omar, com a empregada da família, Domingas, na verdade,para Zana, “eu (referindo-se ao narrador da história) só existia como rastro dosfilhos dela” (Hatoum, p. 28). A dúvida quanto à paternidade é um enigma que nãose resolve. Filho de um ou do outro, dos dois?

Essa dúvida atualiza, na vida adulta, a triangulação (os gêmeos comDomingas), característica das relações de amor experimentadas ao longo davida dos gêmeos com as mulheres. A grosso modo, personificada na infânciaentre os gêmeos e a mãe, Zana; na tenra juventude entre os gêmeos e Lívia,paixão de adolescência. Ou seja, a repetição situa-se entre os dois, horizontal-mente, e uma mulher.

Ou seja, o engate da demanda de amor frente às mulheres parece situar-se sempre no registro da totalidade. Os dois amam ou são amados ao mesmotempo.

7 A conhecida rivalidade entre árabes não é exclusividade desse povo, talvez só acentue eevidencie o que ocorre entre os laços fraternos, como dissemos inicialmente no aspecto político,social ou religioso.

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O desenrolar da história dessa família apresenta, em diversas situações,a questão da rivalidade, que é uma das mais frequentes experiências entreirmãos, colocando em cena o que na maioria das vezes é traduzido pela disputado amor materno. Afinal, de quem a mãe gosta mais? Qual é o seu objeto deamor privilegiado? Questão que reaparece na disputa por Lívia. Esse episódiotermina por marcar a única diferença existente na imagem entre os irmãos: umacicatriz no rosto de Yacub, em forma de meia lua, resultado da briga com oirmão Omar. Momento que antecede e desencadeia a separação dos irmãos, ogrande temor do pai, Halim:

Ele (o pai) teve que engolir o vexame. Esse e outros, de Yacub etambém do outro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera pou-cos minutos depois. O que mais preocupava Halim era a separa-ção dos gêmeos, ‘porque nunca se sabe como vão reagir depois...’.Ele nunca deixou de pensar no reencontro dos filhos, no convívioapós longa separação (Hatoum, p. 12).

Mesmo que essa preocupação estivesse presente desde o início, a sepa-ração torna-se inevitável:

Os pais tiveram de conviver com um filho silencioso. Temiam areação de Yacub, temiam o pior: a violência dentro de casa. EntãoHalim decidiu: a viagem, a separação. A distância que prometeapagar o ódio, o ciúme, e o ato que os engendrou (Hatoum, p. 23).

Pode-se pensar, a partir desse momento, que há uma hesitação entre aperspectiva de uma separação “física” por assim dizer, e a tomada dos gêmeoscomo um só. Como aparece na seguinte passagem em relação ao caçula: “Elenão olhou para ninguém: desfilou com um ar de filho único que não era” (Hatoum,p. 32). Ou nas palavras de Halim, o pai, em conversa com a mãe, Zana: “Elediscordava: ‘Nada disso, tu tratas o Omar como se ele fosse nosso único filho’”(Hatoum, p. 22).

Essa parece ser a grande questão apresentada, a complementaridade, aformação do um, da totalidade. Elemento tão presente nas fratrias (que não serestringe aos casos entre gêmeos), está na perspectiva da demanda maternade que os filhos formem Um, tomados em uma posição objetal. Claro, nos ca-sos da existência da gemeralidade isso aparece com mais força. De qualquerforma, vale lembrar aqui que, em Totem e tabu (Freud [1912-13] 1976), trata-sede algo similar, a reunião dos irmãos para derrotar o pai, e fazer uma nova lei.Mas, diferentemente no caso do livro Dois irmãos, a totalidade formada pelos

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irmãos entraria noutra vertente. Ou seja, a reunião dos irmãos pode ser tomadana perspectiva de ser uma resposta à demanda materna, como enuncia Zana? Aderrota da lei paterna, que poderia provocar a separação dos filhos do corpomaterno? E com isso obstaculizar a dimensão do desejo? “Alguém disse queele era mais altivo que o irmão. Zana discordou: ‘Nada disso, são iguais, sãogêmeos, têm o mesmo corpo e o mesmo coração’” (Hatoum, p. 19).

Lacan ([1938] 2001) insiste, no texto dos Complexos familiares, que nãoé só a rivalidade que está presente no complexo de intrusão, mas também o quechama de identificação mental. Então, não será o apaixonamento dos irmãos, amesma posição tomada frente ao amor como característico dessa identifica-ção? E que na totalização haveria um ideal comum que os congregaria?

Os dois se olharam. Yacub tomou a iniciativa: levantou, sorriu semvontade e na face esquerda a cicatriz alterou-lhe a expressão. Nãose abraçaram. Do cabelo de Yacub despontava uma pequena me-cha cinzenta, marca de nascença, mas o que realmente os distin-guia era a cicatriz pálida e em meia-lua na face esquerda de Yacub.Os dois irmãos se encararam. Yacub avançou um passo, Halimdisfarçou, falou do cansaço da viagem, dos anos de separação,mas de agora em diante a vida ia melhorar. Tudo melhora depois deuma guerra (Hatoum, p. 20).

Desde o estágio do espelho, Lacan anunciava que o reconhecimento daimagem do espelho como outro que não o “eu” mesmo, proporcionado pelo retor-no da imagem, evidenciava que o “eu” e o “outro” se formam ao mesmo tempo.

Vejamos uma passagem do romance:

Agora ele estava de volta: um rapaz tão vistoso e alto quanto ooutro filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmosolhos castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, amesmíssima altura. Yacub dava um suspiro depois do riso, igualzi-nho ao outro (Hatoum, p. 13).

Paul-Laurent Assoun (1998) trabalha a questão das fratrias em duas pe-quenas obras chamadas Frères e soeurs. Encontramos nelas o seguinte escla-recimento a esse respeito:

Mas o que se revela nessa relação especular básica, é que o duplomostra a verdade inconsciente de uma ligação a um irmão. O ir-mão/ou irmã produz o efeito, essa possibilidade existencial que eu

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me confronto com ele – eu me encontro cara a cara com ele – e euperco em dado momento o sentido dos meus limites próprios, ouparece que ele invade meus próprios limites. Na tentação de ante-cipar o duplo com seus gestos e posturas, é o ser mesmo dessedesdobramento que está em causa (Assoun, 1998, p. 22) (Tradu-ção do autor).

Poderia se pensar no olhar materno, em seu caráter demandante, comoo que proporciona o recobrimento existente nas diferenças entre irmãos? Eteríamos como resposta a essa demanda, o aparecimento sintomático e gozantedo ciúme? Ou seja, a construção de uma lógica inconsciente do laço fraterno,que poderia ser lida como: um e outro? Com isso evidenciado, o aparecimentodo objeto terceiro, fálico, e nesse caso, dentro do registro da neurose. Mas que,também, poderia ser levada ao caso mais extremo, no ciúme, pela via da exclu-são, ou eu ou ele? Que apareceria no campo da psicose?

Na obra Dois irmãos, um recorte poderia ilustrar essa questão, pela viado olhar da irmã, nesse caso, num deslocamento do olhar materno:

Rânia hipnotizava-se com a presença do irmão: uma réplica quaseperfeita do outro, sem ser o outro. Ela o observava, queria notaralguma coisa que o diferenciasse do Caçula. Olhou-o de perto, demuito perto, de vários ângulos; percebeu que a maior diferençaestava no silêncio do irmão recém-chegado (Hatoum, p. 17).

O silêncio evocado para marcar uma diferença entre os gêmeos não fariaevidenciar a questão da imagem? No início do romance a pergunta de Zana(“Meus filhos já fizeram as pazes?”) fica sem resposta, impera o silêncio. Se ahipótese que indica o olhar materno como recobridor das diferenças entre osirmãos procede, produzindo o ciúme como resposta sintomática, teríamos quepensar numa outra forma de produzir diferença, em que especularidade queprovoca a confusão entre o um e o outro não se fixe, nem pelo silêncio, nem pelacicatriz.

REFERÊNCIASASSOUN, Paul-Laurent. Leçons psychanalytiques sur frères et soeurs. Tome 1. Lelien inconscient. Paris: Anthropos, 1998.FREUD, Sigmund. Sobre as teorias sexuais infantis [1908]. In: ______. Ediçãostandard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 9.p. 213-228.______. Totem e tabu [1912-13]. In: ______. _____. v. 13. p. 17-193.

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Recebido em 20/10/2009

Aceito em 30/11/2009

Revisado por Deborah Pinho