O Diálogo com Trifão de São Justino mártir e a relação ... · discussões Justino deixava...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
DANIEL MARQUES GIANDOSO
O Dilogo com Trifo de So Justino mrtir e a relao entre
judeus e cristos
(Sculo II)
VERSO CORRIGIDA
So Paulo2011
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
DANIEL MARQUES GIANDOSO
O Dilogo com Trifo de So Justino mrtir e a relao entre
judeus e cristos
(Sculo II)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria Social do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Histria Social
Orientadora: Profa. Dra. Maria Luiza Marclio
VERSO CORRIGIDA
So Paulo2011
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Nome: GIANDOSO, Daniel Marques
Ttulo: O Dilogo com Trifo de So Justino mrtir e a relao entre judeus e cristos
(sculo II)
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Sociais da Universidade de So
Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Histria
Social
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _____________________________Instituio: ________________________
Julgamento: __________________________Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _____________________________Instituio: ________________________
Julgamento: _________________________ Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _____________________________Instituio: ________________________
Julgamento: _________________________ Assinatura: ________________________
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer
meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a
fonte.
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Por minha esposa Fabiana
e por meus filhos Francesco,
Bernardo e Caterina
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AGRADECIMENTOS
A Deus por toda misericrdia e providncia;
minha esposa Fabiana e aos meus filhos Francesco, Bernardo e Caterina por
preencherem minha vida de sentido e de alegria;
A meus pais por permitirem meu nascimento, por toda ajuda e amparo;
minha irm por compreender minha ausncia;
Aos meus catequistas e minha comunidade, que zelam pela minha f e tornam
Cristo presente;
minha orientadora Profa. Dra. Maria Luiza Marclio por toda pacincia e por
acreditar em mim, mesmo quando no havia muitas razes para isso;
Ao prof. Nachman Falbel, sempre inspirador, de quem serei eterno aluno;
Ao Pe. Celso Pedro pela imensa generosidade e pela ajuda inestimvel;
A profa. Suzana Chwarts por suas aulas e pelas conversas que tivemos. De todas as
palavras, nenhuma se perde;
Teresa Milito por tornar este trabalho possvel;
Margarida Hulshof pelo carinho e cuidado na reviso de todo o texto.
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Ns, porm, dizemos a vs todos: sois nossos irmos.
S. Justino, Dilogo com Trifo, 96,2sculo II
A religio judaica no 'extrnseca', mas de certa forma 'intrnseca' nossa religio. Portanto, temos uma relao que no temos com qualquer outra religio. Vocs so nossos irmos amados e, de certa forma, poderia dizer, nossos irmos mais velhos.
Papa Joo Paulo II, Discurso na Sinagoga de Roma, 13 de abril de 1986.
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RESUMO
O presente trabalho procura analisar a relao entre judeus e cristos no segundo sculo a partir dos elementos apresentados por S. Justino no Dilogo com Trifo. Para tanto, julgamos necessrio contextualizar a obra no conjunto de transformaes ocorridas no interior do Imprio Romano e na atuao do Estado frente s duas religies. Desta forma, as Guerras Judaicas na Palestina e as perseguies aos cristos repercutiram na relao entre judeus e cristos. Alm disso, pensamos que o judeu-cristianismo e algumas caractersticas do cristianismo na cidade de Roma nos ajudam a compreender melhor as intenes de Justino com sua obra. Discutiremos as principais teorias a respeito dos destinatrios do Dilogo. Acreditamos ser possvel investigar pontos de encontro e de aproximao entre judeus e cristos, a partir daquilo que Justino demonstra conhecer sobre o judasmo de seu tempo. No entanto, tambm possvel perceber no texto as tenses e rivalidades entre os dois grupos de crentes gestadas em um ambiente polmico. Ambos os casos requerem uma anlise mais crtica das palavras do apologista.
Palavras-chave: So Justino, judasmo, Igreja primitiva, judeu-cristianismo, apologia crist, polmica judaico-crist.
ABSTRACT
The aim of this essay is to analyze the relationship between Jews and Christians in the second century from the evidence presented by S. Justin in the Dialogue with Trypho. For this, we deem necessary to contextualize the work in the set of changes within the Roman Empire and the state action against the two religions. Thus, the Jewish War in Palestine and the persecution of Christians affected the relationship between Jews and Christians. Furthermore, we believe that Judeo-Christianity and some features of Christianity in Rome help us better understand the intentions of Justin with his work. We will discuss the main theories about the recipients of the Dialogue. We believe it is possible to investigate points of contact and rapprochement between Jews and Christians from what Justin knows about the Judaism of his time. However, the text also reveals the tensions and rivalries between the two groups of believers, gestated in a controversial environment. Both cases require a more critical analysis of the apologists words. .
Keywords: St. Justin, Judaism, early Church, Judeo-Christianity, Christian apologetics, Jewish-Christian polemic.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIAES
1 Cor Primeira Epstola aos Corntios1 Mac Primeiro Livro dos Macabeus2 Cor Segunda Epstola aos CorntiosAdv. Haer. Contra as HeresiasAm AmsAnn. AnaisAp O ApocalipseAt Atos dos ApstolosAT Antigo TestamentoAvot Pirkei AvotBer. BerachothCont. Cels. Contra CelsoDil. Dilogo com TrifoDn DanielEx xodoEz EzequielGl Epstola aos GlatasGn GnesisGuerra As Guerras dos JudeusHb Epstola aos HebreusHist. Ecl. Histria EclesisticaHist. Rom. Histria RomanaI Apol. I ApologiaII Apol. II ApologiaIs IsaasJr JeremiasKidd. KiddushinLc Evangelho Segundo So LucasLv LevticoMt Evangelho Segundo So MateusNm NmerosNT Novo TestamentoRm Epstola aos RomanosSanh. SanhedrinSl SalmoTB Talmud BabilnicoTJ Talmud de JerusalmYeb. YebamothZc Zacarias
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SUMRIO
1 - INTRODUO ...........................................................................................................10
2 - O CONTEXTO: JUDEUS E CRISTOS NO IMPRIO ROMANO ...................................14
2.1 - Aspectos sociais e polticos do Imprio Romano no sculo II
e a atuao dos imperadores sobre judeus e cristos ......................................14
2.2 - Breve histrico do judeu-cristianismo .......................................................45
2.3 - O cristianismo na cidade de Roma ............................................................67
2.4 - Apologia crist e proselitismo judaico.......................................................78
3 - SO JUSTINO MRTIR E O DILOGO COM TRIFO .................................................88
3.1 - Justino mrtir: vida e obra .........................................................................88
3.1.1 - Quem foi So Justino ..............................................................................88
3.1.2 - A obra de So Justino .............................................................................97
3.2- O Dilogo com Trifo ..................................................................................99
3.2.1 - Questes gerais ......................................................................................99
3.2.2 - A datao do Dilogo e onde ele foi escrito ........................................104
3.2.3 - A estrutura do Dilogo .........................................................................107
3.2.4 - Para quem se endereava o Dilogo ....................................................111
3.2.5 - Trifo existiu? .......................................................................................123
4 - APROXIMAO E TENSO ENTRE JUDEUS E CRISTOS NO SCULO II .................131
4.1 - O conhecimento de Justino sobre o judasmo ........................................131
4.2 - Justino e a crtica s prticas judaicas .....................................................153
4.3 - Trifo e a crtica f crist ......................................................................177
4.4 - Conflitos e encontros entre judeus e cristos no sculo II .....................204
5 - CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................219
6 - BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................222
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1 - INTRODUO
Meu primeiro contato com o Dilogo com Trifo ocorreu em 1998, quando
ainda estudante de Histria na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
USP, pois tive o privilgio de pertencer ltima turma de graduao do prof.
Nachman Falbel em seu memorvel curso sobre judasmo e cristianismo antigo. Era
um curso de despedida. No entanto, a gratido e a alegria de testemunhar aquele
momento superavam qualquer lamento. Lembro-me perfeitamente da sua exposio
dos aspectos fundamentais desta obra de Justino diante de um grupo de alunos
dispostos a seguir o professor onde quer que ele fosse. A mim em particular, o que
mais impactou foi o fato de Justino e Trifo, mesmo aps um caloroso e intenso
debate, despedirem-se de forma muito amistosa, manifestando mtua estima e o
desejo de continuarem aquela conversa. Parecia-me que este desfecho estava muito
mais prximo do esprito da Igreja do sculo XX ps-Nostra Aetate1 do que de
qualquer outra poca, marcada por rivalidades e violncias mtuas entre judeus e
cristos.
1. Declarao do Conclio do Vaticano II Nostra Aetate, sobre a Igreja e as religies no crists, promulgada pelo Papa Paulo VI em 28 de out. de 1965. Dentre outros aspectos, a declarao afirma que: Sendo assim to grande o patrimnio espiritual comum aos cristos e aos judeus, este sagrado Conclio quer fomentar e recomendar entre eles o mtuo conhecimento e estima, os quais se alcanaro sobretudo por meio dos estudos bblicos e teolgicos e com os dilogos fraternos. Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes tenham urgido a condenao de Cristo morte no se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que ento viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixo se perpetrou. E embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus devem ser apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se conclusse da Sagrada Escritura. Procurem todos, por isso, evitar que, tanto na catequese como na pregao da palavra de Deus, se ensine seja o que for que no esteja conforme com a verdade evanglica e com o esprito de Cristo. Alm disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguies contra quaisquer homens, lembrada do seu comum patrimnio com os judeus, e levada no por razes polticas mas pela religiosa caridade evanglica deplora todos os dios, perseguies e manifestaes de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus.
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Muito tempo se passou, e, aps algumas tentativas sem sucesso de elaborar
um projeto de pesquisa sobre outros temas, repentinamente, no metr, pensei no
Dilogo com Trifo. Justino me tirou das profundezas da terra e me levou at a
livraria mais prxima, onde adquiri a obra. Assim, em 2007 surgiram as primeiras
ideias para um projeto de pesquisa sobre o Dilogo. Diante das dificuldades de
conseguir um professor que pudesse orientar uma pesquisa sobre um apologista
cristo do sculo II, encontrei em um dos murais de avisos do Departamento de
Histria o informativo de um curso sobre Histria da Igreja no Mosteiro de So Bento,
ministrado pela professora Maria Luiza Marclio. Graas a ela e sob a sua orientao,
ingressei no Programa de Ps-graduao em Histria Social em 2008.
Logo no incio das primeiras anlises do Dilogo, dois aspectos me chamaram a
ateno:
1) O Dilogo assentava-se sobre duas grandes correntes de discusso, nas
quais os argumentos eram desenvolvidos. De um lado, Justino criticava as
prticas judaicas, tentando demonstrar sua caducidade. Do outro lado, Trifo
criticava aspectos da f crist por no estarem em conformidade com as
Escrituras ou com a unicidade divina. Pareceu-me que por detrs destas duas
discusses Justino deixava transparecer que ele estava bem informado das
oposies f dos cristos gestadas em crculos judaicos, mas pouco sabia
sobre as reflexes dos sbios a respeito das prticas previstas na Lei mosaica.
Assim, as palavras de Justino para desabonar as ditas prticas teriam pouco
efeito entre os judeus. Logo pensei que, talvez, o objetivo do apologista com o
Dilogo no fosse a converso dos judeus ao cristianismo.
2) Outra questo que me intrigou que Justino pensava na possibilidade dos
judeus conversos permanecerem fiis s prticas da Lei, mediante algumas
condies. Sua postura no era compartilhada por muitos cristos e seria
rechaada pela Grande Igreja, o que a tornava ainda mais admirvel.
Provavelmente, em meados do segundo sculo, o judeu-cristianismo gerava
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polmicas, mas estava presente nas comunidades crists de Roma, onde
Justino viveu sua f.
Paralelamente a esses dois aspectos h uma srie de outras questes
igualmente importantes, tais como: a) o Dilogo manifesta as implicaes
decorrentes da atuao romana sobre os cristos (as perseguies) e sobre os judeus
(as guerras na Palestina); b) Justino demonstra estar plenamente ciente das
profundas transformaes em curso no interior dos dois cultos. O cristianismo passa
cada vez mais a expressar de forma mais elaborada os princpios fundamentais de sua
f a partir de critrios de pensamentos prprios da filosofia grega. J o judasmo, a
despeito das tragdias da Primeira e da Segunda Guerra Judaica contra os romanos,
encontra novo vigor com a afirmao crescente do judasmo rabnico; c) o Dilogo
com Trifo representa de maneira muito peculiar a polmica judaico-crist. Justino
no acoberta a tenso e a rivalidade entre judeus e cristos. Muitas vezes a discusso
torna-se candente e hostil. No entanto, a busca pelo entendimento, o desejo de
investigao das Escrituras e o zelo em aprofundar os temas tratados se sobressaem
na postura de ambos os debatedores.
Nossa pesquisa foi estruturada em trs grandes captulos, que por sua vez
foram subdivididos em alguns temas:
O primeiro captulo trata do contexto histrico do Dilogo com Trifo. Nosso
objetivo consiste em demonstrar que no sculo II o Imprio Romano passava por
importantes transformaes sociais e polticas. Discutiremos como a atuao dos
imperadores sobre o judasmo e sobre o cristianismo incidiu nas relaes entre
judeus e cristos entre si e de que forma possvel observar os reflexos deste
contexto no Dilogo. No que tange o relacionamento entre judeus e cristos,
investigaremos o desenvolvimento e a crise do judeu-cristianismo, bem como
algumas caractersticas do cristianismo na cidade de Roma. Alm disso, discutiremos
as possveis ligaes existentes entre a apologia crist e o proselitismo judaico.
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O segundo captulo trata da pessoa de Justino e de algumas questes gerais a
respeito do Dilogo com Trifo. Apresentaremos os aspectos biogrficos do
apologista e os principais problemas relacionados datao, estrutura do texto e
seus destinatrios, bem como algumas questes sobre a figura de Trifo.
Por fim, o terceiro captulo sobre o que podemos refletir a respeito da
relao entre judeus e cristos a partir dos elementos presentes no Dilogo.
Discutiremos os nveis de aproximao e de conflito entre os membros dos dois
cultos. No caso de Justino, essa aproximao pode ser sentida a partir daquilo que o
apologista demonstra conhecer sobre o judasmo; os conflitos podem ser
investigados nas acusaes que Justino faz aos judeus e aos sbios.
Julgamos com isso fornecer uma modesta contribuio em lngua portuguesa
para o estudo daquele que considerado o maior dentre todos os apologistas
cristos do segundo sculo.
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2 - O CONTEXTO: JUDEUS E CRISTOS NO IMPRIO ROMANO
2.1 - Aspectos sociais e polticos do Imprio Romano no sculo IIe a atuao dos imperadores sobre judeus e cristos
Minha alma, bendiz o Senhor, o grande Rei, porque Jerusalm vai ser reconstruda, e sua Casa para sempre!
Tobias 13,15-16.
E, por causa de mim, sereis conduzidos presena de governadores e de reis, para dar testemunho perante eles e perante as naes.
Mateus 10,18.
Justino viveu no sculo II, poca em que o Imprio Romano atingiu seu
apogeu. O apologista escreveu num momento de profundas transformaes sentidas
no apenas no interior do judasmo e do cristianismo, mas tambm na sociedade e na
poltica romana. Em meio a estas transformaes, os fiis de ambos os cultos
reelaboraram suas prticas religiosas refletindo sobre os princpios basilares da f
que professavam. Justino, que foi ao mesmo tempo filsofo por ofcio e apologista
por sua converso ao cristianismo, estava atento aos acontecimentos e procurou com
sua obra responder s questes mais candentes de seu tempo. Ele responde s
correntes consideradas herticas, s perseguies aos cristos e s questes
polmicas junto aos judeus. Compreender, ainda que em linhas gerais, como era esse
mundo em que o apologista viveu fundamental para avaliarmos o significado de sua
obra. O contexto histrico de um documento nos fornece algumas razes
constitutivas de sua gnese e de que forma ele responde a esse mesmo contexto. No
Dilogo com Trifo possvel observar estes dois movimentos, sobretudo no que
tange a atuao do Imprio sobre os cristos e sobre os judeus e a relao entre os
dois grupos de fiis.
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Uma questo inicial move nossa pesquisa: de que forma a atuao do Imprio
Romano sobre o judasmo e sobre o cristianismo interferiu nas relaes entre judeus
e cristos? E imediatamente a esta primeira questo segue-se a segunda, que o
objetivo maior de nosso trabalho: o que podemos compreender sobre a relao entre
judeus e cristos no sculo II a partir dos elementos apresentados por Justino no
Dilogo com Trifo?
Entendemos que um caminho possvel para esta anlise o de investigar como
as autoridades romanas se posicionavam ante os dois cultos a partir de relaes
diretas com (e contra) os judeus e cristos. Ainda que didaticamente seja mais
aconselhvel abordar os dois casos de forma isolada, o fato que, devido prpria
dinmica social e as mltiplas relaes existentes entre os grupos que a compem, as
medidas do Estado Romano abertamente favorveis ou contrrias ao judasmo,
incidiam tambm sobre os cristos. O contrrio tambm verdadeiro. Esses aspectos
so importantes, pois contribuem para a contextualizao histrica do Dilogo com
Trifo. No h como analisar a relao entre judeus e cristos a partir dessa obra de
Justino sem consider-la como resultado de um percurso histrico que no leva em
conta apenas a evoluo intrnseca de cada um dos dois cultos, promovida por seus
agentes internos, sejam eles os chefes (rabinos, bispos) ou os fiis, mas tambm o
mundo no qual os dois cultos estavam inseridos e interagiam. Segundo Marcel Simon
(1948, p. 125) indispensvel, para situar em sua verdadeira luz as relaes judeu-
crists, recoloc-las no quadro do Imprio. A atitude da autoridade romana para com
um e outro culto no deixou de influenciar a evoluo de suas relaes mtuas .
Assim, a maneira pela qual o Imprio Romano se posicionou diante do
judasmo e do cristianismo at a poca de So Justino nos fornece pistas para
entender a razo do Dilogo. Justino, em sua obra, no apenas reflete os lampejos
dessa atuao romana sobre as duas religies, mas opera sobre ela, dando-lhe novos
contornos tipolgicos a partir de uma interpretao dos fatos. O resultado imediato
dessa interpretao que Justino atualiza a discusso a respeito da relao entre
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judeus e cristos. Queremos dizer com isso que os acontecimentos promovidos pelo
governo imperial, que, de alguma forma, abalaram as duas religies, permitiram um
repensar das prticas religiosas de ambas, suscitando novas problemticas e, ao
mesmo tempo, depurando antigas, o que colocou a relao entre judeus e cristos
em outros nveis de contato. Da mesma forma que no sculo II verificamos uma
profunda transio nas estruturas sociais e polticas do Imprio Romano, verificamos
tambm uma transio de ordem interna nas duas religies. O Dilogo aponta dois
grandes indicadores desta mudana. Do lado judaico temos a afirmao cada vez
maior do judasmo rabnico que assentava novas formas de expresso religiosa, com
a ausncia do Templo e a destruio de Jerusalm. Do lado cristo, os gentios cultos
que se converteram baseiam-se no pensamento filosfico grego para legitimar a f
crist, expressando questes religiosas por meio de categorias filosficas. Justino no
apenas estava atento a essas mudanas, mas as incorporava em sua estrutura de
pensamento (enquanto filsofo) e em sua vivncia (enquanto cristo). O apologista
parecia estar ciente de que o judasmo e o cristianismo de seu tempo no eram os
mesmos do tempo de Jesus e dos primeiros discpulos, o que gerava novos contornos
na relao entre judeus e cristos.
Assim, para compreendermos de que forma a atuao do Imprio Romano
sobre o judasmo e sobre o cristianismo incidiu na relao entre judeus e cristos,
abriremos duas vertentes, que, por sua vez, tambm ressoam no Dilogo.
1) Do lado judaico, importa-nos discutir como a atuao do Imprio na
Palestina interferiu na relao entre judeus e cristos.
2) Do lado cristo, a discusso passa necessariamente pela represso do
Estado por meio das perseguies, e como ficou a relao entre cristos e
judeus nessa conjuntura.
No entanto, essa dinmica de transformaes significativas no apenas
observada nas duas religies. Paralelamente, h mudanas sociais e polticas muito
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importantes no Imprio Romano. As reflexes de Justino sobre as prticas judaicas e
sobre a f crist so elaboradas no mundo romano em profundas transformaes.
O sculo II, sob o governo dos antoninos, caracterizado como uma poca em
que o Imprio Romano atingiu seu apogeu, o que explica a denominao de o sculo
de ouro. Para tanto, muito contribuiu a estabilidade poltica consolidada por
perodos longos de governo dos imperadores2. Este apogeu tambm resultante da
eficincia administrativa desses mesmos imperadores. O Imprio Humanstico3,
dotado de um equilbrio no exerccio do poder4, passou por uma profunda
transformao social e poltica que acabou por afetar esse equilbrio, lanando as
razes da crise futura5. Assim, na segunda metade do sculo II, a partir de Marco
Aurlio, o Imprio comeou a dar os primeiros sinais da crise que o abateria no
sculo seguinte. Isso faz do sculo II um perodo muito peculiar onde o Imprio
Romano atingiu o apogeu, mas tambm viu germinar os motivos da decadncia6.
Justino viveu durante este apogeu, e morreu antes do despontar da crise. No
entanto, curioso observar de forma anloga o que aconteceu com o judasmo e
com o cristianismo. Se o Imprio passa de um perodo de grande equilbrio e
desenvolvimento para uma crise sem precedentes, o judasmo e o cristianismo
passam de um perodo crtico para uma ascenso pautada em novas formas de
expresso religiosa. bem verdade que esse processo no sentido to rapidamente
(uma vez que o Imprio se mantm at o sculo V), no linear e nem mesmo de
progresso constante. Mas no podemos negar que, enquanto Roma vive seu
2. Trajano (98-117); Adriano (117-138); Antonino Pio (138-161); Marco Aurlio (161-180); Cmodo (180-192).3. Termo cunhado por S. MAZZARINO e assumido por P. PETIT. Diz respeito ao principado dos imperadores filsofos ou sensveis ao estoicismo que marcava o sculo II.4. Esse equilbrio era entre a monarquia pessoal (do sc. I) e uma monarquia burocrtica inaugurada por Trajano. (PETIT, 1975, p. 361).5. Paul Petit analisa como os imperadores humanistas atuaram e de que forma esse equilbrio foi rompido iniciando um processo de crise que foi acentuada no sculo III. (PETIT, 1975, p. 354-380).6. Deve-se tomar certo cuidado com uma viso da Histria Antiga a partir da origem, ascenso, apogeu e decadncia dos imprios. Ainda que, numa viso geral ou de conjunto essa trajetria se tenha realmente verificado, no se pode deixar de lado que apogeu e decadncia no so sentidos da mesma forma nem nos diferentes grupos sociais e nem nas diferentes regies de um imprio.
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apogeu, os fiis dos dois cultos passavam por um momento delicado e crtico, seja
por conta das perseguies aos cristos, seja por conta das guerras judaicas. Nos
sculos subsequentes o cenrio ser inverso.
Inicialmente, abordaremos alguns aspectos sociais e polticos que apontam
estas transformaes ocorridas no sculo II, sobretudo como foi a atuao do
Imprio Romano sobre o judasmo e sobre o cristianismo, e as ressonncias desse
processo que podemos verificar no Dilogo com Trifo.
O sculo de ouro, no governo dos primeiros antoninos, foi marcado pela
estabilidade, caracterizada pelo equilbrio nas instncias de poder e pelo incio de um
governo mais burocrtico e tcnico. Foi no sculo II que se deu a ascenso de
membros da ordem equestre em cargos e funes administrativas e a promoo das
elites municipais, bem como a diminuio gradativa da aristocracia senatorial nas
esferas de comando. Segundo Paul Petit (1975, p. 361)
Se o Senado, em si, no recupera nenhuma de suas antigas prerrogativas, os senadores, a ttulo individual, lotam as avenidas do poder, comandam as legies, e, querendo ou no, colaboram com os cavaleiros, seja no conselho imperial, reorganizado por Adriano, seja nas provncias, onde trabalham os procuradores. Assim, entre o Io
sculo, no qual os senadores desempenhavam o papel principal, e o IIIo, que os v sucumbir sob a presso dos cavaleiros e dos soldados, o segundo sculo pode ser considerado como um perodo de equilbrio, para o maior bem do Estado.
A aristocracia senatorial romana perdeu espao para membros da ordem
equestre7 e para membros das elites provinciais em franca ascenso no sculo II.
Contudo, no perdeu seu prestgio, pois segundo Alfldy (1989, p. 126)
7. A ordem equestre estava imediatamente abaixo da ordem senatorial. Segundo Maria Luiza Corassin (2001, p. 41-42), inicialmente, o que distinguia as duas ordens era a especializao de cada uma e as proibies legais que foram criadas. Cabia aos senadores as magistraturas. Estes, eram proibidos de desenvolverem atividades comerciais e de gerirem contratos de arrecadao de impostos ou de obras pblicas. Eram os cavaleiros que atuavam neste campo. Na poca de Augusto, para pertencer a ordem equestre era necessrio possuir uma fortuna mnima de 400.000 sestrcios. (CORASSIN, 2001, p. 67).
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Entre os fatores que determinavam se um indivduo pertencia s camadas superiores privilegiadas ou s camadas inferiores da sociedade romana, teremos de citar, em primeiro lugar o que corresponde estrutura aristocrtica desta sociedade o nascimento. A posio social atingida por uma famlia era geralmente hereditria, como acontecia, em princpio, com as famlias havia trs geraes admitidas no ordem senatorial; e com os membros da ordem equestre e os da ordem dos decuries8, pelo menos a partir do sculo II d.C., o mesmo acontecia.
A posio social era tambm indicada pela situao jurdica, isto , pela
condio de ser cidado romano, e pela situao econmica (ser um grande
proprietrio de terra). A ordem senatorial era renovada pelos homens novos
oriundos, sobretudo, por membros da ordem equestre. No entanto, ao longo do
sculo II, muitas famlias aristocrticas italianas foram extintas, o que acelerou a
ascenso das elites provinciais ao Senado (ALFLDY, 1989, p. 135). Keith Hopkins
denomina esse processo de mobilidade social entre as elites9, que tambm foi
motivada por uma srie de mudanas em instituies militares, burocrticas,
econmicas, legais, educacionais, que abriram caminho para novas profisses, das
quais a aristocracia romana no poderia mais abarc-las sozinha. Surgem-se assim,
novos grupos dirigentes. Alm disso, o prprio imperador, quando em conflito com a
aristocracia senatorial, favorecia a ascenso das elites provinciais ao poder.
Alm dessas mudanas, outras de ordem poltica ocorreram nos principados
dos imperadores do sculo II. Analisaremos algumas dessas transformaes polticas,
e, principalmente, a atuao de alguns imperadores sobre judeus e cristos. Na
verdade, as transformaes sociais e polticas do segundo sculo foram
8. Os decuries eram membros das elites municipais. Tratava-se de cidados ricos que aos 25 ou 30 anos poderiam pertencer ao conselho dos decuries. Eles eram responsveis por administrar sua cidade, cuidando da justia, das finanas, do abastecimento, das obras pblicas e da manuteno da ordem. (CORASSIN, 2001, p. 68).9. HOPKINS, Keith. Movilidad de la elite en el Imperio Romano. In: FINLEY, M. I. Estudios sobre historia antigua. Madrid, Akal Editor, 1981, pp. 119-136.
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acompanhadas de mudanas significativas no interior do cristianismo e do judasmo,
muitas delas ocorridas sob o influxo da atuao romana.
Trajano (98-117), enaltecido por suas qualidades militares e administrativas,
foi o primeiro imperador nascido em uma provncia (Espanha). Sua relao com a
aristocracia senatorial tambm foi fundamental para o sucesso de seu principado,
cujo poder imperial realizava-se com objetivos exclusivamente administrativos e no
arbitrrios. Isso significa que seu principado foi marcado por uma centralizao
poltica no que tange administrao, sem incorrer em atitudes despticas. Segundo
Piganiol, Trajano no fazia diferenas entre ocidentais e orientais, indicando muitos
gregos e africanos ao Senado (PIGANIOL, 1961, p. 281). Durante seu principado,
membros da ordem equestre ascenderam a cargos administrativos (PIGANIOL, 1961,
p. 282). Segundo Paul Petit, de seu reinado data o incio do Imprio humanstico,
no qual o prncipe encarna as virtudes estoicas10 longamente evocadas pelos
pensadores e os panegiristas (Plnio o Jovem) (PETIT, 1974, p. 166). Certamente, o
Imprio Humanstico iniciado por Trajano e consolidado pelos imperadores
subsequentes, que favorecia o debate filosfico, foi decisivo para que Justino
passasse a viver em Roma. A conjuntura cultural da cidade de Roma no sculo II pode
explicar a mudana de Justino para a capital do Imprio. Certamente, ele no migrou
por fatores religiosos. No foi o cristianismo romano que o atraiu, mas o ambiente
cultural filosfico ideal para exercer mais intensamente seu ofcio.
No que tange a atuao de Trajano sobre os cristos, seu principado nos
fornece elementos preciosos que nos permitem compreender que, na primeira
metade do sculo II, a independncia do cristianismo frente ao judasmo
claramente sentida pelas autoridades romanas. O cristianismo em franca expanso
requereu uma ateno e uma postura concreta por parte do imperador. A
correspondncia entre Plnio, o jovem e Trajano o principal documento que nos
10. O Estoicismo foi fundado por Zeno de Ccio em 300 a.C. Esta escola filosfica afirmava a primazia da moral sobre os conceitos filosficos, sobre as ocupaes e as emoes da vida. Os estoicos buscavam a vida contemplativa e cultivavam a apatia, condenando as emoes.
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permite analisar a atuao do Imprio junto aos cristos na mesma poca em que
vivia Justino.
Plnio, o jovem, era o legado imperial na Bitnia e no Ponto. Em 112, escreveu
uma carta ao Imperador Trajano pedindo orientaes a respeito da perseguio e da
punio dos cristos da regio, que, segundo Allard, era repleta deles desde a ao
missionria de So Pedro, que a eles endereou sua primeira epstola.
por volta do ano 112, o cristianismo revelou-se a Plnio, recm-chegado Bitnia e depois ao Ponto, no como um culto recentemente implantado nas amplas margens do Mar Negro, mas como uma religio h muito enraizada, no apenas entre a populao das cidades, mas at os campos mais distantes, e diante da qual o paganismo j havia recuado11
A carta de Plnio a Trajano reveladora em muitos sentidos, pois:
1) Plnio demonstra certa hesitao a respeito das atitudes a serem tomadas.
Essa incerteza advm do fato de no haver, no incio do sculo II, uma
legislao definida e um procedimento padro sobre a matria.
2) a partir das palavras de Plnio sabemos que os cristos j haviam sido
levados aos tribunais e que, provavelmente, governadores de provncias
tinham apelado ao conselho imperial por meio das cognitiones. Esse conselho,
ao dirimir a questo, emitia uma deciso especfica ao caso, sem carter geral.
Plnio afirma nunca ter participado dessas reunies.
3) a despeito de suas dvidas, mesmo assim Plnio comunica ao imperador
algumas decises tomadas por ele. Aqueles que por trs vezes, quando
inquiridos, mesmo sendo alertados sobre o suplcio, respondiam que eram
cristos, eram executados. Os que admitiam que eram cristos, mas possuam
cidadania romana, eram enviados capital, possivelmente para novo
julgamento.
11. ALLARD, Paul. Histoire des perscutions pendant les deux premiers sicles, 1903. Disponvel em : http://www.mediterranee-antique.info/Rome/Allard/P1/P00.htm. Acesso em: 31 de julho de 2009.
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4) a carta d indcios sobre a natureza do crime cometido pelos cristos.
Porm, neste aspecto, como veremos, h controvrsias entre os
especialistas12. A questo complexa, porque, inicialmente, Plnio questiona se
o nome cristo passvel de condenao pelas infmias associadas a ele ou
se, alm disso, necessria a constatao de outro crime para puni-los.
Podemos pensar em duas hipteses: talvez, por nunca se ter deparado com
esse problema, Plnio desconhecesse que o nomem christianum era suficiente
para a punio. Nesse caso, ele realmente no sabia qual era a natureza do
crime, uma vez que no possua respaldo jurdico. Assim, ele levou a termo a
execuo nica e exclusivamente pela persistncia e pela obstinao inflexvel
dos cristos diante de uma autoridade romana. Outra possibilidade a de que
Plnio sabia muito bem que o nome cristo era suficiente para a punio e o
seu questionamento inicial teria um peso reduzido frente aos outros
problemas levantados por ele. Isto , o nome basta para punir, mas ele deveria
levar em considerao a idade, ou se o acusado era uma criana, ou ainda, se o
arrependido deveria ser libertado. Parece que a segunda possibilidade a mais
provvel. A questo no estaria na punio ou no dos cristos. Talvez, para
qualquer autoridade romana no limiar do segundo sculo, a punio fosse
certa. O que Plnio traz de novo nessa problemtica se haveria fatores
atenuantes. Assim, a obstinao dos cristos seria um fator a mais e no a
causa da execuo. Essa no a concluso de Allard: Assim, como no sabe
se so ou no criminosos, Plnio os condena morte porque so obstinados!
ou antes, ele os condena porque, como Pilatos, receia que, se julgar segundo a
estrita equidade, possa no parecer suficientemente amigo de Csar! 13
Apesar de Plnio demonstrar profunda venerao por Trajano, no nos parece
que sua atitude tivesse a inteno de agradar o imperador, nem que indique o
12. Como veremos na polmica entre G. E. M. de Ste Croix e A. N. Sherwin-White.13. ALLARD, Paul. Histoire des perscutions pendant les deux premiers sicles, 1903. Disponvel em : http://www.mediterranee-antique.info/Rome/Allard/P1/P00.htm. Acesso em: 31 de julho de 2009.
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receio de que, agindo de outra forma, pudesse no parecer amigo de Csar,
como parece crer Allard. Provavelmente, Plnio cumpria fielmente suas
atribuies de legado do imperador.
5) At este momento Plnio procedia de forma aceitvel, dentro daquilo que se
poderia esperar dele no exerccio de suas atribuies. Ainda que no houvesse
diretrizes gerais a respeito dos cristos com validade para todo o Imprio, as
decises de Plnio no destoariam do esperado. Veremos que a resposta de
Trajano confirma essa anlise. No entanto, neste processo, surgiram fatos
novos e inquietantes para o legado: as denncias annimas e o grande nmero
de envolvidos. Aos denunciados anonimamente, Plnio ofereceu a
oportunidade de provarem que realmente no eram cristos (uma vez que
negavam s-lo), por meio de sacrifcios aos deuses e de maldies a Cristo. Ao
que tudo indica, estes realmente no eram cristos e foram libertados. Outros
que foram entregues por denunciantes disseram que tinham sido cristos, mas
haviam deixado de o ser h muito tempo. O mais importante que todas as
questes alegadas pelos ex-cristos sobre como eram suas prticas e costumes
enquanto cristos pareceram de pouca importncia, ou ainda, sem matria
criminosa a Plnio. E mesmo torturando as escravas crists, delas conseguiu
apenas supersties absurdas. Por isso, Plnio suspendeu o procedimento e
escreveu a Trajano, provavelmente mais para se assegurar de que a sua
conduta estava correta, pois, como ele mesmo escreveu, as ditas supersties
eram um mal a ser combatido e ele pensava poder cont-las na regio. Talvez,
na viso de Plnio, os cristos no deveriam ser punidos tanto pelos costumes
apresentados durante os interrogatrios, mas por suas crenas.
Em reposta, Trajano no contestou as decises tomadas por Plnio, ao
contrrio, confirmou toda a sua ao. H duas questes importantes na resposta de
Trajano:
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1) ele confirma que no havia um procedimento padro (certamente pela
ausncia de um amparo legal) na condenao dos cristos. Isso significa que as
autoridades deveriam analisar os casos com cuidado. Certamente, Plnio j
sabia disso. O problema era como analisar cada caso, se havia um grande
nmero de envolvidos? De fato, essa ser uma realidade cada vez mais
presente, uma vez que o cristianismo estava em franca expanso. No entanto,
Trajano no responde a isso diretamente.
2) as autoridades oficiais no deveriam ir atrs dos cristos. O que, num certo
sentido, ps freio possibilidade aventada por Plnio de extirpar os cristos.
Isso muito importante: Trajano deixa claro que o imprio no devia se utilizar
de meios para perseguir os cristos, ou seja, no devia tomar a iniciativa.
Porm, devia agir da forma como Plnio agiu quando os cristos eram
denunciados s autoridades, com a ressalva de que essas denncias no
podiam ser annimas.
Embora concisa, vemos uma resposta muito ponderada por parte do
imperador. No entanto, a contradio de Trajano, segundo Paul Petit, enquadra-se
dentro daquilo que foi apontado por Tertuliano, cuja ideia central era: se os cristos
so culpados, por que no os perseguir ? E se eles so inocentes, por que puni-los ?
(TERTULIANO, Apol. II,8)
Talvez, para Trajano, a questo fosse mais pragmtica. Dado o nmero
crescente de cristos, o Imprio Romano no deveria gastar energia procura deles,
mesmo porque, para as autoridades, havia questes mais prementes a serem
tratadas. Porm, medida que os cristos se tornassem um problema civil em uma
dada regio do imprio, a ponto de serem denunciados, pondo em perigo a ordem
local, as autoridades deveriam tomar providncias.
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Provavelmente, as orientaes de Trajano serviram como referncia ao longo
de todo o sculo II, inclusive no momento em que Justino atuava com vigor em Roma
como filsofo e como apologista.
No que tange a atuao de Trajano junto aos judeus, entre 115-117 d.C.
comunidades judaicas da Cirenaica, Cipro, Egito e da Judeia se revoltaram e foram
reprimidas. Segundo Richard Alston, no h explicaes muito aparentes para o surto
de violncia nessas regies. No entanto, o grande terremoto de 115 em Antioquia
pode ter precipitado as revoltas no Oriente. Para Alston essas comunidades
revoltaram-se alimentadas por um movimento cultural e poltico comum,
provavelmente de natureza messinica. Deste modo, o terremoto e a campanha
militar de Trajano em Partos, onde havia muitas comunidades judaicas, foram
interpretados como eventos de significados religiosos, o que motivou a revolta contra
Roma (ALSTON, 1998, p. 204). J a grande revolta na Cirenaica ainda est associada
Primeira Guerra Judaica (66-72 d.C) e possvel que o conflito entre Roma e os
judeus, ali ocorrido em 72, tenha iniciado um perodo de tenso que iria culminar
naquela revolta (SMALLWOOD, 1999, p. 191).
Trajano foi sucedido por Adriano (117-138), seu filho adotivo. Considerado o
imperador mais inteligente do sculo II, empreendeu inmeras viagens por todo o
imprio, o que, para Paul Petit, lhe permitia rapidamente tomar as medidas
necessrias para cada lugar (PETIT, 1975, p. 357). Adriano ps fim s guerras e s
conquistas de Trajano no Oriente, o que fez com que seu principado fosse marcado
por uma poltica pacifista14. Segundo Piganiol, Adriano se mostra menos
preocupado em romanizar do que em despertar a originalidade primitiva de cada
povo (PIGANIOL, 1961, p. 283).
Em relao atuao de Adriano sobre os cristos, temos um documento
importante que foi transcrito por Justino no final da I Apologia. Trata-se de uma carta
deste imperador escrita em 125 ao procnsul da sia, Mimcio Fundano. Diz a carta:
14. A guerra dos romanos na Palestina com a Revolta de Bar Cochba (132-135) pode ser considerada uma exceo desta poltica pacifista.
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A Mimcio Fundano.Recebi uma carta que me foi escrita por Serncio Graniano, homem distinto, a quem sucedeste. No me parece que o assunto deva ficar sem esclarecimento, a fim de que os homens no se perturbem, nem se facilitem as malfeitorias dos delatores. Desta forma, se os provincianos so capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristos, de modo que respondam a ela diante do tribunal, devero ater-se a este procedimento e no a meras peties e gritarias. Com efeito, muito mais conveniente que, se algum pretende fazer uma acusao, examines tu o assunto. Em concluso, se algum acusa os cristos e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis, determina a pena, conforme a gravidade do delito. Mas, por Hrcules, se a acusao caluniosa, castiga-o com maior severidade e cuida para que no fique impune (I Apol. 68,5-10).
Johannes Quasten (QUASTEN, 2004) destaca deste documento quatro normas
para um procedimento judicial mais justo em relao aos cristos:
1) Os cristos devem ser julgados por meio de um procedimento regular, ante
um tribunal criminal;
2) S podem ser condenados mediante provas de que o acusado transgrediu
as leis romanas;
3) O castigo deve ser proporcionado de acordo com a natureza e a qualidade
dos crimes;
4) Toda falsa acusao deve ser castigada com severidade.
No entanto, o contedo da carta de Adriano no foge das mesmas orientaes
dadas por Trajano a Plnio em 112. Devemos ressaltar que toda ao das autoridades
romanas para com os cristos deveria submeter-se ao direito, sendo proibida
qualquer arbitrariedade nesta matria. Portanto, muito intrigante o fato de Justino
anexar a carta do Imperador Adriano I Apologia, endereada ao Imperador
Antonino Pio, seu sucessor. Fica evidente que, em meio s perseguies e execues
ocorridas durante o principado de Antonino Pio, Justino relembra ao imperador como
Adriano (em seguimento a Trajano) lidara com o mesmo problema.
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No que tange a atuao de Adriano sobre os judeus, cabe-nos analisar a
Revolta de Bar Cochba (132-135 d.C.). Simo Bar Cochba, o o filho da estrela ,
liderou a guerra contra o domnio romano na Judeia. Bar Cochba foi reconhecido
como Messias pelo Rabi Akiva15, certamente pela interpretao messinica que ele
fez da seguinte passagem da Tor: Uma estrela procedente de Jac se torna chefe,
um cetro se levanta, procedente de Israel (Nm 24,17). Posteriormente, aps a
derrota ante os romanos, os rabinos mudaram o nome (Kosiba para Koziba), o filho
da mentira (ISAAC, B.; OPPENHEIMER, A. 1992, p. 598), recusando toda pretenso
messinica do lder.
As causas da guerra esto diretamente associadas ao Imperador Adriano. So
elas: A deciso do imperador de transformar Jerusalm em uma cidade pag (Aelia
Capitolina); a proibio da prtica da circunciso; a possibilidade do Imperador ter
aceitado reconstruir o Templo, seguida de uma provvel desistncia de levar o
projeto a termo, incitou a revolta dos judeus contra Roma. Sobre essa ltima causa,
trata-se mais de uma teoria, pois no h documentos que indiquem que o imperador
Adriano tivesse essa inteno e tenha desistido dela. J as duas primeiras esto
documentadas na Historia Augusta (Vita Hadriani 14,1-2) e em Dio Cassius (Hist.
Rom. 69,12). No entanto, entre o fim da Primeira Guerra Judaica no ano 70 e o incio
da Revolta de Bar Cochba possvel encontrar na literatura rabnica uma certa
expectativa em relao reconstruo do Templo e unificao do povo judeu
(ISAAC, B.; OPPENHEIMER, A. 1992, p. 599). Portanto, a destruio do Templo ainda
seria um motivo para o incio da Segunda Guerra Judaica.
A proibio da prtica da circunciso como um fator para a guerra est
relacionada ao edito de Adriano, promulgado entre 119-120 d.C., que impedia a
15. Sobre as implicaes da declarao de Bar Cochba como Messias feita pelo Rabino Akiva, Tnia Fortes salienta que sem a interveno de Akiva, o guerreiro Bar Kokhva provavelmente no teria como atingir a confiana do povo e chegar a ser coroado Nassi Israel (Prncipe de Israel). A adeso da grande massa da populao somente foi possvel graas autoridade de Rabi Akiva diante do povo. O sbio no era apenas reconhecido como lder espiritual, mas tambm como lder que integrara vrias comitivas para negociar com o imperador romano. Desta forma, ele congregava tanto o poder religioso como o poder poltico (FORTES, 2005, p. 22)
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castrao. No entanto, para Adriano, a circunciso era simplesmente uma forma de
castrao. Em consequncia, as medidas penais ligadas proibio da castrao
foram estendidas circunciso (MODRZEJEWSKI, 2003, p. 121). Dessa forma, o
edito estimulou a insurreio dos judeus contra Roma. Essa causa foi potencializada
quando Adriano, em sua viagem ao Oriente (128-132 d.C.), decidiu transformar
Jerusalm em Aelia Capitolina.
Aps os conflitos, os resultados foram trgicos para os judeus, a ponto da
literatura talmdica subsequente descrever os horrores da derrota (ISAAC, B.;
OPPENHEIMER, A. 1992, p. 601). Uma extensa regio da Judeia foi destruida e
580.000 foram mortos em aes militares, e incontveis outros pela fome, doenas
ou pelo fogo (BIRLEY, 2000, p. 146). Adriano fundou a Aelia Capitolina, construiu
um Templo a Jpiter Capitolino em Jerusalm e nenhum judeu poderia mais entrar
na cidade (SAULNIER, C.; ROLLAND, B., 2002, p. 65).
A Revolta de Bar Cochba nos permite refletir como a atuao do Imprio
Romano sobre judeus e cristos afetou a relao entre os dois grupos de crentes.
Essa atuao est presente na obra de Justino, que de certo modo responde a ela. Em
relao a Bar Cochba, disse Justino: Com efeito, na guerra dos judeus agora
terminada, Bar Cochba, o cabea da rebelio, mandava submeter a terrveis torturas
somente os cristos, caso estes no negassem e blasfemassem Jesus Cristo (I Apol.
31,6). Fica evidente que a guerra dos romanos contra os judeus incidiu em um trgico
conflito entre judeus e cristos. O testemunho de Justino no pode ser invalidado,
mas deve ser avaliado mais criticamente. Segundo David Flusser, a tenso entre
judeus e cristos no surgiu no nvel religioso, mas nacional. Os judeu-cristos eram
vistos como separatistas porque no compartilhavam do mesmo sentimento nacional
na luta contra Roma. Assim, os cristos no foram perseguidos por sua f. Para
Flusser, a ideia de que os cristos eram obrigados a blasfemar Jesus tirada da
pratica romana (cf. vemos na carta de Plnio, o jovem ao Imperador Trajano), sendo
pouco provvel que Bar Cochba obrigasse os cristos a aceit-lo como Messias:
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Portanto, o ncleo histrico do comentrio de Justino que os judeu-cristos tinham de negar que Jesus Cristo era o Messias, mas no de blasfemar contra ele (...) Sabemos das Crnicas de Eusbio que Bar-Kochba punia os cristos porque estes se recusavam a lutar junto com ele contra os romanos. Eles evidentemente se recusavam a faz-lo devido sua crena de que o Messias j tinha vindo e que no retornara agora na figura de Bar-Kochba. Parece-me que desta forma, havia uma ligao entre a punio dos cristos por Bar-Kochba e a crena deles de que Jesus era o Messias. Mas mesmo aqui o aspecto poltico, e no religioso, era decisivo (FLUSSER, 2002, p. 186-187).
Adriano foi sucedido por Antonino Pio (138-161), que nasceu no Lcio, filho de
famlia aristocrtica. Fez carreira poltica como senador, atingindo o consulado em
120 d.C. Durante o principado de Adriano atuou como membro do Conselho Imperial
e em 134 foi designado pr-cnsul da sia. Era reconhecido por sua fortuna,
sabedoria, honra e virtudes, alm de ser um grande administrador. Segundo Paul
Petit, seu reinado marca o apogeu do Imprio humanstico (PETIT, 1974, p. 172), o
que permitiu um ambiente favorvel para Justino abrir sua escola de filosofia em
Roma. Foi no seu principado que surgiu a distino entre honestiores e humiliores.
Segundo Keith Hopkins (HOPKINS, 1981), esses dois termos estavam mais de acordo
com o sistema de estratificao social formal16, dividindo-o em dois grupos: os
honestiores eram os membros das classes altas (os senadores, os cavaleiros, os
decuries e os legionrios de qualquer categoria). J os humiliores eram os membros
das classes baixas (a plebe urbana, o campesinato, os libertos e os escravos).
Segundo Piganiol, seu governo das classes cultas, e demonstra preocupao
em educar os filhos dos governantes, concedendo honras aos filsofos (PIGANIOL,
16. Hopkins explica que este sistema de estratificao chamado de formal porque a diferena de status entre os grupos sociais era assegurada a partir de uma legislao que especificava a renda (em sestrcios) necessria para pertencer a cada grupo ou estamento social. Por exemplo: para pertencer ao 1 estamento (ou classe), ou seja, pertencer elite aristocrtica senatorial, era necessria uma riqueza mnima de 1 milho de sestrcios. Para o 2 estamento (a Ordem Equestre) era necessria uma riqueza de 400 mil sestrcios.
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1961, p. 285). Portanto, o principado de Antonino se apresenta como um tempo
propcio para Justino exercer sua atividade como filsofo em Roma.
Piganiol relembra ainda a humanitatis causa presente em suas decises, que
pode ser verificada atravs de vrios exemplos: proibiu a priso dos que deviam
fiana, mandou revisar causas julgadas em ausncia, proibiu a tortura a rus
confessos, interveio em favor dos escravos (senhores que os maltratavam tinham de
os libertar; e aqueles que matassem um escravo eram perseguidos pelo Estado) e a
alforria aos libertos tornou-se irrevogvel (PIGANIOL, 1961, p. 285).
Ao contrrio de Adriano, Antonino nunca saiu da Itlia, mas realizou intensa
correspondncia com as provncias. Manteve-se fiel s antigas tradies, mas
tambm favoreceu os cultos orientais (negligenciados por Adriano), tais como o de
Cibele, de Mitra e o de Baal Solar (Baalceck). Para Paul Petit, essa atitude, que
primeira vista pode parecer estranha de sua parte, responde na verdade evoluo
de seu tempo, no qual se afirma o triunfo das religies orientais (PETIT, 1974, p.
174). J Charles Munier (MUNIER, 2006, p. 44), amparado nos trabalhos de Piganiol17
e L. Homo18 refora a atitude conservadora de Antonino em sua observncia dos
velhos cultos como uma forma de contrapor-se ao ceticismo e influncia das
religies orientais. O ttulo Pio seria mais uma decorrncia disso do que de sua
postura em relao ao imperador Adriano, seu pai adotivo.
Esta retomada mais vibrante dos antigos cultos e da tradio dos antepassados
gerou, certamente, um ambiente pouco favorvel aos cristos. Estes facilmente
poderiam ser considerados desertores dos antigos costumes.
Durante seu principado Justino chegou a Roma, e foi a Antonino Pio que o
apologista endereou sua Apologia, para fazer a defesa dos cristos injustamente
odiados e caluniados.
17. PIGANIOL, A. Histoire de Rome, Paris, 1949, p. 295.18. HOMO, L. Le Haut-Empire, Paris, 1941, p. 541
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com o presente escrito, no pretendo bajular-vos, nem dirigir-vos um discurso como mero agrado, mas pedir-vos que realizeis o julgamento contra os cristos conforme o exato discernimento da investigao, e no deis a sentena contra vs mesmos, levados pelo preconceito ou pelo desejo de agradar homens supersticiosos, ou movidos por impulso irracional ou por boato crnico ( I Apol. 2,3).
Quando Justino aponta a necessidade de um exato discernimento da
investigao, fala com a autoridade de um filsofo. E quando, fazendo uso de certo
tom ameaador, admoesta ao imperador: no deis a sentena contra vs mesmo,
fala como cristo convicto, ciente de que Deus no ficaria indiferente s injustias
praticadas. Ele exige do imperador justo julgamento desprovido de paixes: os
mandantes deem sua sentena no levados pela violncia e tirania, mas segundo a
piedade e a filosofia. S assim governantes e governados podem gozar de felicidade
(I Apol. 3,2).
Em sua estratgia, Justino procura demonstrar que os cristos no cometem
crime contra o Estado Romano, mas so bons sditos; E, se as perseguies so
motivadas por boatos malvolos, ento ele julga necessrio expor sobre o que
acreditam os cristos, sua forma de vida e como so suas prticas religiosas.
Evidentemente, em Justino temos a viso crist a respeito da atuao do
Imprio Romano sobre os cristos. A veracidade de seu testemunho no pode ser
questionada. No entanto, as perseguies no podem ser compreendidas apenas do
ponto de vista cristo. As palavras do apologista podem nos fazer crer que a
abrangncia das perseguies era muito expressiva. Quando nos voltamos para as
fontes romanas, embora escassas, percebemos que, em meados do segundo sculo,
o cristianismo no era considerado um problema a ser eliminado mediante coero
ativa por parte do Estado19. Por outro lado, estas mesmas fontes no so
19. Isso significa que no sculo II as consequncias das perseguies eram igualmente trgicas. O prprio Justino foi vtima delas. No entanto, muito importante considerar que at o sculo II estas perseguies eram intermitentes. De abrangncia reduzida, tinham na verdade, motivaes locais e, portanto, no alcanavam todo o Imprio. No sculo III e incio do IV esse panorama ser diverso. As perseguies tornam-se gerais, no mesmo momento em que a crise interna e a ameaa externa dos brbaros crescia. Havia um certo consenso de que a prosperidade e a estabilidade perdidas
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esclarecedoras para entender as razes das perseguies, o que explica as
divergncias entre os especialistas.
Com o objetivo de responder por que os cristos eram perseguidos, Ste. Croix,
em um artigo esclarecedor e ao mesmo tempo polmico, discute as perseguies a
partir do ponto de vista romano (Ste CROIX, 1981). Apresentamos em linhas gerais as
ideias centrais do autor.
Segundo Ste Croix as primeiras perseguies foram em pequena escala,
motivadas, sobretudo, pela hostilidade de comunidades judaicas20. Geralmente, os
romanos colocavam-se margem dos conflitos entre judeus e cristos, adotando
uma postura de indiferena. No entanto, quando a ao missionria crist, por conta
da evangelizao, provocava algum tipo de motim ou desordem pblica, as
autoridades romanas locais tinham de tomar providncias. Esta fase se encerra com o
incndio de Roma por Nero em 64 d. C., que na verdade, a primeira comprovao
de perseguio crist mencionada pelos prprios romanos21. Nero culpou os cristos
pelo incndio e perseguiu todos os que admitiam ser cristos. Alm de serem
acusados de incendirios, atravs de Tcito e de Suetnio sabemos que os cristos
foram acusados de odiarem a espcie humana. Eles tambm foram odiados pelo
povo por suas abominaes. Para Ste Croix isso significa que o povo estava muito
convencido de que os cristos eram capazes de cometer crimes terrveis. Desta
forma, para um julgamento, era suficiente a acusao de ser cristo (muito comum
retornariam se os romanos retomassem com mais veemncia a tradio dos antepassados. Assim, o paganismo ganhou fora e, consequentemente, intensificaram-se as perseguies contra os cristos, no mais feita apenas por autoridades locais, mas agora, orquestrada pelos prprios imperadores, cuja incidncia recaia por todo o Imprio. Os grandes exemplos desse perodo foram as perseguies de Dcio (250 d.C.), de Valeriano (257-258 d.C.) e de Diocleciano (303-305 d.C.). Nota-se porm, que as perseguies gerais tiveram curta durao.20. Ste Croix salienta no ser este o nico motivo destas perseguies, uma vez que fora da Judeia esta hostilidade dos judeus em relao aos cristos seria menor, ou nem existiria. No entanto, no menciona quais seriam os outros motivos. bem provvel que judeus da dispora tambm pudessem mover reaes contrrias aos cristos ou doutrina defendida e ensinada por eles, sobretudo quando visavam a converso das comunidades judaicas. Fica claro que esta 1 fase no muito significativa para Ste Croix, pois faltam elementos para consider-la a partir de fontes romanas (objetivo do autor).21. Sobre este evento, h uma breve meno de Tcito, Ann. XV.44.3-8.
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no sculo II), pois ser cristo era pertencer a um status que, naqueles momentos,
implicava necessariamente ser membro por definio de uma conspirao antissocial
e potencialmente criminosa (Ste CROIX, 1981, p. 237). Isso j nos ajuda a
compreender por que os pagos exigiam as perseguies: o dio das massas
precipitou as aes das autoridades romanas.
A natureza das acusaes contra os cristos entre os anos 64 e 112 era
somente a de ser cristo. O nomem christianum j era suficiente para punies. por
isso que Justino argumenta que ningum deve ser castigado por um nome, mas por
suas aes: Com efeito, em s razo, de um nome no se pode originar elogio ou
reprovao, se no se puder demonstrar por fatos alguma coisa virtuosa ou
vitupervel (I Apol. 4,3).
Outra acusao aos cristos seria a de deslealdade poltica, motivada durante
o principado de Domiciano (81-96) em decorrncia do culto ao imperador ter sido
reforado na sia Menor. Para Ste Croix, provavelmente, cristos foram mortos ao se
negarem a prestar culto ao imperador. Porm, isso no pode ser considerado como
uma prtica corrente ou como fator decisivo para os martrios. Ao contrrio, foram
eventos ocasionais. Na verdade, o assunto o sacrificio aos deuses, como regra,
sem especificar que se trata dos deuses dos romanos. E quando o ato cultual referido
concerne ao imperador, geralmente um juramento ao seu Gnio () ou um
sacrificio aos deuses em seu nome (Ste CROIX, 1981, p. 240). A prtica corrente era
a dos imperadores receberem culto somente aps a morte.
O processo judicial que os cristos sofriam era baseado nos mesmos
procedimentos para qualquer outro crime. Empregava-se o cognitio extra ordinem
(extraordinria)22. Os julgamentos mais importantes eram feitos diante dos
governadores, no caso das provncias. Na cidade de Roma, os julgamentos
aconteciam diante do prefeito da cidade (como aconteceu com Justino) ou diante do
22. Tal procedimento era empregado devido a lacunas contidas na ordo iudiciorum publicorum, onde muitos crimes pblicos no estavam tipificados. Ento, a autoridade competente interferia diretamente para dirimir os casos.
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prefeito do Pretrio. Embora houvesse a possibilidade (caso um cidado apelasse),
no sabemos de cristos que foram julgados diante do imperador, o que demonstra
que nenhum caso foi considerado de grande importncia por parte das autoridades,
ou ento, que no era comum um cristo apelar, o que parece provvel, j que o
martrio era a forma mais perfeita de se associar aos sofrimentos de Jesus Cristo. De
qualquer maneira, Ste Croix deixa claro que os cristos no eram punidos por pura
coero da parte do Imprio, mas eram submetidos a um julgamento, isto , um
procedimento legal e no arbitrrio. Este julgamento, por sua vez, no estava
baseado em casos anteriores. Ao exercer a cognitio extra ordinem, o governador no
era obrigado a seguir as constituies imperiais anteriores, mas somente aquelas que
estavam em vigor e que incidiam sobre a sua zona de atuao. E era comum o
governador no saber quais eram as constituies vigentes. Isso significa que as
orientaes de Trajano a Plnio no seriam necessariamente uma referncia de
conduta em pocas posteriores. bem verdade que o governador poderia seguir as
instrues de Trajano, mas eles no estavam obrigados a isso, principalmente
governadores de outras provncias. Tudo indica que nunca houve uma lei geral contra
o cristianismo que valesse para todo o Imprio.
Outra questo importante para Ste Croix que um governador, normalmente,
no podia tomar iniciativa nas perseguies. Era necessria uma denncia e o delator
tinha de agir com prudncia, pois uma acusao falsa ou sem provas incorria em
crime de calnia. Como j discutimos, isso fica claro na carta de Trajano, onde o
imperador orienta a no procurar os cristos para puni-los, mas apenas agir mediante
uma denncia. No entanto, Ste Croix pondera que esta orientao poderia ser
ignorada, como aconteceu nas perseguies de Lio e de Viena ocorridas em 177 d.C.
por mando do governador. E quando um governador dava ordem de perseguio ele
no estava descumprindo a lei, uma vez que ele no era obrigado a seguir uma
determinao de um imperador anterior. Tudo dependia da abrangncia da
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convulso social provocada pela presena dos cristos em uma dada regio. O rigor
do governador era proporcional fria da populao contra os cristos.
Se um governador se recusava, apesar de tudo, a fazer o que o povo esperava, no apenas se tornava impopular: a indignao geral contra os cristos podia, muito facilmente, provocar motins e linchamentos, como temos provas de que ocorreu algumas vezes; e, uma vez a violncia desencadeada, qualquer coisa podia acontecer (Ste CROIX, 1981, p. 250).
Assim, o objetivo bsico era manter a ordem na provncia. Tratava-se de um
problema poltico e social. Se a presena dos cristos no motivasse distrbios civis,
no haveria razo para um governador ordenar perseguies.
O fato de no haver razes concretas para uma perseguio no significa que
os cristos eram aceitos pelos romanos. Ao contrrio, as autoridades encaravam-nos
com suspeitas. Ste Croix levanta vrios motivos para isso:
1) Eram considerados mali homines, uma vez que adoravam um homem que
fora crucificado pelo Governador da Judeia por crime poltico;
2) Sua lealdade ao Estado era colocada em dvida ao se negarem a jurar pelo
Gnio do imperador;
3) Falavam sempre sobre o fim do mundo;
4) Em seus livros verificava-se um dio a Roma (sob o disfarce de Babilnia),
cuja runa era profetizada;
5) Seus ritos secretos eram considerados como conspiraes polticas e
comportamento antissocial;
Diante desse quadro, no era difcil um governador condenar um cristo por
traio, ainda que, na verdade, ela no existisse. Desta forma, a base legal para as
perseguies, segundo Ste Croix, era um acusador alegando a existncia do
cristianismo e um governador disposto a punir os cristos por considerar necessrio.
O autor descarta a possibilidade de que a Igreja nascente fosse considerada como
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collegia illicita (associaes fora da lei, sem aprovao) e que isso desencadeasse as
perseguies: no sabemos de nenhum cristo que tenha sido perseguido por
pertencer a um collegium illicitum (Ste CROIX, 1981, p. 252).
Ste Croix procura opor-se teoria de Sherwin-White, que, a partir da carta de
Plnio, defende que os cristos eram perseguidos pela contumcia, por negarem
obedecer a uma ordem expressa de um magistrado. A ordem era oferecer sacrifcios
aos deuses. Para Ste Croix esta concluso errnea, pois em nenhum momento
Plnio utiliza o termo contumacia em sua carta. Ele tambm no disse que obrigava os
cristos a oferecerem sacrifcios; eram obrigados apenas aqueles que negavam ser
cristos. Ento, a ordem era apenas um artifcio para verificar se os no-cristos
estavam falando a verdade. Ste Croix salienta que, em julgamentos posteriores
carta de Plnio, cristos eram obrigados ao sacrifcio aos deuses. Porm, a
contumcia s era verificada com o julgamento em curso, e, portanto, ela jamais
poderia ser o motivo para a perseguio: O elemento essencial na condenao dos
cristos a ilegalidade do cristianismo, e no o comportamento em juzo do acusado,
comportamento que, como vimos, o nico ponto em que se poderia dizer que
houve contumcia (Ste CROIX, 1981, p. 254).
Para Ste Criox, a prova do sacrifcio era uma oportunidade de constatar que
realmente no eram cristos aqueles que negavam s-lo. Tal prtica (no apenas
usada contra cristos) era acompanhada de tortura e com Marco Aurlio (161-180)
passou a ser aplicada a todas as pessoas de classe baixa, cidados ou no. Essa
medida tinha como objetivo fazer a pessoa apostatar, e no fazer dela um mrtir.
Assim, se um governador quisesse realmente condenar um cristo no poderia
tortur-lo, pois abriria uma oportunidade para a apostasia, da qual, uma vez
assumida, decorria a liberdade imediata do acusado. No entanto, esta concluso de
Ste, Croix no nos parece plenamente vlida, pois no leva em considerao a
importncia do martrio no imaginrio cristo, assumido sem resistncia. Isso
diferente do fenmeno do martrio voluntrio, que, segundo o autor, era mais
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comum do que se costuma acreditar, ocorrendo no apenas com cristos herticos,
mas tambm com aqueles dentro da ortodoxia. Embora fosse mais comum j no final
das grandes perseguies, sua prtica est presente no sculo II, por volta do ano
150. De acordo com Ste Croix o martrio voluntrio, mesmo sendo desaconselhado
pelas autoridades da igreja, contribuiu para ampliar e intensificar as perseguies,
uma vez que era considerado como uma provocao s autoridades.
Por que as massas exigiam e at iniciavam as perseguies?
O ponto principal que o monotesmo cristo punha em perigo a pax deorum.
Por serem impiedosos aos deuses romanos, isto , no nutrir piedade aos deuses, os
cristos atraam castigos das divindades. Esta seria a causa de desastres de qualquer
ordem. Ainda que no houvesse legalmente a obrigao dos habitantes do imprio
(cidados ou no) de realizarem os cultos pblicos, magistrados e Senadores se
obrigavam a tais prticas. Era de bom tom demonstrar publicamente respeito s
tradies religiosas dos antepassados e piedade aos deuses.
Os cristos, ao se negarem a participar dos cultos pblicos e se posicionarem
abertamente contra a religio do imprio e contra os deuses, na verdade tambm se
colocavam margem do Estado, pois os cultos religiosos eram atos cvicos, isto ,
demonstraes concretas de identidade coletiva e lealdade ao Estado. Isso tambm
nos ajuda a compreender por que o governo perseguia os cristos. Alm dos fatores
j apontados, Ste Croix diz que a razo principal era religiosa, entendida como a
negao de cultuar os deuses. Entretanto, excetuando os principados de Valeriano
(253-260) e Diocleciano (284-305) em nenhum momento os cristos foram impedidos
de cultuar seu Deus privadamente.
Segundo Ste Croix
a religio, para os romanos, era sobretudo o ius divinum, o corpo de leis estatais que se referiam s matrias sagradas, que salvaguardavam a pax deorum por meio de um cerimonial adequado. Sua grande importncia derivava, como afirmava repetidamente Ccero, principalmente do fato de descansar sobre a auctoritas
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maiorum, a fora da tradio ancestral (Ste CROIX, 1981, p. 270). Ccero afirma que o ius divinum a base fundamental de nosso Estado23.
Nesse sentido, a resposta de Sherwin-White s crticas de Ste Croix se faz da
seguinte forma: primeiro, ele tenta demonstrar que Ste. Croix falha ao considerar que
desde os primrdios do cristianismo a perseguio aos cristos acontecia por estes
no reconhecerem os deuses romanos. Segundo Sherwin-White,
a crena de que a ausncia de deuses o miolo da matria depende da evidncia do perodo tardio, que se extrai no de fontes romanas, mas das apologias crists e das primeiras atas dos mrtires, compostas de um ponto de vista cristo, ainda que, por vezes, escritas em formato de informe oficial romano (A. N. SHERWIN-WHITE, 1981, p. 275).
As fontes sobre as perseguies nos perodos mais antigos (Plnio, Tcito e
Suetnio), escritas entre 110-125, indicam motivos relacionados a imoralidades e
abominaes (flagitia, scelera, maleficia)24. Assim, na carta de Plnio os cristos
devem ser punidos pelo nome associado a uma flagitia. O descuido dos cultos cvicos
por parte dos cristos, ainda que apontados por Plnio, no seriam para Sherwin-
White a base para as perseguies, mas sim as acusaes de imoralidades, pois
Plinio est pensando claramente em flagitia quando informa que o exame dos
apstatas e das diaconisas no revelava nada escandaloso (A. N. SHERWIN-WHITE,
1981, p. 277).
A segunda forma de rebater as crticas de Ste Croix retomando o termo
contumcia. Para Sherwin-White no se trata apenas de um comportamento diante
do tribunal, mas de um desafio autoridade romana. Ainda que Plnio no usasse o
termo contumacia, ele considera a perseverana e a obstinao dos cristos como
uma atitude insidiosa, uma desobedincia que deveria ser punida.
23. CCERO, De Natura Deorum, III,5.24. Sherwin-White cita as seguintes fontes: PLNIO, Epist. X.96.2; TCITO, Ann. XV.44.3-4; SUETNIO, Nero, 16.2.
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Por fim, haveria alguma relao entre as perseguies aos cristos
encabeadas pelas autoridades romanas e os judeus? Em outras palavras, os judeus
teriam algum papel ou responsabilidade na perseguio contra os cristos?
Para Marcel Simon, provvel que algumas das calnias impetradas pela
massa pag tenham nascido em mbito judaico (SIMON, 1948, p. 146), como alegou
Orgenes ao atribuir aos judeus as calnias sobre a antropofagia e as orgias dos
cristos (Contra Celso, 6,27)25. No entanto, Simon parece concordar com os estudos
de M. Parkes a respeito da participao judaica nas perseguies. Desta forma, os
relatos sobre os mrtires cristos que apontam uma participao direta de judeus
so raros, circunscritos ao primeiro sculo, mais precisamente na Palestina. A partir
do sculo II, a responsabilidade essencial pelos martrios recai sobre os pagos e
sobre as autoridades romanas. Geralmente, os judeus, quando citados, no o so
como autores nicos ou protagonistas, ainda que eles se associem aos pagos
(SIMON, 1948, p. 149). Segundo Simon:
Definitivamente, os poucos casos certos de hostilidade ativa no ultrapassam, segundo parece, o mbito das iniciativas individuais ou locais. No se poderia falar de uma conspirao geral do judasmo, nem de um papel determinante, mas apenas da ao de alguns judeus, secundando ou estimulando o dio popular. () Israel no simpatizava, nem com os cristos perseguidos, nem com o Imprio perseguidor, responsvel por suas prprias misrias. Em relao aos cristos era por vezes o dio que os dominava, outras vezes a piedade, e s vezes mesmo um certo sentimento de solidariedade ; em relao ao Imprio, algumas vezes a averso, e outras vezes as consideraes de oportunismo levavam os judeus, para consolidar sua posio privilegiada e proteger-se contra represlias, a traar claramente a linha de demarcao com a nova seita, acompanhando
ou adiantando-se s reaes populares e s sanes oficiais (SIMON, 1948, p. 152).
25. A esse respeito importante considerar que Justino, ao contrrio de Orgenes, cita as mesmas calnias, mas no as associa diretamente aos judeus. Disse Justino: por acaso, tambm acreditais que devoramos os homens e que, depois do banquete, apagamos as luzes, e nos entregamos a unies ilcitas? (Dil. 10,1). Eis a resposta de Trifo: Tudo isso que o povo comenta so coisas indignas de crdito, pois afastam-se muito da natureza humana. (Dil. 10,2).
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E, citando Parkes, conclui: Os textos que sugerem ou afirmam o contrrio,
procedem de uma exegese teolgica e no de uma recordao fiel dos fatos
histricos 26.
Acreditamos que todos os conflitos mencionados por Justino, e que
analisaremos no ltimo captulo deste trabalho, devem ser estudados nessa
perspectiva. Isso no incorre em negar ou minorar os conflitos entre judeus e cristos
no segundo sculo, mas em considerar o relato de Justino mais criticamente. bem
verdade que Justino acreditava que os judeus moviam os pagos ao dio contra os
cristos, como ele mesmo afirmou: As outras naes no tm tanta culpa da
iniquidade que se comete contra ns e contra Cristo como vs, que sois a causa do
preconceito injusto que elas tm contra ele e contra ns, que viemos dele (Dil.
17,1). Justino chega a ser mais incisivo acusando os judeus e os proslitos de
violncia a ponto da privao de vida: No tendes poder para pr vossas mos sobre
ns, porque sois impedidos pelos que agora mandam; mas fizestes isso sempre que
vos foi possvel (Dil. 16,4). E ainda: Os proslitos, porm, no s no creem, mas
blasfemam duas vezes mais do que vs o nome de Jesus, e querem matar e
atormentar a todos ns que nele cremos, tornando-se a todo custo semelhantes e
vs (Dil. 122,2).
No entanto, acreditamos que todas estas passagens so mais resultantes do
calor da polmica do que amparadas em fatos que se repetiam. A principal razo
para isso que quando S. Justino fala abertamente das perseguies, responsabiliza
os judeus indiretamente. So os demnios que condenam os cristos morte e os
judeus os servem (Dil. 131,2). A despeito de todas as acusaes, o Dilogo nos
fornece elementos seguros sobre a participao direta dos judeus nas perseguies
aos cristos? Acreditamos que no. Quando o apologista procura explicar por que os
judeus no se convertem ao cristianismo, esta dissociao fica evidente. Os judeus
no se convertem porque temem as perseguies. Disse Justino: O motivo por que
26. PARKES, J. The Conflict of the Church and the Synagogue. A Study in the Origins of Antisemitism. Londres, 1934, p. 148. APUD SIMON, Marcel, 1948, p. 152.
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vacilais em confessar a Jesus como Cristo, como as Escrituras o demonstram, os fatos
evidentes e os prodgios que acontecem em seu nome, talvez seja porque no sois
perseguidos pelos governantes (Dil. 39,6).
E ainda:
Desse modo, colocando todo o meu empenho em vos convencer com as minhas demonstrao, ficarei inteiramente sem culpa em relao a vs. Todavia, se vs, permanecendo na dureza de corao ou fracos na convico por medo da morte decretada contra os cristos, no quiserdes abraar a verdade, toda a culpa ser vossa () (Dil. 44,1).
Assim, a participao dos judeus na perseguio aos cristos pode ser
caracterizada em seu maior grau como modesta. No entanto, em uma esfera popular,
cujos agentes compartilhavam um ambiente polmico entre os dois grupos de
crentes, bem provvel que os cristos responsabilizassem os judeus pelas
perseguies, da mesma forma como pode ser possvel que chefes das comunidades
crists adotassem esse discurso, ou algo similar, talvez por uma aproximao entre a
perseguio que os cristos sofriam na poca com as perseguies empreendidas
pelos judeus a Cristo e aos primeiros discpulos mencionadas no Novo Testamento.
Talvez, uma certa animosidade entre os dois grupos de crentes pudesse ser
alimentada pelo estatuto jurdico dos judeus, que gozavam de alguns privilgios no
Imprio Romano, tais como: livre exerccio do culto em todo o Imprio (JUSTER,
1914, p. 214), direito de se reunir (JUSTER, 1914, p. 409), dispensa do servio militar
(JUSTER, 1914, p. 246) e de comemorar festas no judaicas (JUSTER, 1914, p. 360).
Marcel Simon acrescenta ainda a imunidade de todos os cargos, de obrigaes e de
funes incompatveis com o rigor monotesta, inclusive a dispensa do culto imperial
(SIMON, 1948, p. 125-126). Em contrapartida, a situao dos cristos era delicada.
No possuam nenhum privilgio e, bastando uma denncia, eram conduzidos ao
julgamento e punidos.
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Juster salienta uma possvel explicao para esta diferena de tratamento por
parte das autoridades romanas:
Para explicar, motivar essa tolerncia excepcional que lhes era concedida, enquanto se dirigiam cruis perseguies contra os cristos, e tambm para impedir o proselitismo judeu, os imperadores se aplicaram em acentuar o carter nacional do culto judeu (JUSTER, 1914, p. 247).
Assim, os privilgios so concedidos porque os aspectos religiosos so
considerados como expresso do povo enquanto nao, com a qual os romanos
estabelecem alianas de acordo com o que lhes parece interessante. J os cristos,
alm de todos os problemas apresentados anteriormente como motivadores para as
perseguies, no possuam uma identidade coletiva nacional, como os judeus.
Assim, os judeus podiam seguir suas prprias leis, porque esse era o princpio seguido
por Roma em relao aos outros povos em sua poltica de alianas.
Durante o principado de Adriano, todos os privilgios concedidos aos judeus
foram suspensos. O Imperador Antonino Pio teve de enfrentar uma nova revolta
judaica, certamente por conta dos desdobramentos da derrota de Bar Cochba e pela
suspenso dos privilgios. No entanto, ao contrrio de seu antecessor, Antonino
restabeleceu todos os antigos privilgios, inclusive levantou a interdio da
circunciso aos judeus, pondo fim ao conflito. Desta forma, o estatuto jurdico dos
judeus foi restabelecido. Segundo Marcel Simon, a essncia da poltica romana ante
os judeus durante o principado de Antonino baseava-se no seguinte princpio: a
adorao a Deus seria tolerada por Roma com a condio de que os judeus no
fizessem da Palestina um reino independente e no impusessem essa mesma
adorao aos gentios. Isso equivale a dizer que os judeus no seriam molestados
desde que no representassem dois perigos: o do nacionalismo e o do proselitismo27.
27. Simon salienta que destes dois aspectos a preocupao maior era o perigo nacionalista. A proibio do proselitismo nem sempre foi levada a termo pelos imperadores (SIMON, 1948, p. 132-133).
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Por fim, resta-nos traar em linhas gerais alguns aspectos do principado de
Marco Aurlio (161-180), quando Justino foi martirizado. Ele, devido sua formao
filosfica, continuou permitindo que filsofos debatessem na capital. O confronto de
Justino com Crescente ocorreu nessa poca. Piganiol salienta que Marco Aurlio
possua altas qualidades morais, mas no era um verdadeiro homem de Estado
(PIGANIOL, 1961, p. 286), como seus predecessores. Segundo Rmondon, com Marco
Aurlio o equilbrio do Imprio Romano se rompe e germina a crise (RMONDON,
1967, p. 5). Esses problemas se do no momento em que o imperador precisa
empreender vrias guerras para conter o avano dos brbaros. O aumento dos gastos
com a guerra acompanhado por problemas econmicos acentuados pela queda na
produo no campo e forte xodo rural.
Na esfera religiosa, Hamman afirma que Marco Aurlio irritava-se com o fato
de os cristos no temerem a morte, considerada por ele um fausto trgico
(Pensamentos XI,3).
A verdade que existe uma incompatibilidade entre o estoicismo como o imperador filsofo o concebia e o cristianismo. A razo universal guia o homem e o mundo, basta submeter-se s suas leis e aos seus determinismos (Pensamentos XII,14). Como conceber a mediao de Cristo, a irrupo do divino na histria universal, como admitir a pretenso do evangelho de mudar o homem e de renov-lo interiormente? (...) Ele no demonstrava nenhuma simpatia pelos cristos e no se sentia irmo deles (Pensamentos XI,3,2) O filsofo tanto quanto o imperador, sentia-se agredido por eles, porque haviam levado o debate para o seu prprio terreno e contestado sua regra de vida (HAMMAN, 1997, p. 102).
Ao que tudo indica, Hamman procura aproximar as concepes filosficas de
Marco Aurlio com o martrio de Justino, uma vez que estas estariam em oposio ao
cristianismo. O imperador, alm de ter profunda afeio por Rstico, Prefeito do
Pretrio que condenou Justino ao martrio, procurava lanar os filsofos contra os
cristos (HAMMAN, 1997, p. 100). provvel que esta anlise seja um pouco
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exagerada, pois indicaria que o imperador estivesse pessoalmente incomodado com
a atividade de Justino em Roma.
O Dilogo foi escrito em um contexto de transformaes sociopolticas em que
a atuao de alguns imperadores contra judeus e cristos afetaram a relao entre os
fiis dos dois cultos. No entanto, o estudo da relao entre judeus e cristos no
sculo II no passa exclusivamente por uma intermediao romana. Ela pode ser
analisada a partir de seus prprios agentes, o que nos leva a discutirmos aspectos do
judeu-cristianismo, da apologia crist e do proselitismo judaico.
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2.2 - Breve histrico do judeu-cristianismo
A lei de Iahweh perfeita, faz a vida voltar.Salmo 19(18),8.
No penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. No vim revog-los, mas dar-lhes pleno cumprimento.
Mateus 5,17.
O judeu-cristianismo presente no I e II sculos de difcil definio. Primeiro,
porque ele no representa uma tendncia nica seguida por um grupo homogneo
de fcil caracterizao. Ao contrrio, trata-se de um fenmeno complexo e
multiforme (SIMON; BENOIT, 1987, p. 263). Para Jean Danilou, da mesma forma
como as diversas comunidades judaicas do primeiro sculo possuam vrias
modalidades de culto e diferenas na importncia dada a alguns princpios religiosos,
o mesmo ser notado nas comunidades formadas por judeu-cristos (DANILOU,
1985, pp. 13-18;24-25)28. Depois, se pensarmos o judeu-cristo como um judeu
convertido, torna-se impossvel negar que o cristianismo, desde a sua origem na
Igreja de Jerusalm era judeu-cristo por natureza. Uma vez que os primeiros
seguidores de Jesus Cristo for