O Diario de um mago (paulo coelho)

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Paulo Coelho

O Diário de um Mago

Foto: cortesia Istoé Gente

Edição especial dewww.paulocoelho.com.br , vendaproibida Quinze anos depois...

Sentado em um jardim de uma cidade nosul da França.

Agua mineral.

Café.

Temperatura de 27º C na tarde de 1 dejunho 2001.

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Pessoas que conversam, pessoas quecaminham.

Pessoas que também tomam seu café esua água mineral.

Então volto para uma tarde, um café,uma água mineral, pessoas conversandoe caminhando

– só que desta vez o cenário são asplanícies de Leon, o idioma é espanhol,meu aniversário se aproxima, já saí deSant Jean Pied-de-Port faz tempo, eestou pouco além da metade do caminhoque conduz a Santiago de Compostela.Olho para adiante, a paisagemmonótona, o guia que também toma o seucafé num bar que parece ter surgido de

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lugar nenhum. Olho para trás, a mesmapaisagem monótona, com a únicadiferença que a poeira do chão tem asmarcas das solas de meus sapatos – masisso é temporário, o vento as apagaráantes que chegue a noite. Tudo meparece irreal. O que estou fazendo aqui?Esta pergunta continua meacompanhando, embora várias semanasjá se tenham passado.

Estou procurando uma espada. Estoucumprindo um ritual de RAM, umapequena ordem dentro da IgrejaCatólica, sem segredos ou mistériosalém da tentativa de compreender alinguagem simbólica do mundo. Estoupensando que fui enganado, que a busca

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espiritual não passa de uma coisa semsentido ou lógica, e que seria melhorestar no Brasil, cuidando do que eusempre cuidava. Estou duvidando deminha sinceridade na busca espiritual –porque dá muito trabalho procurar umDeus que nunca se mostra, rezar nashoras certas, percorrer caminhosestranhos, ter disciplina, aceitar ordensque me parecem absurdas.

É isso: duvido da minha sinceridade.Por todos estes dias Petrus tem dito queo caminho é de todos, das pessoascomuns, o que me deixa muitodecepcionado. Eu pensava que todo esteesforço fosse me dar um lugar dedestaque entre os poucos eleitos que se

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aproximam dos grandes arquétipos douniverso.

Eu pensava que ia finalmente descobrirque é verdade todas as histórias arespeito de governos secretos de sábiosno Tibete, de porções mágicas capazesde provocar amor onde não existeatração, de rituais onde de repente asportas do Paraíso aparecem adiante.

Mas é exatamente o contrário que Petrusme diz: não existem eleitos. Todos sãoescolhidos, se ao invés de seperguntarem “o que estou fazendo aqui”,resolverem fazer qualquer coisa quedesperte o entusiasmo no coraçao. É notrabalho com entusiasmo que está aporta do paraíso, o amor que transforma,

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a escolha que nos leva até Deus. É esseentusiasmo que nos conecta com OEspirito Santo, e não as centenas,milhares de leituras dos textos clássicos.É a vontade de acreditar que a vida é ummilagre que permite que os milagresaconteçam, e não os chamados “rituaissecretos” ou “ordens iniciáticas”. Enfim,é a decisao do homem de cumprir o seudestino que o faz ser realmente umhomem – e não as teorias que eledesenvolve em torno do mistério daexistência.

E aqui estou eu. Um pouco além do meiodo caminho que me leva a Santiago deCompostela.

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Nesta tarde em Leon, no longínquo anode 1986, eu ainda não sei que daqui aseis ou sete meses irei escrever um livrosobre esta minha experiencia, que jácaminha por minha alma o pastorSantiago em busca de um tesouro, queuma mulher chamada Veronika preprara-se para ingerir algumas pílulas e tentarcometer suicídio, que Pilar chegarádiante do rio Piedra e escreverá,chorando, o seu diário. Tudo que seineste momento é estou tenso, nervoso,incapaz de conversar com Petrus,porque acabo de me dar conta de quenão posso mais voltar a fazer o quevinha fazendo - mesmo que issosignifique abrir mão de um dinheirorazoavel no final do mês, de uma certa

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estabilidade emocional, de um trabalhoque já conheço e do qual dominoalgumas técnicas. Preciso mudar, seguirem direção ao meu sonho, um sonho queme parece infantil, ridículo, impossívelde ser realizado: tornar-me o escritorsecretamente sempre desejei ser, masque não tenho coragem de assumir.

Petrus termina de beber seu café, suaágua mineral, pede que pague a despesae que continuemos logo a andar, já queainda faltam alguns quilometros até apróxima cidade. As pessoas continuampassando e conversando, olhando com ocanto dos olhos os dois peregrinos demeia-idade, pensando como há genteestranha neste mundo, sempre pronta a

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tentar reviver um passado que já estámorto (*). A temperatura deve estar emtorno de 27o C porque é o final da tarde,e eu me pergunto silenciosamente, pelamilésima vez, o que estou fazendo ali.

Eu queria mudar? Acho que não, mas aofim e ao cabo este caminho está metransformando.

Eu queria conhecer os mistérios? Achoque sim, mas o caminho está meensinando que não existem mistérios,que – como dizia Jesus Cristo – não hánada oculto que não tenha sido revelado.Enfim, tudo está acontecendo exatamenteao contrário do que eu esperava.

Nos levantamos, e começamos a andar

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em silêncio. Estou imerso em meuspensamentos, em minha insegurança, ePetrus deve estar pensando – imagino eu– no seu trabalho em Milão. Está aquiporque de alguma maneira foi obrigadopela tradição, mas possivelmente esperaque esta caminhada termine logo, paraque possa voltar a fazer o que gosta.

Andamos por quase todo o resto datarde sem conversar nada. Ainda nãoexistem telefones celulares, faxes, cartaseletrônicas. Estamos isolados em nossaconvivência forçada. Santiago deCompostela está adiante, e não possoimaginar que este caminho me conduznão apenas à esta cidade, mas a muitasoutras cidades do mundo.

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Volto ao jardim na cidade do sul daFrança. Durante todos estes anos, tenhoescutado todo tipo de comentário arespeito de minha peregrinação; desdeque a fiz inteiramente de taxi (imagine opreço!) até que tive a ajuda secreta dealgumas sociedades iniciáticas (imaginea confusão). O único documento quetenho do Caminho – como vemos noinício do livro, a Mme. Debrill mepediu que devolvesse o carnet – é umaCompostelana, diploma de peregrinoque me foi dado sem muito entusiasmona Catedral, e preenchido por umauxiliar ( que colocou meu nome emportugues, quando a tradiçao manda queseja em latim). É

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melhor deixar assim: como Petrus nãoprecisava saber o que faria com minhaespada, os leitores não precisam tercerteza se fiz ou não a peregrinação:desta maneira, buscarão a experiênciapessoal, e não aquilo que eu vivi (ounão?).

Fiz a peregrinaçao apenas uma vez – emesmo assim, não a fiz por completo;terminei no Cebreiro, e peguei umônibus até Santiago de Compostela.Muitas vezes penso nesta ironia; o textomais conhecido sobre o Caminho, nestefinal de milênio, foi escrito por alguémque nunca o fez até o final.

Vi pelo menos uma profecia sercumprida; recentemente estive em

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Foncebadon, e a cidade está revivendo,com várias construçoes. Utilizei algumasmetáforas em “O Diário de um Mago”,que terminaram sendo confundidas comorealidade pelos leitores. Me arrependode ter colocado parte do ritual domensageiro, mas jamais mudei um livrodepois de publicado, e este não seria aexceção.

Paulo Coelho

Jardim Massey, Tarbes, França,dia 1 dejunho de 2001.

(*) no ano que fiz a peregrinação,apenas 400 pessoas tinham percorrido oCaminho de Santiago. No ano de 1999,segundo estatísticas não oficiais, 400

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pessoas passavam – por dia – diante dobar mencionado no texto.

Então lhe disseram: Senhor, eis aqui

duas espadas. E Ele respondeu: Basta.

LUCAS, 22,38

Quando começamos a peregrinação, euachei que havia realizado um dosmaiores sonhos da minha juventude.Você era para mim o bruxo D. Juan, e eurevivia a saga de Castañeda em buscado extraordinário.

Mas você resistiu bravamente a todas asminhas tentativas de transformá-lo emherói. Isto tornou muito difícil nosso

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relacionamento, até que entendi que oExtraordinário reside no Caminho dasPessoas Comuns. Hoje em dia, estacompreensão é o que possuo de maisprecioso na minha vida, me permitefazer qualquer coisa, e irá meacompanhar para sempre.

Por esta compreensão – que agoraprocuro dividir com outros – este livrovai dedicado a você, Petrus.

O AUTOR

PRÓLOGO

– E que, diante da Face Sagrada deRAM, você toque com suas mãos aPalavra da Vida, e receba tanta força

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que se torne testemunha dela até osConfins da Terra!

O Mestre levantou a minha nova espadapara o alto, mantendo-a dentro dabainha. As chamas na fogueiracrepitaram, um presságio favorável,indicando que o ritual devia seguiradiante. Então eu me abaixei e, com asmãos nuas, comecei a cavar a terra aminha frente.

Era a noite do dia 2 de janeiro de 1986,e nós estávamos no alto de uma dasmontanhas da Serra do Mar perto daformação conhecida como AgulhasNegras. Além de mim e de meu Mestreestavam também minha mulher, umdiscípulo meu, um guia local, e um

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representante da grande fraternidade quecongregava as ordens esotéricas em todoo mundo, e que era conhecida pelo nomede Tradição. Todos os cinco – inclusiveo guia, que já tinha sido avisadopreviamente do que iria acontecer –estavam participando de minhaordenação como Mestre da Ordem deRAM.

Terminei de escavar um buraco raso,mas comprido, no solo. Com todasolenidade toquei a terra, pronunciandoas palavras rituais. Minha mulher entãose aproximou e me entregou a espadaque eu tinha utilizado por mais de dezanos, e que tinha me auxiliado tanto emcentenas de Operações Mágicas durante

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aquele tempo. Eu depositei a espada noburaco que havia feito. Depois, joguei aterra por cima e aplainei de novo oterreno. Enquanto fazia isto me lembravadas provas por que havia passado, dascoisas que tinha conhecido e dosfenômenos que era capaz de provocarsimplesmente porque eu tinha comigoaquela espada tão antiga e tão minhaamiga. Agora ela ia ser devorada pelaterra, o ferro de sua lâmina e a madeirade seu cabo servindo novamente dealimento para o local de onde haviatirado tanto Poder.

O Mestre se aproximou e colocou minhanova espada diante de mim, em cima dolocal onde eu havia enterrado a antiga.

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Todos então abriram os braços e oMestre, utilizando seu Poder, fez comque em volta de nós se formasse umaespécie de luz estranha, que nãoclareava, mas que era visível, e faziacom que o vulto das pessoas tivesse umacor diferente do amarelo projetado pelafogueira. Então, desembainhando suaprópria espada, tocou nos meus ombrose na minha testa, enquanto dizia:

– Pelo Poder e pelo Amor de RAM, eute nomeio Mestre e Cavaleiro da Ordem,hoje e para o resto dos dias desta tuavida. R de Rigor, A de Amor, M deMisericórdia; R de Regnum, A deAgnus, M de Mundi. Quando você tocarsua espada, que ela jamais fique muito

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tempo na bainha, porque há deenferrujar.

Mas quando ela sair da bainha, que elajamais volte sem antes haver feito umBem, aberto um Caminho, ou bebido osangue de um Inimigo.

E com a ponta de sua espada feriulevemente minha testa. A partir daquelemomento eu não precisava mais ficar emsilêncio. Não precisava esconder aquilodo que era capaz, nem ocultar osprodígios que havia aprendido a realizarno caminho da Tradição. A partirdaquele momento eu era um Mago.

Estendi a mão para pegar minha novaespada, de aço que não se destrói e de

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madeira que a terra não consome, comseu punho preto e vermelho, e suabainha preta. Porém, na hora que minhasmãos tocaram na bainha e que eu mepreparava para trazê-la até mim, oMestre deu um passo a frente e com todaa violência pisou nos meus dedos,fazendo com que eu gritasse de dor elargasse a espada.

Olhei para ele sem entender nada. A luzestranha havia sumido e o rosto doMestre tinha agora a aparênciafantasmagórica que as chamas dafogueira desenhavam.

Ele me olhou friamente, chamou minhamulher e lhe entregou a nova espada.Depois virou-se para mim e disse:

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– Afasta sua mão que o ilude! Porque ocaminho da Tradição não é o caminhodos poucos escolhidos, mas o caminhode todos os homens! E o Poder que vocêpensa que tem não vale nada, porque nãoé um Poder que se divida com os outroshomens! Você devia ter recusado aespada, e se você tivesse feito isto elalhe seria entregue, porque seu coraçãoestava puro. Mas como eu temia, nomomento sublime você escorregou ecaiu. E por causa da sua avidez, terá quecaminhar novamente em busca de suaespada. E por causa de sua soberba, teráque buscá-la entre os homens simples. Epor causa de seu fascínio pelosprodígios, terá que lutar muito para

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conseguir de novo aquilo que tãogenerosamente ia lhe sendo entregue.

Foi como se o mundo tivesse fugido dosmeus pés. Eu continuei ajoelhado,atônito, sem querer pensar em nada.Uma vez que já havia devolvido minhaantiga espada à terra, não poderia pegá-la de volta. E uma vez que a nova nãome havia sido entregue, eu estava denovo como alguém que tivessecomeçado naquele instante, sem poder esem defesa. No dia de minha supremaOrdenação Celeste, a violência de meuMestre, pisando meus dedos, medevolvia ao mundo do Ódio e da Terra.

O guia apagou a fogueira e minha mulherveio até mim e me ajudou a levantar. Ela

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portava minha nova espada nas mãos,mas pelas regras da Tradição eu jamaispoderia tocá-la sem permissão do meuMestre. Descemos em silêncio pelomeio da mata, seguindo a lanterna doguia, até chegarmos na pequena estradade terra onde os carros estavamestacionados.

Ninguém se despediu de mim. Minhamulher colocou a espada na mala docarro e deu a partida no motor. Ficamosum longo tempo em silêncio, enquantoela dirigia devagar, contornando osburacos e as valas do caminho.

– Não se preocupe – disse ela, tentandome animar um pouco. – Tenho certeza de

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que você irá consegui-la de volta.

Perguntei-lhe o que o Mestre havia lhedito.

– Ele me falou três coisas. Primeiro, queele devia ter levado um agasalho,porque ali em cima fazia muito mais friodo que ele estava pensando. Segundo,que nada daquilo tinha sido umasurpresa para ele, e que já haviaacontecido muitas outras vezes, commuitas outras pessoas que tinhamchegado até onde você chegou. Eterceiro, que sua espada estariaesperando por você numa hora certa,numa data certa, em algum ponto de umcaminho que você terá que percorrer. Eunão sei nem a data nem a hora. Ele me

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falou apenas do local onde devoescondê-la para que você a encontre.

– E qual é este caminho? – perguntei,nervoso.

– Ah, isto ele não explicou muito bem.Disse apenas que você procurasse nomapa da Espanha, uma rota antiga,medieval, conhecida como o EstranhoCaminho de Santiago.

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A CHEGADA

O guarda da Aduana olhou longamente aespada que minha mulher trazia,perguntando o que pretendíamos fazercom aquilo. Eu disse que um amigonosso ia avaliá-la para colocarmos emleilão. A mentira deu resultado; o guardanos deu uma declaração de quehavíamos entrado com a espada peloaeroporto de Bajadas, e avisou que sehouvesse problemas em retirá-la dopaís, bastava mostrar aquele papel naAlfândega.

Fomos até o balcão da locadora econfirmamos os dois automóveisreservados. Pegamos os tickets e fomos

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comer alguma coisa juntos norestaurante do próprio aeroporto, antesde nos despedirmos.

Eu tinha passado uma noite insone noavião – mistura de medo de voar commedo do que iria acontecer dali para afrente – mas mesmo assim estavaexcitado e desperto.

– Não se preocupe – disse ela pelamilésima vez. – Você deve ir até aFrança, e em San Juan Pied-de-Portprocurar por Mme. Lourdes. Ela vai lhecolocar em contato com alguém que vaidirigi-lo pelo Caminho de Santiago.

– E você? – perguntei também pelamilésima vez, já sabendo a resposta.

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– Vou até onde tenho que ir, deixar oque me foi confiado. Depois fico emMadrid alguns dias, e volto para oBrasil. Sou capaz de dirigir nossascoisas tão bem como você faz.

– Isso eu sei – respondi, querendo evitaro assunto. Minha preocupação comnegócios que havia deixado no Brasilera enorme. Eu aprendi o necessáriosobre o Caminho de Santiago nos quinzedias que se seguiram ao incidente nasAgulhas Negras, mas tinha demoradoquase sete meses para decidir largartudo e fazer a viagem. Até que certamanhã minha mulher me dissera que ahora e a data se aproximavam, e se eunão tomasse uma decisão devia esquecer

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para sempre o caminho da Magia e aOrdem de RAM. Tentei mostrar a elaque o Mestre me dera uma tarefaimpossível, já que eu não podiasimplesmente sacudir dos ombros aresponsabilidade do trabalho diário queeu tinha. Ela riu e disse que eu estavadando uma desculpa tola, pois naquelessete meses eu pouco tinha feito além depassar noites e dias me perguntando sedevia ou não viajar. E no gesto maisnatural do mundo, me estendeu as duaspassagens já com data de vôo marcada.

– É porque você decidiu, que estamosaqui – disse eu na lanchonete doaeroporto. – Não sei se isto está certo;deixar a decisão de buscar a minha

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espada partir de outra pessoa.

Minha mulher disse que se íamos voltara falar bobagens era melhor pegar oscarros e nos despedirmos logo.

– Você jamais deixaria que qualquerdecisão na sua vida partisse de outrapessoa. Vamos logo, pois já está ficandotarde – ela levantou-se, pegou suabagagem e se dirigiu para oestabelecimento. Eu não me mexi. Fiqueisentado, olhando a maneira displicentecomo carregava minha espada, toda horaameaçando escorregar de debaixo doseu braço.

No meio do caminho ela parou, voltouaté a mesa onde eu estava, me deu um

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sonoro beijo na boca e me olhou semdizer nada durante muito tempo. Derepente eu percebi que estava naEspanha, que já não podia voltar atrás.Mesmo com a horrível certeza de que eutinha muitas chances de fracassar, eu jádera o primeiro passo. Então eu aabracei com muito amor, com todo oamor que sentia naquele momento, eenquanto ela estava nos meus braçosrezei para tudo e a todos em que euacreditava, implorei que me dessemforças de voltar com ela e com a espada.

– Bonita espada, você viu? – comentouuma voz feminina na mesa ao ladodepois que minha mulher partiu.

– Não se preocupe – respondeu uma voz

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de homem. – Eu compro uma exatamenteigual para você. As lojas de turismoaqui na Espanha têm milhares delas.

Depois de uma hora dirigindo, ocansaço acumulado pela noite anteriorcomeçou a surgir.

Além disso, o calor de agosto era tãoforte que, mesmo andando numa estradadesimpedida, o carro começava amostrar problemas desuperaquecimento. Resolvi parar umpouco numa cidadezinha que os cartazesda estrada anunciavam comoMonumento Nacional. Enquanto subia aíngreme ladeira que me conduziria atéela, comecei a recordar mais uma vez

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tudo que havia aprendido sobre oCaminho de Santiago.

Assim como a tradição muçulmana exigeque todo fiel faça, pelo menos uma vezna vida, a caminhada que Maomé fez deMeca a Medina, o primeiro milênio docristianismo conheceu três rotasconsideradas sagradas, e que resultavamnuma série de bênçãos e indulgênciaspara quem percorresse qualquer umadelas. A primeira rota levava até otúmulo de São Pedro, em Roma, seuscaminhantes tinham por símbolo umacruz e eram chamados de romeiros. Asegunda rota levava até o SantoSepulcro de Cristo, em Jerusalém, e osque faziam este caminho eram chamados

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de palmeiros porque tinham comosímbolo as palmas com que Cristo foisaudado quando entrou na cidade.Finalmente existia um terceiro caminho– um caminho que levava até os restosmortais do apóstolo São Tiago,enterrados num local da penínsulaibérica onde certa noite um pastor haviavisto uma brilhante estrela sobre umcampo. A lenda conta que não apenasSão Tiago, mas a própria Virgem Maria,estiveram por ali logo após a morte deCristo, levando a palavra do Evangelhoe exortando os povos a se converterem.O local ficou sendo conhecido comoCompostela – o campo da estrela – elogo surgiu uma cidade que iria atrairviajantes de todo o resto do mundo

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cristão. A estes viajantes quepercorriam a terceira rota sagrada, foi-lhes dado o nome de peregrinos, epassaram a ter como símbolo umaconcha.

Em sua época áurea, no século XIV, aVia Láctea (porque à noite os peregrinosse orientavam por esta galáxia) chegou aser percorrida a cada ano por mais deum milhão de pessoas, vindas de todosos cantos da Europa. Até hoje, místicos,religiosos e pesquisadores ainda fazema pé os setecentos quilômetros queseparam a cidade francesa de San JuanPied-de-Port da Catedral de Santiago deCompostela, na Espanha.1 Graças aosacerdote francês Aymeric Picaud, que

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peregrinou até Compostela em 1123, arota seguida hoje pelos peregrinos éexatamente igual ao caminho medievalque foi percorrido por Carlos Magno,São Francisco de Assis, Isabel deCastela, e mais recentemente pelo papaJoão XXIII – entre muitos outros.

Picaud escreveu cinco livros sobre suaexperiência, apresentados como trabalhodo Papa Calixto II – devoto de Santiago– e conhecido mais tarde como o“Codex Calixtinus”. No Livro V doCodex Calixtinus, Liber Sancti Jacobi,Picaud enumera as marcas naturais,fontes, hospitais, abrigos e cidades quese estendiam ao longo do caminho.Baseada nas anotações de Picaud, uma

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sociedade – “Lés Amis de Saint-Jacques” (São Tiago é Saint Jacques emFrancês, James em inglês, Giacomo emitaliano, Jacob em latim) – se encarregade manter até hoje estas marcas naturaise orientar os peregrinos.

Por volta do século XII, a naçãoespanhola começou a aproveitar amística de São Tiago em sua luta contraos mouros que haviam invadido apenínsula. Várias ordens militares foramcriadas ao longo do Caminho, e ascinzas do Apóstolo se tornaram umpoderoso amuleto espiritual paracombater os muçulmanos, que diziam terconsigo um braço de Maomé. Finda aReconquista, porém, as ordens militares

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estavam tão fortes que começaram aameaçar o Estado, obrigando os ReisCatólicos a intervirem diretamente paraevitar que estas ordens se insurgissemcontra a nobreza. Por causa disto, oCaminho foi pouco a pouco caindo noesquecimento e, se não fosse pormanifestações artísticas esporádicas –como “A Via Lactea” de Suñuel, ou

“Caminante” de Juan Manoel Serrat –ninguém hoje em dia seria capaz delembrar que por ali passaram milharesde pessoas que mais tarde iriam povoaro Novo Mundo.

A cidadezinha onde cheguei de carroestava absolutamente deserta. Depois demuito procurar, achei uma pequena

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cantina adaptada em uma velha casa deestilo medieval. O dono – que não tiravaos olhos de um seriado na televisão –me avisou que aquela era a hora da sestae que eu era um louco de andar pelaestrada com tanto calor.

Pedi um refrigerante, tentei ver umpouco de televisão, mas não conseguiame concentrar em nada. Pensava apenasque dentro de dois dias eu ia reviver empleno século XX um pouco da grandeaventura humana que trouxe Ulisses deTróia, andou com Quixote pela Mancha,levou Dante e Orfeu aos infernos eCristóvão Colombo até as Américas: aaventura de viajar em direção aoDesconhecido.

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Quando tornei a pegar meu carro jáestava um pouco mais calmo. Mesmoque não descobrisse minha espada, aperegrinação pelo Caminho de Santiagoia terminar fazendo com que eudescobrisse a mim mesmo.

SAN JUAN PIED-DE-PORT

Um desfile com personagensmascarados e uma banda de música –todos vestidos de vermelho, verde ebranco, as cores do País Basco-Francês– ocupava a principal rua de San JuanPied-de-Port.

Era domingo, eu tinha passado dois diasdirigindo, e não podia perder mais umminuto sequer assistindo àquela festa.

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Abri caminho entre as pessoas, ouvialguns insultos em francês, mas termineidentro das fortificações que constituíama parte mais velha da cidade, ondedeveria estar Mme. Lourdes. Mesmonaquela parte dos Pirineus fazia calordurante o dia, e saí do carro ensopadode suor.

Bati na porta. Bati outra vez e nada.Uma terceira vez e ninguém respondeu.Sentei-me no meio-fio, preocupado.Minha mulher dissera que eu deveriaestar ali exatamente naquele dia, masninguém respondia aos meus chamados.Podia ser, pensei, que Mme. Lourdestivesse saído para ver o desfile, mastambém existia a possibilidade de que

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eu tivesse chegado tarde demais, e eladecidira não me receber. O

Caminho de Santiago acabava antesmesmo de haver começado.

De repente, a porta se abriu e umacriança pulou para a rua. Levantei-metambém de um salto e, num francês quenão falava direito, perguntei por Mme.Lourdes. A menina deu um riso eapontou para dentro. Só então percebimeu erro: a porta dava para um imensopátio, em torno do qual se estendiamvelhas casas medievais com balcões. Aporta tinha estado aberta pra mim, e eunão tinha ousado sequer pegar namaçaneta.

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Entrei correndo e me dirigi para a casaque a menina me havia indicado. Ládentro, uma mulher idosa e gordavociferava alguma coisa em basco comum rapaz miúdo, de olhos castanhos etristes.

Aguardei algum tempo que a brigaterminasse – e efetivamente terminoucom o pobre rapaz sendo enviado para acozinha debaixo de uma onda de insultosda velha. Só então ela se virou para mime, sem sequer perguntar o que eu queria,me conduziu – entre gestos delicados eempurrões – ao segundo andar dapequena casa. Lá em cima, havia apenasum escritório apertado, cheio de livros,objetos, estátuas de Santiago e

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recordações do Caminho. Ela retirou umlivro da estante e sentou-se por detrásda única mesa do ambiente, deixando-me de pé.

– Você deve ser mais um peregrino paraSantiago – disse sem rodeios. – Precisoanotar seu nome no caderno dos quefazem o caminho.

Eu dei meu nome e ela quis saber se euhavia trazido as Vieiras. “Vieiras” era onome dado às grandes conchas levadascomo símbolo da peregrinação até otúmulo do apóstolo, e que servia paraque os peregrinos se identificassementre si.1 Antes de viajar para aEspanha eu tinha ido até um lugar deperegrinação no Brasil, Aparecida do

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Norte. Lá havia comprado uma imagemde N. S. Aparecida montada sobre trêsvieiras. Tirei da mochila e estendi paraMme. Lourdes.

– Bonito mas pouco prático – disse ela,me devolvendo as viei-ras. – Podequebrar durante o caminho.

– Não irá quebrar. E vou deixá-lassobre o túmulo do apóstolo.

Mme. Lourdes parecia que não tinhamuito tempo para me atender. Deu-meum pequeno carnê que iria me facilitar ahospedagem nos mosteiros do Caminho,colocou um carimbo de San Juan Pied-de-Port para indicar onde eu haviainiciado a caminhada, e disse que podia

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partir na bênção de Deus.

– Mas onde está o meu guia? –perguntei.

– Que guia? – respondeu ela, um poucosurpresa, mas também com um brilhodistinto nos olhos.

Eu percebi que tinha esquecido de algomuito importante. No afã de chegar a serlogo atendido, eu não tinha pronunciadoa Palavra Antiga – uma espécie de senhaque identifica aqueles que pertencem oupertenceram às ordens da Tradição.Imediatamente corrigi meu erro e disse-lhe a Palavra. Mme.

Lourdes, num gesto rápido, arrancou de

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minhas mãos o carnê que me haviaentregue minutos antes.

– Você não vai precisar disto – disse,enquanto retirava uma pilha de jornaisvelhos de cima de uma caixa depapelão. – O seu caminho e o seudescanso dependem das decisões do seuguia.

Mme. Lourdes retirou da caixa umchapéu e um manto. Pareciam peças deroupa muito antigas, mas estavam bemconservadas. Pediu-me que ficasse empé no centro da sala, e começou a rezar,em silêncio. Depois colocou o mantonas minhas costas e o chapéu na minhacabeça. Pude notar que tanto no chapéucomo em cada ombro do manto haviam

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vieiras costuradas. Sem parar de rezar, avelha senhora pegou um cajado num doscantos do escritório e me fez segurá-locom minha mão direita. No cajadoprendeu uma pequena cabaça de água.Ali estava eu: por debaixo, bermuda-Jeans e camiseta I LOVE NY e, porcima, o traje medieval dos peregrinos àCompostela.

A velha se aproximou até ficar a doispalmos de distância na minha frente.Então, numa espécie de transe,colocando as mãos espalmadas sobreminha cabeça, disse:

– Que o Apóstolo São Tiago teacompanhe e te mostre a única coisa que

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precisas descobrir; que não andes nemdevagar nem depressa demais, massempre de acordo com as Leis e asNecessidades do Caminho; queobedeças àquele que vai te guiar, mesmoquando te der uma ordem homicida,blasfema, ou insensata. Tu tens que jurarobediência total ao teu guia.

Eu jurei.

– O Espírito dos velhos peregrinos daTradição há de acompanhá-lo najornada. O chapéu o protege contra o sole os maus pensamentos; o manto oprotege contra a chuva e as máspalavras; o cajado o protege contra osinimigos e as más obras. A bênção deDeus, de Santiago, e da Virgem Maria o

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acompanhe todas as noites e todos osdias. Amém.

Dito isto, voltou à sua maneira habitual:com pressa e com um certo mau-humorrecolheu as roupas, guardou-as de novona caixa, recolocou o cajado com acabaça no canto da sala, e depois de meensinar as palavras de senha pediu-meque fosse embora logo, pois meu guiaestava me esperando a uns doisquilômetros de San Juan Pied-de-Port.

– Ele detesta banda de música – disseela. Mas mesmo a dois quilômetros dedistância ele deve estar escutando: osPirineus são uma excelente caixa deressonância.

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E sem maiores comentários, desceu asescadas e foi para a cozinha, atormentarum pouquinho mais o rapaz de olhostristes. Na saída perguntei o que deveriafazer com o carro, e ela disse que lhedeixasse as chaves, pois alguém viriabuscá-lo. Fui até a mala do carro, pegueia pequena mochila azul com um saco dedormir amarrado, guardei no seu cantomais protegido a imagem de N.S.Aparecida com as conchas, coloquei-anas costas e fui dar as chaves para Mme.Lourdes.

– Saia da cidade seguindo esta rua atéaquela porta lá no final das muralhas –ela me falou. –

E quando chegar a Santiago de

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Compostela, reze uma ave-maria pormim. Eu já percorri tantas vezes estecaminho e agora me contento em ler nosolhos dos peregrinos a excitação queainda tenho, mas que não posso mais pôrem prática por causa da idade. Conteisso a Santiago. E conte também que aqualquer hora estarei me encontrandocom ele, por outro caminho – maisdireto e menos cansativo.

Saí da pequena cidadezinhaatravessando as muralhas pela PorteD'Espagne. No passado esta tinha sido arota preferida dos invasores romanos, epor aqui também passaram os exércitosde Carlos Magno e Napoleão. Segui emsilêncio, ouvindo ao longe a banda de

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música e, subitamente, nas ruínas de umpovoado perto de San Juan, fui tomadode uma imensa emoção e meus olhos seencheram de água: ali, naquelas ruínas,pela primeira vez eu me dei conta deque meus pés estavam pisando oEstranho Caminho de Santiago.

Em volta do vale, os Pirineus, coloridospela música da bandinha e pelo soldaquela manhã, me davam a sensação dealgo primitivo, alguma coisa que já tinhasido esquecida pelo gênero humano masque de maneira nenhuma eu conseguiasaber o que era. Era, entretanto, umasensação estranha e forte, e resolviapressar o passo e chegar o mais brevepossível ao local onde Mme. Lourdes

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dissera que o guia me esperava. Semparar de caminhar, tirei a camiseta eguardei-a na mochila. As alçascomeçaram a machucar um pouco osombros nus, mas em compensação ovelho tênis estava tão macio que não mecausava nenhum incômodo. Depois dequase quarenta minutos, numa curva quecontornava uma gigantesca pedra,cheguei ao velho poço abandonado. Ali,sentado no chão, um homem com seuscinqüenta anos – de cabelos pretos easpecto cigano – remexia sua mochilaem busca de algo.

– Olá – disse eu, em espanhol, com amesma timidez que tinha toda vez queera apresentado a alguém. – Você deve

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estar me esperando. Meu nome é Paulo.

O homem parou de mexer na mochila eme olhou de cima a baixo. Seu olhar erafrio e ele não pareceu surpreendido comminha chegada. Eu também tive a vagasensação de que a conhecia.

– Sim, eu estava te esperando, mas nãosabia que ia encontrá-lo tão cedo. O quevocê quer?

Fiquei um pouco desconcertado com apergunta, e respondi que era eu quem eleiria guiar pela Via Láctea em busca daespada.

– Não é preciso – disse o homem. – Sevocê quiser, eu posso encontrá-la para

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você. Mas decida isto agora.

Cada vez achava mais estranha aquelaconversa com o desconhecido.Entretanto, como tinha juradoobediência completa, preparei-me pararesponder. Se ele podia encontrar aespada para mim, ia me poupar umtempo enorme, e eu poderia voltar logoàs pessoas e aos negócios no Brasil, quenão saíam de minha cabeça. Poderiatambém ser um truque, mas não haveriamal algum em dar uma resposta.

Resolvi dizer que sim. E de repente, pordetrás de mim, ouvi uma voz emespanhol, num sotaque carregadíssimo:

– A gente não precisa subir uma

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montanha para saber se ela é alta.

Era a senha! Olhei para trás e vi umhomem de seus quarenta anos, bermudascáqui, camiseta branca suada, olhandofixamente para o cigano. Tinha oscabelos grisalhos e a pele queimadapelo sol. Na minha pressa, eu tinha meesquecido das regras mais elementaresde proteção, e tinha me atirado de corpoe alma nos braços do primeirodesconhecido que encontrara.

– O barco está mais seguro quando estáno porto; mas não foi para isto queforam construídos os barcos – eu disse acontra-senha. O homem entretanto, nãodesviou os olhos do cigano, nem ocigano desviou os olhos dele. Ambos se

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encararam, sem medo e sem valentia,por alguns minutos. Até que o ciganodeixou a mochila no chão, deu umsorriso de desdém, e seguiu em direçãoà San Juan Pied-de-Port.

– Meu nome é Petrus2 – disse o recém-chegado, assim que o cigano sumiu atrásda imensa pedra que eu haviacontornado minutos antes. – Da próximavez seja mais cauteloso.

Notei um tom simpático na sua voz,diferente do tom do cigano e da própriaMme. Lourdes.

Ele pegou a mochila do chão e eureparei que a mesma tinha desenhadauma vieira na parte de trás. Tirou de

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dentro uma garrafa de vinho, tomou umgole e me estendeu. Enquanto eu bebia,perguntei quem era o cigano.

– Esta rota é uma rota de fronteira, muitoutilizada por contrabandistas e porterroristas refugiados do país basco-espanhol – disse Petrus. – A políciaquase não vem aqui.

– Você não está me respondendo. Vocêsdois se olharam como velhosconhecidos. E eu tenho a impressão deque conheço ele também, por isso fui tãoafoito.

Petrus deu um riso e pediu para quecomeçássemos logo a andar. Pegueiminhas coisas e começamos a caminhar

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em silêncio. Mas pelo riso de Petrus, eusabia que ele estava pensando a mesmacoisa que eu.

Nós tínhamos encontrado um demônio.

Caminhamos em silêncio durante umcerto tempo, e Mme. Lourdes tinha todarazão: mesmo a quase três quilômetrosde distância ainda dava para ouvir osom da bandinha que tocava sem parar.Eu queria fazer muitas perguntas aPetrus – sua vida, seu trabalho, e o que otinha trazido até este local. Sabia,porém, que tínhamos ainda setecentosquilômetros para percorrermos juntos, echegaria o momento certo de ter todasestas perguntas respondidas. Mas ocigano não me saía da cabeça, e eu

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terminei quebrando o silêncio.

– Petrus, acho que o cigano era odemônio.

– Sim, ele era o demônio – e quandoconfirmou isto, senti um misto de terrore alívio. – Mas não é o demônio quevocê conheceu na Tradição.

Na Tradição, o demônio é um espíritoque não é bom nem mau, masconsiderado guardião da maior partedos segredos acessíveis ao homem, ecom força e poder sobre as coisasmateriais. Por ser o anjo caído,identifica-se com a raça humana e estásempre disposto a pactos e trocas defavores. Perguntei qual era a diferença

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entre o cigano e os demônios daTradição.

– Nós vamos encontrar outros nocaminho – riu ele. – Você irá perceberpor si só. Mas, para ter uma idéia,procure se lembrar de toda a suaconversa com o cigano.

Eu repassei as duas únicas frases quehavia trocado com ele. Ele tinha ditoque estava me esperando, e tinhaafirmado que buscaria a espada paramim.

Petrus então disse que eram duas frasesque caberiam perfeitamente bem na bocade um ladrão que é surpreendido empleno roubo de uma mochila: tentar

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ganhar tempo e conseguir favores,enquanto rapidamente traça uma rota defuga. Ao mesmo tempo, as duas frasespodiam ter um sentido mais profundo, ouseja – que as palavras estivessemdizendo exatamente o que pretendiadizer.

– Qual das duas estão certas?

– Ambas estão certas. Aquele pobreladrão, enquanto se defendia, captou noar as palavras que precisavam seremditas a você. Achou que estava sendointeligente, e estava sendo instrumentode uma força maior. Se ele tivessecorrido quando cheguei, esta conversaestaria desnecessária. Mas ele meencarou, e eu li em seus olhos o nome de

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um demônio que você irá encontrar nocaminho.

Para Petrus, o encontro tinha sido umpresságio favorável, já que o demôniohavia se revelado cedo demais.

– Entretanto, não se preocupe com eleagora porque, como eu disse antes, elenão será o único. Talvez seja o maisimportante, mas não será o único.

Continuamos andando. A vegetação,antes um pouco desértica, mudou parapequenas árvores espalhadas aqui e ali.Talvez fosse melhor mesmo seguir oconselho de Petrus, e deixar que ascoisas acontecessem por si mesmas. Devez em quando ele fazia algum

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comentário a respeito de um ou de outrofato histórico que havia ocorrido peloslugares onde íamos passando. Vi a casaonde uma rainha havia pernoitado navéspera de morrer, e uma capelinhaincrustrada nas rochas, ermita de algumhomem santo que os raros habitantesdaquela área juravam ser capaz de fazermilagres.

– Os milagres são muito importantes,você não acha? – disse ele.

Eu respondi que sim, mas que jamaistinha visto um grande milagre. Meuaprendizado na Tradição tinha sidomuito mais no plano intelectual.Acreditava que, quando recuperasse aminha espada, aí sim, eu seria capaz de

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fazer as grandes coisas que meu Mestrefazia.

– E que não são milagres, porque nãomudam as leis da natureza. O que meuMestre faz é utilizar estas forças para…

Não consegui completar a frase, porquenão achava nenhuma razão para que oMestre conseguisse materializarespíritos, mudar objetos de lugar semtocá-los e, como já havia visto mais deuma vez, abrir buracos de céu azul emtardes cobertas de nuvens.

– Talvez ele faça isto para convencervocê de que tem o Conhecimento e oPoder –

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respondeu Petrus.

– É, pode ser – respondi sem muitaconvicção.

Sentamos numa pedra, porque Petrus medisse que detestava fumar cigarrosenquanto andava. Segundo ele, ospulmões absorviam muito mais nicotina,e o fumo lhe causava náuseas.

– Por isso seu Mestre lhe recusou aespada – disse Petrus. Porque você nãosabe a razão dele fazer seus prodígios.Porque você esqueceu que o caminho doconhecimento é um caminho aberto atodos os homens, às pessoas comuns.Em nossa viagem, eu vou ensinar-lhealguns exercícios e alguns rituais, que

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são conhecidos como As Práticas deRAM. Qualquer pessoa, em algummomento da sua existência, já teveacesso a pelo menos uma delas. Todaselas, sem exceção, podem serencontradas por alguém que se disponhaa procurá-las, com paciência e comperspicácia, nas próprias lições que avida nos ensina.

“As Práticas de RAM são tão simplesque as pessoas como você, acostumadasa sofisticar demais a vida, muitas vezesnão lhe dão nenhum valor. Mas são elas,junto com mais três outros conjuntos dePráticas, que fazem o homem ser capazde conseguir tudo, mas absolutamentetudo que deseja.”

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– Jesus louvou o Pai quando seusdiscípulos começaram a realizarmilagres e curas, e agradeceu porqueEle havia escondido estas coisas dossábios e revelado aos homens simples.Afinal de contas, se alguém acredita emDeus, tem que acreditar também queDeus é justo.

Petrus tinha toda razão. Seria umainjustiça divina permitir que só aspessoas instruídas, com tempo edinheiro para comprar livros caros,pudessem ter acesso ao verdadeiroConhecimento.

– O verdadeiro caminho da sabedoriapode ser identificado por apenas trêscoisas – disse Petrus. Primeiro, ele tem

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que ter Ágape, e disso eu vou lhe falarmais tarde; segundo, ele tem que ter umaaplicação prática na sua vida, senão asabedoria torna-se uma coisa inútil eapodrece como uma espada que nunca éutilizada.

“E finalmente, ele tem que ser umcaminho que possa ser trilhado porqualquer um. Como o caminho que vocêestá trilhando agora, o Caminho deSantiago.”

Andamos durante todo o resto da tarde esó quando o sol começou a sumir pordetrás das montanhas é que Petrusresolveu parar de novo. À nossa volta,os picos mais altos dos Pirineus ainda

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brilhavam com a luz dos últimos raiosdo dia.

Petrus pediu que eu limpasse umapequena área no chão e me ajoelhasseali.

– A Primeira Prática de RAM é renascerde novo. Você terá que executá-ladurante sete dias seguidos, tentandoexperimentar de uma maneira diferenteaquilo que foi o seu primeiro contatocom o mundo. Você sabe o quanto deveter sido difícil largar tudo e virpercorrer o Caminho de Santiago embusca de uma espada, mas estadificuldade só existiu porque vocêestava preso ao passado. Já foiderrotado e tem medo de ser derrotado

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novamente; já conseguiu alguma coisa, etem medo de tornar a perdê-la.Entretanto, alguma coisa mais forte quetudo isto prevalesceu: o desejo deencontrar sua espada. E você resolveucorrer o risco.

Respondi que sim, mas que aindacontinuava com as mesmaspreocupações a que ele havia sereferido.

– Não tem importância. O exercício, aospoucos, irá libertá-lo das cargas quevocê mesmo criou na sua vida.

E Petrus me ensinou a Primeira práticade RAM: O EXERCÍCIO DASEMENTE.

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O EXERCÍCIO DA SEMENTE

Ajoelhe-se no chão. Depois sente-se nosseus calcanhares e abaixe o corpo, demodo que sua cabeça toque os joelhos.Estique os braços para trás. Você estánuma posição fetal. Agora relaxe eesqueça todas as tensões. Respire calmae profundamente. Aos poucos você vaipercebendo que é uma minúsculasemente, cercada pelo conforto da terra.Tudo está quente e gostoso ao seu redor.Você dorme um sono tranqüilo. Derepente, um dedo se move. O broto nãoquer mais ser semente, ele quer nascer.

Lentamente você começa a mover osbraços, e depois seu corpo irá seerguendo, se erguendo, até que você

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estará sentado nos seus calcanhares.Agora você começa a levantar-se, elentamente, lentamente, estará ereto e dejoelhos no chão. Durante todo estetempo você imaginou que é uma sementese transformando em broto e rompendopouco a pouco a terra.

Chegou o momento de romper a terrapor completo. Você vai se levantandolentamente, colocando um pé no chão,depois o outro, lutando contra odesequilíbrio como um broto luta paraencontrar seu espaço. Até que você ficaem pé. Imagina o campo ao seu redor, osol, a água, o vento e os pássaros. É umbroto que começa a crescer. Levanta,devagar, os braços, em direção ao céu.

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Depois vai se esticando cada vez mais,cada vez mais, como se quisesse agarraro sol imenso que brilha sobre você e lhedá forças, e lhe atrai.

Seu corpo começa a ficar cada vez maisrígido, seus músculos retesam-se todos,enquanto você se sente crescer. crescer,crescer e se tornar imenso. A tensão vaiaumentando cada vez mais, até tornar-sedolorosa, insuportável. Quando vocênão agüentar mais, dê um grito e abra osolhos.

Repita este exercício sete dias seguidos,sempre à mesma hora.

– Faça-o agora pela primeira vez –disse.

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Encostei minha cabeça entre os joelhos,respirei fundo e comecei a relaxar. Meucorpo obedeceu com docilidade – talvezporque tínhamos andado muito durante odia e eu devia estar exausto.

Comecei a escutar o barulho da terra,um barulho surdo, rouco, e aos poucosfui me transformando na semente. Nãopensava. Tudo era escuro e eu estavaadormecido no fundo da terra. Derepente, alguma coisa se moveu. Erauma parte de mim, uma minúscula partede mim que queria me despertar, quedizia que eu tinha de sair dali porquehavia outra coisa “lá para cima”. Eupensava em dormir e esta parte insistia.

Começou por mover meus dedos, e meus

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dedos foram movendo meus braços –mas não eram dedos nem braços, e simum pequeno broto que lutava paravencer a força da terra e caminhar emdireção à tal “coisa lá em cima”. Sentique o corpo começou a seguir omovimento dos braços. Cada segundoparecia uma eternidade, mas a sementetinha uma coisa “lá em cima” e elaprecisava nascer, precisava saber o queera.

Com uma imensa dificuldade a cabeça,depois o corpo, começaram a levantar.Tudo era lento demais e eu precisavalutar contra a força que me empurravapara baixo, em direção ao fundo daterra, onde antes eu estava tranqüilo e

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dormindo meu sono eterno. Mas fuivencendo, fui vencendo, e finalmenterompi alguma coisa e já estava reto. Aforça que me empurrava para baixo, derepente cessou. Eu havia rompido a terrae estava cercado da tal “coisa lá emcima”.

A “coisa lá em cima” era o campo. Sentio calor do sol, o zumbir dos mosquitos,o barulho de um rio que corria ao longe.Levantei-me devagar, de olhos fechadose, a todo momento, pensava que iria medesequilibrar e voltar para a terra, masno entanto continuava a crescer. Meusbraços foram se abrindo e meu corpoesticando. Ali estava eu, renascendo,querendo ser banhado por dentro e por

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fora por aquele sol imenso que brilhavae que me pedia para crescer mais,esticar mais, para abraçá-lo com todosos meus ramos.

Fui retesando cada vez mais os braços,os músculos de todo o corpo começarama doer, e eu senti que tinha mil metros dealtura, e que podia abraçar muitasmontanhas. E o corpo foi se expandindo,se expandindo, até que a dor muscular setornou tão intensa que eu não agüenteimais e dei um grito.

Abri os olhos e Petrus estava diante demim, sorrindo e fumando um cigarro. Aluz do dia ainda não havia desaparecido,mas fiquei surpreso em perceber quenão fazia o sol que eu havia imaginado.

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Perguntei se ele queria que lhedescrevesse as sensações, e ele disseque não.

– Isto é uma coisa muito pessoal, e vocêdeve guardá-las para si mesmo. Comoeu poderia julgá-las? Elas são as suas,não as minhas.

Petrus disse que íamos dormir alimesmo. Fizemos uma pequena fogueira,tomamos o que restava da garrafa devinho dele, e eu preparei algunssanduíches com um patê de foie-gras quehavia comprado antes de chegar a SanJuan. Petrus foi até o riacho que corriapor perto e trouxe alguns peixes, queassou na fogueira. Depois, cada qual

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deitou no seu saco de dormir.

Dentre as grandes sensações queexperimentei na minha vida, não possome esquecer daquela primeira noite noCaminho de Santiago. Fazia frio, apesardo verão, mas eu tinha ainda na boca ogosto do vinho que Petrus havia trazido.Olhei para o céu e a Via Láctea seestendia sobre mim, mostrando o imensocaminho que devíamos cruzar. Outrora,esta imensidão me daria uma grandeangústia, um medo terrível de que nãoseria capaz de conseguir, de que erapequeno demais para isto. Mas hoje euera uma semente e tinha nascido denovo. Tinha descoberto que, apesar doconforto da terra e do sono que eu

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dormia, era muito mais bela a vida “láem cima”. Eu eu podia nascer sempre,quantas vezes quisesse, até que meusbraços fossem suficientemente grandespara poder abraçar a terra de onde eutinha vindo.

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O CRIADOR E ACRIATURA

Durante seis dias caminhamos pelosPirineus, subindo e descendo montanhas,com Petrus me pedindo para realizar oexercício da semente toda vez que osraios de sol iluminavam apenas os picosmais altos. No terceiro dia decaminhada, um marco de cimentopintado de amarelo indicava quehavíamos cruzado a fronteira e, a partirdali, nossos pés estavam pisando emterra espanhola. Petrus, pouco a pouco,começou a soltar algumas coisas de suavida particular; descobri que eraitaliano e que trabalhava em desenhoindustrial.1 Perguntei se não estava

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preocupado com as muitas coisas quedevia ter sido forçado a abrir mão paraguiar um peregrino em busca de suaespada.

– Quero explicar-lhe uma coisa –respondeu ele. – Eu não o estou guiandoaté sua espada.

Cabe única e exclusivamente a vocêencontrá-la. Eu estou aqui para conduzi-lo através do Caminho de Santiago eensinar-lhe as Práticas de RAM. Comovocê aplicará isto para encontrar a suaespada, é problema seu.

– Você não respondeu a minha pergunta.

– Quando você viaja, está

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experimentando de uma maneira muitoprática o ato de Renascer.

Está diante de situações completamentenovas, o dia passa mais devagar e namaior parte das vezes não compreende alíngua que as pessoas estão falando.Exatamente como uma criança queacabou de sair do ventre materno. Comisto, você passa a dar muito maisimportância às coisas que te cercam,porque delas depende a sua própriasobrevivência. Passa a ser maisacessível às pessoas, porque elaspoderão ajudá-lo em situações difíceis.E recebe qualquer pequeno favor dosdeuses com uma grande alegria, como seaquilo fosse um episódio para ser

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lembrado pelo resto da vida.

“Ao mesmo tempo, como todas as coisassão novas, você enxerga apenas a belezanelas, e fica mais feliz em estar vivo.Por isso a peregrinação religiosasempre foi uma das maneiras maisobjetivas de se conseguir chegar àiluminação. A palavra pecado vem depecus, que significa pé defeituoso, péincapaz de percorrer um caminho. Amaneira de se corrigir o pecado éandando sempre em frente, adaptando-seàs situações novas e recebendo em trocatodas as milhares de bênçãos que a vidadá com generosidade aos que lhepedem.”

– Você acha que eu poderia estar

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preocupado com meia dúzia de projetosque deixei de realizar para estar comvocê aqui?

Petrus olhou em volta e eu acompanheiseus olhos. No alto de uma montanha,algumas cabras pastavam. Uma delas,mais ousada, estava sobre uma pequenasaliência de uma rocha altíssima, e eunão entendia como havia lá chegado ecomo poderia sair dali. Mas nomomento em que pensei isto, a cabrasaltou e, tocando em pontos invisíveisaos meus olhos, voltou para junto desuas companheiras. Tudo em voltarefletia uma paz nervosa, a paz de ummundo que ainda tinha muito paracrescer e criar, e que sabia que para isto

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era preciso continuar caminhando,sempre caminhando. Mesmo que umterremoto grande ou uma tempestadeassassina, às vezes, me desse a sensaçãode que a natureza era cruel, eu percebique estas eram as vicissitudes docaminho. Também a natureza viajava,em busca da iluminação.

– Eu estou muito contente de estar aqui –disse Petrus. – Porque o trabalho quedeixei de realizar não conta mais, e ostrabalhos que realizarei depois disto vãoser muito melhores.

Quando eu tinha lido a obra de CarlosCastañeda, havia desejado muitoencontrar o velho bruxo índio, D. Juan.Vendo Petrus olhar as montanhas,

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pareceu-me estar com alguém muitoparecido.

Na tarde do sétimo dia chegamos ao altode um morro, depois de atravessarmosuma floresta de pinheiros. Ali, CarlosMagno tinha orado pela primeira vez emsolo espanhol, e um monumento antigopedia em latim que, por causa destefeito, todos rezassem uma Salve Rainha.Nós dois fizemos o que o monumentopedia. Depois, Petrus fez com que eurealizasse o exercício da semente pelaúltima vez.

Ventava muito e fazia frio. Argumenteique ainda era cedo – deviam ser, nomáximo, três horas da tarde – mas ele

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respondeu que eu não discutisse efizesse exatamente o que estavamandando.

Eu me ajoelhei no chão e comecei arealizar o exercício. Tudo transcorreunormal até o momento em que estendimeus braços e comecei a imaginar o sol.Quando cheguei a este ponto, com o solgigantesco brilhando a minha frente,senti que estava entrando num grandeêxtase, Minhas memórias de homemcomeçaram lentamente a se apagar, e eujá não estava realizando um exercício,tinha virado uma árvore. Estava feliz econtente com isto. O sol brilhava egirava em torno de si mesmo – o que nãotinha acontecido em nenhuma vez

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anterior. Fiquei ali, os ramosestendidos, as folhas sacudidas pelovento, sem querer nunca mais sairdaquela posição. Até que alguma coisame atingiu e tudo ficou escuro, por umafração de segundo.

Abri imediatamente os olhos. Petrus medera uma bofetada no rosto e mesegurava pelos ombros.

– Não esqueça dos seus objetivos! –disse com raiva. – Não esqueça quevocê ainda tem muito que aprender antesde encontrar sua espada!

Eu me sentei no chão, tremendo porcausa do vento gelado.

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– Isto acontece sempre? perguntei.

– Quase sempre – disse ele. –Principalmente com pessoas como você,que se fascinam pelos detalhes eesquecem do que procuram.

Petrus tirou um pullover da mochila evestiu. Eu coloquei por cima da I LOVENY a minha camiseta sobressalente –jamais havia pensado que, num verãoque jornais haviam chamado como “omais quente da década”, pudesse fazertanto frio assim. As duas camisetasajudaram a cortar o vento, mas eu pedi aPetrus que andássemos mais depressa,para que eu pudesse me aquecer.

O caminho agora era uma descida bem

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fácil. Achei que o frio demasiado quesentia era porque tínhamos nosalimentado muito frugalmente, comendoapenas peixes e frutas silvestres.2 Eledisse que não, e explicou que o frio eraporque havíamos atingido o ponto maisalto da caminhada nas montanhas.

Não havíamos andado mais dequinhentos metros quando, numa curvado caminho, o mundo de repente mudou.Uma gigantesca planície onduladaestendia-se a nossa frente. E à esquerda,no caminho de descida, a menos deduzentos metros de nós, uma bonitacidadezinha nos esperava, com suaschaminés fumegando.

Eu comecei a andar mais rápido, mas

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Petrus me deteve.

– Acho que é o melhor momento deensinar-lhe a Segunda Prática de RAM –disse, sentando no chão e me indicandopara fazer o mesmo.

Eu sentei a contragosto. A visão dapequena cidade com suas chaminésfumegando tinha me perturbado bastante.De repente, eu me dei conta de queestávamos há uma semana no meio domato, sem ver ninguém, dormindo aorelento e andando o dia inteiro. Meuscigarros haviam acabado e eu eraobrigado a fumar o horrível fumo derolo que Petrus utilizava. Dormir dentrode um saco o comer peixe sem tempero

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eram coisas que eu gostava muito,quando tinha vinte anos, mas que ali, noCaminho de Santiago, exigiam muitaresignação. Esperei impaciente quePetrus acabasse de preparar e fumar seucigarro em silêncio, enquanto sonhavacom o calor de um copo de vinho no barque eu podia ver, a menos de cincominutos de caminhada.

Petrus, bem agasalhado no seu pullover,estava tranqüilo, e olhava distraído aimensa planície.

– Que tal a travessia dos Pirineus? –perguntou, depois de algum tempo.

– Muito boa – respondi sem quererprolongar a conversa.

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– Deve ter sido muito boa mesmo,porque demoramos seis dias para fazero que podia ter sido feito em apenas um.

Não acreditei no que ele estava dizendo.Ele pegou o mapa e me mostrou adistância: 17 km.

Mesmo andando devagar por causa dassubidas e descidas, aquele caminhopodia ter sido coberto em seis horas.

– Você está tão obcecado em chegar atésua espada que se esqueceu da coisamais importante: é preciso caminhar atéela. Olhando fixamente para Santiago –que você não pode ver daqui – nãoreparou que passamos por determinadoslugares quatro ou cinco vezes seguidas,

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apenas em ângulos diferentes.

Agora que Petrus falava, comecei a medar conta de que o Monte Itchasheguy –o mais alto da região – às vezes estava àminha direita e às vezes à minhaesquerda. Mesmo tendo reparado isto,na ocasião, eu não havia chegado àúnica conclusão possível: tínhamos idoe voltado muitas vezes.

– A única coisa que fiz foi utilizar rotasdiferentes, aproveitando as trilhasabertas na mata por contrabandistas.Mas, mesmo assim, você teria aobrigação de haver percebido.

“Isto aconteceu porque o seu ato decaminhar não existia. Existia apenas seu

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desejo de chegar.”

– E se eu tivesse percebido?

– Teríamos demorado os sete dias dequalquer maneira, porque assimdeterminam as Práticas de RAM. Mas,pelo menos, você tinha aproveitado osPirineus de outra forma.

Eu estava tão surpreso que me esquecium pouco do frio e da cidadezinha.

– Quando se viaja em direção a umobjetivo – disse Petrus – é muitoimportante prestar atenção no Caminho.O Caminho é que sempre nos ensina amelhor maneira de chegar, e nosenriquece, enquanto o estamos cruzando.

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Comparando isto com uma relaçãosexual, eu diria que são as caríciaspreliminares que determinam aintensidade do orgasmo. Qualquerpessoa sabe disto.

“E assim é quando se tem um objetivona vida. Ele pode ser melhor ou pior,dependendo do caminho que escolhemospara atingi-lo, e da maneira comocruzamos este caminho. Por isso, aSegunda Prática de RAM é tãoimportante: tirar daquilo que estamosacostumados a olhar todos os dias ossegredos que, por causa da rotina, nãoconseguimos ver.”

E Petrus me ensinou O EXERCÍCIO DAVELOCIDADE.

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O EXERCÍCIO DA VELOCIDADE

Caminhe durante vinte minutos, nametade da velocidade que você costumanormalmente andar. Preste atenção atodos os detalhes, pessoas e paisagensque estão à sua volta. A hora maisindicada para este exercício serrealizado é após o almoço.

Repetir o exercício durante sete dias.

– Nas cidades, no meio de nossosafazeres diários, este exercício deve serexecutado em vinte minutos. Mas comoestamos cruzando o Estranho Caminhode Santiago, vamos demorar uma horapara chegar até a cidade.

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O frio – de que eu já havia meesquecido – voltou, e eu olhei comdesespero para Petrus.

Mas ele não prestou atenção: levantou-se, pegou a mochila, e começamos acaminhar aqueles duzentos metros numalentidão desesperadora.

No começo eu ficava olhando apenas ataberna, um prediozinho antigo, de doisandares, com um letreiro em madeirapendurado por cima da porta. Estávamostão perto que eu até podia ler a data emque o prédio fôra construído: 1652.Estávamos nos movendo, mas pareciaque não tínhamos saído do lugar.

Petrus colocava um pé adiante do outro

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com a máxima lentidão, e eu o imitava.Tirei da mochila o relógio e o coloqueino pulso.

– Vai ser pior assim, – disse ele –porque o tempo não é algo que corresempre no mesmo ritmo. Nós é quedeterminamos o ritmo do tempo.

Eu comecei a olhar o relógio a toda horae achei que ele tinha razão. Quanto maisolhava, mais os minutos custavam apassar. Resolvi seguir seu conselho eenfiei o relógio no bolso. Procureiprestar atenção na paisagem, naplanície, nas pedras que meus sapatospisavam, mas a todo momento eu olhavapara a taberna – e me convencia de quenão tinha saído do lugar. Pensei em

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contar mentalmente algumas históriaspara mim mesmo, mas aquele exercícioestava me deixando tão nervoso que eunão conseguia me concentrar.

Quando não resisti e tirei de novo orelógio do bolso, haviam passadoapenas onze minutos.

– Não faça deste exercício uma tortura,porque ele não foi feito para isto – dissePetrus. –

Procure tirar prazer de uma velocidadea qual você não está acostumado.Mudando a maneira de fazer coisasrotineiras, você permite que um novohomem cresça dentro de você. Mas,enfim, você é quem decide.

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A gentileza da frase final me acalmouum pouco. Se era eu quem decidia o quefazer, então era melhor tirar proveito dasituação. Respirei fundo e evitei pensar.Despertei em mim um estado esquisito,como se o tempo fosse algo distante eque não me interessasse. Fui meacalmando cada vez mais e comecei areparar com outros olhos as coisas queme cercavam. A imaginação, que estavarebelde enquanto eu estava tenso, passoua funcionar a meu favor. Olhava acidadezinha a minha frente e começava acriar toda uma história a seu respeito:como tinha sido construída, osperegrinos que por ali tinham passado, aalegria de encontrar gente e hospedagemdepois do vento frio dos Pirineus. Em

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determinado momento julguei ver nacidade uma presença forte, misteriosa esabia. Minha imaginação encheu aplanície de cavaleiros e de combates.Eu podia ver suas espadas reluzindo aosol e ouvir seus gritos de guerra. Acidadezinha não era mais apenas umlugar para aquecer minha alma comvinho e meu corpo com um cobertor: eraum marco histórico, uma obra de homensheróicos, que haviam deixado tudo parase instalarem naqueles ermos. O

mundo estava ali, me cercando, e eupercebi que muito poucas vezes eu haviaprestado atenção nele.

Quando me dei conta, estávamos naporta da taberna e Petrus me convidou

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para entrar.

– Eu pago o vinho – disse ele. – Evamos dormir cedo porque amanhãpreciso apresentá-lo a um grande bruxo.

Dormi um sono pesado e sem sonhos.Assim que o dia começou a se estenderpelas duas únicas ruas da cidadezinhade Roncesvalles, Petrus bateu na portado meu quarto. Estávamos hospedadosno andar superior da taberna, quetambém servia de hotel.

Tomamos café preto, pão com azeite, esaímos. Uma neblina densa pairavasobre o local.

Percebi que Roncesvalles não era

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exatamente uma cidadezinha, como euhavia pensado a princípio; na época dasgrandes peregrinações pelo Caminho,ela fôra o mais poderoso mosteiro daregião, com interferência direta emterritórios que iam até a fronteira deNavarra. E ainda guardava estascaracterísticas: seus poucos prédiosfaziam parte de um colegiado dereligiosos. A única construção decaracterísticas “leigas” era a tabernaonde havíamos nos hospedado.

Caminhamos pela neblina e entramos naIgreja Colegial. Lá dentro, paramentadosde branco, vários padres rezavam emconjunto a primeira missa da manhã.Percebi que era incapaz de entender uma

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palavra, pois a missa estava sendorezada em basco. Petrus sentou-se numdos bancos mais afastados e pediu queeu ficasse do seu lado.

A igreja era imensa, cheia de objetos dearte de valor incalculável. Petrus meexplicou baixinho que tinha sidoconstruída com doações de reis erainhas de Portugal, Espanha, França eAlemanha, num sítio previamentemarcado pelo imperador Carlos Magno.No altar-mor, a Virgem de Roncesvalles–

toda em prata maciça e com rosto emmadeira preciosa – tinha nas mãos umramo de flores feito de pedrarias.

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O cheiro de incenso, a construção góticae os padres vestidos de branco, seuscânticos, começaram a me deixar numestado muito semelhante aos transes queeu experimentava durante os rituais daTradição.

– E o bruxo? – perguntei, me lembrandodo que ele havia falado na tardeanterior.

Petrus apontou com um gesto de cabeçapara um padre de meia idade, magro ede óculos, sentado junto com outrosmonges nos compridos bancos ladeavamo altar-mor. Um bruxo e ao mesmotempo um padre! Desejei que a missaacabasse logo, mas como Petrus mehavia dito no dia anterior, somos nós

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que determinamos o ritmo do tempo:minha ansiedade fez com que acerimônia religiosa demorasse mais deuma hora.

Quando a missa acabou, Petrus medeixou sozinho no banco e se retiroupela porta por onde os padres haviamsaído. Fiquei algum tempo olhando aigreja, sentindo que devia fazer algumtipo de oração, mas não consegui meconcentrar em nada. As imagenspareciam distantes, presas num passadoque não voltaria mais, como jamaisvoltaria a época de ouro do Caminho deSantiago.

Petrus apareceu na porta e, sem qualquer

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palavra, me fez sinal para que oseguisse.

Chegamos a um jardim interno doconvento, cercado por uma varanda depedra. No centro do jardim havia umafonte e, sentado em sua borda, nosesperava o tal padre de óculos.

– Padre Jordi, este é o peregrino – dissePetrus me apresentando.

O padre me estendeu a mão e eu ocumprimentei. Ninguém disse mais nada.Fiquei esperando que alguma coisaacontecesse, mas só escutava o ruído degalos cantando ao longe e gaviõessaindo em busca da caça diária. O padreme olhava sem qualquer expressão, um

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olhar muito parecido ao de Mme.Lourdes depois que eu havia falado aPalavra Antiga.

Finalmente, depois de um longo econstrangedor silêncio, o Padre Jordifalou.

– Parece que você galgou os degraus daTradição cedo demais, meu caro.

Respondi que já tinha 38 anos, e haviasido bem sucedido em todas asordálias.1

– Menos uma, a última e a maisimportante – disse ele, continuando a mefitar de modo inexpressivo. – E semessa, tudo que você aprendeu não

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significa mais nada.

– É por isso que estou fazendo oCaminho de Santiago.

– O que não é uma garantia de nada.Venha comigo.

Petrus ficou no jardim e eu segui oPadre Jordi. Cruzamos os claustros,passamos pelo local onde estavaenterrado um rei – Sancho El Fuerte – efomos parar numa pequena capela,retirada do grupo de edifícios principaisque compunham o mosteiro deRoncesvalles.

Lá dentro não havia quase nada. Apenasuma mesa, um livro, e uma espada. Mas

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não era a minha.

O Padre Jordi sentou-se atrás da mesa,deixando-me de pé. Depois pegoualgumas ervas e ateou fogo, enchendo oambiente de perfume. Cada vez mais, asituação me lembrava o encontro comMme.

Lourdes.

– Primeiro, vou lhe dar um alerta – disseo Pe. Jordi. – A Rota Jacobea é apenasum dos quatro caminhos. É o Caminhoda Espada. Ele pode lhe trazer Poder,mas isto não é o suficiente.

– Quais são os outros três?

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– Você conhece pelo menos mais dois:O Caminho de Jerusalém, que é ocaminho de Copas, ou do Graal, e lhetrará a capacidade de fazer milagres; e oCaminho de Roma, o caminho de Paus,que lhe permite a comunicação com osoutros mundos.

– Fica faltando o caminho de Ouros,para completar os quatro naipes dobaralho – eu brinquei. E o Padre Jordiriu.

– Exatamente. Este é o caminho secretoe que, se você realizar algum dia, nãopoderá contar para ninguém. Porenquanto vamos deixar isto de lado.Onde estão suas vieiras?

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Abri a mochila e tirei as conchas com aimagem de N. Sra. Aparecida. Ele ascolocou sobre a mesa. Estendeu as mãossobre elas e começou a concentrar-se.Pediu-me que fizesse o mesmo. Operfume no ar estava cada vez maisintenso. Tanto o padre como euestávamos de olhos abertos, e de repenteeu pude perceber que estavaacontecendo o mesmo fenômeno quehavia visto em Itatiaia: as conchasbrilhavam com a luz que não ilumina. Obrilho foi ficando cada vez mais intenso,e eu ouvi uma voz misteriosa, saindo dagarganta do padre Jordi, falar:

– Aonde estiver teu tesouro, ali estará oteu coração.

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Era uma frase da Bíblia. Mas a vozcontinuou:

– E onde estiver teu coração, ali estará oberço da Segunda Vinda de Cristo; comoestas conchas, o peregrino na RotaJacobea é apenas a casca. Rompendo-sea casca, que é de Vida, aparece a Vida,que é feita de Ágape.

Ele tirou as mãos e as conchas pararamde brilhar. Depois escreveu meu nomeno livro que estava em cima da mesa.Em todo o Caminho de Santiago, eu viapenas três livros onde meu nome foiescrito: o de Mme. Lourdes, o do PadreJordi, e o livro do Poder, onde maistarde eu mesmo iria escrever o meunome.

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– Está acabado – disse ele. – Podepartir com a bênção da Virgem deRoncesvalles e de São Tiago da Espada.

– A rota jacobea está marcada porpontos amarelos, pintados através detoda a Espanha –

disse o padre, enquanto voltávamos parao lugar onde havia ficado Petrus. Se emalgum momento você se perder, procureestas marcas – nas árvores, nas pedras,nos marcos de sinalização – e serácapaz de encontrar um lugar seguro.

– Eu tenho um bom guia.

– Mas procure contar, principalmente,

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com você mesmo. Para não ficar indo evoltando durante seis dias pelosPirineus.

Então o padre já sabia da história.

Chegamos junto de Petrus e nosdespedimos. Saímos de Roncesvalles demanhã, e a neblina já haviadesaparecido por completo. Umcaminho reto e plano se estendia a nossafrente, e eu comecei a reparar nasmarcas amarelas que o Pe. Jordi haviafalado. A mochila estava um pouco maispesada porque eu havia comprado umagarrafa de vinho na taberna, apesar dePetrus me dizer que isto eradesnecessário. A partir deRoncesvalles, centenas de cidadezinhas

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iriam se estendendo pelo caminho emuito poucas vezes eu iria dormir aorelento.

– Petrus, o padre Jordi falou da SegundaVinda de Cristo como se fosse algo queestivesse acontecendo.

– E está sempre acontecendo. Este é osegredo da tua espada.

– Além disso, você falou que eu ia meencontrar com um bruxo e eu meencontrei com um padre. O que tem aver a Magia com a Igreja Católica?

Petrus disse apenas uma palavra.

– Tudo.

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A CRUELDADE

– Ali, exatamente naquele local, o Amorfoi assassinado – disse o velhocamponês, apontando para uma pequenaermida encravada nas rochas.

Tínhamos caminhado durante cinco diasseguidos, parando apenas para comer edormir.

Petrus continuava bastante reservadosobre sua vida particular, mas indagavamuito sobre o Brasil e sobre meutrabalho. Disse que gostava muito domeu país, porque a imagem que ele maisconhecia era o Cristo Redentor noCorcovado, de braços abertos, e não

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torturado numa cruz. Queria saber tudo evolta e meia me perguntava se asmulheres eram tão bonitas como asdaqui. O calor durante o dia era quaseinsuportável, e em todos os bares ecidadezinhas que chegávamos, aspessoas reclamavam da seca. Por causado calor, deixamos de andar entre asduas e quatro horas da tarde – quando osol estava mais quente – e nosadaptamos ao costume espanhol dasiesta.

Naquela tarde, enquanto descansávamosno meio de uma plantação de olivas, umvelho camponês havia se aproximado enos oferecido um gole de vinho. Mesmocom o calor, o hábito do vinho fazia

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parte há séculos da vida dos habitantesdaquela região.

– E por que o amor foi assassinado ali?– perguntei, já que o velho estavaquerendo entabular alguma conversa.

– Faz muitos séculos, uma princesa quefazia o Caminho de Santiago, Felícia deAquitânia, resolveu renunciar a tudo eficar morando aqui, quando voltou deCompostela. Era o verdadeiro Amor,porque dividiu os seus bens com ospobres da região e cuidava dosenfermos.

Petrus tinha acendido seu horrível fumode rolo, mas, apesar do ar indiferente,percebi que estava prestando atenção à

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história do velho.

“Então seu irmão, o Duque Guillermo,foi mandado pelo pai para levá-la devolta. Mas Felícia recusou.Desesperado, o duque apunhalou-adentro da pequena ermida que você vêao longe, e que ela construíra com aspróprias mãos, para cuidar dos pobres elouvar a Deus”.

“Depois que caiu em si e percebeu o quehavia feito, o Duque foi a Roma pedirperdão ao Papa. Como penitência, oPapa o obrigou a peregrinar atéCompostela. Foi então que algo curiosoaconteceu: na volta, ao chegar aqui, elesentiu o mesmo impulso e ficou morandona ermida que a irmã havia construído,

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cuidando dos pobres até os últimos diasda sua longa vida”.

– Essa é a lei do retorno – riu Petrus. Ocamponês não entendeu o comentário,mas eu sabia exatamente o que eleestava dizendo. Enquanto andávamos,havíamos nos envolvido em longasdiscussões teológicas sobre a relação deDeus com os homens. Eu haviaargumentado que na Tradição existesempre um envolvimento com Deus, maso caminho era completamente distintodaquele que estávamos seguindo na rotajacobea – com padres bruxos, ciganosendemoninhados, e santos milagreiros.Tudo aquilo me parecia muito primitivo,ligado demais ao cristianismo, e sem o

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fascínio e o êxtase que os Rituais daTradição eram capazes de provocar emmim. Petrus sempre falava que oCaminho de Santiago é um caminho poronde qualquer pessoa pode passar, e sóum caminho deste tipo pode levar atéDeus.

– Você acha que Deus existe e eutambém acho – havia falado Petrus. –Então, Deus existe para nós. Mas sealguém não crê nele, ele não deixa deexistir, mas nem por isso a pessoa quenão crê está errada.

– Então Deus está limitado ao desejo eao poder do homem?

– Certa vez tive um amigo que vivia

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bêbado, mas que rezava toda noite trêsAve-Marias porque sua mãe lhe haviacondicionado desde pequenino. Mesmoquando chegava em casa na maiorembriaguez, mesmo sem acreditar emDeus, meu amigo sempre rezava as trêsAve-Marias. Quando morreu, em umRitual da Tradição, perguntei ao espíritodos Antigos onde estava este meu amigo.O espírito dos Antigos respondeu queele estava muito bem, cercado de luz.Sem ter tido fé durante a vida, a suaobra – que consistia apenas das trêsorações rezadas por obrigação eautomaticamente – o havia salvado.

“Deus já esteve presente nas cavernas enos trovões de nossos antepassados;

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depois que o homem descobriu que estascoisas eram fenômenos naturais, elepassou a habitar alguns animais ebosques sagrados. Houve uma época emque existiu apenas nas catacumbas dasgrandes cidades da História Antiga.

Mas durante todo este tempo ele nãodeixou de fluir no coração do homemsob a forma de Amor.”

– Hoje em dia Deus é apenas umconceito, quase provado cientificamente.Mas quando chega a este ponto, aHistória dá uma volta e começa tudo denovo. A Lei do Retorno. Quando o Pe.Jordi citou a frase de Cristo, dizendoque onde estivesse o seu tesouro tambémali estaria o seu coração, ele estava se

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referindo exatamente a isto. Onde vocêdesejar ver a face de Deus, você a verá.E se não quiser vê-la, isto não faz amínima diferença, desde que sua obraseja boa. Quando Felícia de Aquitâniaconstruiu a ermida e passou a ajudar ospobres, ela esqueceu o Deus doVaticano, e passou a manifestá-lo emsua maneira mais primitiva e mais sábia:o Amor. Neste ponto, o camponês temtoda razão em dizer que o Amor foiassassinado.

O camponês, aliás, estava muito pouco avontade, incapaz de acompanhar nossaconversa.

– A Lei do Retorno funcionou quando o

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seu irmão foi forçado a continuar a obraque havia interrompido. Tudo épermitido, menos interromper umamanifestação de Amor. Quando istoacontece, quem tentou destruir éobrigado a reconstruir de novo.

Expliquei que no meu país a Lei doRetorno dizia que as deformidades e asdoenças dos homens eram castigos porerros cometidos em reencarnaçõespassadas.

– Tolice – disse Petrus. – Deus não évingança, Deus é Amor. Sua únicapunição consiste em obrigar alguém queinterrompeu uma obra de Amor acontinuá-la.

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O camponês pediu licença, disse queestava tarde e que precisava voltar aotrabalho. Petrus achou um bom pretextopara nos levantarmos e continuar acaminhada.

– Isto é jogar conversa fora – disse eleenquanto seguíamos pelo campo deoliveiras. – Deus está em tudo que noscerca, e deve ser pressentido, vivido, eeu estou aqui tentando transformá-lo numproblema de lógica para que vocêcompreenda. Continue fazendo oexercício de andar devagar, e você irátomar conhecimento, cada vez mais, dapresença dele.

Dois dias depois tivemos que subir ummonte chamado de Alto do Perdão. A

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subida demorou várias horas e, quandochegamos lá em cima, vi uma cena queme chocou; um grupo de turistas, com orádio dos carros a todo volume,tomavam banho de sol e bebiamcervejas. Tinham aproveitado umaestrada vicinal que levava até o alto domonte.

– É assim mesmo – disse Petrus. – Ouvocê acha que ia encontrar aqui em cimaum dos guerreiros de El Cid vigiando opróximo ataque dos mouros?

Enquanto descíamos, realizei pelaúltima vez o Exercício da Velocidade.Estávamos diante de mais uma planícieimensa, ladeada por montes azulados e

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com uma vegetação rasteira queimadapela seca.

Não havia quase árvores, apenas umterreno pedregoso com algunsespinheiros. No final do exercício,Petrus me perguntou alguma coisa sobremeu trabalho, e só então eu me dei contaque há muito tempo não pensava nisto.Minhas preocupações com os negócios,com o que tinha deixado por fazer, tinhapraticamente deixado de existir. Só melembrava destas coisas à noite, e mesmoassim não dava muita importância.Estava contente de estar ali, fazendo ocaminho de Santiago.

– Qualquer hora você vai fazer que nemFelícia de Aquitânia – brincou Petrus

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depois que comentei com ele o queestava sentindo. Depois, parou e pediuque eu deixasse a mochila no chão.

– Olhe em volta e fixe sua visão em umponto qualquer – disse.

Eu escolhi a cruz de uma igreja queconseguia ver ao longe.

– Mantenha seus olhos fixos neste ponto,e procure concentrar-se apenas no queeu vou lhe falar. Mesmo que você sintaqualquer coisa diferente, não se distraia.Faça como estou dizendo.

Fique em pé, relaxado, com os olhosfixos na torre, enquanto Petrus colocou-se por detrás de mim e comprimiu um

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dedo na base da minha nuca.

– O caminho que você está fazendo é ocaminho do Poder, e só os exercícios dePoder lhe serão ensinados. A viagem,que antes era uma tortura porque vocêqueria apenas chegar, agora começa atransformar-se em prazer, no prazer dabusca e da aventura. Com isto você estáalimentando uma coisa muito importante,que são seus sonhos.

“O homem nunca pode parar de sonhar.O sonho é o alimento da alma, como acomida é o alimento do corpo. Muitasvezes, em nossa existência, vemosnossos sonhos desfeitos e nossosdesejos frustrados, mas é precisocontinuar sonhando, senão nossa alma

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morre e Ágape não penetra nela. Muitosangue já rolou no campo diante dosseus olhos, e aí foram travadas algumasdas batalhas mais cruéis da Reconquista.Quem estava com a razão, ou com averdade, não tem importância: oimportante é saber que ambos os ladosestavam combatendo o Bom Combate.

“O Bom Combate é aquele que é travadoporque o nosso coração pede. Nasépocas heróicas, no tempo doscavaleiros andantes, isto era fácil, haviamuita terra para conquistar e muita coisapara fazer.

Hoje em dia, porém, o mundo mudoumuito, e o Bom Combate foi

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transportado dos campos de batalha paradentro de nós mesmos.

“O Bom Combate é aquele que é travadoem nome de nossos sonhos. Quando elesexplodem em nós com todo o seu vigor –na juventude – nós temos muita coragem,mas ainda não aprendemos a lutar.Depois de muito esforço, terminamosaprendendo a lutar, e então já não temosa mesma coragem para combater. Porcausa disto, nos voltamos contra nós ecombatemos a nós mesmos, e passamosa ser nosso pior inimigo. Dizemos quenossos sonhos eram infantis, difíceis derealizar, ou fruto de nossodesconhecimento das realidades davida. Matamos nossos sonhos porque

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temos medo de combater o BomCombate.

A pressão do dedo de Petrus na minhanuca tornou-se mais intensa. Eu julgueique a torre da igreja se transformava – ocontorno da cruz estava parecendo umhomem de asas. Um anjo. Pisquei osolhos e a cruz voltou a ser o que era.

– O primeiro sintoma de que estamosmatando nossos sonhos é a falta detempo – continuou Petrus. – As pessoasmais ocupadas que conheci na minhavida sempre tinham tempo para tudo. Asque nada faziam estavam semprecansadas, não davam conta do poucotrabalho que precisavam realizar, e sequeixavam constantemente que o dia era

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curto demais. Na verdade, elas tinhammedo de combater o Bom Combate.

“O segundo sintoma da morte de nossossonhos são nossas certezas. Porque nãoqueremos olhar a vida como uma grandeaventura a ser vivida, passamos a nosjulgar sábios, justos e corretos no poucoque pedimos da existência. Olhamospara além das muralhas do nosso dia-diae ouvimos o ruído de lanças que sequebram, o cheiro de suor e de pólvora,as grandes quedas e os olhares sedentosde conquista dos guerreiros. Mas nuncapercebemos a alegria, a imensa Alegriaque está no coração de quem estálutando, porque para estes não importanem a vitória nem a derrota, importa

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apenas combater o Bom Combate.

Finalmente, o terceiro sintoma da mortede nossos sonhos é a Paz. A vida passaa ser uma tarde de Domingo, sem nospedir grandes coisas, e sem exigir maisdo que queremos dar. Achamos entãoque estamos maduros, deixamos de ladoas fantasias da infância, e conseguimosnossa realização pessoal e profissional.Ficamos surpresos quando alguém denossa idade diz que quer ainda isto ouaquilo da vida. Mas na verdade, noíntimo de nosso coração, sabemos que oque aconteceu foi que renunciamos à lutapor nossos sonhos, a combater o BomCombate.

A torre da igreja transformava-se a toda

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hora, e em seu lugar parecia surgir umanjo, com asas abertas. Por mais que eupiscasse, a figura permanecia lá. Tivevontade de falar com Petrus, mas sentique ele ainda não havia acabado.

– Quando renunciamos aos nossossonhos e encontramos a paz – disse eledepois de um tempo – temos um pequenoperíodo de tranqüilidade. Mas os sonhosmortos começam a apodrecer dentro denós, e infestar todo o ambiente em quevivemos. Começamos a nos tornarcruéis com aqueles que nos cercam, efinalmente passamos a dirigir estacrueldade contra nós mesmos. Surgem asdoenças e as psicoses. O que queríamosevitar no combate – a decepção e a

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derrota – passa a ser o único legado denossa covardia. E um belo dia, ossonhos mortos e apodrecidos tornam oar difícil de respirar e passamos adesejar a morte, a morte que noslivrasse de nossas certezas, de nossasocupações, e daquela terrível paz dastardes de domingo.

Agora eu tinha certeza de que estavavendo mesmo um anjo, e não conseguimais seguir as palavras de Petrus. Eledeve ter percebido isto, pois tirou odedo da minha nuca e parou de falar. Aimagem do anjo permaneceu por algunsinstantes, e depois desapareceu. Em seulugar, surgiu novamente a torre daigreja.

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Ficamos alguns minutos em silêncio.Petrus enrolou um ci-garro e começou afumar. Eu tirei da mochila uma garrafade vinho e bebi um gole. Estava quente,mas o sabor continuava o mesmo.

– O que você viu? – perguntou ele.

Eu contei a história do anjo. Disse queno começo, quando piscava, a imagemdesaparecia.

– Também você tem que aprender acombater o Bom Combate. Já aprendeu aaceitar as aventuras e os desafios davida, mas continua querendo negar oextraordinário.

Petrus tirou da mochila um pequeno

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objeto e me entregou. Era um alfinete deouro.

– Isto é um presente de meu avô. NaOrdem de RAM, todos os Antigospossuíam um objeto como este. Chama-se “O Ponto da Crueldade”. Quandovocê viu o anjo aparecer na torre daigreja, quis negá-

lo. Porque não era uma coisa com a qualvocê estivesse acostumado. Na suavisão de mundo, as igrejas são igrejas eas visões só podem acontecer nosextases provocados pelos Rituais daTradição.

Eu respondi que minha visão deve tersido efeito da pressão que ele exercia na

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minha nuca.

– Está certo, mas não muda nada. O fatoé que você rejeitou a visão. Felícia deAquitânia deve ter visto algosemelhante, e apostou toda a sua vida noque viu: o resultado é que transformousua obra em Amor. O mesmo deve teracontecido com seu irmão. E o mesmoacontece com todo mundo, todos osdias: vemos sempre o melhor caminho aseguir, mas só andamos pelo caminhoque estamos acostumados.

Petrus recomeçou a caminhar, e eu osegui. Os raios de sol faziam brilhar oalfinete na minha mão.

– A única maneira de salvarmos nossos

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sonhos, é sendo generosos conoscomesmos.

Qualquer tentativa de autopunição – pormais sutil que seja, deve ser tratada comrigor. Para saber quando estamos sendocruéis conosco mesmos, temos quetransformar em dor física qualquertentativa de dor espiritual: como culpa,remorso, indecisão, covardia.Transformando uma dor espiritual emdor física, saberemos o mal que elapode nos causar.

E Petrus me ensinou O EXERCÍCIO DACRUELDADE.

O EXERCÍCIO DA CRUELDADE

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Toda vez que um pensamento que vocêacha que lhe faz mal passar-lhe pelacabeça –

ciúme, autopiedade, sofrimentos deamor, inveja, ódio, etc – proceder daseguinte maneira: Cravar a unha doindicador na raiz da unha do polegar, atéque a dor seja bem intensa.

Concentre-se na dor: ela está refletindono campo físico o mesmo sofrimento quevocê está tendo no campo espiritual. Sóafrouxe a pressão quando o pensamentolhe sair da cabeça.

Repita quantas vezes for necessário,mesmo que seja uma atrás da outra, atéque o pensamento o abandone. Cada vez,

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o pensamento voltará maisespaçadamente, e sumirá por completo,desde que você não deixe de cravar aunha toda vez que ele voltar.

– Antigamente eles usavam um alfinetede ouro para isto – disse ele. – Hoje emdia as coisas mudaram, como mudam aspaisagens no caminho de Santiago.

Petrus tinha razão. Visto de baixo, aplanície parecia uma série de morros àminha frente.

– Pense em algo cruel que você fez hojeconsigo mesmo, e execute o exercício.

Eu não conseguia me lembrar de nada.

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– Sempre é assim. Só conseguimos sergenerosos conosco nas poucas horas queprecisamos de severidade.

De repente eu me lembrei que havia mejulgado um idiota por subir o Alto doPerdão com tanta dificuldade, enquantoaqueles turistas tinham conseguido ocaminho mais fácil. Sabia que não eraverdade, que eu estava sendo cruelcomigo mesmo; os turistas estavam embusca de sol, e eu estava em busca deminha espada. Eu não era um idiota ebem podia me sentir como tal. Craveicom força a unha do indicador na raiz daunha do polegar. Senti uma dor intensa,e enquanto me concentrava na dor, asensação de que era um idiota passou.

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Comentei com Petrus e ele riu sem dizernada.

Aquela noite ficamos num aconchegantehotel da tal cidadezinha cuja igreja euhavia visto de longe. Depois do jantar,resolvemos dar um passeio pelas ruas,para fazer a digestão.

– De todas as maneiras que o homemencontrou para fazer mal a si mesmo, apior delas foi o Amor. Estamos sempresofrendo por alguém que não nos ama,por alguém que nos deixou, por alguémque não quer nos deixar. Se estamossolteiros é porque ninguém nos quer, seestamos casados transformamos ocasamento em escravidão. Que coisaterrível – completou mal-humorado.

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Chegamos em frente a uma pequenapraça, aonde estava a igreja que euhavia visto. Era pequena, sem grandessofisticações arquitetônicas, e seucampanário elevava-se para o céu.Tentei ver de novo o anjo e nãoconsegui nada.

Petrus ficou olhando a cruz lá em cima.Pensei que estivesse vendo o anjo, masnão: logo começou a falar comigo.

– Quando o Filho do Pai desceu à terra,ele trouxe o Amor. Mas como ahumanidade só consegue entender oamor com sofrimento e sacrifício,terminaram por crucificá-lo. Se nãofosse assim, ninguém acreditaria em seu

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amor, já que todos estavam acostumadosa sofrer diariamente com suas própriaspaixões.

Sentamos no meio-fio e continuamos aolhar a igreja. Mais uma vez foi Petrusquem quebrou o silêncio.

– Sabe o que quer dizer Barrabás,Paulo? Bar quer dizer filho, e Abba querdizer pai.

Ele olhava fixamente para a cruz nocampanário. Seus olhos brilhavam, esenti que estava possuído por algumacoisa, talvez por este amor do qualfalava tanto, mas que eu não conseguiaentender direito.

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– Como são sábios os desígnios daglória divina! – disse, fazendo com quesua voz ecoasse pela praça vazia. –Quando Pilatos pediu que o povoescolhesse, na verdade não lhe deuopção. Mostrou um homem flagelado,em pedaços, e outro homem de cabeçaerguida, Barrabás, o revolucionário.Deus sabia que o povo ia enviar o maisfraco para a morte, para que ele pudesseprovar seu amor.

E concluiu:

– E, no entanto, fosse qual fosse aescolha, o Filho do Pai é que terminariasendo crucificado.

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O MENSAGEIRO

“E aqui, todos os caminhos de Santiagose transformam em um só.”

Era de manhã bem cedinho quandochegamos a Puente de La Reina. A fraseestava escrita na base de uma estátua –um peregrino em trajes medievais, comchapéu de três bicos, capa, vieiras, ocajado com a cabaça na mão – elembrava a epopéia de uma viagem jáquase esquecida, que eu e Petrusestávamos revivendo agora.

Tínhamos passado a noite anterior numdos muitos conventos que se estendiampor todo o Caminho. O Irmão Porteiro,

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que hos navia recebido, avisou que nãopodíamos trocar qualquer palavra dentrodos muros da abadia. Um frade jovemconduziu cada um para sua alcova, ondehavia estritamente o necessário: umacama dura, lençóis velhos mas limpos,uma jarra de água e uma bacia para ahigiene pessoal.

Não havia encanamento nem águaquente, e o horário das refeições estavamarcado atrás da porta.

Na hora indicada, descemos para orefeitório. Por causa do voto desilêncio, os monges comunicavam-seapenas com os olhares, e tive aimpressão de que seus olhos brilhavammais que os de uma pessoa comum. A

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ceia foi servida cedo, nas mesascompridas onde nos havíamos sentadojunto com os monges de hábitosmarrons. Do lugar onde estava, Petrusme fez um sinal e eu entendiperfeitamente o que queria dizer: estavalouco para acender um cigarro, mas pelovisto ia passar a noite inteira semsatisfazer o seu desejo. O mesmoacontecia comigo, e eu cravei a unha naraiz do polegar já quase em carne viva.O momento era belo demais paracometer qualquer crueldade comigomesmo.

O jantar foi servido: sopa de legumes,pão, peixe e vinho. Todos rezaram e nósacompanhamos a prece. Depois,

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enquanto comíamos, um monge leitordizia em voz monótona trechos de umaepístola de Paulo.

– Deus escolheu as coisas loucas domundo para envergonhar os sábios, eescolheu as coisas fracas do mundo parahumilhar os fortes – dizia o monge comsua voz fina e sem inflexões. – Nóssomos loucos por causa de Cristo. Atéagora chegamos a ser considerados olixo do mundo, a escória de todos.

Entretanto, o Reino de Deus consiste nãoem palavras, mas em Poder.

As admoestações de Paulo aos Coríntiosecoaram durante toda a refeição pelasparedes nuas do refeitório.

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Entramos em Puente de La Reinaconversando sobre os monges da noiteanterior. Eu confessei a Petrus que haviafumado escondido no quarto, morto demedo que alguém sentisse o cheiro detabaco. Ele riu e percebi que deve terfeito o mesmo.

– São João Batista foi para o deserto,mas Jesus juntou-se aos pecadores evivia viajando –

disse. – Prefiro assim.

De fato, afora o tempo passado nodeserto, o resto da vida de Cristo foientre os homens.

– Inclusive, seu primeiro milagre não foi

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salvar a alma de alguém, nem curar umadoença ou expulsar demônio; foitransformar água em vinho excelentenum casamento, porque a bebida dodono da casa havia acabado.

Quando acabou de dizer isto, ele paroude repente. Seu movimento foi tãobrusco que eu parei também, assustado.Estávamos diante da ponte que dá seunome à cidadezinha. Petrus, porém, nãoolhava para o caminho que tínhamos quecruzar. Seus olhos estavam fixos emdois meninos, que brincavam com umabola de borracha na margem do rio.Deviam ter entre oito e dez anos, epareciam não haver notado nossapresença. Ao invés de cruzar a ponte,

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Petrus desceu o barranco e chegou pertodos dois garotos. Eu, como sempre, osegui sem perguntar nada.

Os meninos continuaram ignorandonossa presença. Petrus sentou-se e ficouacompanhando a brincadeira, até que abola caiu perto de onde ele estava. Nummovimento rápido, pegou a bola eatirou-a para mim.

Segurei a bola de borracha no ar e fiqueiesperando o que ia acontecer.

Um dos meninos – que parecia o maisvelho – aproximou-se. Meu primeiroimpulso foi devolver-lhe a bola, mas ocomportamento de Petrus havia sido tãoextravagante que resolvi tentar saber o

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que estava acontecendo.

– Me dá a bola, moço – disse o garoto.

Olhei aquela figura pequena, a doismetros na minha frente. Percebi quehavia algo de familiar no menino, omesmo sentimento que eu havia tido,quando encontrei o cigano.

O garoto insistiu algumas vezes e, vendoque eu não respondia nada, abaixou-se epegou uma pedra.

– Me dá a bola ou eu vou lhe jogar estapedra – disse ele.

Petrus e o outro menino me observavam,em silêncio. A agressividade do garoto

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me irritou.

– Jogue a pedra – respondi – Se ela meacertar, vou até aí e lhe dou uma surra.

Senti que Petrus respirou aliviado.Alguma coisa começava a querer surgirnos subterrâneos da minha cabeça. Tinhaa nítida sensação de que já havia vividoaquela cena.

O garoto ficou assustado com as minhaspalavras. Largou a pedra no chão etentou de outro modo.

– Aqui em Puente de La Reina existe umrelicário que pertenceu a um peregrinomuito rico.

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Vejo pela concha e sua mochila que ossenhores também são peregrinos. Sedevolver minha bola, eu lhe dou esterelicário. Ele está escondido na areia,aqui nas margens do rio.

– Eu quero a bola – respondi sem muitaconvicção. Na verdade, eu queriamesmo era o relicário. O garoto pareciaestar falando a verdade. Mas talvezPetrus precisasse daquela bola paraalguma coisa, e eu não podiadecepcioná-lo; ele era o meu guia.

– Moço, o senhor não precisa desta bola– disse o garoto, quase com lágrimasnos olhos. – O

senhor é forte, viajado, e conhece o

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mundo. Eu só conheço as margens desterio e meu único brinquedo é esta bola.Me devolva a bola, por favor.

As palavras do garoto tocaram fundo nomeu coração. Mas o ambiente,estranhamente familiar, a sensação deque já tinha lido ou vivido aquelasituação, me fez resistir mais uma vez.

– Não. Eu preciso desta bola. Vou lhedar dinheiro para comprar outra, maisbonita que esta, mas esta aqui é minha.

Quando acabei de dizer isto, o tempopareceu parar. A paisagem a minha voltase transformou, sem que Petrus estivessepressionando o dedo na base da minhanuca: por uma fração de segundo,

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parecia que tínhamos sido transportadosa um longo e aterrorizante desertocinzento. Ali não estavam nem Petrusnem o outro garoto, apenas eu e omenino à minha frente. Que era maisvelho, tinha feições simpáticas e amigas,mas em seus olhos brilhava algumacoisa que me dava medo.

A visão não durou mais que um segundo.No momento seguinte eu estava de voltaa Puente de La Reina, onde os muitoscaminhos de Santiago, vindo de diversospontos da Europa, se transformavam emum só. Na minha frente, um meninopedia uma bola, e tinha o olhar doce etriste.

Petrus se aproximou; tirou a bola de

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minha mão e a devolveu para o garoto.

– Onde está o relicário escondido? –perguntei ao menino.

– Que relicário? – o menino respondeu,enquanto pegava seu amigo pelas mãos ecorria para longe de nós, atirando-se naágua.

Subimos de novo o barranco efinalmente cruzamos a ponte. Eucomecei a fazer perguntas sobre o quetinha acontecido, falei da visão dodeserto, mas Petrus mudou de assunto edisse que íamos conversar sobre istoquando estivéssemos um pouco longedali.

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Meia hora depois chegamos a um trechodo caminho que ainda conservavavestígios do calçamento romano. Alihavia outra ponte, em ruínas, e nossentamos para tomar o café da manhãque nos fôra dado pelos monges: pão decenteio, iogurte, e queijo de cabra.

– Para que você queria a bola dogaroto? perguntou Petrus.

Respondi que não queria a bola. Quetinha agido assim porque ele, Petrus,havia se comportado de maneiraestranha. Como se a bola fosse algomuito importante para ele.

– E de fato foi. Fez com que vocêtravasse um contato vitorioso com seu

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demônio pessoal.

Meu demônio pessoal? Eu nunca tinhaouvido semelhante absurdo em todaaquela caminhada. Tinha passado seisdias indo e voltando dos Pirineus, tinhaconhecido um padre bruxo que não haviafeito nenhuma bruxaria, e meu dedoestava em carne viva porque sempre quepensava alguma coisa cruel comigomesmo – hipocondria, sentimento deculpa, complexo de inferioridade – euera obrigado a cravar minha unha naferida. Neste ponto, Petrus tinha razão:os pensamentos negativos haviamdiminuído consideravelmente. Mas estahistória de demônio pessoal era algoque eu nunca havia ouvido falar antes. E

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que não ia engolir com muita facilidade.

– Hoje, antes de cruzar a ponte, sentiintensamente a presença de alguém,tentando nos dar um aviso. Mas o avisoera mais para você que para mim. Umaluta se aproxima rápido, e você precisacombater o Bom Combate.

“Quando não se conhece o demôniopessoal, ele costuma manifestar-se napessoa mais próxima. Olhei em volta evi os meninos brincando – e deduzi queera ali que ele deveria dar seu aviso.Mas eu estava apostando apenas numpalpite. Só tive certeza de que era seudemônio pessoal, quando você serecusou a devolver a bola.”

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Eu disse que tinha feito isto porquepensava que era isto que ele queria.

– Por que eu? Em momento algum eudisse qualquer coisa.

Comecei a me sentir um pouco tonto.Talvez fosse a comida, que eu estavadevorando vorazmente depois de quaseuma hora caminhando em jejum. Aomesmo tempo, a sensação de que ogaroto me era familiar não me saía dacabeça.

– Seu demônio pessoal o tentou de trêsmaneiras clássicas: com uma ameaça,com uma promessa, e com seu ladofrágil. Meus parabéns: você resistiubravamente.

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Agora eu me lembrava que Petrus haviaperguntado para o garoto sobre orelicário. Na hora eu tinha pensado queo menino havia tentado me enganar. Masdevia haver mesmo um relicário aliescondido

– um demônio nunca faz promessasfalsas.

– Quando o garoto não conseguiu maislembrar-se do relicário, é que seudemônio pessoal já havia partido.

E disse sem piscar:

– É hora de chamá-lo de volta. Você vaiprecisar dele.

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Estávamos sentados na velha ponte emruínas. Petrus juntou cuidadosamente osrestos de comida, guardando tudo dentrodo saco de papel que os monges nostinham dado. No campo a nossa frente,os trabalhadores começavam a chegarpara a lavoura, mas estavam tãodistantes que eu não conseguia ouvir oque diziam. O terreno era todoondulado, e as terras cultivadasformavam misteriosos desenhos napaisagem.

Sob nossos pés, o curso de água, quasemorto pela seca, não fazia muitobarulho.

– Antes de sair pelo mundo, Cristo foiconversar com seu demônio pessoal no

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deserto –

começou Petrus. – Aprendeu o queprecisava saber sobre o homem, masnão deixou que o demônio ditasse aregra do jogo, e desta maneira o venceu.

“Certa vez, um poeta disse que nenhumhomem era uma ilha. Para combater oBom Combate, precisamos de ajuda.Precisamos de amigos, e quando osamigos não estão por perto, temos quetransformar a solidão em nossa principalarma. Tudo que nos cerca precisa nosajudar a dar os passos que precisamosem direção ao nosso objetivo. Tudo temque ser uma manifestação pessoal denossa vontade de vencer o Bom

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Combate. Sem isto, sem perceber queprecisamos de todos e de tudo, seremosguerreiros arrogantes. E nossaarrogância nos derrotará no final,porque vamos estar de tal modo segurosde nós mesmos que não vamos perceberas armadilhas do campo de batalha.”

A história de guerreiros e de combatesme lembrou mais uma vez o Don Juan deCarlos Castañeda. Eu me perguntei se ovelho bruxo índio costumava dar liçõesde manhã, antes que seu discípulopudesse digerir o desjejum. Mas Petruscontinuou.

– Além das forças físicas que noscercam e nos ajudam, existembasicamente duas forças espirituais ao

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nosso lado: um anjo e um demônio. Oanjo nos protege sempre, e isto é umdom divino – não é necessário invocá-lo. A face do seu anjo está semprevisível quando você vê o mundo com osolhos belos. Ele é este riacho, ostrabalhadores no campo, este céu azul.Aquela velha ponte que nos ajuda aatravessar a água, e que foi colocadaaqui por mãos anônimas de legionáriosromanos, também nesta ponte está a facedo teu anjo. Nossos avós o conheciampor anjo guardião, anjo da guarda, anjocustódio.

“O demônio também é um anjo, mas éuma força livre, rebelde. Prefiro chamá-lo de Mensageiro, já que ele é o

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principal elo de ligação entre você e omundo. Na Antigüidade erarepresentado por Mercúrio, por HermesTrimesgisto, o Mensageiro dos Deuses.Sua atuação é apenas no plano material.

Está presente no ouro da Igreja, porqueo ouro vem da terra e a terra é seudomínio. Está presente no nossotrabalho e na nossa relação com odinheiro. Quando o deixamos solto, suatendência é dispersar-se. Quando oexorcisamos, perdemos tudo de bom queele sempre tem para nos ensinar, poisconhece muito do mundo e dos homens.Quando nos fascinamos pelo seu poder,ele nos possui e nos afasta do BomCombate.

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“Portanto, a única maneira de lidar comnosso Mensageiro é aceitando-o comoamigo.

Ouvindo seus conselhos, pedindo suaajuda quando necessária, mas nuncadeixando que ele dite as regras.

Como você fez com o garoto. Para isto,é necessário, primeiro, que você saiba oque quer, e depois, que você conheçasua face e seu nome.

– Como vou saber isto? – perguntei.

E Petrus me ensinou o RITUAL DOMENSAGEIRO.

O RITUAL DO MENSAGEIRO

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1) Sente-se e relaxe completamente.Deixe a mente vagar por onde quiser, opensamento fluindo sem controle.Depois de algum tempo, comece arepetir para si mesmo: “eu agora estourelaxado, e meus olhos dormem o sonodo mundo”.

2) Quando sentir que sua mente não sepreocupa mais com nada, imagine umacoluna de fogo à sua direita. Faça aschamas ficarem vivas, brilhantes. Entãodiga em voz baixa: “eu ordeno que meusubconciente se manifeste. Ele se abrepara mim e revela seus segredosmágicos”. Aguarde um pouco,concentrando-se apenas na coluna defogo. Se surgir alguma imagem, ela será

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uma manifestação do seu subconsciente.Procure guardá-la.

3) Mantendo sempre a coluna de fogo àsua direita, comece agora a imaginaroutra coluna de fogo à sua esquerda.Quando as chamas estiverem bem vivas,diga em voz baixa as seguintes palavras:

“Que a força do Cordeiro, que semanifesta em tudo e em todos,manifeste-se também em mim enquantoinvoco o meu Mensageiro. (Nome doMensageiro) aparecerá para mimagora”.

4) Converse com seu Mensageiro, quedeverá manifestar-se entre as duascolunas. Discuta seu problema

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específico, peça conselhos e lhe dê asordens necessárias.

5) Quando sua conversa acabar, despeçao Mensageiro com as seguintespalavras:

“Agradeço ao Cordeiro o milagre querealizei. Que (nome do Mensageiro)volte sempre que invocado, e enquantoestiver distante, esteja me ajudando arealizar minha obra.”

Nota: Na primeira invocação – ou nasprimeiras invocações, dependendo dacapacidade de concentrar-se de quemestá realizando o Ritual – não se diz onome do Mensageiro. Diz-se apenas“Ele”. Se o Ritual for bem executado, o

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Mensageiro deve revelar de imediatoseu nome, através de telepatia. Casocontrário, insista até conseguir sabereste nome, e só a partir daí comece asconversas. Quanto mais o Ritual forrepetido, mais forte será a presença doMensageiro, e mais rápidas serão suasações.

– Deixe para realizá-lo à noite, porque émais fácil. Hoje, no seu primeiroencontro, ele lhe revelará seu nome.Este nome é secreto e não deve jamaisser conhecido por ninguém, nem pormim. Quem souber o nome de seuMensageiro, pode lhe destruir.

Petrus levantou-se e nós começamos acaminhar. Em pouco tempo chegamos ao

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campo onde os camponeses trabalhavama terra. Trocamos alguns “buenos dias”e seguimos caminho.

– Se eu tivesse que utilizar uma imagem,diria que o anjo é a tua armadura, e oMensageiro a tua espada. Uma armaduraprotege em qualquer circunstância, masuma espada pode cair no meio de umcombate, matar um amigo, ou voltar-secontra o próprio dono. Alício, umaespada serve para quase tudo, menospara sentar-se em cima dela – dissesoltando uma gostosa gargalhada.

Paramos numa aldeia para o almoço, e orapaz que nos atendeu estavavisivelmente de mau-humor. Não

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respondia nossas perguntas, colocou acomida de qualquer maneira, e no finalconseguiu derramar um pouco de café nabermuda de Petrus. Vi então meu guiatransformar-se: enfurecido, foi chamar odono e esbravejava contra a falta deeducação do rapaz. Terminou indo aobanheiro colocar sua bermudasobressalente, enquanto o dono lavava amancha de café e estendia a peça parasecar.

Enquanto esperávamos que o sol dasduas da tarde cumprisse seu papel nabermuda de Petrus, eu pensava em tudoaquilo que tínhamos conversado demanhã. É verdade que a maior parte dascoisas que Petrus dissera sobre o

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menino se encaixavam. Além do mais,eu tivera a visão de um deserto e de umrosto. Mas aquela história deMensageiro me parecia muito primitiva.Estávamos em pleno século XX, e osconceitos de inferno, de pecado e dedemônio já não faziam mais o menorsentido para qualquer pessoa umpouquinho mais inteligente. NaTradição, cujos ensinamentos eu haviaseguido durante muito mais tempo que oCaminho de Santiago, o Mensageiro –chamado de demônio mesmo, sempreconceitoss – era um espírito quedominava as forças da Terra, e queestava sempre a favor do homem. Eramuito utilizado em Operações Mágicas,mas nunca como um aliado e conselheiro

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para as coisas diárias. Petrus haviadeixado entender que eu poderia utilizara amizade do Mensageiro para melhorarno trabalho e no mundo. Além deprofana, a idéia me parecia infantil.

Mas eu havia jurado obediência total àMme. Lourdes. E mais uma vez tive quecravar a unha na raiz do polegar, emcarne viva.

– Não devia ter me exaltado – dissePetrus depois que saímos. – Afinal decontas, ele não derrubou a xícara sobremim, mas sobre o mundo que odeia.Sabe que existe um mundo gigantesco,além das fronteiras de sua própriaimaginação, e sua participação nestemundo se restringe a acordar cedo, ir na

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padaria, servir quem passa, e masturbar-se de noite, sonhando com mulheres quenunca irá conhecer.

Era hora de pararmos para a siesta, masPetrus resolveu continuar caminhando.Disse que era uma maneira de fazerpenitência pela sua intolerância. Eu, quenão tinha feito nada, tive queacompanhá-

lo debaixo daquele sol forte. Pensava noBom Combate e nas milhões de pessoasque, naquele instante, estavamespalhados pelo planeta fazendo coisasque não gostavam. O Exercício daCrueldade, apesar de estar me deixandoo dedo em carne viva, estava me

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fazendo muito bem. Havia me feitoperceber como minha mente podia sertraiçoeira, me empurrar para coisas queeu não queria e sentimentos que não meajudavam.

Naquele momento eu torci para quePetrus tivesse razão: para que existisserealmente um Mensageiro, com quempudesse falar de coisas práticas e pedirajuda nos assuntos do mundo. Fiqueiansioso para que a noite chegasse.

Petrus, entretanto, não parava de falarsobre o rapaz. Afinal, terminou seconvencendo de que tinha agido certo, eutilizou para isto, mais uma vez, umargumento cristão.

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– Cristo perdoou a mulher adúltera, masamaldiçoou a figueira que não quis lhedar um figo.

Eu também não estou aqui para sersempre bonzinho.

Pronto. Na cabeça dele o assunto estavaresolvido. Mais uma vez a Bíblia ohavia salvado.

Chegamos à Estella quase nove horas danoite. Tomei um banho, e descemos parajantar. O

autor do primeiro guia da Rota Jacobea,Aymeric Picaud, descreveu Estellacomo “um lugar fértil e de bom pão,ótimo vinho, carne e pescado. Seu tio

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Ega, tem a água doce, sã e muito boa”.Não bebi a água do rio, mas quanto àmesa, Picaud continuava a ter razão,mesmo depois de oito séculos. Serviramperna de carneiro guisada, corações dealcachofra, e um vinho Rioja de ótimasafra. Ficamos à mesa durante longotempo, conversando trivialidades esaboreando o vinho. Finalmente, Petrusdisse que era uma boa hora para eu termeu primeiro contato com oMensageiro.

Levantamos e começamos a andar pelasruas da cidade. Alguns becos davamdiretamente no rio – à maneira deVeneza – e foi num destes becos que euresolvi me sentar. Petrus sabia que dali

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por diante era eu que conduzia acerimônia, e ficou um pouco atrás.

Fiquei olhando o rio durante muitotempo. Suas águas, seu barulho,começaram a me desligar do mundo e ame inspirar uma profunda calma. Fecheios olhos e imaginei a primeira coluna defogo.

Houve um momento de certadificuldade, mas ela terminouaparecendo.

Disse as palavras rituais e a outracoluna surgiu do meu lado esquerdo. Oespaço entre as duas colunas, iluminadopelo fogo, estava completamente vazio.Fiquei durante algum tempo com os

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olhos fixos naquele espaço, procurandonão pensar, para que o Mensageiro semanifestasse. Mas, ao invés disto,começaram a aparecer cenas exóticas –a entrada de uma pirâmide, uma mulhervestida de ouro puro, alguns homensnegros dançando em volta de umafogueira. As imagens iam e vinham emrápida sucessão, e eu deixei quefluíssem sem qualquer controle.Apareceram também muitos trechos doCaminho que eu tinha feito com Petrus.Paisagens, restaurantes, florestas. Atéque, sem qualquer aviso, o desertocinzento que eu vira de manhã estendeu-se entre as duas colunas de fogo. E lá,me olhando, estava o homem simpáticocom um brilho traiçoeiro nos olhos.

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Ele riu e eu sorri em meu transe.Mostrou-me uma bolsa fechada, depoisabriu e olhou dentro – mas, da posiçãoem que eu estava não pude ver nada.Então um nome veio à minha cabeça:Astrain.1

Comecei a mentalizar este nome, evibrá-lo entre as duas colunas de fogo, eo Mensageiro fez um sinal afirmativocom a cabeça; eu tinha descoberto comose chamava.

Era o momento de encerrar o exercício.Disse as palavras rituais e extingui ascolunas de fogo – primeiro a daesquerda, depois a da direita. Abri osolhos e o rio Ega estava diante de mim.

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– Foi muito menos difícil do que euimaginava – disse para Petrus, depoisque lhe contei tudo que havia passadoentre as colunas.

– Este foi seu primeiro contato. Umcontato de reconhecimento mútuo, e demútua amizade.

A conversa com o Mensageiro irá serprodutiva se você invocá-lo todos osdias, discutindo seus problemas comele, e sabendo distinguir perfeitamente oque é ajuda real do que é armadilha.Mantenha sempre em riste sua espada,quando encontrá-lo.

– Mas eu não tenho espada ainda –respondi.

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– Por isso, ele poderá lhe causar muitopouco dano. Mesmo assim, é bom nãofacilitar.

O Ritual havia acabado, eu me despedide Petrus e voltei para o hotel. Debaixodos lençóis, pensava no pobre rapaz quenos havia servido o almoço. Tinhavontade de voltar, de ensinar-lhe oRitual do Mensageiro, e dizer que tudopodia mudar se ele assim desejasse.Mas era inútil tentar salvar o mundo: euainda não havia conseguido sequersalvar a mim mesmo.

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O AMOR

– Conversar com o Mensageiro não éficar perguntando coisas sobre o mundodos espíritos

– disse Petrus no dia seguinte. – OMensageiro só lhe serve para uma coisa:ajudar no mundo material. E ele só lhedará esta ajuda se você souberexatamente o que deseja.

Tínhamos parado num povoado parabeber alguma coisa. Petrus havia pedidouma cerveja, e eu um refrigerante. Odescanso de meu copo era feito deplástico redondo com água coloridadentro. Meus dedos desenhavam figuras

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abstratas na água, e eu estavapreocupado.

– Você me disse que o Mensageirohavia se manifestado no garoto porqueprecisava me dizer algo.

– Algo urgente – confirmou ele.

Continuamos conversando sobreMensageiros, anjos e demônios. Eradifícil para mim aceitar um uso tãoprático dos mistérios da Tradição.Petrus insistia na idéia de que temossempre que buscar uma recompensa, eeu lembrava que Jesus dissera que osricos não entrariam no reino dos céus.

– Jesus também recompensou o homem

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que soube multiplicar os talentos de seuamo. Além disso, não acreditaram nelesó porque tinha uma boa oratória:precisou fazer milagres, darrecompensas aos que o seguiam.

– Ninguém vai falar mal de Jesus no meubar – interrompeu o dono, que estavaseguindo nossa conversa.

– Ninguém está falando mal de Jesus –respondeu Petrus. – Falar mal de Jesus écometer pecados invocando seu nome.Como vocês fizeram aí nesta praça.

O dono do bar vacilou por um instante.Mas logo respondeu:

– Eu não tive nada a ver com isto. Era

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ainda uma criança.

– Os culpados são sempre os outros –resmungou Petrus. O dono do bar saiupela porta da cozinha. Perguntei sobre oque estavam falando.

– Fazem cinqüenta anos, em plenoséculo XX, um cigano foi queimado aíem frente.

Acusado de bruxarias e de blasfemarcontra a santa hóstia. O caso foi abafadopelas atrocidades da guerra civilespanhola, e ninguém hoje em dia selembra do assunto. Exceto os habitantesdesta cidade.

– Como você sabe disto, Petrus?

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– Porque eu já percorri antes o Caminhode Santiago.

Continuamos bebendo no bar vazio.Fazia muito sol lá fora e era hora denossa “siesta”.

Daqui a pouco o dono do bar voltou como pároco da aldeia.

– Quem são vocês? – perguntou o padre.

Petrus mostrou a vieira desenhada namochila. Durante mil e duzentos anos osperegrinos haviam passado pelocaminho em frente ao bar, e a tradiçãofazia com que cada peregrino fosserespeitado e acolhido em qualquercircunstância. O padre logo mudou de

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tom.

– Como é que peregrinos a caminho deSantiago falam mal de Jesus? –perguntou, num tom mais de catequese.

– Ninguém aqui estava falando mal deJesus. Estávamos falando mal doscrimes cometidos em nome de Jesus.Como o cigano que foi queimado napraça.

A vieira na mochila de Petrus mudoutambém o tom da conversa do dono.Desta vez ele se dirigiu a nós comrespeito.

– A maldição do cigano permanece atéhoje – disse sob o olhar reprovador do

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padre.

Petrus insistiu em saber como. O padredisse que eram histórias do povo, semqualquer apoio da igreja. Mas o dono dobar prosseguiu:

– Antes do cigano morrer, ele disse quea criança mais nova da aldeia iriareceber e incorporar seus demônios.Quando esta criança ficasse velha emorresse, os demônios passariam parauma nova criança. E assim, através dosséculos.

– A terra aqui é igual à terra das aldeiasao redor – disse o padre. – Quando elessofrem a seca, nós sofremos também.Quando lá chove e tem boa colheita, nós

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também enchemos nossos celeiros.

Nada aconteceu conosco que não tivessetambém acontecido com as aldeiasvizinhas. Esta história toda é uma grandefantasia.

– Nada aconteceu porque nós isolamos aMaldição – disse o dono do bar.

– Pois então, vamos até ela – respondeuPetrus. O padre riu e disse que era assimque se falava. O dono do bar fez o sinalda cruz. Mas nenhum dos dois se moveu.

Petrus pegou a conta e insistiu para quealguém nos levasse até aquela pessoaque tinha recebido a Maldição. O padredesculpou-se, dizendo que precisava

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voltar até a igreja, pois tinhainterrompido um trabalho importante. Esaiu antes que algum de nós pudessedizer qualquer coisa.

O dono do bar olhou com medo paraPetrus.

– Não se preocupe – disse meu guia. –Basta nos mostrar a casa onde ele vive.E nós vamos tentar libertar a cidade daMaldição.

O dono do bar saiu conosco para a ruapoeirenta e brilhante com o sol quenteda tarde.

Caminhamos juntos até a saída dopovoado, e ele nos apontou uma casa

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afastada, nas margens do Caminho.

– Nós sempre mandamos comida,roupas, tudo o que é necessário –desculpou-se. – Mas nem mesmo opadre vai até lá.

Despedimo-nos e caminhamos até acasa. O velho ficou esperando, pensandotalvez que fôssemos passar adiante. MasPetrus foi até a porta da frente e bateu.Quando olhei para trás, o dono do barhavia desaparecido.

Uma mulher de mais ou menos sessentaanos veio abrir a porta. Ao seu lado, umenorme cachorro preto abanava o rabo eparecia contente com a visita. A mulherperguntou o que queríamos: disse que

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estava ocupada, lavando roupa, e quetinha deixado algumas panelas no fogo.Não pareceu surpresa com a visita.Deduzi que muitos peregrinos, que nãosabiam da Maldição, devem ter batidonaquela porta em busca de abrigo.

– Somos peregrinos a caminho deCompostela e precisamos de um poucode água quente –

disse Petrus. – Sei que a senhora não irárecusar.

Meio a contragosto, a velha abriu aporta. Entramos numa pequena sala,limpa mas pobremente mobiliada. Haviaum sofá com o plástico do forrorasgado, um aparador, e uma mesa de

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fórmica com duas cadeiras. Em cima doaparador, uma imagem do SagradoCoração de Jesus, alguns santos e umcrucifixo feito de espelhos. Duas portasdavam para a saleta: por uma eu podiaenxergar o quarto. A mulher conduziuPetrus pela outra, que ia dar na cozinha.

– Tenho um pouco de água fervendo –disse ela. – Vou pegar uma vasilha evocês podem logo seguir por ondevieram.

Eu fiquei sozinho com o imensocachorro na sala. Ele abanava o rabo,contente e dócil.

Daqui a pouco a mulher voltou com umavelha lata, encheu-a de água quente, e

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estendeu para Petrus.

– Pronto. Partam com a bênção de Deus.

Mas Petrus não se moveu. Tirou umsaquinho de chá da mochila, colocoudentro da lata, e disse que gostaria dedividir o pouco que tinha com ela, emagradecimento pela acolhida.

A mulher, visivelmente contrariada,trouxe duas xícaras e sentou-se comPetrus na mesa de fórmica. Eu continueiolhando o cachorro, enquanto ouvia aconversa dos dois.

– Disseram-me no povoado que haviauma maldição sobre esta casa –comentou Petrus, num tom corriqueiro.

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Senti que os olhos do cachorrobrilharam, como se tivesse entendidotambém a conversa. A velhaimediatamente pôs-se de pé.

– Isto é mentira! Isto é superstiçãoantiga! Por favor, acabe logo o seu cháque eu tenho muito o que fazer.

O cão sentiu a súbita mudança de humorda mulher. Ficou imóvel em estado dealerta. Mas Petrus continuava com amesma tranqüilidade do início. Colocoulentamente o chá na xícara, levou-a aoslábios, e devolveu à mesa sem beberuma gota.

– Está muito quente – disse. – Vamosesperar que esfrie um pouco.

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A mulher não sentou-se mais. Estavavisivelmente incomodada com nossapresença, e arrependida de ter aberto aporta. Reparou que eu estava olhandofixamente para o cão, e chamou-o para oseu lado. O animal obedeceu, masquando chegou perto dela tornou a olharpara mim.

– Foi para isso, meu caro Petrus – falou,olhando para mim. – Foi para isto queseu Mensageiro apareceu ontem nacriança.

De repente me dei conta que não era euquem estava olhando o cão. Desde quehavia entrado, aquele animal tinha mehipnotizado e mantido meus olhos fixosno dele. Era o cão que estava me

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olhando, e fazendo com que eucumprisse sua vontade. Comecei a sentiruma grande preguiça, uma vontade dedormir naquele sofá rasgado, porquefazia muito calor lá fora e eu não estavacom vontade de andar. Tudo aquilo meparecia estranho, e eu tinha a sensaçãode que estava caindo numa armadilha. Ocão me olhava fixamente, e quanto maisme olhava, mais sono eu tinha.

– Vamos, disse Petrus, levantando-se eme estendendo a xícara de chá. – Tomeum pouco, porque a senhora deseja quepartamos logo.

Eu vacilei, mas consegui pegar a xícarae o chá quente me reanimou. Eu queria

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dizer alguma coisa, perguntar o nome doanimal, mas a minha voz não saía.Alguma coisa dentro de mim haviadespertado, algo que Petrus não tinha meensinado, mas que começava amanifestar-se. Era um desejoincontrolável de falar palavrasestranhas, que nem eu mesmo sabia osentido. Achei que Petrus tinha postoalguma coisa dentro do chá. Tudocomeçou a ficar distante, e eu tinhaapenas a vaga noção de que a mulherdizia para Petrus que tínhamos que irembora. Senti um estado de euforia, eresolvi dizer em voz alta as palavrasestranhas que estavam me passando pelacabeça.

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Tudo o que eu podia perceber naquelasala era o cão. Quando comecei a falaraquelas palavras estranhas, que nem eumesmo entendia, percebi que o cãohavia começado a rosnar. Ele estavaentendendo. Eu fiquei mais excitado, econtinuei a falar cada vez mais alto. Ocão levantou-se e mostrou os dentes. Jánão era mais o animal dócil que eu haviaencontrado na chegada, mas algumacoisa ruim e ameaçadora, que podia meatacar a qualquer momento. Sabia que aspalavras me protegiam, e comecei afalar cada vez mais alto, dirigindo todaminha força para o cão, sentindo quedentro de mim havia um poder diferente,e que este poder impedia que o animalme atacasse.

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A partir daí, tudo começou a acontecerem câmara lenta. Notei que a mulher seaproximava aos berros de mim e tentavame empurrar para fora, e que Petrussegurava a mulher, mas o cão não dava amenor atenção à briga dos dois. Estavacom os olhos fixos em mim, e levantou-se rosnando e mostrando os dentes.Tento compreender a língua estranha queestou falando, mas cada vez que paropara buscar algum sentido, o poderdiminui e o cão se aproxima, se tornamais forte. Começo então a gritar semprocurar entender, e a mulher começa agritar também. O cão ladra e me ameaça,mas enquanto eu continuar falandoestarei seguro. Ouço uma grande risada,mas não sei se a risada existe ou é fruto

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de minha imaginação.

De repente, como se tudo acontecesse aomesmo tempo, a casa foi invadida porum vento, o cão deu um grande uivo esaltou em cima de mim. Eu levantei obraço para defender o rosto, gritei umapalavra e esperei o impacto.

O cão atirou-se em cima de mim comtodo o seu peso, e eu caí no sofá deplástico. Por alguns instantes nossosolhos ficaram fixos um no outro, e, derepente, ele saiu correndo para fora.

Comecei a chorar copiosamente.Lembrei de minha família, de minhamulher e dos meus amigos. Sentia umagigantesca sensação de amor, uma

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alegria imensa e absurda, porque aomesmo tempo eu estava consciente detoda aquela história com o cão. Petrusme pegou por um braço e me conduziupara fora, os dois sendo empurradospela mulher. Olhei em volta e não haviamais sinal do cachorro. Me abracei aPetrus e continuei chorando, enquantocaminhávamos debaixo do sol.

Não consegui recordar daquelacaminhada, e só voltei a mim sentadonuma fonte, com Petrus jogando água nomeu rosto e na minha nuca. Pedi um golee ele disse que se bebesse qualquercoisa agora, iria vomitar. Estava umpouco enjoado, mas me sentia bem. Umimenso amor, por tudo e por todos,

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havia me invadido. Olhei em volta e vias árvores da beira da estrada, apequena fonte onde havíamos parado, abrisa fresca e o canto dos passarinhos namata. Estava vendo o rosto do meu anjo,conforme Petrus havia falado. Pergunteise estávamos longe da casa da mulher.Ele disse que tínhamos andado mais oumenos quinze minutos.

– Você deve estar querendo saber o queaconteceu – disse ele.

Na verdade, isto não tinha a menorimportância. Eu estava contente comaquele Amor imenso que havia meinvadido. O cachorro, a mulher, o donodo bar, tudo aquilo era uma lembrançadistante, que parecia não ter nenhuma

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relação com o que eu estava sentindoagora. Disse a Petrus que gostaria decaminhar um pouco, porque me sentiabem.

Levantei e retomamos o Caminho deSantiago. Durante o resto da tarde eunão falei quase nada, imerso naquelesentimento agradável que pareciapreencher tudo. De vez em quandopensava que Petrus havia colocadoalguma droga no chá, mas isto não tinhaa menor importância. Importante era veros montes, os riachos, as flores naestrada, os traços gloriosos do rosto demeu anjo.

Chegamos a um hotel às oito horas da

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noite, e eu ainda continuava – emboracom menor intensidade – naquele estadode beatitude. O dono pediu meupassaporte para o registro, e eu oentreguei.

– Você é do Brasil? Eu já estive lá.Fiquei num hotel na praia de Ipanema.

Aquela frase absurda me devolveu osentido de realidade. Em plena rotajabobea, numa aldeia construída hámuitos séculos atrás, havia um hoteleiroque conhecia a praia de Ipanema.

– Estou pronto para conversar – eu dissea Petrus. – Preciso saber tudo o queaconteceu hoje.

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A sensação de beatitude havia passado.Em seu lugar, surgia de novo a Razão,com seus temores do desconhecido, coma urgente e absoluta necessidade decolocar de novo os pés na terra.

– Depois de jantar – respondeu ele.

Petrus pediu para que o dono do hotelligasse a televisão, mas tirasse o som.Disse que esta era a melhor maneira deeu ouvir tudo sem fazer muitasperguntas, porque parte de mim ia estarolhando para o que se passava na tela.Perguntou até onde eu me lembrava doque tinha acontecido. Eu respondi queme lembrava de tudo, menos da parte emque caminhamos até a fonte.

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– Isto não tem a menor importância nahistória – respondeu ele. Na televisão,um filme sobre alguma coisarelacionada com minas de carvãocomeçava a passar. As pessoas vestiamtrajes do início do século.

– Ontem, quando pressenti a urgência deseu Mensageiro, sabia que um combateno Caminho de Santiago estava paracomeçar. Você está aqui para encontrara sua espada e aprender as Práticas deRAM. Mas sempre que um guia conduzum peregrino, existe pelo menos umacircunstância que foge ao controle dosdois, e que é uma espécie de testeprático do que está sendo ensinado. Noseu caso, foi o encontro com o cão.

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“Os detalhes da luta e o porquê dosmuitos demônios num animal, eu lheexplicarei mais adiante. O importanteagora é você entender que aquela mulherjá estava acostumada com a Maldição.Tinha aceito isto como se fosse umacoisa normal, e a mesquinhez do mundolhe parecia algo bom. Aprendeu asatisfazer-se com muito pouco, quando avida é generosa e quer sempre nos darmuito.

“Quando você expulsou os demôniosdaquela pobre velha, você tambémdesequilibrou seu universo. Outro diaconversamos sobre as crueldades que aspessoas são capazes de cometer consigomesmas.

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Muitas vezes, quando tentamos mostraro bem, mostrar que a vida é generosa,elas rejeitam a idéia como se fossecoisa do demônio. Ninguém gosta depedir muito da vida, porque tem medoda derrota. Mas quem deseja combater oBom Combate, tem que olhar o mundocomo se fosse um tesouro imenso, queestá ali esperando para ser descoberto econquistado.”

Petrus me perguntou se eu sabia o queestava fazendo ali, no Caminho deSantiago.

– Estou em busca da minha espada –respondi.

– E para que você quer a sua espada?

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– Porque ela me trará o Poder e aSabedoria da Tradição.

Senti que minha resposta não tinha lheagradado completamente. Mas eleprosseguiu:

– Você está aqui em busca de umarecompensa. Ousa sonhar, e está fazendoo possível para transformar este sonhoem realidade. Precisa saber melhor oque irá fazer com sua espada, e isto temque ficar claro antes que cheguemos atéela. Mas uma coisa conta a seu favor:você está em busca de uma Recompensa.

Só está fazendo o Caminho de Santiagoporque deseja ser recompensado peloseu esforço. Já notei que tudo que estou

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lhe ensinando, você tem aplicado,buscando um fim prático. Isto é muitopositivo.

“Falta apenas que você consiga juntar asPráticas de RAM com a sua própriaintuição. A linguagem de seu coração éque irá determinar a maneira correta dedescobrir e manejar sua espada. Casocontrário, os exercícios e as Práticas deRAM vão se perder na sabedoria inútilda Tradição.”

Petrus já tinha me falado aquilo antes,de maneira diferente, e apesar deconcordar com ele, não era isto que euestava interessado em saber. Haviamacontecido duas coisas que eu nãoconseguia explicar: a língua diferente

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que falei, e a sensação de alegria eamor, depois de haver expulsado o cão.

– A sensação de alegria aconteceuporque seu gesto foi tocado por Ágape.

– Você fala muito em Ágape, e até agoranão me explicou direito o que é. Tenho asensação de que se trata de algorelacionado com uma forma maior deamor.

– É exatamente isto. Breve chegará omomento de experimentar este amorintenso, este amor que devora quemama. Enquanto isto, fique contente emsaber que ele se manifesta livrementeem você.

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– Eu já tive esta sensação antes, só quemais curta e de maneira diferente.Acontecia sempre depois de uma vitóriaprofissional, de uma conquista, ouquando pressentia que a Sorte estavasendo generosa comigo. Entretanto,quando esta sensação surgia, eu metrancava e ficava com medo de vivê-laintensamente.

Como se esta alegria pudesse despertara inveja nos outros, ou como se eu fosseindigno de recebê-la.

– Todos nós, antes de conhecer Ágape,agimos assim – disse ele, com os olhosfixos na tela de TV.

Perguntei-lhe então sobre a língua

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diferente que eu havia falado.

– Isto foi uma surpresa para mim. Não éuma Prática do Caminho de Santiago.Trata-se de um Carisma, e faz parte dasPráticas de RAM no Caminho de Roma.

Eu já ouvira falar alguma coisa arespeito dos Carismas, mas pedi aPetrus que me explicasse melhor.

– Os Carismas são os dons do EspíritoSanto manifestados nas pessoas. Existeuma diversidade deles: o dom da cura, odom dos milagres, o dom da profecia,entre outros. Você experimentou o Domdas Línguas, o mesmo que os apóstolosexperimentaram no dia de Pentecostes.

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“O Dom das Línguas está ligado àcomunicação direta com o Espírito.Serve para orações poderosas,exorcismos – como foi seu caso – esabedoria. Os dias de caminhada e asPráticas de RAM, além do perigo que ocão representava para você,despertaram o Dom das Línguas poracaso. Ele não voltará a acontecer mais,a não ser que você encontre sua espadae resolva seguir o Caminho de Roma.De qualquer maneira, foi um bompresságio.”

Fiquei olhando a televisão sem som. Ahistória das minas de carvão tinha setransformado em uma sucessão deimagens de homens e mulheres sempre

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falando, discutindo, conversando. Devez em quando, um ator e uma atriz sebeijavam.

– Mais uma coisa – disse Petrus. – Podeser que você torne a encontrar o cão;Neste caso, não tente despertar de novoo Dom das Línguas, porque ele nãovoltará mais. Confie no que sua intuiçãoirá lhe dizer. Vou ensinar-lhe outraPrática de RAM, que irá despertar estaintuição. Assim, você vai começar aconhecer a linguagem secreta de suamente, e ela lhe será muito útil em todosos momentos de sua vida.

Petrus desligou a televisão, justamentequando eu começava a me interessarpelo enredo.

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Depois, foi até o bar e pediu umagarrafa de água mineral. Cada qualbebeu um pouco, e ele carregou o quehavia sobrado da garrafa para fora.

Sentamos ao ar livre, e por algunsmomentos ninguém disse nada. Osilêncio da noite nos envolvia e a ViaLáctea nos céus me lembrava sempre omeu objetivo: encontrar a espada.

Depois de algum tempo, Petrus meensinou O EXERCÍCIO DA ÁGUA.

O DESPERTAR DA INTUIÇÃO (OEXERCÍCIO DA ÁGUA)

Faça uma poça de água sobre uma

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superfície lisa e não absorvente. Olhepara esta poça durante algum tempo.Depois comece a brincar, sem qualquercompromisso, sem qualquer objetivo,com a água. Trace desenhos que nãoquerem dizer absolutamente nada. Façaeste exercício durante uma semana,demorando um mínimo de dez minutoscada vez.

Não procure resultados práticos nesteexercício porque ele está despertando,aos poucos, sua Intuição. Quando elacomeçar a se manifestar durante asoutras horas do dia, confie sempre nela.

– Estou cansado e vou dormir – disseele. – Mas faça este exercício agora.Desperte de novo sua intuição, seu lado

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secreto. Não se preocupe com a lógica,porque a água é um elemento fluido, enão se deixará dominar tão facilmente.Mas ela vai construir, aos poucos, semviolência, uma nova relação sua com oUniverso.

E concluiu, antes de entrar para o hotel:

– Não é sempre que a gente tem a ajudade um cão.

Continuei a saborear um pouco o frescore o silêncio da noite. O hotel ficavaafastado de qualquer cidade, e ninguémpassava pela estrada na minha frente.Lembrei-me do dono, que conheciaIpanema, e deveria achar um absurdo euestar naquele lugar tão árido, queimado

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pelo sol, que voltava todos os dias coma mesma fúria.

Comecei a ficar com sono e resolvirealizar logo o exercício. Derramei oresto da garrafa no chão de cimento. Apoça imediatamente se formou. Nãotinha qualquer imagem ou forma, e eunão estava buscando isto. Meus dedoscomeçaram a passear pela água fria, eeu comecei a sentir o mesmo tipo dehipnose que a gente sente quando ficaolhando o fogo. Não pensava em nada,estava apenas brincando.

Brincando com uma poça de água. Fizalguns riscos nas bordas, e ela pareceutransformar-se num sol molhado, mas osriscos logo se misturavam e se fundiam.

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Com a mão espalmada, dei uma batidano centro da poça; a água se espalhou aoredor, enchendo o cimento de pingos,estrelas negras num fundo cinza. Estavacompletamente entregue àqueleexercício absurdo, que não tinha amenor finalidade, mas que era gostosode realizar. Senti que a mente haviaparado quase por completo, o que eu sóconseguia atingir em longos períodos demeditação e relaxamento. Ao mesmotempo, alguma coisa me dizia que, nasprofundezas de mim mesmo, nos lugaresocultos de minha mente, uma forçaganhava corpo e se preparava paramanifestar-se.

Fiquei muito tempo brincando com a

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poça, e foi difícil parar o exercício. SePetrus tivesse me ensinado o exercícioda água no começo da viagem, com todacerteza teria achado que era uma perdade tempo. Mas agora, havendo faladoem línguas diferentes e expulsadodemônios, aquela poça de águaestabelecia um contato – ainda que frágil– com a Via Láctea acima de mim.Refletia suas estrelas, criava desenhosque eu não conseguia entender, e medava a sensação, não de estar perdendotempo, mas de estar criando um novocódigo de comunicação com o mundo. Ocódigo secreto da alma, a língua queconhecemos e que ouvimos tão pouco.

Quando me dei por conta, já era bastante

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tarde. As luzes da portaria estavamapagadas, e eu entrei sem fazer ruído.No meu quarto, fiz mais uma vez ainvocação de Astrain. Ele apareceu maisnítido, e eu lhe falei algum tempo sobreminha espada e meus objetivos na vida.Por enquanto, ele não respondia nada,mas Petrus me dissera que, com odecorrer das invocações, Astrain ia setornar uma presença viva e poderosa aomeu lado.

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O CASAMENTO

Logrono é uma das maiores cidadescruzadas pelos peregrinos que seguem arota jabobea.

Antes disso, a única grande cidade quehavíamos atravessado tinha sidoPamplona – e mesmo assim, nãohavíamos pernoitado lá. Mas, na tardeque chegamos a Logrono, a cidade sepraparava para uma grande festa, ePetrus sugeriu que ficássemos ali, pelomenos aquela noite.

Eu estava já acostumado com o silêncioe a liberdade do campo, de maneira quea idéia não me agradou muito. Cinco

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dias se haviam passado desde oincidente com o cão, e eu realizava todanoite a invocação de Astrain e oexercício da água. Sentia-me muito maiscalmo, consciente da importância doCaminho de Santiago na minha vida e noque eu iria fazer dali por diante. Apesarda aridez da paisagem, da comida nemsempre boa, e do cansaço provocadopor dias inteiros na estrada, eu estavavivendo um sonho real.

Tudo aquilo ficou distante no dia em quechegamos a Logrono. Ao invés do arquente, mas puro dos campos dointerior, a cidade estava cheia de carros,jornalistas e equipes de TV. Petrusentrou no primeiro bar para perguntar o

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que se passava.

– O senhor não sabe? É o casamento dafilha do Coronel M. – respondeu ohomem. –

Vamos ter um grande banquete públicona praça, e hoje eu fecho mais cedo.

Foi difícil encontrar um hotel, masconseguimos hospedagem com um casalde velhos que havia reparado a vieira namochila de Petrus. Tomamos banho, euvesti a única calça comprida que haviatrazido, e saímos para a praça.

Ali, dezenas de empregados suandodebaixo de “summers” e vestidosnegros, davam os últimos retoques nas

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mesas espalhadas por todo o local. ATV Espanhola tomava alguns flashes dospreparativos. Seguimos por umapequena rua que ia dar na Paróquia deSantiago El Real, onde a cerimôniaestava para começar.

Pessoas bem vestidas, mulheres com amaquilagem quase derretendo por causada temperatura, crianças de roupasbrancas e olhar zangado, entravam semparar na igreja. Alguns fogos de artifícioestouraram sobre nós, e uma imensalimousine negra parou na portaprincipal. Era o noivo chegando.

Eu e Petrus não conseguimos entrar naigreja apinhada, e resolvemos voltarpara a praça.

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Petrus foi dar uma volta e eu sentei numdos bancos, esperando que o casamentoacabasse e o banquete fosse servido. Aomeu lado, um vendedor de pipocasesperava o final da cerimônia para umfaturamento extra.

– Você também é convidado? –perguntou o vendedor.

– Não – respondi. – Somos peregrinos acaminho de Compostela.

– De Madrid existe um trem direto atélá, e se você sai numa sexta tem direito ahotel grátis.

– Mas nós estamos fazendo uma

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peregrinação.

O vendedor olhou para mim, e dissecom todo cuidado:

– Peregrinação é para santo.

Resolvi não insistir no assunto. O velhocomeçou a contar que já havia casadosua filha, mas que hoje em dia ela viviaseparada do marido.

– Na época de Franco havia muito maisrespeito – disse. – Hoje em dia ninguémdá mais atenção à família.

Mesmo estando num país estranho, ondenão é aconselhável discutir política, eunão podia deixar passar aquilo sem

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resposta. Disse que Franco era umditador, e que nada na época dele podiater sido melhor.

O velho ficou vermelho.

– Quem é o senhor para falar destejeito?

– Conheço a história do seu país.Conheço a luta do seu povo pelaliberdade. Li sobre os crimes da guerracivil espanhola.

– Pois eu participei da guerra. Possofalar porque correu o sangue da minhafamília. A história que o senhor leu nãome interessa; me interessa o que sepassa na minha família. Eu lutei contra

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Franco, mas depois que ele venceu,minha vida melhorou. Não sou pobre etenho uma carrocinha de pipocas.

Este governo socialista que está aí nãome ajudou a conseguir isto. Vivo pioragora do que vivia antes.

Lembrei-me de Petrus dizendo que aspessoas se contentavam com muitopouco da vida.

Resolvi não insistir no assunto e troqueide banco.

Petrus veio sentar-se ao meu lado. Faleida história do vendedor de pipocas.

– Conversar é muito bom – disse ele –

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quando a gente quer se convencer do queestamos dizendo. Sou do PCI1 e nãoconhecia este teu lado fascista.

– Que lado fascista? – pergunteiindignado.

– Você ajudou o velho a se convencerde que Franco era melhor. Talvez elenunca tivesse sabido porquê. Agora jásabe.

– Pois eu fico muito surpreso em saberque o PCI acredita nos Dons do EspíritoSanto.

– A gente se preocupa com o que osvizinhos vão dizer – disse ele. E imitouo Papa.

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Rimos juntos. Alguns fogos de artifícioespoucaram de novo. Uma banda subiuno coreto da praça e começou a afinaros instrumentos. A festa deveriacomeçar a qualquer momento.

Olhei para o céu. Começava a escurecere algumas estrelas apareciam. Petrus foiaté um dos garçons e conseguiu doiscopos de plástico cheios de vinho.

– Traz sorte beber um pouco antes decomeçar a festa – disse ele estendendo-me um dos copos. – Tome um poucodisto. Vai ajudá-lo a esquecer o velhodas pipocas.

– Eu já não estou mais pensando nisto.

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– Pois devia. Porque o que aconteceu éuma mensagem simbólica de umcomportamento errado. Estamos sempretentando conquistar adeptos para asnossas explicações do Universo.Achamos que a quantidade de pessoasque acredita na mesma coisa em queacreditamos é que irá transformar estacoisa em realidade. E não é nada disto.

“Olhe à sua volta. Uma grande festa seprepara, uma comemoração está paracomeçar.

Muitas coisas estão sendo celebradas aomesmo tempo: o sonho do pai que queriacasar a filha, o sonho da filha que queriacasar, o sonho do noivo. Isto é bom,porque eles acreditam neste sonho e

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querem mostrar a todos que atingiramuma meta. Não é uma festa paraconvencer ninguém, e por isso serádivertida. Tudo indica que são pessoasque combateram o Bom Combate doamor.”

– Mas você está tentando me convencer,Petrus. Você está me guiando peloCaminho de Santiago.

Ele olhou para mim com frieza.

– Eu estou lhe ensinando as Práticas deRAM. Mas você só conseguirá chegaraté sua espada se descobrir que no seucoração está o caminho, a verdade e avida.

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Petrus apontou para o céu, onde asestrelas já estavam bem visíveis.

– A Via Láctea mostra o Caminho atéCompostela. Não existe religião queseja capaz de juntar todas as estrelas,porque se isto acontecesse, o Universose tornaria um gigantesco espaço vazio eperderia sua razão de existir. Cadaestrela – e cada homem – tem seuespaço e suas características especiais.

Existem estrelas verdes, amarelas, azuis,brancas, existem cometas, meteoros emeteoritos, nebulosas e anéis.

Aquilo que daqui de baixo parece umaporção de pontinhos iguais, na verdadesão milhões de coisas diferentes,

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espalhadas por um espaço além dacompreensão humana.

Um fogo de artifício espocou, e sua luzescureceu por momentos o céu. Umacascata de partículas verdes e brilhantesapareceu no céu.

– Antes nós ouvíamos apenas o seuruído, porque era de dia. Agorapodemos ver sua luz –

disse Petrus. – Esta é a única mudançaque o homem pode aspirar.

A noiva saiu da igreja e as pessoasatiraram arroz e gritaram vivas. Era umamenina magra, de seus dezessete anos,de braços dados com um rapaz em farda

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de gala. Todos começaram a sair e seencaminhar para a praça.

– Olha o Coronel M.! Repara o vestidoda noiva! Está linda! – diziam algumasmeninas perto de nós. Os convidadoscercaram as mesas, os garçonsdistribuíram o vinho, e a banda demúsica começou a tocar. O velhinho daspipocas foi imediatamente cercado poruma multidão de garotos histéricos, queestendiam o dinheiro e espalhavam ossacos pelo chão. Imaginei que para oshabitantes de Logrono, pelo menosnaquela noite, não existia o resto domundo, a ameaça de guerra nuclear, odesemprego, os crimes de morte. A noiteera uma festa, as mesas estavam na

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praça para o povo, e todos se sentiamimportantes.

Uma equipe de TV dirigiu-se em nossadireção e Petrus escondeu rosto. Mas aequipe passou direto, em busca de umdos convidados, que estava ao nossolado. Eu reconheci imediatamente osujeito: era o Manolo, chefe da torcidaespanhola no Mundial de Futebol doMéxico. Quando acabou a entrevista, eume dirigi até ele. Falei que erabrasileiro e ele, fingindo indignação,reclamou de um gol roubado na primeirapartida do Mundial.2 Mas logo meabraçou e disse que o Brasil voltaria ater os melhores jogadores do mundo.

– Como você consegue ver o jogo se

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está sempre de costas para o campo,animando a torcida? – perguntei. Erauma das coisas que mais me tinhamchamado a atenção durante astransmissões do Mundial.

– Minha alegria é esta. Ajudar a torcidaa acreditar na vitória.

E concluiu, como se também fosse umguia pelos caminhos de Santiago:

– Uma torcida sem fé faz um time perderum jogo já vitorioso.

Manolo foi logo solicitado por outraspessoas, mas eu fiquei refletindo sobresuas palavras.

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Mesmo sem nunca haver cruzado a rotajacobea, ele também sabia o que eracombater o Bom Combate.

Descobri Petrus escondido num canto, eabertamente incomodado pela presençadas equipes de televisão. Só quando osrefletores se apagaram é que ele saiu domeio das árvores da praça e relaxou umpouco. Pedimos mais dois copos devinho, eu fiz para mim mesmo um pratode canapés, e Petrus descobriu umamesa onde pudéssemos sentar junto comoutros convidados.

O casal de noivos cortou um imensobolo. Mais vivas soaram.

– Eles devem se amar – pensei em voz

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alta.

– É claro que eles se amam – disse umsenhor de terno escuro que estavasentado na mesa.

Você já viu alguém casar por outromotivo?

Guardei a resposta para mim mesmo,lembrando o que Petrus dissera sobre ovencedor de pipocas. Mas meu guia nãodeixou passar o episódio em branco.

– A que tipo de amor o senhor se refere:Eros, Philos ou Ágape?

O senhor olhou sem entender nada.Petrus levantou-se, encheu de novo o

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copo, e pediu que passeássemos umpouco.

– Existem três palavras gregas paradesignar o amor – começou ele. – Hojevocê está vendo a manifestação de Eros,aquele sentimento entre duas pessoas.

Os noivos sorriam para os flashes erecebiam cumprimentos.

– Parece que os dois se amam – disse,se referindo ao casal. – E acham que oamor é uma coisa que cresce. Dentro depouco estarão lutando sozinhos pelavida, vão montar uma casa, e vãoparticipar da mesma aventura. Istoengrandece e torna digno o amor. Elevai seguir sua carreira no Exército, ela

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deve saber cozinhar e ser uma excelentedona-de-casa, porque foi educada desdecriança para isto. Vai acompanhá-

lo, terão filhos, e se sentirem que estãoconstruindo alguma coisa juntos, éporque estão na luta do Bom Combate.Então, mesmo com todos os tropeços,jamais vão deixar de ser felizes.

“De repente, entretanto, esta história queestou lhe contando pode acontecer demaneira inversa. Ele pode começar asentir que não é livre o suficiente paramanifestar todo o Eros, todo o amor queele tem por outras mulheres. Ela podecomeçar a sentir que sacrificou umacarreira e uma vida brilhante paraacompanhar o marido. Então, ao invés

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da criação conjunta, cada um irá sentir-se roubado em sua maneira de amar.Eros, o espírito que os une, irá começara mostrar apenas seu lado mau. E aquiloque Deus havia destinado ao homemcomo seu mais nobre sentimento,passará a ser fonte de ódio e destruição.

Olhei em volta. Eros estava presente emvários casais. O exercício da água haviadespertado a linguagem do meu coração,e eu estava vendo as pessoas de umamaneira diferente. Talvez fossem os diasde solidão no mato, talvez fossemmesmo as Práticas de RAM. Mas eupodia sentir a presença de Eros Bom eEros Mau, exatamente como Petrushavia descrito.

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– Repare como é curioso – disse Petrus,notando a mesma coisa. – Apesar de serbom ou ser mau, a face de Eros nunca éa mesma em cada pessoa. Exatamentecomo as estrelas sobre as quais eufalava há meia hora atrás. E ninguémpode escapar de Eros. Todos temnecessidade de sua presença – apesar demuitas vezes Eros fazer com que nossintamos distantes do mundo, trancadosem nossa solidão.

A banda começou a tocar uma valsa. Aspessoas foram para um pequeno espaçode cimento em frente ao coreto ecomeçaram a dançar. O álcoolcomeçava a subir e todos estavam maissuados e mais alegres. Notei uma

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menina vestida de azul, que deve teresperado este casamento apenas paraque chegasse o momento da valsa –porque queria dançar com alguém comquem sonhava estar abraçada desde queentrou na adolescência. Seus olhosseguiam os movimentos de um rapazbem vestido, de terno claro, que estavanuma roda de amigos. Todosconversavam alegremente e não haviampercebido que a valsa tinha começado, eque a alguns metros de distância umamenina de azul olhava insistentementepara um deles.

Pensei nas cidades pequenas, noscasamentos sonhados desde a infânciacom o rapaz escolhido.

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A menina de azul notou meu olhar e saiude perto da pista. Foi então a vez dorapaz procurá-

la com os olhos. Assim que descobriuque ela estava perto de outras garotas,voltou a conversar animadamente comos amigos.

Chamei a atenção de Petrus para osdois. Ele acompanhou durante algumtempo o jogo de olhares, e depois voltouao seu copo de vinho.

– Eles agem como se fosse umavergonha demonstrar que se amam – foiseu único comentário.

Uma menina a nossa frente olhava

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fixamente para nós dois. Devia termetade de nossa idade. Petrus levantouo copo de vinho e fez um brinde a ela. Agarota riu encabulada, e fez um gestoapontando para os pais, quase sedesculpando por não chegar mais perto.

– Este é o lado belo do amor – disse. –O amor que desafia, o amor de doisestranhos mais velhos que vieram delonge e amanhã já partiram. Para ummundo que ela gostaria também depercorrer.

Percebi pela voz de Petrus que o vinhohavia subido um pouco.

– Hoje vamos falar de Amor! – dissemeu guia, num tom um pouco alto.

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Vamos falar deste amor verdadeiro, queestá sempre crescendo, movendo omundo e fazendo o homem sábio!

Uma mulher perto de nós, bem vestida,parecia não estar prestando atençãonenhuma na festa. Ia de mesa em mesaarrumando os copos, os pratos e ostalheres.

– Repare na senhora ali – disse Petrus –que não pára de arrumar as coisas.Como lhe disse antes, existem muitasfaces de Eros, e esta também é umadelas. É o amor frustrado, que se realizana infelicidade alheia. Vai beijar onoivo e a noiva, mas por dentro estarámurmurando de que um não foi feitopara o outro. Está tentando colocar o

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mundo em ordem porque ela mesma estáem desordem. E ali – apontou para outrocasal, a mulher exageradamentemaquilada e com o cabelo todo armado– é o Eros aceito. O Amor social, semqualquer vestígio de emoção. Elaaceitou seu papel e cortou todos oslaços com o mundo e o Bom Combate.

– Você está sendo muito amargo, Petrus.Não existe ninguém aqui que se salva?

– Claro que existe. A menina que nosolhou. Os adolescentes que estãodançando e que só conhecem o ErosBom. Se eles não se deixareminfluenciar pela hipocrisia do Amor quedominou a geração passada, o mundo

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com toda certeza vai ser outro.

Ele apontou para um casal de velhos,sentados numa mesa.

– E aqueles dois também. Não sedeixaram contagiar pela hipocrisia,como muitos outros.

Pela aparência deve ser um casal delavradores. A fome e a necessidade osobrigou a trabalharem juntos.

Aprenderam as Práticas que você estáconhecendo sem nunca haverem ouvidofalar em RAM. Porque tiraram a forçado amor do próprio trabalho. Ali Erosmostra sua face mais bela, porque estáunido a Philos.

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– O que é Philos?

– Philos é o Amor sobre a forma deamizade. É aquilo que eu sinto por vocêe pelos outros.

Quando a chama de Eros não conseguemais brilhar, é Philos que mantém oscasais juntos.

– E Ágape?

– Hoje não é dia de falarmos de Ágape.Ágape está em Eros e em Philos, masisto é apenas uma frase. Vamos nosdivertir nesta festa, sem tocar no Amorque Devora – e Petrus colocou maisvinho em seu copo de plástico.

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Havia em torno de nós uma alegria quecontagiava tudo. Petrus estava ficandotonto, e no começo aquilo me deixou umpouco chocado. Mas eu me lembrei desuas palavras certa tarde, dizendo que asPráticas de RAM só teriam sentido sepudessem ser executadas por umapessoa comum.

Petrus me parecia, nesta noite, umhomem como todos os outros. Estavacamarada, amigo, batendo nas costas daspessoas e conversando com quem lhedesse atenção. Pouco tempo depoisestava tão tonto que tive que pegá-lopelo braço e conduzi-lo ao hotel.

No caminho, me dei conta da situação.Eu estava guiando o meu guia. Percebi

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que em nenhum momento de toda a nossajornada, Petrus havia feito qualqueresforço para parecer mais sábio, maissanto, ou melhor que eu. Tudo o quetinha feito era me transmitir suaexperiência com as Práticas de RAM.

Mas de resto, fazia questão de mostrarque era um homem como todos osoutros, que sentia Eros, Philos e Ágape.

Isto fez com que me sentisse mais forte.Era das pessoas comuns o Caminho deSantiago.

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O ENTUSIASMO

– Ainda que eu fale a língua dos homense dos anjos; ainda que eu tenha o dom deprofetizar e tenha fé ao ponto detransportar montes, se não tiver amor,nada serei.

Petrus vinha de novo com São Paulo.Para ele o Apóstolo era o grandeintérprete oculto da mensagem de Cristo.Estávamos pescando naquela tarde,depois de haver passado a manhã inteiracaminhando. Nenhum peixe haviamordido a isca, mas meu guia não davaa menor importância para isto.

Segundo ele, o exercício da pesca era

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mais ou menos um símbolo da relaçãodo homem com o mundo: sabemos o quequeremos, e vamos atingir seinsistirmos, mas o tempo para chegar aoobjetivo depende da ajuda de Deus.

– É sempre bom fazer alguma coisa lentaantes de alguma decisão importante nasua vida –

disse ele. – Os monges zen ficamescutando as rochas crescerem. Euprefiro pescar.

Mas aquela hora, com o calor que estavafazendo, até os peixes vermelhos epreguiçosos –

quase à flor d’água – não ligavam para o

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anzol. Estar com a linha dentro ou forada água dava no mesmo.

Resolvi desistir e dar um passeio pelasredondezas. Fui até um velho cemitérioabandonado perto do rio – com umaporta absolutamente desproporcionalpara o seu tamanho – e voltei para juntode Petrus. Perguntei sobre o cemitério.

– A porta era de um antigo Hospital deperegrinos – disse ele. – Mas foiabandonado e mais tarde alguém teve aidéia de aproveitar a fachada e construiro cemitério.

– Que também está abandonado.

– Assim é. As coisas nesta vida duram

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muito pouco.

Disse que ele tinha sido muito duro nanoite anterior, quando havia julgado aspessoas na festa. Petrus ficou surpresocomigo. Afirmou que o que tínhamosconversado não era nem mais nemmenos do que o que nós mesmos jáhavíamos experimentado em nossasvidas pessoais. Todos nós corremos embusca de Eros, e quando Eros quer setransformar em Philos, achamos que oAmor é inútil. Sem perceber que Philosé que os conduzirá até a forma do amormaior, Ágape.

– Fale-me mais de Ágape – eu pedi.

Petrus respondeu que Ágape não podia

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ser falado, precisava ser vivido. Sehouvesse chances, ele iria me mostrarainda naquela tarde uma das faces deÁgape. Mas para isto, era preciso que oUniverso se comportasse como oexercício da pesca: colaborando paraque tudo corresse bem.

– O Mensageiro o ajuda, mas existe algoque está além do domínio doMensageiro, dos seus desejos, e de vocêmesmo.

– O que é isto?

– A faísca divina. O que as pessoaschamam de Sorte.

Quando o sol amainou um pouco,

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recomeçamos a caminhada. A RotaJacobea atravessava algumas vinhas ecampos cultivados, que estavamcompletamente desertos àquela hora dodia. Cruzamos a estrada principal –também deserta – e voltamos para omato. À distância eu podia ver o pico deSan Lorenzo, o ponto mais alto do reinode Castilla. Muita coisa havia mudadoem mim desde que havia encontradoPetrus pela primeira vez, perto de SanJuan Pied-de-Port. O Brasil, os negóciospara realizar, tinham quase que seapagado por completo de minha mente.A única coisa viva era o meu objetivo,discutido todas as noites com Astrain,que cada vez aparecia mais nítido paramim. Eu conseguia vê-lo sempre sentado

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ao meu lado, percebia que tinha um tiquenervoso no olho direito, e quecostumava sorrir com desdém sempreque eu repetia algumas coisas para mecertificar de que havia entendido. Háalgumas semanas atrás – principalmentenos primeiros dias – eu chegara a temerque jamais conseguiria completar ocaminho. Na época em que passamospor Roncesvalles, eu tinha sentido umprofundo tédio de tudo aquilo, e umdesejo de chegar logo a Santiago,recuperar minha espada, e voltar paracombater aquilo que Petrus chamava deo Bom Combate.1

Mas agora, os apegos da civilização tãoa contragosto abandonados, já estavam

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quase esquecidos. Naquele momento,tudo que me preocupava era o sol sobreminha cabeça, e a excitação deexperimentar Ágape.

Descemos um barranco e cruzamos umarroio, fazendo um grande esforço parasubir pela margem oposta. Aquelearroio deve ter sido no passado umbravo rio, rugindo e cavando o solo embusca das profundezas e dos segredos daterra. Agora era apenas um arroio quepodia ser cruzado a pé. Mas a sua obra,a imensa vala que havia cavado, aindaestava ali, e me obrigava a fazer umgrande esforço para vencê-la.

“Tudo nesta vida dura muito pouco”,dissera Petrus algumas horas antes.

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– Petrus, você já amou muito?

A pergunta saiu de maneira espontânea,e me surpreendi com a minha coragem.Até aquele momento, eu sabia apenas oessencial sobre a vida privada do meuguia.

– Já tive muitas mulheres, se é isto quevocê quer dizer. E amei muito cada umadelas. Mas senti a sensação de Ágapecom apenas duas.

Contei-lhe que também havia amadomuito, e estava começando a ficarpreocupado porque não conseguia mefixar em ninguém. Se continuasse assim,ia ter uma velhice solitária e tinha muito

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medo disto.

– Contrate uma enfermeira – ele riu. –Mas enfim, não acredito que você estejabuscando no amor uma aposentadoriaconfortável.

Eram quase nove da noite quandocomeçou a escurecer. Os campos deparreiras haviam ficado para trás, eestávamos no meio de uma paisagemquase desértica. Olhei em volta e pudedistinguir, ao longe, uma pequenaermida encravada numa pedra,semelhante a muitas ermidas que haviampassado pelo caminho. Andamos maisum pouco e nos desviamos das marcasamarelas, seguindo direto até a pequenaconstrução.

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Quando nos aproximamos o suficiente,Petrus gritou um nome que não entendi eparou para escutar a resposta. Apesardos ouvidos atentos, não escutamosnada. Petrus tornou a chamar e ninguémrespondeu.

– Vamos assim mesmo – disse ele. E nosdirigimos para lá.

Eram apenas quatro paredes caiadas debranco. A porta estava aberta – melhordizendo, não havia porta, mas umapequena porteira de meio metro dealtura, sustentando-se precariamente emapenas uma dobradiça. Dentro havia umfogão feito de pedras e algumas tigelascuidadosamente empilhadas no chão.

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Duas delas estavam cheias de trigo ebatatas.

Sentamos em silêncio. Petrus acendeuum cigarro e disse para esperarmos umpouco.

Percebi que minhas pernas doíam decansaço, mas alguma coisa naquelaermita, ao invés de me acalmar, meexcitava. E teria me amedrontadotambém, se não fosse a presença dePetrus.

– Seja quem for que viva aqui, aondedorme? – perguntei, quebrando aquelesilêncio que começava a me fazer mal.

– Aí onde você está sentado – disse

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Petrus, apontando para o chão nu. Eu fizmenção de me mover do local, mas elepediu que eu permanecesse exatamenteonde estava. A temperatura devia tercaído um pouco, pois comecei a sentirfrio.

Esperamos durante quase uma horainteira. Petrus ainda chamou duas vezesaquele nome estranho, e depois desistiu.Quando pensei que levantaríamos parair embora, ele começou a falar.

– Aqui está presente uma das duasmanifestações de Ágape – disseenquanto apagava seu terceiro cigarro. –Não é a única, mas é uma das maispuras. Ágape é o amor total, o amor quedevora quem o experimenta. Quem

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conhece e experimenta Ágape, vê quenada mais neste mundo tem importância,apenas amar. Este foi o amor que Jesussentiu pela humanidade, e foi tão grandeque sacudiu as estrelas e mudou o cursoda história do homem. Sua vida solitáriaconseguiu fazer o que reis, exércitos eimpérios não conseguiram.

“Durante os milênios da história daCivilização, muitas pessoas foramtomadas por este Amor Que Devora.Elas tinham tanto para dar – e o mundoexigia tão pouco – que foram obrigadasa buscar os desertos e lugares isolados,porque o Amor era tão grande que astransfigurava. Viraram os santosermitões que hoje nós conhecemos.

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“Para mim e para você, queexperimentamos outra forma de Ágape,esta vida aqui pode parecer dura,terrível. Entretanto, o Amor que Devorafaz com que tudo – absolutamente tudo –perca a importância. Estes homensvivem apenas para serem consumidospelo seu Amor.”

Petrus me contou que ali vivia umhomem chamado Alfonso. Que o tinhaconhecido em sua primeira peregrinaçãoa Compostela, enquanto colhia frutaspara comer. Seu guia, um homem muitomais iluminado que ele, era amigo deAlfonso e os três haviam feito juntos oRitual de Ágape, o Exercício da BolaAzul. Petrus disse que havia sido uma

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das experiências mais importantes desua vida e que – até hoje –

quando fazia este exercício, lembrava-seda ermida e de Alfonso. Havia um tomde emoção na sua voz, e era a primeiravez que eu estava percebendo isto.

– Ágape é o Amor que Devora – repetiumais uma vez, como se esta fosse a fraseque melhor definisse aquela estranhaespécie de amor. – Luther King certa vezdisse que, quando Cristo falou de amaros inimigos, estava referindo-se àÁgape. Porque, segundo ele, era“impossível gostar de nossos inimigos,daqueles que nos fazem mal, e quetentam amesquinhar mais o nossosofrido dia-a-dia.” Mas Ágape é muito

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mais que gostar. É um sentimento queinvade tudo, que preenche todas asfrestas, e faz com que qualquer tentativade agressão se torne pó.

“Você aprendeu a renascer, a não sercruel consigo mesmo, a conversar comseu Mensageiro. Mas tudo que vocêfizer daqui por diante, tudo que vocêconseguir tirar de proveitoso doCaminho de Santiago, só terá sentido sefor tocado pelo Amor que Devora.”

Lembrei a Petrus que ele dissera queexistiam duas formas de Ágape. E queele provavelmente não experimentaraesta primeira forma, já que não tinha setransformado em ermitão.

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– Você está certo. Tanto eu como você,e como a maioria dos peregrinos quecruzaram o Caminho de Santiago atravésdas palavras de RAM, experimentaramÁgape em sua outra forma: oEntusiasmo.

“Entre os Antigos, Entusiasmo significatranse, arrebatamento, ligação comDeus. O

Entusiasmo é Ágape dirigido a algumaidéia, alguma coisa. Todos nós jápassamos por isto. Quando amamos eacreditamos do fundo de nossa alma emalgo, nos sentimos mais fortes que omundo, e somos tomados de umaserenidade que vem da certeza de quenada poderá vencer nossa fé. Esta força

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estranha faz com que sempre tomemos asdecisões certas, na hora exata, e quandoatingimos o nosso objetivo ficamossurpresos com nossa própriacapacidade. Porque, durante o BomCombate, nada mais tem importância,estávamos sendo levados através doEntusiasmo até nossa meta.

“O Entusiasmo se manifestanormalmente com todo o seu poder nosprimeiros anos de nossas vidas. Aindatemos um laço forte com a divindade, enos atiramos com tal vontade aos nossosbrinquedos, que as bonecas passam a tervida e os soldadinhos de chumboconseguem marchar. Quando Jesus falouque era das crianças o reino dos Céus,

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ele se referia a Ágape sob a forma deEntusiasmo. As crianças chegaram atéele sem ligar para seus milagres, suasabedoria, os fariseus e os apóstolos.Vinham alegres, movidas peloEntusiasmo.

Contei para Petrus que – justamentenaquela tarde – percebi que estavacompletamente envolvido no Caminhode Santiago. Aqueles dias e noites pelasterras da Espanha quase me fizeramesquecer minha espada, e haviam setornado uma experiência única. Tudo omais havia perdido a importância.

– Hoje a tarde tentamos pescar e ospeixes não morderam o anzol – dissePetrus. –

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Normalmente, deixamos que oEntusiasmo escape de nossas mãosnestas pequenas coisas, que não tem amenor importância diante da grandezade cada existência. Perdemos oEntusiasmo por causa de nossaspequenas e necessárias derrotas duranteo Bom Combate. E como não sabemosque o Entusiasmo é uma força maior,voltada para a vitória final, deixamosque ele escape por nossos dedos, semnotar que estamos deixando escapartambém o verdadeiro sentido de nossasvidas. Culpamos o mundo por nossotédio, por nossa derrota, e esquecemosque fomos nós que deixamos escaparesta força arrebatadora que justifica

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tudo, a manifestação de Ágape sob aforma de Entusiasmo.

Voltou diante de meus olhos o cemitérioque havia perto do riacho. Aquelaportada estranha, descomunalmentegrande, era uma representação perfeitado sentido que se perdia. Detrás daquelaporta, apenas os mortos.

Como se adivinhasse meu pensamento,Petrus começou a falar de algo parecido.

– Há alguns dias você deve ter ficadosurpreso quando eu perdi a cabeça comum pobre rapaz que havia derramado umpouco de café numa bermuda já imundapela poeira da estrada. Na verdade, meunervosismo todo era porque vi nos olhos

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daquele moço, o Entusiasmo seesvaindo, como se esvai o sangue pelospulsos cortados. Vi aquele rapaz, tãoforte e tão cheio de vida, começando amorrer, porque de dentro dele, a todomomento, morria um pouco de Ágape.Tenho muitos anos de vida e já aprendia conviver com estas coisas, mas aquelerapaz, pelo seu jeito e por tudo quepressenti que ele poderia trazer de bompara a humanidade, me deixou chocadoe triste. Tenho certeza de que minhaagressividade feriu seus brios, e contevepelo menos por algum tempo a morte deÁgape.

“Da mesma maneira, quando vocêtransmutou o espírito no cão daquela

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mulher, você sentiu Ágape em seuestado puro. Foi um gesto nobre e me fezficar contente por estar aqui e ser o seuguia. Por causa disto, pela primeira vezem todo o Caminho, eu vou participar deum exercício com você.

E Petrus me ensinou o Ritual de Ágape,o EXERCÍCIO DA BOLA AZUL.

O RITUAL DO GLOBO AZUL

Sente-se confortavelmente e relaxe.Procure não pensar em nada.

1) Sinta como é bom gostar de viver.Deixe que seu coração sinta-se livre,amigo, acima e além da mesquinhez dosproblemas que devem estar lhe

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atingindo. Comece a cantar algumacanção da infância, baixinho. Imagineseu coração crescer, enchendo seuquarto – e depois sua casa – de uma luzazul intensa, brilhante.

2) Quando chegar a este ponto, comece asentir a presença amiga dos Santos emque você depositava fé quando criança.Repare que eles estão presentes,chegando de todos os lugares, sorrindo elhe dando fé e confiança na vida.

3) Mentalize os Santos se aproximando,colocando as mãos sobre sua cabeça, elhe desejando amor, paz e comunhãocom o mundo. A comunhão dos santos.

4) Quando esta sensação estiver bem

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intensa, sinta que a luz azul é um fluxoque entra e sai de você, como um riobrilhante, em movimento. Esta luz azulcomeça a se espalhar pela sua casa,depois pelo seu bairro, sua cidade, seupaís, e envolve o mundo num imensoglobo azul. Ela é a manifestação doAmor Maior, que está além das batalhasdo dia-a-dia, mas que lhe reforça e lhedá vigor, energia e paz.

5) Mantenha o máximo de tempopossível esta luz espalhada pelo mundo.O seu coração está aberto, espalhandoAmor. Esta fase do exercício devedemorar no mínimo cinco minutos.

6) Vá, pouco a pouco, saindo do transe evoltando à realidade. Os Santos ficarão

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por perto.

A luz azul continuará espalhada pelomundo.

Este Ritual pode e deve ser feito commais de uma pessoa, se necessário.Neste caso, as pessoas devem estar comas mãos dadas.

– Vou ajudá-lo a despertar oEntusiasmo, a criar a força que irá seestender como uma bola azul em tornodo planeta – disse ele. – Para mostrarque o respeito por sua busca, e pelo quevocê é.

Até aquele momento Petrus nunca tinhaemitido qualquer opinião – nem a favor,

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nem contra

– sobre minha maneira de realizar osexercícios. Tinha me ajudado ainterpretar o primeiro contato com oMensageiro, tinha me retirado do transeno Exercício da Semente, nas emnenhum momento se interessou pelosresultados que eu havia conseguido.Mais de uma vez eu lhe tinha perguntadoporque não queria saber minhassensações, e ele me havia respondidoque sua única obrigação, como guia, eraa de me mostrar o Caminho e as Práticasde RAM. Caberia a mim desfrutar oudesprezar os resultados.

Quando ele disse que ia participarcomigo do exercício, eu de repente me

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senti indigno de seus elogios. Conheciaminhas falhas, e muitas vezes haviaduvidado da sua capacidade deconduzir-me pelo Caminho. Quis dizertudo isto, mas ele me interrompeu antesque começasse.

– Não seja cruel consigo mesmo, ouvocê não terá aprendido a lição que lheensinei antes.

Seja gentil. Aceite um elogio que vocêmerece.

Meus olhos se encheram d’água. Petrusme tomou pelas mãos e fomos para fora.A noite estava escura, mais escura quenormalmente. Eu sentei ao lado dele ecomeçamos a cantar. A música surgia de

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dentro de mim, e ele me acompanhavasem esforço. Comecei a bater palmasbaixinho, enquanto balançava meu corpopara frente e para trás. As palmas foramaumentando de intensidade, e a músicafluía solta de dentro de mim, um cânticode louvor ao céu escuro, à planíciedesértica, às rochas sem vida. Comeceia ver os Santos que eu acreditavaquando era criança, e que a vida tinhaafastado de mim, porque também euhavia matado uma grande parcela deÁgape. Mas agora o Amor que Devoravoltava generoso, e os Santos sorriamdos céus, com a mesma face e a mesmaintensidade que eu os via quando eracriança.

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Abri os braços para que Ágape fluísse, euma corrente misteriosa de luz azulbrilhante começou a entrar e sair demim, lavando toda a minha alma,perdoando os meus pecados. A luz seespalhou primeiro pela paisagem, edepois envolveu o mundo, e eu comeceia chorar. Chorava porque estavarevivendo o Entusiasmo, era umacriança diante da vida, e nada naquelemomento poderia me causar qualquermal. Senti que uma presença chegavaperto de nós e sentava-se à minhadireita, e imaginei que era meuMensageiro, e que ele era o único queconseguia enxergar aquela luz azul tãoforte, que saía e entrava de mim, e seespalhava pelo mundo.

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A luz foi aumentando de intensidade e eusenti que envolvia o mundo inteiro,penetrava em cada porta e em cadabeco, atingia pelo menos por algumafração de segundo cada ser vivo.

Senti que seguravam em minhas mãosabertas e estendidas para os céus. Nestemomento o fluxo de luz azul aumentou, ese tornou tão forte que eu achei que iadesmaiar. Mas consegui mantê-lo pormais alguns minutos, até que a músicaque eu estava cantando tivesseterminado.

Então relaxei, me sentindocompletamente exausto, mas livre econtente com a vida e com o que tinhaacabado de experimentar. As mãos que

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seguravam as minhas se soltaram.Percebi que uma delas era de Petrus, epressenti no fundo do meu coração dequem era a outra mão.

Abri os olhos e, ao meu lado, estava omonge Alfonso. Sorriu e me disse“buenas noches”.

Eu sorri também, tornei a pegar sua mãoe a apertei forte contra o meu peito. Eledeixou que eu fizesse isto, e depoissoltou-a com delicadeza.

Nenhum dos três falou nada. Algumtempo depois Alfonso se levantou ecaminhou novamente para a planícierochosa. Eu o acompanhei com os olhosaté que a escuridão o ocultasse por

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completo.

Petrus quebrou o silêncio pouco depois.Não fez qualquer menção a Alfonso.

– Faça este exercício sempre que puder,e aos poucos Ágape irá de novo habitarem você.

Repita antes de começar um projeto, nosprimeiros dias de qualquer viagem, ouquando sentir que algo o emocionoumuito. Se possível, faça junto comalguém que você gosta. É um exercíciopara ser compartilhado.

Ali estava novamente o velho Petrustécnico, instrutor e guia, do qual eusabia tão pouco. A emoção que havia

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demonstrado dentro da cabana já haviapassado. Entretanto, quando haviatocado a minha mão durante o exercício,eu tinha sentido a grandeza de sua alma.

Voltamos para a ermida branca, ondeestavam nossas coisas.

– Seu ocupante não volta mais hoje,acho que podemos dormir aqui – dissePetrus deitando-se. Eu desenrolei o sacode dormir, tomei um gole de vinho, edeitei também. Estava exausto com oAmor que Devora. Mas era um cansaçolivre de tensões e, antes de fechar osolhos, me lembrei do monge barbado,magro, que havia me desejado boa noitee que tinha se sentado ao meu lado. Emalgum lugar lá fora este homem estava

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sendo consumido pela chama divina.Talvez por causa disto aquela noiteestivesse tão escura –

porque ele tinha condensado em si todaa luz do mundo.

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A MORTE

– Vocês são peregrinos? – perguntou avelha senhora que nos servia o café damanhã.

Estávamos em Azofra, um lugarejo depequenas casas com escudos medievaisna fachada, e com uma fonte ondeminutos antes havíamos enchido nossoscantis.

Eu respondi que sim, e os olhos damulher mostraram respeito e orgulho.

– Quando eu era criança, passava poraqui pelo menos um peregrino por dia, acaminho de Compostela. Depois da

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Guerra e de Franco não sei o que houve,mas parece que a peregrinação parou.

Deviam fazer uma estrada. Hoje em diaas pessoas só gostam de andar de carro.

Petrus não disse nada. Tinha acordadode mau humor. Eu concordei com amulher, e fiquei imaginando uma estradanova e asfaltada subindo montanhas evales, carros com vieiras pintadas nocapô, e lojas de souvenirs nas portasdos conventos. Acabei de tomar o cafécom leite e o pão com azeite. Olhando oguia de Aymeric Picaud, calculei que naparte da tarde devíamos chegar emSanto Domingo de La Calzada, e euplanejava dormir no Parador Nacional.1Estava gastando muito menos dinheiro

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do que havia planejado, apesar de fazersempre três refeições por dia. Era horade cometer uma extravagância e dar aomeu corpo o mesmo tratamento queestava dando ao meu estômago.

Tinha acordado com uma pressaestranha, com vontade de chegar logo aSanto Domingo, uma sensação que doisdias antes, quando caminhávamos para aermida, estava convencido de que nãovoltaria a ter. Petrus estava tambémmais melancólico, mais calado, quehabitualmente, e eu não sabia se era porcausa do encontro com Alfonso, doisdias antes. Senti uma grande vontade deinvocar Astrain e conversar um poucosobre aquilo. Mas nunca tinha feito a

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invocação na parte da manhã, e nãosabia se ia dar resultado.

Desisti da idéia.

Acabamos nossos cafés e recomeçamosa caminhada. Cruzamos uma casamedieval com seu brazão, as ruínas deuma antiga estalagem de peregrinos, eum parque provinciano nos limites dopovoado. Quando preparava paraembrenhar-me de novo através doscampos, senti uma presença forte do meulado esquerdo. Continuei andando emfrente, mas Petrus me deteve.

– Não adianta correr – disse. – Pare eenfrente.

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Fiz menção de soltar-me de Petrus eseguir adiante. O sentimento eradesagradável, uma espécie de cólica naregião do estômago. Por algunsmomentos quis acreditar que era o pãocom azeite, mas eu já sentira antes, e nãopodia me enganar. Tensão. Tensão emedo.

– Olhe para trás – a voz de Petrus tinhaum tom de urgência. Olhe antes que sejatarde!

Eu me virei de chofre. Do meu ladoesquerdo havia uma pequena casaabandonada, com a vegetação queimadapelo sol invadindo seu interior. Umaoliveira jogava seus galhos contorcidospara o céu.

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E entre a oliveira e a casa, olhandofixamente para mim, estava um cão.

Um cão negro, o mesmo cão que euhavia expulsado da casa da mulheralguns dias atrás.

Perdi a noção da presença de Petrus efiquei olhando firme nos olhos doanimal. Alguma coisa dentro de mim –talvez a voz de Astrain ou do meu anjoda guarda – me dizia que se eudesviasse os olhos, ele me atacaria.Ficamos assim, um olhando dentro dosolhos do outro, por intermináveisminutos. Eu sentia que, depois de haverexperimentado toda a grandeza do Amorque Devora, estava de novo diante das

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ameaças diárias e constantes daexistência. Fiquei pensando porque oanimal me havia seguido até tão longe, oque afinal ele queria, porque eu era umperegrino em busca de uma espada e nãoestava com vontade nem paciência decriar casos com pessoas ou animais pelocaminho. Tentei falar tudo isto por meusolhos –

lembrando os monges do convento quese comunicavam pela visão – mas o cãonão se movia. Continuava me olhandofixamente, sem qualquer emoção, maspronto para me atacar se eu medistraísse ou mostrasse medo.

Medo! Percebi que o medo haviasumido. Achava a situação estúpida

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demais para ter medo.

Meu estômago estava contraído e eutinha vontade de vomitar por causa datensão, mas não estava com medo.

Se estivesse, algo me dizia que meusolhos me denunciariam e o animal iriame derrubar de novo – como havia feitoantes. Não devia desviar os olhos, nemmesmo quando pressenti que, por umpequeno caminho à minha direita, umvulto se aproximava.

O vulto parou por instantes, e depoiscaminhou diretamente até nós. Cruzouexatamente a linha de nossos olhares,dizendo alguma coisa que não conseguientender. Era uma voz feminina, e sua

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presença era boa, amiga e positiva.

Na fração de segundo que o vultocolocou-se entre meus olhos e os olhosdo cão, meu estômago relaxou.

Eu tinha um amigo poderoso, que estavaali me ajudando naquela luta absurda edesnecessária. Quando o vulto acaboude passar, o cão havia abaixado osolhos. Dando um salto, correu para trásda casa abandonada e eu o perdi devista.

Só neste momento meu coração disparoude medo. A taquicardia foi tão grandeque fiquei tonto e achei que ia desmaiar.Enquanto todo o cenário rodava, euolhei para a estrada por onde alguns

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minutos antes Petrus e eu havíamospassado, procurando o tal vulto que medera forças para derrotar o cão.

Era uma freira. Estava de costas,caminhando para Azofra, e eu não podiaver seu rosto, mas lembrei-me de suavoz e calculei que devia ter, no máximo,vinte e poucos anos. Olhei para ocaminho por onde ela viera: era umpequeno atalho que não ia dar em lugarnenhum.

– Foi ela... foi ela quem me ajudou – eumurmurei enquanto a tonteira aumentava.

– Não fique criando mais fantasias nummundo já tão extraordinário – dissePetrus, aproximando-se e me apoiando

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por um braço. – Ela veio de umconvento em Cañas, que fica a uns cincoquilômetros daqui. É claro que você nãopode vê-lo.

Meu coração continuava disparando, eme convenci que ia passar mal. Estavaaterrorizado demais para falar ou pedirexplicações. Sentei-me no chão, e Petrusjogou um pouco de água na minha testa ena minha nuca. Lembrei-me que ele tinhaagido da mesma maneira quando saímosda casa da mulher – mas naquele dia euestava chorando e me sentindo bem.Agora a sensação era exatamente oinverso.

Petrus deixou que eu descansasse otempo suficiente. A água me reanimou

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um pouco, e o enjôo começou a passar.Lentamente, as coisas voltavam aonormal.

Quando me senti reanimado, Petruspediu que caminhássemos um pouco, eeu obedeci.

Andamos uns quinze minutos, mas aexaustão voltou. Sentamos aos pés deum “rollo”, coluna medieval com umacruz em cima, que marcava algunstrechos da rota jacobea.

– Seu medo lhe causou muito mais danoque o cão – disse Petrus, enquanto eudescansava.

Eu quis saber o porquê daquele encontro

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absurdo.

– Na vida e no Caminho de Santiago,existem certas coisas que acontecemindependente de nossa vontade. Emnosso primeiro encontro, eu lhe falei quehavia lido no olhar do cigano o nome dodemônio que você haveria de enfrentar.Fiquei muito surpreso em saber que estedemônio era um cachorro, mas não lhedisse nada na ocasião. Só quandochegamos na casa da mulher – e vocêmanifestou pela primeira vez o Amorque Devora foi que vi seu inimigo.

“Quando você afastou o cão daquelasenhora, não o colocou em lugarnenhum. Nada se perde, tudo setransforma, não é verdade? Você não

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atirou os espíritos numa manada deporcos que se jogou no despenhadeiro,como fez Jesus. Você simplesmenteafastou o cão. Agora, esta força vagasem rumo atrás de você. Antes deencontrar sua espada, você terá quedecidir se deseja ser escravo ou senhordesta força.

Meu cansaço começou a passar.Respirei fundo, sentindo a pedra fria do“rollo” nas minhas costas. Petrus me deumais um pouco de água e prosseguiu:

– Os casos de obsessão acontecemquando as pessoas perdem o domíniodas forças da terra.

A maldição do cigano deixou aquela

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mulher com medo, e o medo abriu umabrecha por onde penetrou o Mensageirodo morto. Isto não é um caso comum,mas também não é um caso raro.Depende muito de como você reage àsameaças dos outros.

Desta vez fui eu quem lembrou umapassagem da Bíblia. No livro de Jóestava escrito: Tudo aquilo que eu maistemia me aconteceu”.

– Uma ameaça não pode provocar nada,se não é aceita. Ao combater o BomCombate, nunca se esqueça disto. Assimcomo não deve esquecer que atacar oufugir fazem parte da luta. O que não fazparte da luta é ficar paralisado de medo.

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Eu não senti medo na hora. Estavasurpreso comigo mesmo e comentei oassunto com Petrus.

– Percebi isto. Caso contrário, o cão oteria atacado. E com quase toda certezateria vencido o combate. Porque o cãotambém não estava com medo. O maisengraçado, porém, foi a chegada daquelafreira. Ao pressentir uma presençapositiva, sua fértil imaginação achou quealguém estava chegando para ajudá-lo. Eesta sua fé o salvou. Mesmo baseada emum fato absolutamente falso.

Petrus tinha razão. Ele deu uma boagargalhada e eu ri junto com ele.Levantamos para recomeçar acaminhada. Já estava me sentindo leve e

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bem disposto.

– Uma coisa, porém, é preciso que vocêsaiba – disse Petrus enquantocaminhávamos. – O

duelo com o cão só pode acabar com avitória de um dos dois. Ele tornará aaparecer, e da próxima vez procurelevar a luta até o fim. Senão, o fantasmadele irá deixá-lo preocupado pelo restode seus dias.

No encontro com o cigano, Petrus haviame dito que conhecia o nome daqueledemônio.

Perguntei qual era.

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– Legião – respondeu. – Porque sãomuitos.

Estávamos andando por terras que oscamponeses preparavam para asemeadura. Aqui e ali alguns lavradoresmanejavam bombas de águarudimentares, na luta secular contra osolo árido. Pelas margens do Caminhode Santiago, pedras empilhadasformavam muros que não acabavamnunca, que se cruzavam e se confundiamnos desenhos do campo. Pensei nosmuitos séculos em que aquelas terrashaviam sido trabalhadas, e mesmo assimainda surgia sempre uma pedra paratirar, uma pedra que quebrava a lâminado arado, que deixava manco o cavalo,

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que marcava de calos a mão dolavrador. Uma luta que começava todoano, e que não acabava nunca.

Petrus estava mais quieto do que decostume, e eu me lembrei que desde demanhã ele não falava quase nada.Depois da conversa junto do “rollo”medieval, ele tinha se trancado nummutismo e não respondia a maior partede minhas perguntas. Eu queria sabermelhor aquela história de “muitosdemônios”.

Ele havia me explicado antes que cadapessoa tem apenas um Mensageiro. MasPetrus não estava com disposição defalar do assunto, e resolvi esperar umaoportunidade melhor.

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Subimos uma pequena elevação, e aochegar lá em cima eu pude ver a torreprincipal da igreja de Santo Domingo deLa Calzada. A visão me deixouanimado; comecei a sonhar com oconforto e a magia do Parador Nacional.Pelo que eu havia lido antes, o prédiohavia sido construído pelo próprioSanto Domingo para hospedar osperegrinos. Certa noite, haviapernoitado ali São Francisco de Assis,em sua caminhada até Çompostela. Tudoaquilo me enchia de excitação.

Deviam ser quase sete horas da tardequando Petrus pediu que parássemos.Lembrei-me de Roncesvalles, da

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caminhada lenta quando eu precisavatanto de um copo de vinho por causa dofrio, e temi que ele estivesse preparandoalgo semelhante.

Um Mensageiro jamais irá ajudá-lo aderrotar outro. Eles não são bons nemmaus, como lhe disse antes, mas têm umsentimento de lealdade entre si. Nãoconfie em Astrain para derrotar o cão.

Agora era eu que não estava disposto afalar de mensageiros. Queria chegarlogo a Santo Domingo.

– Os Mensageiros de pessoas mortaspodem ocupar o corpo de alguémdominado pelo medo. Por isso é que, nocaso do cão, eles são muitos. Vieram

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convidados pelo medo da mulher. Nãoapenas o do cigano assassinado, mas osdiversos Mensageiros que vagavam peloespaço, procurando uma maneira deentrar em contato com as forças da terra.

Só agora estava respondendo minhapergunta. Mas havia alguma coisa no seumodo de falar que parecia artificial,como se não fosse este o assunto queestava querendo conversar comigo. Meuinstinto imediatamente deixou-me desobreaviso.

– O que você quer, Petrus? – pergunteium pouco irritado.

Meu guia não respondeu. Saiu docaminho e dirigiu-se até uma árvore

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velha, quase sem folhas, que ficavaalgumas dezenas de metros dentro docampo, e era a única árvore visível emtodo o horizonte. Como não tinha feitosinal para que o seguisse, eu fiquei empé no caminho. E presenciei uma cenaestranha: Petrus dava voltas em torno daárvore, e dizia alguma coisa em voz alta,enquanto olhava para o chão. Quandoacabou, fez sinal para eu me aproximar.

– Sente-se aqui – disse. Havia um tomdiferente em sua voz, e eu não podiasaber se era carinho ou pena. – Aquivocê fica. Amanhã eu o encontro emSanto Domingo de La Calzada.

Antes que eu pudesse dizer qualquercoisa, Petrus continuou:

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– Qualquer dia destes – e eu lhe garantoque não será hoje – você terá queenfrentar seu inimigo mais importante noCaminho de Santiago: o cão. Quandoeste dia chegar, fique tranqüilo queestarei por perto e lhe darei a forçanecessária para o combate. Mas hojevocê vai enfrentar um outro tipo deinimigo, um inimigo fictício que podelhe destruir ou ser seu melhorcompanheiro: a Morte.

“O homem é o único ser na natureza quetem consciência de que vai morrer. Poristo, e apenas por isto, tenho umprofundo respeito pela raça humana, eacredito que seu futuro será muito

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melhor do que seu presente. Mesmosabendo que seus dias estão contados etudo irá se acabar quando menos espera,ele faz da vida uma luta digna de um sereterno. O que as pessoas chamam devaidade – deixar obras, filhos, fazercom que seu nome não seja esquecido –eu considero a máxima expressão dadignidade humana.”

“Acontece que, criatura frágil, elesempre tenta ocultar de si mesmo agrande certeza da Morte. Não vê que elaé que o motiva a fazer as melhorescoisas de sua vida. Tem medo do passono escuro, do grande terror dodesconhecido, e sua única maneira devencer este medo é esquecer que seus

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dias estão contados. Não percebe que,com a consciência da Morte, seria capazde ousar muito mais, de ir muito maislonge nas suas conquistas diárias –porque não tem nada a perder, já que aMorte é inevitável.”

A idéia de passar a noite em SantoDomingo já começava a me parecer umacoisa distante.

Eu acompanhava cada vez com maisinteresse as palavras de Petrus. Nohorizonte, bem na nossa frente, o solcomeçou a morrer. Talvez tambémestivesse escutando aquelas palavras.

– A Morte é nossa grande companheira,porque é ela que dá o verdadeiro

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sentido às nossas vidas. Mas para poderver a verdadeira face de nossa Morte,temos que conhecer antes todos osanseios e terrores que a simples mençãode seu nome é capaz de despertar emqualquer ser vivo.

Petrus sentou-se debaixo da árvore epediu que eu fizesse o mesmo, Disseque, momentos antes, tinha dado algumasvoltas em torno do seu tronco porque serecordava de tudo que havia passadoquando era peregrino até Santiago.Depois, tirou da mochila doissanduíches que havia comprado na horado almoço.

– Aqui onde você está não existenenhum perigo – disse, entregando-me

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os sanduíches. –

Não existem cobras venenosas, e o cãosó voltará a atacá-lo quando esquecer aderrota de hoje de manhã.

Também não existem assaltantes oucriminosos pelas redondezas. Você estánum lugar absolutamente seguro, comuma única exceção: o perigo do seumedo.

Petrus me disse que há dois dias atrás euhavia experimentado uma sensação tãointensa e tão violenta como a morte, queera o Amor que Devora. E que, pormomento algum, eu havia vacilado ousentido medo – porque eu não tinhapreconceitos a respeito do amor

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universal. Mas todos nós tínhamospreconceitos com relação à Morte, sempercebermos que ela era apenas maisuma manifestação de Ágape. Eurespondi-lhe que, com todos os anos detreinamento de magia, eu tinhapraticamente perdido o medo da morte.Na verdade, me dava mais pavor amaneira de morrer, do que a mortepropriamente dita.

– Pois então, hoje à noite, experimente amaneira mais pavorosa de morrer.

E Petrus me ensinou o EXERCÍCIO DOENTERRADO VIVO.

O EXERCÍCIO DO ENTERRADOVIVO

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Deite-se no chão e relaxe. Cruze asmãos sobre o peito, na postura de morto.

Imagine todos os detalhes de seuenterro, se ele fosse realizado amanhã.A única diferença é que você está sendoenterrado vivo. À medida em que ahistória vai se desenrolando – capela,caminhada até o túmulo, descida docaixão, os vermes na sepultura – vocêvai tensionando cada vez mais todos osmúsculos, num desesperado esforço dese mover. Mas não se move. Até que,quando não agüentar mais, nummovimento que envolva todo o seucorpo, você atira para os lados astáboas do caixão, respira fundo, e estálivre. Este movimento terá mais efeito se

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for acompanhado de um grito, um gritosaído das profundezas de seu corpo.

– Você só deve fazê-lo uma vez – disseele, enquanto eu me lembrava de umexercício de teatro muito parecido. – Épreciso que você desperte toda averdade, todo o medo necessário paraque o exercício possa surgir das raízesda sua alma, e deixar cair a máscara dehorror que cobre a face gentil de suaMorte.

Petrus levantou-se, e eu vi sua silhuetacontra o fundo do céu incendiado pelopôr-do-sol.

Como eu permanecia sentado, ele dava aimpressão de uma figura imponente,

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gigantesca.

– Petrus, tenho ainda uma pergunta.

– O que é?

– Hoje de manhã você estava calado eestranho. Pressentiu antes de mim achegada do cão.

Como é que isto foi possível?

– Quando experimentamos juntos oAmor que Devora, compartilhamos doAbsoluto. O

Absoluto mostra a todos os homens oque realmente eles são, uma imensa teiade causas e efeitos, com cada pequeno

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gesto de um, refletindo na vida do outro.Hoje de manhã esta fatia do Absolutoainda estava muito viva na minha alma.Eu estava percebendo não apenas você,mas tudo que existe no mundo, semlimite de espaço ou de tempo. Agora, oefeito já está mais fraco, e só voltará dapróxima vez que eu fizer o exercício doAmor que Devora.

Lembrei-me do mau-humor de Petrusaquela manhã. Se era verdade o quedizia, o mundo estava passando por ummomento muito difícil.

– Estarei esperando você no Parador –disse enquanto se afastava. – Deixo oseu nome da portaria.

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Acompanhei-o com os olhos enquantopude. Nos campos à minha esquerda, oslavradores tinham acabado o serviço evoltavam para casa. Resolvi fazer oexercício assim que a noite caísse porcompleto.

Eu estava tranqüilo. Era a primeira vezque ficava completamente sozinho desdeque tinha começado a trilhar o EstranhoCaminho de Santiago. Levantei e dei umpasseio pelas imediações, mas a noiteestava caindo rápido e resolvi voltarpara a árvore, com medo de me perder.Antes que a escuridão caísse porcompleto, marquei mentalmente adistância da árvore até o Caminho.Como não havia qualquer luz que

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pudesse me ofuscar, seria perfeitamentecapaz de ver a picada e chegar até SantoDomingo apenas com o brilho dapequena lua nova que começava amostrar-se no céu.

Até aquele instante eu não estava comnenhum medo, e achava que seriapreciso muita imaginação para despertarem mim os receios de uma mortehorrível. Mas não importa quantos anosa gente viva; quando a noite cai ela trazconsigo temores escondidos em nossaalma desde criança. Quanto mais ficavaescuro, mais eu me sentiadesconfortável.

Estava ali sozinho no campo e, segritasse, ninguém iria me escutar.

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Lembrei-me de que poderia ter tido umcolapso aquela manhã. Nunca, em toda aminha vida, havia sentido meu coraçãotão descontrolado.

E se eu tivesse morrido? A vida teria seacabado, era a conclusão mais lógica.Durante o meu caminho na Tradição, eujá conversara com muitos espíritos.Tinha absoluta certeza da vida após amorte, mas nunca me ocorrera perguntarcomo é que esta transição se dava.Passar de uma dimensão para a outra,por mais preparado que a gente esteja,deve ser terrível. Se eu tivesse morridoaquela manhã, por exemplo, não teria omenor sentido o Caminho de Santiago,os anos de estudo, as saudades da

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família, o dinheiro escondido no meucinto. Lembrei-me de uma planta que eutinha em cima da mesa de trabalho, noBrasil. A planta continuaria, comocontinuariam as outras plantas, osônibus, o verdureiro da esquina quesempre cobrava mais caro, a telefonistaque me informava os números fora docatálogo. Todas estas pequenas coisas –que podiam desaparecer se eu tivessetido um colapso naquela manhã –ganharam de repente uma enormeimportância para mim. Eram elas, e nãoas estrelas ou a sabedoria, que mediziam que eu estava vivo.

A noite agora estava bem escura, e nohorizonte eu podia distingüir o brilho

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débil da cidade.

Deitei no chão e fiquei olhando osgalhos de árvore acima de minhacabeça. Comecei a ouvir estranhosruídos, ruídos de toda espécie. Eram osanimais noturnos que saíam para acaçada. Petrus não podia saber tudo, seele era tão humano quanto eu. Quegarantia eu podia ter de que realmentenão existiam serpentes venenosas, E oslobos, os eternos lobos europeus, nãopodiam ter resolvido passear aquelanoite por ali, sentindo o meu cheiro? Umruído mais forte, semelhante a um galhoquebrando, me assustou e o meu coraçãodisparou de novo.

Estava ficando muito tenso, o melhor era

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fazer logo o exercício e ir para o hotel.Comecei a relaxar e cruzei as mãossobre o peito, na postura de morto.Alguma coisa ao meu lado se mexeu. Eudei um pulo e fiquei imediatamente depé.

Não era nada. A noite tinha invadidotudo, e tinha trazido consigo os terroresdo homem.

Deitei-me de novo, desta vez decidido atransformar qualquer medo em umestímulo para o exercício. Percebi queapesar da temperatura haver baixadobastante, eu estava suando.

Imaginei o caixão sendo fechado, e osparafusos colocados no lugar. Eu estava

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imóvel, mas estava vivo, e tinha vontadede dizer para a minha família que estavavendo tudo, que os amava, mas nenhumsom saía da minha boca. Meu pai, minhamãe chorando, os amigos à minha volta,e eu estava sozinho! Com tanta gentequerida ali, ninguém era capaz deperceber que eu estava vivo, que aindanão tinha feito tudo que desejava fazerneste mundo. Tentava desesperadamenteabrir os olhos, fazer um sinal, dar umapancada na tampa do caixão. Mas nadaem meu corpo se movia.

Senti que o caixão balançava, estavamme transportando para o túmulo. Podiaouvir o ruído de anéis roçando nas alçasde ferro, os passos das pessoas atrás,

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uma ou outra voz conversando. Alguémdisse que tinha um jantar mais tarde,outro comentou que eu havia morridocedo. O cheiro das flores em torno deminha cabeça começou a me sufocar.

Lembrei-me que eu havia deixado decortejar duas ou três mulheres, temendoser rejeitado.

Lembrei-me também de algumasocasiões em que eu tinha deixado defazer o que queria, achando que podiafazer mais tarde. Senti uma enorme penade mim, não só porque estava sendoenterrado vivo, mas porque havia tidomedo de viver. Qual o medo de levar um“não”, de deixar uma coisa para fazerdepois, se o mais importante de tudo era

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gozar plenamente a vida? Ali estava eutrancado num caixão, e já era tardedemais para voltar atrás e demonstrar acoragem que eu precisava ter tido.

Ali estava eu, que tinha sido o meupróprio Judas e traído a mim mesmo.Ali estava sem poder mover ummúsculo, a cabeça gritando por socorroe as pessoas lá fora imersas na vida,preocupadas com o que iam fazer ànoite, olhando estátuas e edifícios queeu nunca mais tornaria a ver. Umsentimento de grande injustiça meinvadiu, por haver sido enterrado,enquanto os outros continuavamvivendo. Melhor teria sido, uma grandecatástrofe, e todos nós juntos no mesmo

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barco, em direção ao mesmo pontonegro para o qual me carregavam agora.Socorro! Eu estou vivo, não morri,minha cabeça continua funcionando!

Colocaram meu caixão na borda dasepultura. Vão me enterrar! Minhamulher vai me esquecer, vai casar comoutro e vai gastar o dinheiro que lutamospara juntar durante todos estes anos!Mas que importância tem isto? Eu queroestar com ela agora, porque estou vivo!

Ouço choros, sinto que dos meus olhostambém rolaram duas lágrimas. Se elesabrissem o caixão agora, iam ver e iamme salvar. Mas tudo que sinto é o caixãobaixando na sepultura. De repente, tudofica escuro. Antes entrava uma frestinha

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de luz pela borda do caixão, mas agora aescuridão é total. As pás dos coveirosestão cimentando o túmulo, e eu estouvivo! Enterrado vivo! Sinto o ar ficarpesado, o cheiro das flores éinsuportável, e ouço os passos daspessoas indo embora. O terror é total.Não consigo me mexer, e se foremembora agora em breve vai ser de noitee ninguém vai me escutar batendo natumba!

Os passos se afastam, ninguém ouve osgritos que dá meu pensamento, estousozinho e a escuridão, o ar abafado, ocheiro das flores começam a meenlouquecer. De repente, ouço um ruído.São os vermes, os vermes que se

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aproximam para me devorar vivo. Tentocom todas as minhas forças moveralguma parte do corpo, mas tudopermanece inerte. Os vermes começam asubir pelo meu corpo. São oleosos efrios.

Passeiam pelo meu rosto, entram pelasminhas calças. Um deles penetra no meuânus, outro começa a se esgueirar peloburaco do meu nariz. Socorro! Estousendo devorado vivo e ninguém meescuta, ninguém me diz nada. O vermeque entrou pelo nariz desce pela minhagarganta. Sinto outro entrando peloouvido. Preciso sair daqui! Onde estáDeus, que não responde? Começaram adevorar minha garganta e eu não vou

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poder nunca mais gritar! Estão entrandopor todas as partes, pelo ouvido, pelocanto da boca, pelo buraco do pênis.

Sinto aquelas coisas gosmentas eoleosas dentro de mim, tenho que gritar,tenho que me libertar! Estou trancadoneste túmulo escuro e frio, sozinho,sendo devorado vivo! O ar está faltando,e os vermes estão me comendo! Tenhoque me mover. Tenho que arrebentareste caixão! Meu Deus, junte todas asminhas forças, porque eu tenho que memover! EU TENHO QUE SAIR DAQUI;TENHO . EU VOU ME MOVER! VOU

ME MOVER!

CONSEGUI!

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As táboas do caixão voaram para todosos lados, o túmulo desapareceu, e euenchi o peito com ar puro do Caminhode Santiago. Meu corpo tremia dacabeça aos pés, empapado de suor. Memexi um pouco e percebi que meusintestinos haviam se soltado. Mas nadadisto tinha importância: eu estava vivo.

A tremedeira continuava e eu não fiz omenor esforço para controlá-la. Umaimensa sensação de calma interior meinvadiu, e eu senti uma espécie depresença ao meu lado. Olhei e vi o rostode minha Morte. Não era a morte que euhavia experimentado minutos antes, amorte criada pelos meus terrores e pelaminha imaginação, mas a minha

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verdadeira Morte, amiga e conselheira,que não ia mais me deixar ser covardenem um dia de minha vida. A partir deagora, ela ia me ajudar mais do que amão e os conselhos de Petrus. Não iamais permitir que eu deixasse para ofuturo tudo aquilo que eu podia viveragora. Não me deixaria fugir das lutasda vida, e ia me ajudar a combater oBom Combate. Nunca mais, em momentoalgum, eu iria me sentir ridículo ao fazerqualquer coisa. Porque ali estava ela,dizendo que quando me pegasse nasmãos para viajarmos até outros mundos,eu não devia carregar comigo o maiorpecado de todos: o Arrependimento.Com a certeza de sua presença, olhandoseu rosto gentil, eu tive a certeza de que

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ia beber com avidez da fonte de águaviva que é esta existência.

A noite não tinha mais segredos nemterrores. Era uma noite feliz, uma noitede paz.

Quando a tremedeira passou, eulevantei, e caminhei em direção àsbombas de água dos trabalhadores docampo. Lavei a bermuda e coloquei aoutra que trazia na mochila. Depois,voltei para a árvore e comi os doissanduíches que Petrus havia deixadopara mim. Era o alimento mais deliciosodo mundo, porque eu estava vivo e aMorte não me assustava mais.

Resolvi dormir ali mesmo. Afinal, a

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escuridão nunca havia sido tãotranqüila.

OS VÍCIOS PESSOAIS

Estávamos num campo imenso, umcampo de trigo liso e monótono, que seestendia por todo o horizonte. A únicacoisa quebrando o tédio da paisagem erauma coluna medieval encimada por umacruz, que marcava o caminho dosperegrinos. Chegando em frente àcoluna, Petrus largou a mochila no chãoe se ajoelhou. Pediu que eu fizesse omesmo.

– Vamos rezar. Vamos rezar pela únicacoisa que derrota um peregrino quandoele encontra a sua espada: os seus vícios

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pessoais. Por mais que ele aprenda comos Grandes Mestres como manejar alâmina, uma de suas mãos será sempreseu pior inimigo. Vamos rezar para que,caso você consiga encontrar a suaespada, segure-a sempre com a mão quenão te escandaliza.

Eram duas horas da tarde. Não se ouvianenhum ruído, e Petrus começou:

“Tende piedade, Senhor, porque somosperegrinos a caminho de Compostela, eisto pode ser um vício. Fazei em vossainfinita piedade com que jamaisconsigamos virar o conhecimento contranós mesmos.

“Tende piedade dos que têm piedade de

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si mesmos, e se acham bons einjustiçados pela vida, porque nãomereciam as coisas que lhe aconteceram– pois estes jamais vão conseguircombater o Bom Combate. E tendepiedade dos que são cruéis consigomesmos, e só vêem maldade nospróprios atos, e se consideram culpadospelas injustiças do mundo. Porque estesnão conhecem Tua lei que diz: “até osfios de tua cabeça estão contados”.

“Tende piedade dos que mandam e dosque servem muitas horas de trabalho, ese sacrificam a troco de um domingoonde está tudo fechado e não existe lugaronde ir. Mas tende piedade dos quesantificam sua obra e vão além dos

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limites de sua própria loucura, eterminam endividados ou pregados nacruz por seus próprios irmãos. Porqueestes não conheceram Tua lei que diz:“sede prudente como as serpentes esimples como as pombas”.

“Tende piedade porque o homem podevencer o mundo e nunca travar o BomCombate consigo mesmo. Mas tendepiedade dos que venceram o BomCombate consigo mesmo, e agora estãopelas esquinas e bares da vida, porquenão conseguiram vencer o mundo.Porque estes não conheceram Tua leique diz: “quem observa minhas palavrastem que edificar sua casa na rocha”.

“Tende piedade dos que têm medo de

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segurar na pena, no pincel, noinstrumento, na ferramenta, porqueacham que alguém já fez melhor queeles, e não se sentem dignos de entrar namansão portentosa da Arte. Mas tendemais piedade dos que seguraram napena, no pincel, no instrumento e naferramenta, e transformaram aInspiração numa forma mesquinha de sesentirem melhores do que os outros.

Estes não conheceram Tua lei que diz:“nada está oculto senão para sermanifesto, e nada se faz escondido senãopara ser revelado”.

“Tende piedade dos que comem, ebebem, e se fartam, mas são infelizes e

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solitários em sua fartura. Mas tendemais piedade dos que jejuam, censuram,proibem e se sentem santos, e vãopregar Teu nome pelas praças. Porqueestes não conhecem Tua lei que diz: “seeu testifico a respeito de mim mesmo,meu testemunho não é verdadeiro”.

“Tende piedade dos que temem a Mortee desconhecem os muitos reinos quecaminharam e as muitas mortes que jámorreram, e são infelizes porquepensam que tudo vai acabar um dia. Mastende mais piedade dos que jáconheceram suas muitas mortes, e hojese julgam imortais, porque desconhecemTua lei que diz: “quem não nascer denovo não poderá ver o Reino de Deus”.

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“Tende piedade dos que se escravizampelo laço de seda do Amor, e se julgamdonos de alguém, e sentem ciúmes, e sematam com veneno, e se torturam porquenão conseguem ver que o Amor mudacomo o vento e como todas as coisas.Mas tende mais piedade dos que morremde medo de amar, e rejeitam o amor emnome de um Amor Maior que eles nãoconhecem, porque não conhecem Tua leique diz:

“quem beber desta água, nunca maistornará a ter sede”.

“Tende piedade dos que reduzem oCosmos a uma explicação, Deus a umapoção mágica, e o homem a um ser comnecessidades básicas que precisam ser

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satisfeitas, porque estes nunca vão ouvira música das esferas. Mas tende maispiedade dos que possuem a fé cega, enos laboratórios transformam mercúrioem ouro, e estão cercados de livrossobre os segredos do Tarot e o poderdas pirâmides. Porque estes nãoconhecem Tua lei que diz: “é dascrianças o reino dos céus”.

“Tende piedade dos que não vêemninguém além de si mesmos, e paraquem os outros são um cenário difuso edistante quando passam pela rua em suaslimousines, e se trancam em escritóriosrefrigerados no último andar, e sofremem silêncio a solidão do poder. Mastende piedade dos que abriram mão de

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tudo, e são caridosos, e procuramvencer o mal apenas com amor, porqueestes desconhecem Tua lei que diz:“quem não tem espada, que venda suacapa e compre uma”.

“Tende piedade, Senhor, de nós quebuscamos e ousamos empunhar a espadaque prometesses, e que somos um povosanto e pecador, espalhado pela terra.Porque não reconhecemos a nósmesmos, e muitas vezes pensamos queestamos vestidos e estamos nus,pensamos que cometemos um crime e naverdade salvamos alguém. Não vosesqueceis em vossa piedade de todosnós que empunhamos a espada com amão de um anjo e a mão de um demônio

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segurando no mesmo punho. Porqueestamos no mundo, continuamos nomundo e precisamos de Ti. Precisamossempre de Tua lei que diz: “quando vosmandei sem bolsa, sem alforge e semsandálias, nada vos faltou”.

Petrus parou de rezar. O silênciocontinuava. Ele estava olhando fixo ocampo de trigo a nossa volta.

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A CONQUISTA

Chegamos certa tarde às ruínas de umvelho castelo da Ordem do Templo.Sentamos para descansar, Petrus fumouseu tradicional cigarro, e eu bebi umpouco do vinho que havia sobrado doalmoço.

Olhei a paisagem a nossa volta: algumascasas de lavradores, a torre do castelo,o campo com ondulações, a terra aberta,preparada para a semeadura. Derepente, a minha direita, passando pelosmuros em ruínas, um pastor voltava doscampos, trazendo suas ovelhas. O céuestava vermelho, e a poeira levantadapelos animais deixou a paisagem difusa,

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como se fosse um sonho, uma visãomágica. O pastor levantou a mão e fezum aceno. Nós respondemos.

As ovelhas passaram diante de nós eseguiram seu caminho. Petrus levantou-se. A cena tinha impressionado.

– Vamos logo. Precisamos nos apressar– ele disse.

– Por que?

– Porque sim. Afinal, você não acha quejá estamos há muito tempo no Caminhode Santiago?

Mas algo me dizia que sua pressa estavarelacionada com a cena mágica do

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pastor e suas ovelhas.

Dois dias depois chegamos perto deumas montanhas que se elevavam ao sul,quebrando a monotonia dos imensoscampos cobertos de trigo. O terrenotinha algumas elevações naturais, masestava bem sinalizado pelas marcasamarelas do Pe. Jordi. Petrus, entretanto,sem me dar qualquer explicação,começou a se afastar das marcasamarelas e a penetrar cada vez mais emdireção ao norte. Chamei a atenção parao fato, e ele respondeu de uma maneiraseca, dizendo que era meu guia e sabiaonde estava me levando.

Depois de quase meia hora decaminhada comecei a ouvir um ruído

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semelhante ao de água caindo. Em voltahaviam apenas os campos queimadospelo sol, e comecei a imaginar quebarulho seria aquele. Mas à medida quecaminhávamos, o ruído aumentava cadavez mais, até não deixar qualquersombra de dúvida de que vinha de umacachoeira. A única coisa fora do comumé que eu olhava em volta e não podiaver nem montanhas, nem cachoeiras.

Foi quando, cruzando uma pequenaelevação, eu me deparei com umaextravagante obra da natureza: numadepressão de terreno onde caberia umprédio de cinco andares, um lençold’água despencava-se em direção aocentro da terra. Pelas bordas do imenso

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buraco, uma vegetação luxuriante,completamente distinta da do local ondeeu estava pisando, emoldurava a águacaindo.

– Vamos descer aqui – disse Petrus.

Começamos a descer e eu me lembrei deJules Verne, pois era como secaminhássemos em direção ao centro daterra. A descida era íngreme e difícil, etive que segurar em galhos espinhosos epedras cortantes para não cair. Chegueiao fundo da depressão com os braços epernas todos arranhados.

– Bela obra da natureza – disse Petrus.

Eu concordei. Um oásis no meio do

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deserto, com a vegetação espessa egotas de água formando arco-íris, eramtão belos visto de baixo como visto decima.

– Aqui a natureza demonstra sua força –insistiu ele.

– É verdade – concordei.

– E permite que demonstremos nossaforça também. Vamos subir estacachoeira – disse o meu guia. – Pelomeio da água.

Olhei de novo para o cenário a minhafrente. Já não conseguia ver o belooásis, o capricho sofisticado danatureza. Estava diante de um paredão

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de mais de quinze metros de altura, poronde a água caía com forçaensurdecedora. O pequeno lago formadopela queda da água tinha um nível quenão ultrapassava a altura de um homemem pé, já que o rio escoava com umbarulho ensurdecedor para uma aberturaque devia chegar às profundezas daterra. Não havia nem pontos no paredãoonde eu pudesse me agarrar, nemprofundidade suficiente no pequenolago, para amortecer a queda de alguém.Eu estava diante de uma tarefaabsolutamente impossível.

Lembrei-me de uma cena acontecidacinco anos atrás, num ritualextremamente perigoso e que exigia –

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como este – uma escalada. O Mestre medera a oportunidade de decidir se queriacontinuar ou não. Eu era mais jovem,estava fascinado pelos poderes dele epelos milagres da Tradição, e resolvi irem frente. Era preciso demonstrar minhacoragem e minha bravura.

Depois de quase uma hora subindo amontanha, quando estava diante da partemais difícil, um vento surgiu com umaforça inesperada e eu tive que meagarrar com todas as forças na pequenaplataforma onde estava apoiado, paranão despencar lá embaixo. Fechei osolhos, esperando pelo pior, e mantive asunhas cravadas na rocha. Qual foi minhasurpresa ao reparar, no minuto seguinte,

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que alguém me ajudava a ficar numaposição mais confortável e segura. Abrios olhos e o Mestre estava do meu lado.

Fez alguns gestos no ar, e o vento paroude súbito. Com uma agilidademisteriosa, na qual haviam momentos depuro exercício de levitação, ele desceua montanha e pediu que eu fizesse omesmo.

Cheguei lá embaixo com as pernastremendo, e perguntei indignado porqueele não tinha feito o vento parar antesque me atingisse.

– Porque fui eu quem mandou soprar ovento – respondeu.

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– Para me matar?

– Para salvá-lo. Você seria incapaz desubir esta montanha. Quando pergunteise queria subir, não estava testando asua coragem. Estava testando suasabedoria.

“Você criou uma ordem que não lhe dei– disse o Mestre. – “Se soubesse levitar,não haveria problema. Mas você sepropôs a ser bravo, quando bastava serinteligente”.

Neste dia ele me falou de magos quehaviam enlouquecido no processo deiluminação, e que não podiam maisdistinguir entre seus próprios poderes eos poderes de seus discípulos. No

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decorrer de minha vida conheci grandeshomens no terreno da Tradição. Chegueia conhecer três grandes Mestres –incluindo o meu próprio – que eramcapazes de levar o domínio do planofísico a situações muito além do quequalquer homem é capaz de sonhar. Vimilagres, presságios exatos do futuro,conhecimento de encarnações passadas.

Meu Mestre me falou da Guerra dasMalvinas dois meses antes dosargentinos invadirem as ilhas.Descreveu tudo com detalhes, e meexplicou o porque – no plano astral –daquele conflito.

Mas a partir daquele dia, comecei anotar que além disso existem Magos,

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como disse o Mestre, “enlouquecidos noprocesso de iluminação”. Eram pessoasem quase tudo iguais aos Mestres,inclusive nos poderes: vi um deles fazeruma semente germinar em quinzeminutos de concentração extrema.

Mas este homem – e alguns outros – jáhaviam levado muitos discípulos àloucura e ao desespero. Havia casos depessoas que tinham ido parar emhospitais psiquiátricos, e pelo menosuma história confirmada de suicídio.Estes homens estavam na chamada “listanegra” da Tradição, mas era impossívelmanter controle sobre eles, e sei quemuitos continuam atuando até hoje.

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Toda esta história me passou pelacabeça numa fração de segundo, aoolhar aquela cachoeira impossível deser escalada. Pensei no tempo imensoem que eu e Petrus havíamos caminhadojuntos, lembrei-me do cão que me atacoue não lhe causou nenhum dano, dodescontrole no restaurante com o rapazque nos servia, da bebedeira na festa decasamento. Só conseguia me lembrardestas coisas.

– Petrus, eu não vou subir esta cachoeirade jeito nenhum. Por uma única razão: éimpossível.

Ele não respondeu nada. Sentou-se nagrama verde e eu fiz o mesmo. Ficamosquase quinze minutos em silêncio. Seu

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silêncio me desarmou, e eu tomei ainiciativa de falar de novo.

– Petrus, eu não quero subir nestacachoeira porque eu vou cair. Eu sei quenão vou morrer, pois quando vi a facede minha Morte, vi também o dia em queela vai chegar. Mas eu posso cair e ficaraleijado para o resto da vida.

– Paulo, Paulo… – ele me olhou esorriu. Havia mudado por completo.Havia em sua voz um pouco de Amorque Devora, e seus olhos estavambrilhantes.

– Você irá dizer que estou rompendo umjuramento de obediência que fiz antes decomeçar o Caminho?

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– Você não está rompendo estejuramento. Você não está com medo,nem com preguiça.

Tampouco você deve ter pensado queestou lhe dando uma ordem inútil. Vocênão quer subir porque deve estarpensando nos Magos Negros1. Usar deseu poder de decisão não significaromper um juramento. Este poder nuncaé negado ao peregrino.

Olhei para a cachoeira e tornei a olharpara Petrus. Eu avaliava aspossibilidades de subir e não encontravanenhuma.

– Preste atenção – continuou ele. – Euvou subir antes de você, sem me utilizar

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de nenhum Dom. E vou conseguir. Se euconseguir, simplesmente porque eusoube onde colocar os pés, você teráque fazer o mesmo. Desta maneira euanulo seu poder de decisão. Se você serecusar, depois de me ver subir, éporque está quebrando um juramento.

Petrus começou a tirar o tênis. Ele erapelo menos dez anos mais velho que eu,e se conseguisse subir, eu não tinha maisnenhum argumento. Olhei a cachoeira osenti um frio na barriga.

Mas ele não se moveu. Apesar dedescalço, continuou sentado no mesmolugar. Começou a olhar o céu e falou:

– A alguns quilômetros daqui houve, em

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1502, a aparição da Virgem a um pastor.Hoje é sua festa – a festa da Virgem doCaminho – e eu vou oferecer minhaconquista a ela. Eu o aconselho a fazer omesmo. Oferecer uma conquista a ela.Não ofereça a dor dos teus pés nem osferimentos de tuas mãos nas pedras. Omundo inteiro oferece apenas a dor desuas penitências. Não há nada decondenável nisto, mas creio que elaficaria feliz se, além das dores, oshomens lhe oferecessem também suasalegrias.

Eu não estava com nenhuma disposiçãode falar. Continuava duvidando dacapacidade de Petrus de subir oparedão. Achei que tudo aquilo era uma

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farsa, e que na verdade ele estava meenvolvendo com sua maneira de falar,para depois me obrigar a fazer o que nãoqueria. Por via das dúvidas – porém –

fechei os olhos por um instante e rezeipara a Virgem do Caminho. Prometi que,se Petrus e eu subíssemos o paredão, euvoltaria àquele lugar algum dia.

– Tudo o que você aprendeu até agorasó tem sentido se aplicado a algumacoisa. Lembre-se que eu lhe disse que oCaminho de Santiago é o caminho daspessoas comuns. Falei isto milhares devezes.

No caminho de Santiago, e na própriavida, a sabedoria só tem valor se puder

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ajudar o homem a vencer algumobstáculo.

“Um martelo não teria sentido no mundose não existissem pregos para elemartelar. E

mesmo existindo pregos, o martelocontinuaria sem função se limitasse apensar: 'eu posso enfiar aqueles pregoscom dois golpes'. O martelo tem queagir. Entregar-se na mão do Dono e serutilizado em sua função”.

Lembrei-me das palavras do Mestre emItatiaia: quem possui uma espada, temque estar constantemente colocando-a aprova, para que ela não enferrujasse nabainha.

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– A cachoeira é o lugar onde você vaicolocar em prática tudo que aprendeuaté agora –

disse meu guia. – Uma coisa você já tema seu favor: conhece a data da suaMorte, e este medo não lhe deixaráparalisado quando precisar decidirrapidamente onde se apoiar.

Mas lembre-se que você terá quetrabalhar com a água, e construir nelatudo que precisa; de que você precisacravar a unha no polegar se algumpensamento mau lhe dominar.

“E sobretudo, que você tem que seapoiar, a cada instante da subida, noAmor que Devora, porque ele é quem

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guia e justifica todos os seus passos”.

Petrus parou de falar. Tirou a camisa, abermuda, e ficou completamente nu.Depois entrou na água fria da pequenalagoa, molhou-se todo, e abriu os braçospara o céu. Vi que estava contente,aproveitando a frescura da água e osarco-íris que as gotas formavam aonosso redor.

– Mais uma coisa – disse ele antes deentrar por debaixo do véu da cachoeira.– Esta queda d’água lhe ensinará amaneira de ser mestre. Eu vou subir,mas existe um véu de água entre mim evocê. Eu subirei sem que você possa verdireito onde coloco meus pés e minhasmãos.

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“Da mesma forma, um discípulo nuncapode imitar os passos de seu guia.Porque cada um tem uma maneira de vera vida, de conviver com as dificuldadese com as conquistas. Ensinar é mostrarque é possível. Aprender é tornarpossível a si mesmo”.

E não disse mais nada. Entrou pordebaixo do véu da cascata e começou asubir. Eu via apenas seu vulto, como sevê alguém através de um vidro tosco.Mas percebi que ele estava subindo.Lenta e inexoravelmente, ele progrediaem direção ao alto. Quanto mais elechegava perto do final, mais medo eutinha, porque ia chegar o momento de

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fazer o mesmo. Finalmente, o instantemais terrível chegou: emergir através daágua que caía, sem saltar para a margem.A força da água deveria jogá-lo de voltaao chão. Mas a cabeça de Petrusemergiu lá em cima, e a água que caía,passou a ser seu manto prateado. Avisão durou muito pouco, porque nummomento rápido ele atirou todo o seucorpo para cima, agarrando-se dequalquer jeito ao platô – mas aindadentro do curso d'água. Eu o perdi poralguns instantes de vista.

Finalmente Petrus apareceu numa dasmargens. Estava com o corpo molhado,cheio da luz do sol, e sorria.

– Vamos! – gritou ele acenando com as

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mãos. – Agora é a sua vez.

Agora era a minha vez. Ou eu teria querenunciar para sempre à minha espada.

Tirei toda a roupa e rezei de novo para aVirgem do Caminho. Depois, mergulheide cabeça na água. Estava gelada e meucorpo ficou rígido com o impacto, maslogo senti uma sensação agradável, deestar vivo. Sem pensar muito, caminheidireto para a cachoeira.

O impacto da água sobre minha cabeçame devolveu o absurdo “sentido derealidade”, que enfraquece o homem nahora em que é mais necessária sua fé esua força. Percebi que a cachoeira eramuito mais forte do que eu havia

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pensado, e que se caísse direto em cimado meu peito, era capaz de me derrubar,mesmo estando com os dois pésapoiados na segurança do lago.Atravessei a correnteza e fiquei entre apedra e a água, num pequeno espaço quecabia exclusivamente o meu corpo,colado à rocha. E aí que eu vi que atarefa era mais fácil do que eu pensava.

A água não batia naquele lugar, e o queme parecia um paredão polido por fora,era na verdade uma pedra cheia dereentrâncias. Fiquei tonto só de pensarque poderia ter renunciado à minhaespada com medo de uma pedra lisa,quando na verdade era um tipo de rochaque eu já escalara dezenas de vezes.

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Parecia estar ouvindo a voz de Petrusme dizer: “Está vendo? Um problemadepois de resolvido fica de umasimplicidade aterradora.”

Comecei a subir com o rosto colado narocha úmida. Em dez minutos eu jávencera quase todo o caminho. Faltavaapenas uma coisa: o final, o lugar onde aágua passava antes de se despencar láembaixo. A vitória conquistada naquelasubida não adiantaria nada se eu nãoconseguisse vencer o pequeno trechoque me separava do ar livre. Ali estavao perigo, e era um perigo que eu nãotinha visto bem como Petrus o haviadominado. Tornei a rezar para a Virgemdo Caminho, uma virgem sobre a qual

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nunca tinha ouvido falar antes, e que noentanto era naquele momento toda aminha fé, toda a minha esperança navitória.

Com todo o cuidado, comecei a colocaros cabelos, e depois a cabeça, natorrente de água que rugia por cima demim.

A água me envolveu por completo eturvou a minha visão. Senti seu impactoe me agarrei firmemente à rocha,abaixando a cabeça, de maneira quepudesse formar um bolsão de ar onderespirar.

Confiava totalmente nas minhas mãos enos meus pés. As mãos já haviam

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segurado uma velha espada, e os péstinham feito o Estranho Caminho deSantiago. Eram meus amigos, e meestavam ajudando. Mesmo assim, obarulho da água nos ouvidos eraensurdecedor, e comecei a terdificuldades de respiração. Resolviatravessar com a cabeça a corrente, epor alguns segundos tudo a minha voltaficou negro. Eu lutava com todas asminhas forças para manter os pés e asmãos agarrados nas saliências, mas oruído da água parecia me levar a outrolugar, um lugar misterioso e distante,onde nada daquilo tinha a menorimportância, e onde eu poderia chegarse me entregasse àquela força. Nãohaveria mais necessidade do esforço

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sobre-humano que meus pés e mãosestavam fazendo para permanecercolados na rocha: tudo seria descanso epaz.

Entretanto, pés e mãos não obedeceramao impulso de me entregar. Haviamresistido a uma tentação mortal.

E minha cabeça começou a emergirlentamente, da mesma maneira que haviaentrado. Fui tomado de um profundoamor pelo meu corpo, que estava ali meajudando em uma aventura tão louca,como a de um homem que cruza umacachoeira em busca de uma espada.

Quando a cabeça emergiu por completo,eu vi o sol brilhar acima de mim, e

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inspirei profundamente o ar a minhavolta. Isto me deu novo vigor. Olhei emvolta e divisei, a alguns centímetros demim, o platô por onde havíamoscaminhado antes, e que era o final dajornada. Senti um impulso gigantesco deatirar-me e agarrar em algum canto, masnão podia ver nenhuma reentrância, porcausa da água que caía. O

impulso final era grande, mas não erachegado o momento da conquista, e eutinha que me controlar. Fiquei naposição mais difícil de toda a escalada,com a água batendo no meu peito, apressão lutando para me devolver devolta à terra, de onde eu havia ousadosair por causa dos meus sonhos.

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Não era o momento de pensar emMestres, amigos, e eu não podia olharpara o lado e ver se Petrus estava emcondição de me salvar, casoescorregasse. “Ele deve ter feito estaescalada um milhão de vezes”, pensei,“e sabe que aqui eu precisodesesperadamente de ajuda”. Mas eleme abandonou. Ou talvez não tenha meabandonado, esteja por detrás de mim,mas eu não posso virar a cabeça porqueisto me desequilibraria. Tenho que fazertudo. Tenho que conseguir, sozinho,minha Conquista.

Mantive dois pés e uma das mãoscravados na rocha, enquanto a outra sesoltava e procurava se harmonizar com a

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água. Ela não devia oferecer a menorresistência, porque já estava utilizando omáximo de minhas forças. Minha mão,sabendo disso, passou a ser um peixeque se entregava, mas que sabia ondedesejava chegar. Me lembrei de filmesda infância, onde eu via salmõespulando sobre quedas d’água, porquetinham uma meta e precisavam, tambémeles, atingi-la.

O braço foi lentamente subindo,aproveitando a própria força da água.Consegui finalmente livrá-lo, e cabiaexclusivamente a ele, agora, descobrir oapoio e o destino do resto do meu corpo.Como um salmão dos filmes da infância,ele tornou a mergulhar na água sobre o

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platô, em busca de um lugar, de umponto qualquer onde eu pudesse apoiar-me para o salto final.

Entretanto, a pedra tinha sido lavada epolida por séculos de água correndo ali.Mas devia haver uma reentrância: sePetrus havia conseguido, eu tambémpodia. Comecei a sentir muita dor,porque agora eu sabia que estava a umpasso do final, e este era o momentoonde as forças fraquejam e o homem nãotem confiança em si mesmo. Algumasvezes, na minha vida, eu tinha perdidono último momento, nadado um oceano eme afogado nas ondas da arrebentação.Mas eu estava fazendo o Caminho deSantiago, e esta história não podia se

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repetir sempre – eu precisava vencernaquele dia.

A mão livre deslizava pela rocha lisa, ea pressão ia ficando cada vez mais forte.Sentia que os outros membros nãoagüentavam mais, e que eu podia tercãimbras a qualquer momento. A águabatia com força também nos meusórgãos genitais, e a dor era intensa. Derepente, entretanto, a mão livreconseguiu achar uma reentrância napedra. Não era grande e estava fora docaminho de subida, mas serviria deapoio para a outra mão, quandochegasse a sua vez. Marqueimentalmente o local e a mão livre saiunovamente em busca da minha salvação.

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A poucos centímetros da primeirareentrância, uma outra base de apoio meesperava.

Ali estava ela. Ali estava o lugar que,durante séculos, serviu e apoiou osperegrinos a caminho de Santiago.Percebi isto e me agarrei com todas asminhas forças. A outra mão se soltou, foijogada para trás por causa da força dorio, mas descreveu um grande arco nocéu e encontrou o lugar que a esperava.

Num movimento imediato, todo meucorpo seguiu o caminho aberto por meusbraços, e eu me atirei para cima.

O grande e último passo fora dado. Ocorpo inteiro cruzou a água e no

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momento seguinte, a selvageria dacachoeira era apenas um fio de água,quase sem corrente. Rastejei para amargem e me entreguei ao cansaço. Osol batia no meu corpo, me aquecia, eme lembrava de novo que eu tinhavencido, e que continuava tão vivo comoantes, quando estava no lago lá embaixo.Apesar do barulho da água senti ospassos de Petrus se aproximando.

Quis me levantar para expressar minhaalegria, mas o corpo exausto recusou-sea obedecer.

– Fique tranqüilo, descanse – disse ele.– Procure respirar devagar.

Fiz isto e caí num sono profundo e sem

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sonhos. Quando acordei, o sol tinhamudado de posição e Petrus, jácompletamente vestido, me estendeuminhas roupas e disse que precisávamosseguir.

– Estou muito cansado – respondi.

– Não se preocupe. Vou ensiná-lo a tirarenergia de tudo que o cerca.

E Petrus me ensinou o SOPRO DERAM.

O SOPRO DE RAM

Soltar todo o ar dos pulmões,esvaziando-os o mais possível. Depois,ir inspirando lentamente à medida que

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levanta os braços até o alto. Enquantoinspira, concentrar-se que para dentrode si mesmo está entrando amor, paz eharmonia com o universo.

Manter a respiração presa e os braçoslevantados o máximo de tempo possível,gozando a harmonia interior e exterior.Quando chegar ao limite, soltar todo oar numa rápida expiração, enquantopronuncia a palavra RAM.

Repetir durante cinco minutos.

Realizei o exercício durante cincominutos, e me senti melhor. Levantei-me,vesti as roupas, e peguei a mochila.

– Venha aqui – disse Petrus. E caminhei

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até a beira do platô. Debaixo dos meuspés, rugia a cachoeira. – Vista daqui,parece muito mais fácil do que vista debaixo – disse eu.

– Exatamente. E se eu tivesse lhemostrado esta cena antes, você teria sidotraído. Teria avaliado mal suaspossibilidades.

Continuava fraco e repeti o exercício.Aos poucos, todo o Universo a minhavolta começou a harmonizar-se comigo,e a penetrar no meu coração. Pergunteipor que não havia me ensinado oSOPRO

DE RAM antes, já que muitas vezes eutivera preguiça e cansaço no Caminho

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de Santiago.

– Porque você nunca tinha demonstradoisto – disse ele rindo, e me perguntandose eu ainda tinha os deliciosos biscoitosamanteigados que havia comprado emAstorga.

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A LOUCURA

Há quase três dias estávamos fazendouma espécie de marcha forçada. Petrusme despertava antes do alvorecer, e sóparávamos de andar às nove da noite.Os únicos descansos concedidos erampor ocasião das refeições, já que meuguia havia abolido a “siesta” do inícioda tarde. Dava a impressão que estavaseguindo um misterioso programa, quenão me era dado conhecer.

Além disso, ele havia mudado porcompleto seu comportamento. Nocomeço pensei que tinha sido por causada minha dúvida no episódio dacachoeira, mas percebi que não.

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Mostrava-se irritadiço com todos, eolhava para o relógio várias vezes pordia. Lembrei-lhe que me dissera que nósmesmos criáramos a noção de tempo.

– Você está cada dia mais esperto –respondeu ele. – Vamos ver se vaicolocar toda esta esperteza em práticaquando precisar.

Certa tarde eu estava tão cansado com oritmo da caminhada que simplesmentenão conseguia me levantar. Petrus entãomandou que eu tirasse a camisa eencostasse a coluna vertebral numaárvore que havia por perto. Fiquei assimpor alguns minutos e logo me senti bemdisposto. Ele começou a me explicarque os vegetais, principalmente as

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árvores maduras, são capazes detransmitir harmonia quando alguémencosta seu centro nervoso no tronco.Durante horas, discorreu sobre aspropriedades físicas, energéticas eespirituais das plantas.

Como eu já havia lido aquilo tudo emalgum lugar, não me preocupei em fazeranotações.

Mas o discurso de Petrus serviu paradesfazer a sensação de que estavaaborrecido comigo. Passei a olhar seusilêncio com mais respeito e ele, talvezadvinhando minhas preocupações,procurava ser simpático sempre que seuconstante mau-humor lhe permitia.

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Certa manhã chegamos a uma imensaponte, totalmente desproporcional parao pequeno fio d’água que corria debaixodela. Era domingo bem cedo, e astabernas e bares da pequena cidade nasimediações ainda estavam fechados.Sentamos ali para tomar o café damanhã.

– O homem e a natureza têm caprichosiguais – disse eu, tentando puxarassunto. – Nós construímos belas pontes,e ela se encarrega de desviar o cursodos rios.

– É a seca – disse ele. – Acabe logocom o sanduíche porque temos quecontinuar.

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Resolvi perguntar-lhe o porquê de tantapressa.

– Estou há muito tempo no Caminho deSantiago, já lhe disse. – Deixei muitascoisas para fazer na Itália. Precisovoltar logo.

A frase não me convenceu. Podia serverdade, mas este não era o únicomotivo. Quando ia insistir na resposta,ele mudou de assunto.

– O que você sabe desta ponte?

– Nada – respondi. – E mesmo com aseca, ela é desproporcional demais.Acredito mesmo que o rio tenhadesviado seu curso.

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– Quanto a isto, não tenho idéia – eledisse. – Mas ela é conhecida noCaminho de Santiago como “O PassoHonroso”. Estes campos aqui a nossavolta foram o cenário de sangrentasbatalhas entre suevos e visigodos, emais tarde, entre os soldados de AlfonsoIII e os mouros. Talvez ela seja tãogrande assim para que todo este sanguepudesse correr sem inundar a cidade.

Era uma tentativa de humor macabro. Eunão ri. Ele ficou um pouco sem jeito,mas continuou:

– Entretanto, não foram as hostes devisigodos, nem os brados triunfantes deAlfonso III que deram o nome a estaponte. Mas uma história de Amor e de

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Morte.

“Nos primeiros séculos do Caminho deSantiago, à medida que refluíam de todaa Europa peregrinos, padres, nobres, eaté mesmo reis que queriam prestar suahomenagem ao Santo, também chegaramassaltantes e bandoleiros. A históriaregistra inúmeros casos de roubos decaravanas inteiras de peregrinos, e decrimes horríveis cometidos contra osviajantes solitários”.

Tudo se repete, pensei com meus botões.

– Por causa disso, alguns nobrescavaleiros resolveram criar e darproteção aos peregrinos, e cada umdeles se encarregou de proteger uma

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parte do Caminho. Mas, como os riosmudam seu curso, também o ideal doshomens está sujeito a mudanças. Alémde espantar os malfeitores, os cavaleirosandantes começaram a disputar entreeles qual era o mais forte e o maiscorajoso do Caminho de Santiago. Nãotardou muito e começaram a lutar entresi, e os bandidos voltaram a agirimpunemente nas estradas.

“Isto aconteceu durante muito tempo atéque, em 1434, um nobre da cidade deLeon se apaixonou por uma mulher.Chamava-se Don Suero de Quiñones,era rico e forte, e tentou de todas asmaneiras receber a mão de sua dama emcasamento. Mas esta senhora – que a

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história esqueceu de guardar o nome –não quis sequer tomar conhecimentodaquela imensa paixão, e rejeitou opedido.”

Eu estava louco de curiosidade parasaber que relação havia entre um amorrejeitado e a briga dos cavaleirosandantes. Petrus notou meu interesse edisse que só contava o resto da históriase eu terminasse com o sanduíche e nóscomeçássemos imediatamente acaminhar.

– Parece minha mãe quando criança –respondi. Mas engoli o pedaço de pãoque estava faltando, peguei a mochila, enós começamos a cruzar a cidadezinhaadormecida.

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Petrus continuou:

– Nosso cavaleiro, ferido em seu amorpróprio, resolveu fazer exatamenteaquilo que todos os homens fazemquando se sentem rejeitados: começaruma guerra particular. Prometeu a simesmo que iria realizar uma façanha tãoimportante que a donzela nunca maisesquecesse seu nome. Durante muitosmeses, procurou um ideal nobre ao qualconsagrar aquele amor rejeitado. Atéque certa noite, ouvindo falar dos crimese das lutas no Caminho de Santiago, teveuma idéia.

“Reuniu dez amigos, instalou-se aquinesta cidadezinha onde estamos

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passando, e mandou espalhar pelosperegrinos que iam e voltavam peloCaminho de Santiago que estavadisposto a permanecer ali trinta dias – equebrar trezentas lanças – para provarque ele era o mais forte e o mais ousadode todos os cavaleiros do Caminho.Acamparam com suas bandeiras,estandartes, pagens e criados, e ficaramesperando os desafiantes”.

Eu imaginei que festa deve ter sido.Javalis assados, vinho o tempo todo,música, histórias e luta. Um quadroapareceu vivo na minha mente, enquantoPetrus continuava a contar o resto dahistória.

– As lutas começaram no dia 10 de

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julho, com a chegada dos primeiroscavaleiros.

Quiñones a seus amigos combatiamdurante o dia e preparavam grandesfestas de noite. As lutas eram sempre naponte, para que ninguém pudesse fugir.Certa época chegaram tantosdesafiantes, que fogueiras eram acesasem toda a extensão da ponte, para que oscombates pudessem continuar pelamadrugada. Todos os cavaleirosvencidos eram obrigados a jurar quenunca mais iriam lutar contra os outros,e doravante sua única missão seriaproteger os peregrinos até Compostela.

“A fama de Quiñones percorreu em

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poucas semanas toda a Europa. Alémdos cavaleiros do caminho, começarama afluir também generais, soldados, ebandidos, para desafiá-lo. Todos sabiamque quem conseguisse vencer o bravocavaleiro de Leon, iria ficar famoso danoite para o dia, com o nome coroado deglória. Mas enquanto os outrosbuscavam apenas fama, Quiñones tinhaum propósito muito mais nobre: o amorde uma mulher. E este ideal fez com quevencesse todos os combates.

“No dia 9 de agosto as lutas terminarame Don Suero de Quiñones foireconhecido como o mais bravo e omais valente de todos os cavaleiros doCaminho de Santiago. A partir desta

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data, ninguém ousou mais contarbravatas sobre coragem, e os nobresvoltaram a combater o único inimigocomum, os bandoleiros que assaltavamos peregrinos. Esta epopéia, mais tarde,iria dar início à Ordem Militar deSantiago da Espada.

Tínhamos acabado de cruzar a pequenacidade. Senti vontade de voltar e olharnovamente

“O Passo Honroso”, a ponte onde todaaquela história se havia passado. MasPetrus pediu que seguíssemos em frente.

– E o que aconteceu com Don Quiñones?– perguntei.

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– Foi até Santiago de Compostela, edepositou em seu relicário umagargantilha de ouro, que até hoje adornao busto de Santiago Menor.

– Eu estou perguntando se ele terminoucasando com a donzela.

– Ah, isto eu não sei – respondeu Petrus.– Nesta época, a História era escritaapenas por homens. E, perto de tantacena de luta, quem iria se interessar pelofinal de uma história de amor?

Depois de me contar a história de DonSuero Quiñones, meu guia voltou ao seumutismo habitual, e caminhamos maisdois dias em silêncio, e quase sem pararpara descanso. Entretanto, no terceiro

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dia, Petrus começou a andar maisdevagar que o normal. Disse que estavaum pouco cansado de todo o esforçofeito naquela semana, e que já não tinhamais idade nem disposição para seguiraquele ritmo. Mais uma vez eu tivecerteza de que não estava falando averdade: seu rosto, ao invés de cansaço,demonstrava uma preocupação intensa,como se algo de muito importanteestivesse para acontecer.

Naquela tarde chegamos a Foncebadon,um povoado imenso, mas completamenteem ruínas. As casas, construídas depedra, tinham os seus telhados emardósia destruídos pelo tempo e peloapodrecimento das madeiras de

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sustentação. Um dos lados do povoadodava para um precipício, e a nossafrente, atrás de um monte, estava um dosmais importantes marcos do Caminho deSantiago: a Cruz de Ferro.

Desta vez era eu que estava impaciente equerendo chegar logo naquele estranhomonumento, composto de um imensotronco de quase dez metros de altura,encimado por uma Cruz de Ferro.

A cruz havia sido deixada ali desde aépoca da invasão de César, emhomenagem a Mercúrio. Seguindo atradição pagã, os peregrinos da rotajacobea costumavam depositar a seuspés uma pedra trazida de longe.Aproveitei a abundância de rochas da

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cidade abandonada e peguei no chão umpedaço de ardósia.

Sã quando resolvi apressar o passo éque percebi que Petrus estava andandomuito devagar.

Examinava as casas em ruínas, mexia emtroncos caídos e restos de livros, até queresolveu sentar-se no meio da praça dolocal, onde havia uma cruz de madeira.

– Vamos descansar um pouco – eledisse.

Era entardecer, e mesmo que ficássemosali por uma hora, ainda dava tempo dechegar à Cruz de Ferro antes que a noitecaísse.

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Sentei ao seu lado e fiquei olhando apaisagem vazia. Da mesma maneira queos rios mudavam de lugar, tambémmudavam de lugar os homens. As casaseram sólidas, e devem ter demoradomuito tempo para desabarem. Era umlugar bonito, com montanhas atrás e umvale na frente, e perguntei a mim mesmoo que havia feito tanta gente abandonarum local destes.

– Você acha que D. Suero de Quiñonesera um louco? – perguntou Petrus.

Eu já não lembrava mais quem era D.Suero, e ele teve que me recordar do“Passo Honroso”.

– Acho que não era louco – respondi.

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Mas fiquei em dúvida sobre minharesposta.

– Pois ele era, da mesma maneira queAlfonso, o monge que você conheceu,também é.

Como eu sou, e a maneira de manifestaresta loucura está nos desenhos que faço.Ou você, que busca de sua espada.Todos nós temos dentro, queimando, achama santa da loucura, que éalimentada por Ágape.

“Não precisa para isto querer conquistara América, ou conversar com as aves –como S.

Francisco de Assis. Um verdureiro na

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esquina pode manifestar esta chamasanta da loucura, se ele gostar do quefaz. Ágape existe além dos conceitoshumanos, e é contagioso, porque omundo tem sede dele.

Petrus me disse que eu sabia despertarÁgape, através do Globo Azul. Maspara que Agapé pudesse florescer, eunão podia ter medo de mudar minhavida. Se eu gostava do que estavafazendo, muito bem. Mas se não gostava,sempre havia tempo de mudar.Permitindo que acontecesse umamudança, eu estava me transformandonum terreno fértil e deixando que aImaginação Criadora lançasse sementesem mim.

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– Tudo que lhe ensinei, inclusive Ágape,só faz sentido se você estiver satisfeitoconsigo mesmo. Se isto não tiveracontecendo, os exercícios que vocêaprendeu vão levá-lo inevitavelmente aodesejo de uma mudança. E para quetodos os exercícios que foramaprendidos não se voltam contra você, énecessário permitir que uma mudançaaconteça.

“Este é o momento mais difícil da vidade um homem. Quando ele vê o BomCombate, e se sente incapaz de mudar devida e ir combater. Se isto acontecer oconhecimento se voltará contra quem opossui.

Olhei a cidade de Foncebadon. Talvez

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aquelas pessoas todas, coletivamente,tivessem sentido esta necessidade demudar. Perguntei se Petrus tinhaescolhido aquele cenário,propositadamente, para me dizer isto.

– Não sei o que se passou aqui –respondeu. – Muitas vezes as pessoassão obrigadas a aceitar uma mudançaprovocada pelo destino, e não é distoque estou falando. Estou falando de umato de vontade, um desejo concreto delutar contra tudo aquilo que não lhedeixa satisfeito no seu dia-a-dia.

“No caminho da existência, sempreencontramos problemas difíceis deresolver. Como, por exemplo, passar

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dentro da água de uma cachoeira semque ela te derrube. Então você tem quedeixar a Imaginação Criadora agir. Noseu caso, havia ali um desafio de vida emorte, e não havia tempo para muitaescolha: Ágape indicou-lhe o únicocaminho.

“Mas existem problemas nesta vida emque temos que escolher entre umcaminho e outro.

Problemas cotidianos, como umadecisão empresarial, um rompimentoafetivo, um encontro social. Cada umadestas pequenas decisões que estamostomando a cada minuto de nossaexistência pode significar a escolhaentre a vida e a morte. Quando você sai

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de casa de manhã para ir ao trabalho,pode escolher entre um transporte quelhe deixe são e salvo na porta doemprego, ou um outro que irá se chocare matar seus ocupantes. Isto é umexemplo radical de como uma simplesdecisão pode afetar uma pessoa para oresto da vida”.

Comecei a pensar em mim mesmoenquanto Petrus falava. Tinha escolhidofazer o Caminho de Santiago, em buscade minha espada. Era ela o que mais meimportava agora, e precisava encontrá-la de qualquer maneira. Tinha que tomara decisão certa.

– A única maneira de tomar a decisão

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certa é sabendo qual é a decisão errada– disse ele depois que lhe falei de minhapreocupação. É examinar o outrocaminho, sem medo e sem morbidez, edepois disso, decidir.

Petrus, então me ensinou O EXERCÍCIODAS SOMBRAS.

O EXERCÍCIO DAS SOMBRAS

Relaxar.

Durante cinco minutos, ficar olhandotodas as sombras de objetos ou pessoasao seu redor.

Procurar saber exatamente que parte doobjeto ou da pessoa está sendo refletida.

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Nos cinco minutos seguintes, continuarfazendo isto, mas ao mesmo tempolocalizar o problema que desejaresolver, e buscar todas as possíveissoluções erradas para ele.

Finalmente, mais cinco minutos olhandoas sombras e pensando qual as soluçõescertas que sobraram. Eliminar uma auma, até restar apenas a solução exatapara o problema.

– Seu problema é sua espada – disse eledepois que concluiu a explicação doexercício.

Eu concordei.

– Então faça este exercício agora. Vou

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sair e dar uma volta. Quando retornar,sei que você estará com a solução certa.

Lembrei da pressa de Petrus todosaqueles dias, e de toda esta conversanaquela cidade abandonada. Parecia queele estava procurando ganhar tempo,para também ele decidir alguma coisa.Fiquei animado e comecei a fazer oexercício.

Fiz um pouco de Sopro de RAM parame harmonizar com o ambiente. Depoismarquei quinze minutos no relógio ecomecei a olhar as sombras ao redor.Sombras de casas em ruínas, de pedra,madeira, da cruz velha atrás de mim.Olhando as sombras, percebi como eradifícil saber a parte exata que estava

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sendo refletida. Nunca tinha pensadonisto. Algumas traves retas setransformavam em objetos angulares, euma pedra irregular tinha um formatoredondo quando refletida. Fiz istodurante os primeiros dez minutos. Nãofoi difícil concentrar-me, porque oexercício era fascinante. Comecei entãoa pensar nas soluções erradas paraencontrar a minha espada. Um semnúmero de idéias passou pela minhacabeça – desde tomar um ônibus paraSantiago, até telefonar para minhamulher e, através de chantagememocional, conseguir saber onde ela atinha colocado.

Quando Petrus voltou eu estava

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sorrindo.

– E então? – perguntou ele.

– Descobri como Agatha Christieescreve seus romances policiais –brinquei. – Ela transforma a hipótesemais errada na hipótese certa. Ela deveter conhecido o Exercício das Sombras.

Petrus perguntou onde estava minhaespada.

– Vou lhe descrever primeiro a hipótesemais errada que consegui elaborarolhando as sombras: a espada está forado Caminho de Santiago.

– Você é um gênio. Descobriu que

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estamos andando há tanto tempo embusca de sua espada. Achei que lhetinham dito isto ainda no Brasil.

– E guardada num lugar seguro –continuei, – onde minha mulher não teriaacesso. Eu deduzi que ela está num lugarabsolutamente aberto, mas que seincorporou de tal forma ao ambiente quenão é vista.

Petrus não riu desta vez. Eu continuei:

– E como o mais absurdo seria queestivesse num local cheio de gente, elaestá num local quase deserto. Além domais, para que as poucas pessoas que avejam não percebam a diferença entreuma espada como a minha e uma espada

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típica espanhola, ela deve estar numlocal onde ninguém saiba distinguirestilos.

– Você acha que ela está aqui? –perguntou ele.

– Não, ela não está aqui. A coisa maiserrada seria fazer este exercício no localonde está a espada. Esta hipótese euabandonei logo. Mas deve estar numacidade parecida com esta. Não podeestar abandonada, porque uma espadanuma cidade abandonada chamaria muitaatenção dos peregrinos e passantes.

Em pouco tempo ela estaria enfeitandoas paredes de um bar.

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– Muito bem – disse ele, e notei queestava orgulhoso de mim ou doexercício que me havia ensinado.

– Tem mais uma coisa – disse eu.

– O que é?

– O local mais errado para estar aespada de um Mago seria um lugarprofano. Ela deve estar num lugarsagrado. Como uma igreja, por exemplo,onde ninguém se atreveria a roubá-la.Resumindo: numa igreja de uma pequenacidade perto de Santiago, a vista detodos, mas harmonizando com oambiente, está a minha espada. A partirde agora, vou visitar todas as igrejas doCaminho.

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– Não é preciso – disse ele. Quandochegar o momento, você o reconhecerá.

Eu havia conseguido.

– Escuta, Petrus, porque andamos tãorápido e agora estamos tanto temponuma cidade abandonada?

– Qual seria a decisão mais errada?

Olhei as sombras de relance. Ele tinharazão. Estávamos ali por algum motivo.

O sol escondeu-se atrás da montanha,mas ainda faltava muita luz paraterminar o dia. Eu pensava que naquelemomento o sol devia estar batendo naCruz de Ferro, a cruz que eu queria ver,

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e que estava apenas a algumas centenasde metros de mim. Queria saber oporquê daquela espera. Tínhamosandado muito rápido a semana inteira, eo único motivo me parecia ser queprecisávamos chegar ali naquele dia enaquela hora.

Tentei puxar conversa para ajudar otempo passar, mas percebi que Petrusestava tenso e concentrado. Eu já haviavisto muitas vezes Petrus de mau-humor,mas não me recordava de tê-lo vistotenso.

De repente, lembrei-me que já o tinhavisto assim uma vez. Foi num café damanhã de uma cidadezinha da qual nemme recordava o nome, pouco antes de

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encontrarmos…

Olhei para o lado. Ali estava ele. OCão.

O cão violento que me atirou no chãouma vez, o cão covarde que saiucorrendo da vez seguinte. Petrus haviaprometido ajudar-me em nosso próximoencontro, e eu me virei para ele. Mas aomeu lado não havia mais ninguém.

Mantive os olhos grudados nos olhos doanimal, enquanto minha cabeçaprocurava rapidamente uma maneira deenfrentar aquela situação. Nenhum denós dois fez qualquer movimento, e eume lembrei por um segundo dos duelosde filmes de faroeste, em cidades

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abandonadas. Ninguém jamais sonhariaem colocar um homem duelando com umcão, inverossímel demais. E no entantoali estava eu, vivendo na realidade oque a ficção seria inverossímel.

Ali estava Legião, porque eram muitos.Ao meu lado havia uma casaabandonada. Se eu corresse de repente,podia subir em seu telhado, e Legião nãoia me seguir. Estava preso dentro docorpo e das possibilidades de um cão.

Deixei logo a idéia de lado, enquantomantinha os olhos fixos no dele. Durantemuitas vezes no Caminho eu tinha tidomedo deste momento, e agora estemomento havia chegado. Antes de euencontrar a minha espada, eu tinha que

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me encontrar com o Inimigo, e vencer oser derrotado por ele. Só me restavaenfrentá-lo. Se e fugisse agora, iria cairnuma armadilha. Podia ser que o cãonão voltasse mais, mas eu ia caminharcom medo até Santiago de Compostela.Mesmo depois, eu iria sonhar as noitesinteiras com o cão, pensando que ele iaaparecer no próximo minuto, e vivendoapavorado o resto de meus dias.

Enquanto refletia sobre isto, o cão semoveu e minha direção. Pareiimediatamente de pensar e meconcentrei exclusivamente na luta que iater seu início. Petrus fugiu e agora euestava sozinho. Senti medo. E quandosenti medo o cão começou a caminhar

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lentamente na minha direção, ao mesmotempo que rosnava baixinho. O rosnarcontido era muito mais ameaçador queum 1atido alto, e meu medo aumentou.

Percebendo a fraqueza nos meus olhos ocão se atirou sobre mim.

Foi como se uma pedra tivesse batido nomeu peito. Fui atirado ao chão e elecomeçou a me atacar. Tive uma vagalembrança de que conhecia minhaMorte, que não ia ser desta maneira, maso medo crescia dentro de mim e eu nãoconsegui controlá-lo. Comecei a lutarpara defender apenas meu rosto e minhagarganta. Uma dor forte da perna fezcom que eu me encolhesse todo, epercebi que alguma carne havia sido

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rasgada. Tirei as mãos da cabeça e dopescoço e levei-as em direção à ferida.O cão aproveitou e preparou-se paraatacar meu rosto. Neste momento, umadas mãos tocou numa pedra ao meu lado.Peguei imediatamente a pedra e comeceia bater com todo o meu desespero nocão.

Ele se afastou um pouco, mais surpressoque ferido, e eu consegui me levantar. Ocão continuou recuando, mas a pedrasuja de sangue me deu ânimo. Eu estavarespeitando demais a força do meuinimigo, e aquilo era uma armadilha. Elenão podia ter mais força do que eu. Elepodia ser mais ágil, mas não podia termais força, porque eu era mais pesado e

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mais alto que ele. O medo já não era tãogrande, mas eu estava descontrolado, ecomecei a berrar com a pedra na mão. Oanimal recuou mais um pouco e derepente parou.

Parecia que estava lendo meuspensamentos. No meu desespero, euestava me sentindo forte, e ridículo porestar lutando com um cão. Uma sensaçãode Poder me invadiu de repente, e umvento quente começou a soprar naquelacidade deserta. Comecei a sentir umtédio enorme de continuar aquela luta –

afinal de contas, bastava acertá-lo com apedra no meio da cabeça, e eu teriavencido. Quis parar com aquela históriade imediato, ver o ferimento na minha

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perna, e acabar de vez com aquelaabsurda experiência de espadas eestranhos caminhos de santiago.

Era mais uma armadilha. O cão deu umpulo e me derrubou de novo no chão.Desta vez ele conseguiu evitar a pedracom habilidade, mordendo minha mão efazendo com que a soltasse. Comecei asocá-lo com as mãos nuas, mas nãoestava lhe causando nenhum dano sério.Tudo que conseguia evitar é que memordesse ainda mais.

As unhas afiadas começaram a rasgarminha roupa e meus braços, e vi que eraapenas uma questão de tempo para queme dominasse por completo.

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De repente escutei uma voz dentro demim. Uma voz dizendo que se ele medominasse a luta acabava e eu estariasalvo. Derrotado mas vivo. Minha pernadoía e o corpo inteiro estava ardendopor causa dos arranhões. A voz insistiapara que eu abandonasse a luta, e eu areconheci: era a voz de Astrain, meuMensageiro, falando comigo. O cãoparou por um momento, como se tambémouvisse a mesma voz, e mais uma vez eutive vontade de abandonar tudo aquilo.Astrain me dizia que muita gente nestavida não achou a sua espada, e quediferença isto podia fazer? Eu queriamesmo era voltar para casa, estar comminha mulher, ter meus filhos e trabalharno que eu gosto. Chega de tantos

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absurdos, de enfrentar cães e subir porcachoeiras. Era a segunda vez que eupensava isto, mas agora a vontadeestava mais forte, e eu tive certeza deque iria me render no próximo segundo.

Um barulho na rua da cidadeabandonada chamou a atenção doanimal. Olhei para o lado e vi um pastortrazendo suas ovelhas de volta docampo. Lembrei-me de repente que jávira aquela mesma cena antes, nas ruínasde um velho castelo. Quando o cãonotou as ovelhas, saltou de cima de mime preparou-se para atacá-las. Era aminha salvação.

O pastor começou a gritar e as ovelhascorreram por todos os cantos. Antes que

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o cão se afastasse por completo euresolvi resistir por mais um segundo, sópara dar tempo dos animais fugirem, esegurei o cão por uma das pernas. Veioa esperança absurda de que o pastortalvez viesse em meu auxílio, e voltoupor um momento a esperança da espadae do Poder de RAM.

O cão tentava se desvencilhar de mim.Eu já não era mais o inimigo, era umimportuno. O

que ele queria agora estava ali em suafrente, as ovelhas. Mas eu continueiagarrado à perna do animal, esperandoum pastor que não vinha, esperando asovelhas que não fugiam.

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Este segundo salvou a minha alma. Umaforça imensa começou a surgir dentro demim, e não era mais a ilusão do Poder,que provoca o tédio e a vontade dedesistir. Astrain sussurrou de novo, masalgo diferente. Dizia que eu deviaenfrentar sempre o mundo com asmesmas armas com que era desafiado. E

que eu só podia enfrentar um cão, metransformando num cão.

Esta era a loucura que Petrus havia mefalado naquele dia. E eu comecei a mesentir um cão.

Arreganhei os dentes e rosnei baixo,com o ódio fluindo nos ruídos que fazia.Vi de relance o rosto assustado do

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pastor e as ovelhas com tanto medo demim como do cão.

Legião percebeu e começou a seassustar. Então eu dei um bote. Era aprimeira vez que fazia isto em todo ocombate. Ataquei com os dentes e comas unhas, tentando morder o cachorro nopescoço, exatamente da maneira que eutemia que fizesse comigo. Dentro demim existia apenas um desejo imenso devitória. Nada mais tinha importância.Atirei-me sobre o animal e o derrubeino chão. Ele lutava para sair debaixo dopeso do meu corpo, e suas unhascravavam na minha pele, mas eu tambémestava mordendo e unhando. Vi que sesaísse debaixo de mim ia fugir mais uma

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vez, e eu queria que isto nunca maisacontecesse.

Hoje eu iria vencê-lo e derrotá-lo.

O animal começou a olhar para mimcom pavor. Agora eu era um cão e eleparecia transformado em homem. O meuantigo medo estava atuando nele, e comtanta força que ele conseguiu sair, maseu o encurralei de novo no fundo de umadas casas abandonadas. Atrás de umpequeno muro de ardósia estava oprecipício, e ele não tinha mais comofugir. Era um homem que ali ia ver orosto de sua Morte.

De repente comecei a perceber quehavia algo errado. Estava forte demais.

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Meu pensamento estava ficandonublado; eu comecei a ver um rostocigano, e imagens difusas em torno desterosto. Eu tinha me transformado emLegião. Este era o meu poder. Elesabandonaram aquele pobre cãoassustado que daqui a um instante ia cairno abismo. E agora estavam em mim.Senti um desejo terrível de despedaçar oanimal indefeso. “Tu és o Príncipe eeles são Legião”, sussurrou Astrain.Mas eu não queria ser um Príncipe, eescutei também de longe a voz de meuMestre dizendo insistentemente quehavia uma espada para ser conseguida.Precisava resistir mais um minuto. Nãodevia matar aquele cão.

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Olhei de relance o pastor. Seu olharconfirmou o que estava pensando. Eleagora estava mais assustado comigo quecom o cão.

Comecei a sentir uma tontura, e apaisagem em volta rodou. Eu não podiadesmaiar. Se desmaiasse agora, Legiãoteria vencido em mim. Tinha que acharuma solução. Não estava mais lutandocontra um animal, mas contra a força queme havia possuído. Comecei a sentir aspernas fraquejarem, e me apoiei numaparede, mas ela cedeu com o meu peso.Entre pedras e pedaços de madeira, caícom o rosto na terra.

A Terra. Legião era a terra, os frutos daterra. Os frutos bons e maus da terra,

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mas a terra.

Ali era a sua casa, e dali ela governavaou era governada pelo mundo. Ágapeexplodiu dentro de mim e eu cravei comforça minhas unhas na terra. Dei umuivo, um grito semelhante ao que ouvi aprimeira vez quando o cão e eu nosencontramos. Senti que Legião passavapelo meu corpo e descia para a terra,porque dentro de mim havia Ágape, eLegião não queria ser consumida peloAmor que Devora. Esta era a minhavontade, a vontade que me fazia lutarcom o resto de minhas forças contra odesmaio, a vontade de Ágape fixa naminha alma, resistindo. Meu corpotremeu todo.

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Legião descia com força para a terra.Comecei a vomitar, mas sentia que eraÁgape crescendo e saindo por todos osmeus poros. O corpo continuou a tremeraté que, depois de muito tempo, sentique Legião havia voltado ao seu reino.

Notei quando o último vestígio delapassou pelos meus dedos. Sentei-me nochão, ferido e machucado, e vi uma cenaabsurda diante dos meus olhos. Um cão,sangrando e abanando o rabo, e umpastor assustado me olhando.

– Deve ter sido algo que você comeu –disse o pastor, que não queria acreditarem tudo que tinha visto. – Mas agora quevocê vomitou vai passar.

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Concordei com a cabeça. Ele meagradeceu por haver contido o “meu”cão, e seguiu o caminho com suasovelhas.

Petrus apareceu, e não disse nada.Cortou um pedaço de sua camisa e fezum torniquete na minha perna, por ondesangrava muito. Pediu que eu mexesse ocorpo inteiro, e disse que nada de maissério havia acontecido.

– Você está deplorável – disse elesorrindo; o seu raro bom-humor haviavoltado. – Assim não dá para visitarmoshoje a Cruz de Ferro. Deve haverturistas por lá, e vão ficar assustados.

Eu não dei bola. Levantei-me, limpei a

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poeira e vi que podia andar. Petrussugeriu que eu fizesse um pouco deSopro de RAM, e carregou minhamochila. Fiz o Sopro de RAM enovamente me harmonizei com o mundo.Dentro de meia hora estaria chegando naCruz de Ferro.

E algum dia Foncebadon ia renascer desuas ruínas. Legião deixou ali muitoPoder.

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O MANDAR E O SERVIR

Cheguei à Cruz de Ferro carregado porPetrus, já que o ferimento na perna nãome deixava caminhar direito. Quandoele reparou a extensão dos danoscausados pelo cão, decidiu que eu deviaficar em repouso até me recuperar osuficiente para continuar o EstranhoCaminho de Santiago. Ali perto existiauma aldeia, que servia de abrigo aosperegrinos surpreendidos pela noiteantes de cruzarem as montanhas. Petrusconseguiu dois quartos na casa de umferreiro, e nos instalamos.

Meu aposento tinha uma pequenavaranda, revolução arquitetônica que,

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partindo daquela aldeia, iria se espalharpor toda a Espanha do Século VIII. Eupodia ver uma série de montes, pelosquais –

cedo ou tarde – teria que cruzar antes dechegar a Santiago. Caí na cama e sóacordei no dia seguinte, com um poucode febre, mas me sentindo bem.

Petrus trouxe água de uma fonte que oshabitantes da aldeia chamavam de “opoço sem fundo”, e lavou meusferimentos. De tarde, apareceu com umavelha que morava pelas redondezas. Osdois colocaram vários tipos de ervasnas feridas e arranhões, e a velha meobrigou a tomar um chá amargo.

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Lembro que todos os dias Petrus meobrigava a lamber as feridas, até queelas fechassem por completo. Eu sentiasempre o gosto metálico e doce dosangue, e isto me deixava enjoado, masmeu guia afirmava que a saliva era umpoderoso desinfetante e iria me ajudarna luta contra uma possível infecção.

No segundo dia a febre voltou. Petrus ea velha me deram novamente o chá,tornaram a untar as feridas com ervas,mas a febre – apesar de não ser muitoalta – não cedia. Meu guia então dirigiu-se a uma base militar nas redondezas,em busca de ataduras, já que não haviaem todo o vilarejo gaze ou esparadrapopara cobrir os ferimentos.

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Poucas horas depois, Petrus voltou comas ataduras. Junto com ele veio tambémum jovem oficial médico, que queria porforça saber onde estava o animal que memordeu.

– Pelo tipo de ferida, o animal estáraivoso – sentenciou com ar grave ooficial médico.

– Nada disso – respondi. – Foi umabrincadeira que passou dos limites. Euconheço o animal há muito tempo.

O oficial não se convenceu. Queria porforça que eu tomasse uma vacina anti-rábica, e eu fui obrigado a deixar queme injetassem pelo menos uma dose –sob a ameaça de ser transferido para o

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hospital da Base. Depois perguntou ondeestava o animal que me havia mordido.

– Em Foncebadon – respondi.

– Foncebadon é uma cidade em ruínas.Não existem cães por lá – respondeu,com o ar sábio de quem flagra umamentira.

Eu comecei a dar alguns falsos gemidosde dor, e o oficial médico foi conduzidopor Petrus para fora do quarto. Masdeixou tudo aquilo que nós estávamosnecessitando: ataduras limpas,esparadrapo, e uma pomada cicatrizante.

Petrus e a velha não utilizaram apomada. Envolveram os ferimentos com

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gaze cheia de ervas. Aquilo me alegroumuito, já que eu não precisava continuarlambendo os locais onde o cão haviamordido. Durante a noite, eles doisajoelhavam-se ao lado da minha cama e,com as mãos estendidas sobre meucorpo, rezavam em voz alta. Pergunteipara Petrus o que era aquilo, e ele fezuma vaga referência aos Carismas e aoCaminho de Roma. Eu insisti mas elenão disse mais nada.

Dois dias depois eu estavacompletamente recuperado. Fui até ajanela e vi alguns soldados dando buscanas casas da cidade e nos morros dasimediações. Perguntei a um deles o queera aquilo.

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– Existe um cão raivoso pelasredondezas – respondeu.

Naquela mesma tarde o ferreiro, donodos quartos, veio me pedir que deixassea cidade assim que estivesse pronto paracaminhar. A história havia se espalhadopelos habitantes da aldeia, e elesestavam com medo que eu me tornasseraivoso e pudesse transmitir a doença.Petrus e a velha começaram a discutircom o ferreiro, mas ele estavainflexível. A determinada altura, chegoua afirmar que tinha visto um filete deespuma sair pelo canto de minha boca,enquanto eu estava dormindo.

Não houve argumento capaz deconvencê-lo de que todos nós, enquanto

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dormimos, podemos apresentar aquelefenômeno. Esta noite, a velha e meu guiaficaram longo tempo em orações, com asmãos estendidas sobre meu corpo. E nodia seguinte, mancando um pouco, euestava de novo no Estranho Caminho deSantiago.

Perguntei a Petrus se ele chegou a ficarpreocupado com a minha recuperação.

– Existe uma regra no Caminho deSantiago de que eu não lhe falei antes –respondeu, –

mas que é a seguinte: uma vez iniciado,a única desculpa para interrompê-lo épor causa de uma doença. Se você nãofosse capaz de resistir aos ferimentos, e

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continuasse a ter febre, isto seria umpresságio de que nossa viagem teria queparar por ali.

Mas, disse com certo orgulho, suasorações haviam sido atendidas. E eu tivea certeza de que aquela coragem era tãoimportante para ele como para mim.

O caminho agora era todo em descida, ePetrus me avisou que iria continuarassim por mais dois dias. Tínhamosvoltado a andar em nosso ritmo habitual,com a “siesta” toda tarde, na hora que osol estava mais forte. Por causa dasminhas ataduras, ele carregava minhamochila. Já não havia mais tanta pressa:o encontro marcado havia sidocumprido.

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Meu estado de ânimo melhorava a cadahora, e eu estava bastante orgulhosocomigo mesmo: tinha escalado umacachoeira, e derrotado o demônio doCaminho. Agora faltava apenas a tarefamais importante: encontrar a minhaespada. Comentei isto com Petrus.

– A vitória foi bonita, mas você falhouno mais importante – disse ele, jogandoum verdadeiro balde de água fria emcima de mim.

– O que foi?

– Saber o momento exato do combate,Eu tive que andar mais rápido, fazer umamarcha forçada, e tudo que você

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conseguia pensar era que estávamos embusca da sua espada. De que serve umaespada se o homem não sabe onde vaiencontrar seu inimigo?

– A espada é meu instrumento de Poder– respondi.

– Você está convencido demais do seuPoder – disse ele. – A cachoeira, asPráticas de RAM, as conversas com oseu Mensageiro lhe fizeram esquecer deque faltava um inimigo para ser vencido.

E que você teria um encontro marcadocom ele. Antes da mão manejar aespada, ela deve localizar o inimigo esaber como enfrentá-lo. A espadaapenas dá o golpe. Mas a mão já está

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vitoriosa ou perdedora antes destegolpe.

“Você conseguiu vencer Legião sem tuaespada. Existe um segredo nesta busca,um segredo que você ainda nãodescobriu, mas que sem ele jamaispoderá encontrar o que procura”.

Fiquei em silêncio. Toda vez quecomeçava a ter certeza de que estavachegando perto do meu objetivo, Petrusinsistia em dizer que eu era um simplesperegrino, e que sempre faltava algumacoisa para encontrar o que estavaprocurando. A sensação de alegria queeu estava sentindo minutos antes deiniciar aquela conversa desapareceu porcompleto.

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Eu estava mais uma vez começando oEstranho Caminho de Santiago, e aquilome encheu de desânimo. Por aquelaestrada que meus pés pisavam, milhõesde pessoas haviam passado durante dozeséculos, indo e voltando de Santiago deCompostela. No caso delas, chegar ondequeriam era apenas uma questão detempo. No meu caso, as armadilhas daTradição estavam sempre colocandomais um obstáculo a vencer, mais umaprova a ser cumprida.

Falei para Petrus que estava me sentindocansado, e nos sentamos numa sombrada descida.

Haviam grandes cruzes de madeira

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ladeando o caminho. Petrus colocou asduas mochilas no chão e continuou afalar:

– Um inimigo sempre representa nossolado fraco. Que pode ser o medo da dorfísica, mas também pode ser a sensaçãoprematura da vitória, ou o desejo deabandonar o combate por achar que elenão vale a pena.

“Nosso inimigo só entra na luta porquesabe que pode nos atingir. Exatamentenaquele ponto onde nosso orgulho nosfez crer que éramos invencíveis. Durantea luta estamos sempre procurandodefender nosso lado fraco, enquanto oInimigo golpeia o lado desguarnecido –aquele em que nós temos mais

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confiança. E terminamos derrotadosporque acontece aquilo que não podianunca acontecer: deixar que o Inimigoescolha a maneira de lutar”.

Tudo o que Petrus estava falando tinhase passado no meu combate com o cão.Ao mesmo tempo, eu rejeitava a idéia deter inimigos, e ser obrigado a combatercontra eles. Quando Petrus se referia aoBom Combate, sempre achei que estavafalando da luta pela vida.

– Você tem razão, mas o Bom Combatenão é apenas isto. Guerrear não é umpecado – disse ele depois que lhecoloquei minhas dúvidas. – Guerrear éum ato de amor. O Inimigo nos

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desenvolve e nos aprimora, como o cãofez com você.

– Entretanto, parece que você nunca estásatisfeito. Sempre falta alguma coisa.Agora você vem me falar do segredo daminha espada.

Petrus disse que isto era algo que eudevia saber antes de iniciar acaminhada. E continuou falando doInimigo.

– O Inimigo é uma parcela de Ágape, eestá ali para testar nossa mão, nossavontade, o manejo da espada. Foicolocado em nossas vidas – e nós navida dele – com um propósito. Estepropósito tem que ser satisfeito. Por

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isso, fugir da luta é o pior que pode nosacontecer. É pior do que perder a luta,porque na derrota sempre podemosaprender alguma coisa, mas na fuga,tudo que conseguimos é declarar avitória de nosso Inimigo.

Eu disse que estava surpreso de ouvirPetrus, que parecia ter uma ligação tãogrande com Jesus, falando em violênciadaquela maneira.

– Pense na necessidade de Judas paraJesus – disse ele. – Ele tinha queescolher um Inimigo, ou sua luta na terranão podia ser glorificada.

As cruzes de madeira no caminhomostravam como tinha sido construída

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aquela glória.

Com sangue, traição e abandono.Levantei-me e disse que estava prontopara continuar a caminhada.

Enquanto andava, perguntei qual era,numa luta, o ponto mais forte em que umhomem podia se apoiar para vencer oInimigo.

– O seu presente. O homem se apóiamelhor no que está fazendo agora,porque ali está Ágape, a vontade devencer com Entusiasmo.

“E outra coisa eu quero deixar bemclaro: o Inimigo raramente representa oMal. Ele está sempre presente porque

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uma espada sem uso terminaenferrujando na bainha”.

Eu me lembrei que certa vez, enquantoestávamos construindo uma casa deveraneio, minha mulher havia decididomudar de uma hora para outra adisposição de um dos quartos. Coube amim a desagradável tarefa de comunicaresta mudança ao pedreiro. Chamei opedreiro, um velho de quase sessentaanos, e disse o que queria. Ele olhou,pensou, e veio com uma solução muitomelhor, utilizando a parede que tinhacomeçado a levantar naquele momento.Minha mulher adorou a idéia.

Talvez fosse isto que Petrus estivessetentando dizer, com palavras tão

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complicadas, a respeito de se utilizar eforça do que estamos fazendo nomomento para vencer o Inimigo.

Contei a história do pedreiro para ele.

– A vida ensina sempre mais do que oEstranho Caminho de Santiago –respondeu. – Mas nós não temos muitafé nos ensinamentos da vida.

As cruzes continuavam ao longo de todaa rota jacobea. Deviam ser obra de umperegrino com uma força quase sobre-humana, para levantar aquela madeirasólida e pesada. Haviam cruzes de trintaem trinta metros, e se estendiam até ondeminha vista alcançava. Perguntei aPetrus o que significavam.

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– Um velho e ultrapassado instrumentode tortura – disse ele.

– Mas o que elas estão fazendo aqui?

– Deve ter sido alguma promessa. Comoposso saber?

Paramos em frente a uma delas, quetinha sido derrubada.

– Talvez a madeira esteja podre – disseeu.

– É uma madeira igual a todas as outras.E nenhuma apodreceu.

– Então não deve ter sido cravada nochão com firmeza.

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Petrus parou e olhou em volta. Largou amochila no chão e sentou-se. Nóstínhamos descansado a apenas algunsminutos, e não entendi seu gesto.Instintivamente olhei em volta,procurando o cão.

– Você venceu o cão – falou ele, comose adivinhasse meus pensamentos. Nãose assuste com o fantasma dos mortos.

– Então porque paramos?

Petrus fez um sinal para que eu parassede falar, e ficou em silêncio por algunsminutos.

Senti de novo o velho medo do cão, eresolvi ficar de pé, esperando que ele

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resolvesse falar.

– O que você está ouvindo? – perguntoudepois de algum tempo.

– Nada. O silêncio.

– Oxalá fôssemos tão iluminados aponto de escutar no silêncio! Mas aindasomos homens e não sabemos sequerescutar a tagarelice de nós mesmos.Você nunca me perguntou como eupressenti a chegada de Legião, e agoraeu vou lhe dizer: pela audição. O ruídocomeçou muitos dias antes, quandoestávamos ainda em Astorga. A partirdali eu comecei a andar mais rápido,pois tudo indicava que nossos caminhosiam se cruzar em Foncebadon. Você

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ouviu o mesmo ruído que eu, e não oescutou.

“Tudo está escrito nos ruídos. Opassado, o presente e o futuro dohomem. Um homem que não sabe ouvir,não pode escutar os conselhos que avida nos dá a cada instante. Só quemescuta o ruído do presente, pode tomar adecisão certa.”

Petrus pediu que eu me sentasse eesquecesse o cão. Depois disse que iame ensinar uma das Práticas mais fáceise mais importantes do Caminho deSantiago.

E me explicou o EXERCÍCIO DAAUDIÇÃO.

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O EXERCÍCIO DA AUDIÇÃO

Relaxe. Feche os Olhos.

Procure, durante alguns minutos,concentrar-se em todos os sons que lhecercam, como se tosse uma orquestratocando seus instrumentos.

Aos poucos, vá distinguindo cada somem separado. Concentre-se em um porum, como se fosse apenas uminstrumento tocando. Procure eliminaros outros sons da sua mente.

Com a realização diária deste exercício,você começará a ouvir vozes. Primeiro,vai achar que são frutos da suaimaginação. Depois, descobrirá que são

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vozes de pessoas passadas, presentes efuturas, participando da Memória doTempo .

Este exercício só deve ser realizado sevocê já conhecer a voz de seuMensageiro .

Duração mínima: dez minutos.

– Faça-o agora mesmo – disse ele.

Comecei a realizar o exercício.Escutava o vento, alguma voz femininabem longe, e a determinada alturapercebi que um galho estava sendoquebrado. Não era realmente umexercício difícil, e sua simplicidade medeixou fascinado. Colei o ouvido ao

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chão e comecei a escutar o ruído surdoda terra. Aos poucos comecei a separarcada som: o som das folhas quietas, osom da voz à distância, o barulho deasas de pássaro batendo. Um animalgrunhiu, mas eu não pude identificar quetipo de bicho era. Os quinze minutos deexercício passaram voando.

– Com o tempo, você verá que esteexercício vai ajudá-lo a tomar a decisãocorreta – disse Petrus, sem perguntar oque eu havia escutado. – Ágape falapelo Globo Azul, mas fala também pelavisão, pelo tato, pelo perfume, pelocoração e pelos ouvidos. Em umasemana, no máximo, você começará aescutar vozes. Primeiro, serão vozes

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tímidas, mas aos poucos vão começar alhe dizer coisas importantes. Cuidadoapenas com o seu Mensageiro, que vaitentar confundi-lo. Mas como vocêconhece a voz dele, ela não será maisuma ameaça”.

Petrus perguntou se escutei o chamadoalegre de um Inimigo, o convite de umamulher, ou o segredo de minha espada.

– Escutei apenas uma voz feminina aolonge – disse eu. – Mas era umacamponesa chamando o filho.

– Então olhe para esta cruz em frente, ecoloque-a em pé com o seu pensamento.

Perguntei qual era o exercício.

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– Ter fé no seu pensamento – respondeu.

Sentei-me no chão, em posição de yoga.Sabia que depois de tudo que haviaconseguido, do cão, da cachoeira, eu iaconseguir isto também. Olhei fixamentea cruz. Imaginei-me saindo do corpo,agarrando seus braços e a levantandocom meu corpo astral. No caminho daTradição, eu já fizera alguns destespequenos “milagres”. Conseguia quebrarcopos, estátuas de porcelana, e movercoisas sobre a mesa.

Era um truque fácil de magia que, apesarde não significar Poder, ajudava muito aconvencer os “ímpios”.

Nunca havia tentado antes com um

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objeto no tamanho e no peso daquelacruz, mas se Petrus havia mandado, eusaberia conseguir.

Durante meia hora eu tentei de todas asmaneiras. Utilizei viagem astral esugestão. Lembrei do domínio que oMestre tinha da força de gravidade, eprocurei repetir as palavras que elesempre dizia nestas ocasiões. Nadaaconteceu. Eu estava completamenteconcentrado e a cruz não se movia.Invoquei Astrain, que apareceu entre ascolunas de fogo. Mas quando lhe faleida cruz, ele disse que detestava aqueleobjeto.

Petrus terminou me sacudindo e metirando do transe.

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– Vamos, isto está ficando muito chato –disse. – Já que você não consegue porpensamento, coloque esta cruz de pécom as mãos.

– Com as mãos?

– Obedeça!

Eu levei um susto. De repente estavadiante de mim um homem ríspido, muitodiferente daquele que tinha cuidado deminhas feridas. Eu não sabia nem o quedizer, nem o que fazer.

– Obedeça! – ele repetiu. – É umaordem!

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Eu estava com os braços e mãosenfaixadas por causa da luta com o cão.Apesar do exercício de ouvir, meusouvidos se recusavam a acreditar no queeu estava escutando. Sem dizer nada, eulhe mostrei as ataduras. Mas elecontinuou a me olhar friamente, semqualquer expressão. Esperava que eu oobedecesse. O guia e amigo que haviame acompanhado durante todo estetempo, que havia me ensinado asPráticas de RAM e contado as belashistórias do Caminho de Santiago,parecia não estar mais ali. Em seu lugareu via apenas um homem que me olhavacomo escravo e me pedia uma coisaestúpida.

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– O que você está esperando? disse elemais uma vez.

Eu me lembrei da cachoeira. Lembrei-me de que naquele dia havia duvidadode Petrus, e que ele tinha sido generosocomigo. Tinha mostrado seu amor e meimpedido de desistir da espada. Nãoconseguia entender porque alguém tãogeneroso estava sendo tão rude agora,representando naquele momento tudoque a raça humana estava tentandoafastar para longe, que era a opressãodo homem pelo seu semelhante.

– Petrus, eu…

– Obedeça ou o Caminho de Santiagoacaba agora.

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O medo voltou. Eu estava naquelemomento sentindo mais medo dele queda cachoeira, mais medo dele que docão que havia me assustado por tantotempo. Pedi desesperadamente que anatureza me desse algum sinal, que eupudesse ver ou ouvir alguma coisajustificando aquela ordem sem sentido.Tudo continuou em silêncio ao meuredor. Era obedecer a Petrus ouesquecer minha espada. Ainda uma vezlevantei os braços enfaixados, mas elesentou-se no chão e esperou que eucumprisse sua ordem.

Então eu decidi obedecer.

Caminhei até a cruz e tentei empurrá-lacom o pé, para testar seu peso. Ela mal

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se moveu.

Mesmo se eu tivesse as mãos livres,teria uma imensa dificuldade emlevantá-la, e imaginei que com as mãosenfaixadas aquela tarefa seria quaseimpossível. Mas eu ia obedecer. Iamorrer ali na frente, se isto fossenecessário, ia suar sangue como Jesussuou quando teve que carregar aquelemesmo peso, mas ele ia ver minhadignidade, e talvez isto tocasse seucoração, livrando-me daquela prova.

A cruz havia quebrado na sua base, masainda estava presa por algumas fibras demadeira.

Não havia canivete para cortar estas

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fibras. Dominando a dor, me abracei aela e tentei arrancá-la da base quebrada,sem usar as mãos. Os ferimentos dosbraços entraram em contato com amadeira e eu gritei de dor.

Olhei para Petrus e ele continuavaimpassível. Resolvi não gritar mais: osgritos, a partir daquele instante, iammorrer dentro do meu coração.

Notei que meu problema imediato nãoera mais mover a cruz, mas libertá-la desua base, e depois cavar um buraco nochão e empurrá-la para dentro doburaco. Escolhi uma pedra afiada e,dominando a dor, comecei a bater e aesfregar nas fibras de madeira.

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A dor aumentava a cada instante, e asfibras iam cedendo vagarosamente. Eutinha que acabar aquilo logo, antes queos ferimentos tornassem a se abrir e acoisa ficasse insuportável. Decidi fazero trabalho um pouco mais devagar, demaneira que eu chegasse ao final antesda dor me vencer. Tirei a camiseta,enrolei na mão, e recomecei a trabalharmais protegido. A idéia foi boa:rompeu-se a primeira fibra, logo depoisa segunda. A pedra gastou seu corte eprocurei outra. Cada vez que parava otrabalho, tinha a impressão de que não iaconseguir recomeçar de novo. Junteivárias pedras afiadas e segui utilizandouma após a outra, para que o calor damão trabalhando diminuísse o efeito da

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dor. Quase todas as fibras já se haviamrompido e, no entanto, a fibra principalainda resistia. A dor na mão foiaumentando, eu abandonei meu planoinicial, e comecei a trabalharfreneticamente. Sabia agora que iachegar a um ponto onde a dor seriainsuportável. Este ponto estava perto eera apenas uma questão de tempo, umtempo que eu precisava vencer. Fuiserrando, batendo, sentindo que entre apele e a atadura alguma coisa pastosacomeçava a dificultar os movimentos.Devia ser sangue, pensei, mas eviteipensar mais. Trinquei os dentes e derepente a fibra central pareceu ceder. Euestava tão nervoso que me levanteiimediatamente e dei um pontapé, com

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todas as minhas forças, naquele troncoque me estava causando tantosofrimento.

Com um ruído, a cruz caiu para o lado,livre de sua base.

Minha alegria durou apenas algunspoucos segundos. A mão começou alatejar violentamente, quando eu maltinha começado a tarefa. Olhei paraPetrus e ele havia dormido. Durantealgum tempo fiquei imaginando umamaneira de enganá-lo, de colocar a cruzem pé sem que ele notasse.

Mas era exatamente isto que Petrusqueria: que eu colocasse a cruz em pé. Enão havia nenhum jeito de enganá-lo,

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porque a tarefa só dependia de mim.

Olhei para o chão, para a terra amarelae seca. Novamente as pedras seriamminha única saída. Já não podia maistrabalhar com a mão direita, porqueestava dolorida demais, e tinha aquelacoisa pastosa dentro que me dava umaimensa aflição. Tirei devagar a camisaque estava envolvendo as ataduras: overmelho do sangue havia manchado agaze, depois do ferimento estar quasecicatrizado. Petrus era desumano.

Procurei um outro tipo de pedra, maispesada e mais resistente. Enrolando acamisa na mão esquerda, comecei abater no solo e a cavar em frente ao péda cruz. O progresso inicial, que parecia

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rápido, logo cedeu diante de um soloduro e ressequido, Eu continuavacavando e o buraco parecia ter sempre amesma profundidade. Decidi não alargarmuito o buraco, para que a cruz pudesseencaixar sem ficar frouxa na base, e istoaumentava minha dificuldade em tirar aterra do fundo. A mão direita haviaparado de doer, mas o sangue coaguladome dava enjôo e aflição. Como eu nãotinha prática em trabalhar com a mãoesquerda, a toda hora a pedra se soltavados meus dedos.

Cavei durante um tempo interminável.Cada vez que a pedra batia no chão,cada vez que minha mão entrava noburaco para tirar a terra, eu pensava em

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Petrus. Olhava o seu sono tranqüilo e oodiava do fundo do meu coração. Nem obarulho nem o ódio pareciam perturbá-lo. “Petrus deve ter seus motivos”, eupensava, mas não podia entender aquelaservidão, e a maneira como havia mehumilhado. Então o solo se transformavaem seu rosto, eu batia com a pedra, e araiva me ajudava a cavar mais fundo.Agora era apenas uma questão de tempo:mais cedo ou mais tarde eu ia terminarconseguindo.

Quando acabei de pensar nisto, a pedratocou em algo sólido e soltou-se maisuma vez. Era exatamente o que eu estavatemendo; depois de tanto tempo detrabalho, eu havia encontrado outra

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pedra, grande demais para que eupudesse prosseguir.

Levantei, enxuguei o suor do rosto, ecomecei a pensar. Não tinha forçassuficientes para transportar a cruz paraoutro lugar. Não poderia começar tudode novo, porque a mão esquerda – agoraque eu havia parado – começava a darsinais de insensibilidade. Aquilo erapior que a dor e me deixou preocupado.

Comecei a olhar para os dedos e vi queconitnuavam se movendo, obedecendoao meu comando, mas meu instinto diziaque eu não devia sacrificar mais aquelamão.

Olhei para o buraco. Não era

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suficientemente fundo para manter a cruzcom todo o seu peso.

“A solução errada irá indicar-lhe acerta”. Eu me lembrei do exercício dassombras e da frase de Petrus. Ao mesmotempo, ele dizia insistentemente que asPráticas de RAM só tinham sentido seeu pudesse aplicar nos desafios diáriosda vida. Mesmo diante de uma situaçãoabsurda como aquela, as Práticas deRAM deviam servir para alguma coisa.

“A solução errada irá indicar-lhe acerta”. O caminho impossível eraarrastar a cruz para outro lugar, porqueeu não tinha forças para isto. O caminhoimpossível era continuar cavando,descer mais fundo naquele chão.

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Então se o caminho errado era descermais no chão, o ca- minho possível eralevantar o chão. Mas como?

E de repente, todo o meu amor porPetrus voltou. Ele estava certo. Eu podialevantar o chão.

Comecei a juntar todas as pedras quehaviam em volta, e a colocá-las emtorno do buraco, misturando-as com aterra retirada. Com grande esforço,levantei um pouco o pé da cruz e calcei-o com pedras, de maneira que ficassemais alto. Em meia hora o chão estavamais alto, e o buraco era suficientementeprofundo.

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Agora só me restava atirar a cruz dentrodo buraco. Era o último esforço e eutinha que conseguir. Uma das mãosestava insensível, e a outra dolorida.Meus braços estavam enfaixados. Maseu tinha as costas boas, com apenasalguns arranhões. Se me deitasse pordebaixo da cruz, e fosse levantando aospoucos, eu poderia fazê-la deslizar paradentro.

Deitei-me no chão, sentindo a poeira naboca e nos olhos. A mão insensível fezum último esforço, levantou a cruz umpouco, e entrei debaixo dela. Com todoo cuidado me ajeitei para que o troncoficasse na minha coluna. Sentia seupeso, ele era grande, mas não era

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impossível. Lembrei do exercício dasemente e, com toda lentidão, fui meacomodando em posição fetal debaixoda cruz, equilibrando-a nas minhascostas. Algumas vezes achei que ela iriaescorregar, mas eu estava indo bemdevagar, de maneira que conseguiaprever o desequilíbrio e corrigi-lo coma postura do corpo. Finalmente atingi aposição fetal, colocando os joelhos paraa frente e mantendo-a equilibrada nasminhas costas. Por um momento o pé dacruz vacilou no monte de pedras, masnão saiu do lugar.

“Ainda bem que não preciso salvar ouniverso”, pensei, esmagado pelo pesodaquela cruz e de tudo aquilo que ela

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representava. E um profundo sentimentode religiosidade se apossou de mim.Lembrei-me que alguém já a haviacarregado nas costas, e que suas mãosferidas não podiam escapar – como asminhas – da dor e da madeira. Era umsentimento de religiosidade carregadode dor, que afastei de imediato dacabeça, porque a cruz nas minhas costascomeçava a vacilar de novo.

Então, levantando-me devagar, eucomecei a renascer. Não podia olharpara trás e o ruído era a minha únicaforma de orientação – mas pouco anteseu havia aprendido a escutar o mundo,como se Petrus pudesse adivinhar que euia precisar deste tipo de conhecimento

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agora. Sentia o peso e as pedras seacomodando, mas a cruz subialentamente, para me redimir daquelaprova, e voltar a ser a estranha moldurade uma parte do Caminho de Santiago.

Só faltava agora o esforço final. Quandoeu estivesse sentado nos meucalcanhares, ela devia escorregar deminhas costas e iria afundar no buraco.Uma ou duas pedras fugiram do lugar,mas a cruz agora estava me ajudando,pois não saiu da direção do local ondeeu havia levantado o chão. Finalmente,um puxão nas minhas costas indicou quea base tinha ficado livre. Era o momentofinal, semelhante ao da cachoeira,quando tive que atravessar a corrente de

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água. O momento mais difícil, porque agente tem medo de perder, e querdesistir antes que isto aconteça. Sentimais uma vez o absurdo de minha tarefa,colocando uma cruz em pé quando tudoque eu queria era encontrar a minhaespada, e derrubar todas as cruzes paraque pudesse renascer no mundo o CristoRedentor. Nada disto importava. Numgolpe súbito, empurrei as costas, a cruzdeslizou, e naquele momento entendimais uma vez que era o destino quemestava guiando a obra que eu havia feito.

Fiquei aguardando o baque da cruz,caindo para o outro lado e atirando paratodos os cantos as pedras que eu haviajuntado. Pensei em seguida que o

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impulso podia não ter sido o suficiente,e que ela iria voltar e cair sobre mim.Mas tudo que eu ouvi foi um ruídosurdo, de alguma coisa batendo contra ofundo da terra.

Virei-me devagar. A cruz estava de pé,ainda balançando por causa do impulso.Algumas pedras rolavam do monte, masela não ia cair. Rapidamente eurecoloquei as pedras no lugar, eabracei-me com ela para que parasse debalançar. Neste momento eu a senti viva,quente, certo de que tinha sido umaamiga durante toda a minha tarefa. Fuime soltando devagar, ajustando aspedras com os pés.

Fiquei admirando meu trabalho durante

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algum tempo, até que as feridascomeçaram a doer.

Petrus ainda dormia. Cheguei perto dele,e o cutuquei com o pé.

Ele acordou de súbito, e olhou a cruz.

– Muito bem – foi tudo o que disse. –Em Ponferrada a gente muda as ataduras.

A TRADIÇÃO

– Eu preferia haver levantado umaárvore. Aquela cruz nas costas me deu aimpressão de que o objetivo da busca dasabedoria é ser sacrificado peloshomens.

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Olhei ao redor, e minhas própriaspalavras soaram sem sentido. Oepisódio da cruz era algo distante, comose já tivesse acontecido há muito tempo– e não no dia anterior. Não combinavade jeito nenhum com o banheiro demármore negro, a água morna dabanheira de hidromassagem, e o cálicede cristal com um excelente vinho Riojaque eu bebia devagar. Petrus estava forado meu alcance de visão, no quarto doluxuoso hotel onde havíamos noshospedado.

– Por que a cruz? – insisti.

– Foi uma dificuldade convencer naportaria que você não era um mendigo –gritou ele do quarto.

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Ele havia mudado de assunto e eu sabia,por experiência própria, de que nãoadiantava insistir. Levantei-me, coloqueia calça comprida e uma blusa lavada, erefiz as ataduras dos ferimentos. Haviaaberto os curativos com todo o cuidado,esperando encontrar chagas, mas apenasa casca da ferida havia se rompido,deixando sair um pouco de sangue. Umanova cicatriz já se havia formado, e euestava me sentindo recuperado e bemdisposto.

Jantamos no próprio restaurante dohotel. Petrus pediu a especialidade dacasa – uma paella valenciana – quecomemos em silêncio, acompanhados

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apenas do saboroso vinho Rioja. Nofinal do jantar, ele me convidou para daruma volta.

Saímos do hotel e fomos em direção àestação ferroviária. Ele tinha voltado aoseu mutismo habitual, e continuou caladodurante toda a caminhada. Chegamos aum estacionamento de vagões de trem,sujo e cheirando a óleo, e ele sentou-sena borda de uma gigantesca locomotiva.

– Vamos parar por aqui – disse.

Eu não queria sujar minha calça nasmanchas de óleo, e resolvi ficar em pé.Perguntei se não era melhor caminharaté a praça principal de Ponferrada.

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– O Caminho de Santiago está prestes aacabar – disse meu guia. – E como nossarealidade está muito mais perto destesvagões de trem cheirando a óleo, do quedos bucólicos recantos que conhecemosem nossa jornada, é melhor que nossaconversa de hoje seja aqui.

Petrus pediu que eu tirasse os tênis e acamisa. Depois afrouxou as ataduras dobraço, deixando-os mais livres. Masconservou as das mãos.

– Não se aflija – disse ele. – Você nãovai precisar das mãos agora; pelo menospara pegar algo.

Estava mais sério que o habitual, e seutom de voz me deixou preocupado. Algo

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importante estava para acontecer.

Petrus voltou a sentar-se na borda dalocomotiva e ficou me olhando por umlongo tempo.

Depois falou:

– Não vou lhe dizer nada sobre oepisódio de ontem. Você descobrirá porsi mesmo seu significado, e isto sóacontecerá se você decidir algum diafazer o Caminho de Roma, que é oCaminho dos Carismas e dos milagres.Quero apenas dizer-lhe uma única coisa:os homens que se julgam sábios sãoindecisos na hora de mandar e sãorebeldes na hora de servir. Acham umavergonha dar ordens, e uma desonra

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recebê-las. Jamais se comporte assim.

“No quarto, você falou que o caminhoda sabedoria levava ao sacrifício. Isto éum erro. O

seu aprendizado não terminou ontem:falta descobrir sua espada e o segredoque ela contém. As Práticas de RAMlevam o homem a combater o BomCombate e a ter maiores chances devitória na vida. A experiência que vocêpassou ontem era apenas uma prova doCaminho, – uma preparação para oCaminho de Roma. Se você quiser – eme entristece que você tenha pensadoassim”.

Havia realmente um tom de tristeza em

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sua voz. Notei que durante todo o tempoem que estivemos juntos, eu quasesempre havia posto em dúvida aquiloque ele me ensinava. Eu não era umCastañeda humilde e poderoso diantedos ensinamentos de Don Juan, mas umhomem soberbo e rebelde frente a toda asimplicidade das Práticas de RAM.Quis lhe dizer isto, mas sabia que agoraera muito tarde.

– Feche os olhos – disse Petrus. – Façao Sopro de RAM e procure seharmonizar com este ferro, estasmáquinas e este cheiro de óleo. Este é onosso mundo. Você só deve abrir osolhos quando eu tiver acabado minhaparte, e for lhe ensinar um exercício.

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Eu me concentrei no Sopro, fechei osolhos e meu corpo começou a relaxar.Havia o ruído da cidade, alguns cãesladrando ao longe, e um burburinho devozes discutindo, não muito longe dolugar onde estávamos. De repente,comecei a ouvir a voz de Petruscantando uma música italiana que haviasido um grande sucesso na minhaadolescência, na voz de Pepino DiCapri. Eu não entendia a letra, mas acanção me trouxe grandes recordações,e me ajudou a entrar num estado de maistranqüilidade.

– Há algum tempo atrás, – começou ele,depois que parou de cantar – quando eupreparava um projeto para entregar na

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Prefeitura de Milão, recebi um recadodo meu mestre. Alguém tinha seguido atéo final o caminho da Tradição, e nãotinha recebido sua espada. Eu deviaguiá-lo pelo Caminho de Santiago.

“O fato não foi surpresa para mim: eu jáestava esperando uma chamada destes aqualquer momento, porque ainda nãotinha pago minha tarefa: guiar umperegrino pela Via Láctea, da mesmamaneira que eu havia sido guiado umdia. Mas isto me deixou nervoso, porqueera a primeira e única vez que eu tinhaque fazer isto, e eu não sabia como iadesempenhar minha missão”.

As palavras de Petrus foram uma grandesurpresa para mim. Eu achava que ele já

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havia feito aquilo dezenas de vezes.

– Você veio e eu o conduzi – continuou.– Confesso que no começo foi muitodifícil, porque você estava muito maisinteressado no lado intelectual dosensinamentos do que no verdadeirosentido do Caminho, que é o caminhodas pessoas comuns. Depois do encontrocom Alfonso, eu passei a ter umarelação muito mais forte e intensa comvocê, e a acreditar que lhe fariaaprender o segredo da sua espada. Masisto não aconteceu, e você agora teráque aprender por si mesmo, no poucotempo que lhe resta para isto.

A conversa estava me deixando nervoso,

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e fez com que eu me desconcentrasse doSopro de RAM. Petrus deve terpercebido, pois voltou a cantar a velhacanção, e só terminou quando eu estavade novo relaxado.

– Se você descobrir o segredo eencontrar sua espada, descobrirátambém a face de RAM, e será dono doPoder. Mas isto não é tudo: para atingira sabedoria total, ainda terá quepercorrer os outros Três Caminhos,inclusive o caminho secreto, que não lheserá revelado mesmo por quem passoupor ele. Estou lhe dizendo isto porque sóvamos nos encontrar mais uma vez.

Meu coração deu um salto dentro dopeito e eu involuntariamente abri os

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olhos. Petrus estava brilhando, comaquele tipo de luz que eu só tinha vistono Mestre.

– Feche os olhos! – e eu obedeciprontamente. Mas meu coração estavapequeno, e eu não conseguia meconcentrar mais. Meu guia voltou àcanção italiana, e só depois de longotempo eu relaxei um pouco.

– Amanhã você vai receber um bilhete,dizendo onde estou. Será um ritual deiniciação coletivo, um ritual de honra àTradição. Aos homens e mulheres quedurante todos estes séculos têm ajudadoa manter acesa a chama da sabedoria, doBom Combate, e de Ágape. Você poderá

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não falar comigo. O local onde vamosnos encontrar é sagrado, banhado pelosangue de cavaleiros que seguiram ocaminho da Tradição e, mesmo com suasespadas afiadas, foram incapazes dederrotar as trevas. Mas o sacrifíciodeles não foi em vão, e a prova disto éque, século depois, pessoas que seguemcaminhos diferentes estarão ali paraprestar seu tributo. Isto é importante, evocê não deve esquecer jamais: mesmose tornando um Mestre, saiba que seucaminho é apenas um dos muitos quelevam a Deus. Jesus disse certa vez: “Acasa de meu Pai tem muitas Moradas”. Esabia perfeitamente do que estavafalando.

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Petrus tomou a dizer que, depois deamanhã, não tornaria a vê-lo.

– Um dia, no futuro, você receberá umcomunicado meu, pedindo que conduzaalguém pelo Caminho de Santiago, damesma maneira que eu conduzi você.Então você poderá viver o grandesegredo desta jornada, que é um segredoque eu vou lhe revelar agora, masapenas por palavras. É um segredo queprecisa ser vivido para sercompreendido.”

Houve um silêncio prolongado. Chegueia pensar que ele tivesse mudado deidéia, ou que tivesse saído doestacionamento de trem. Senti um desejoenorme de abrir os olhos e ver o que

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estava se passando, e me esforcei parame concentrar no Sopro de RAM.

– O segredo é o seguinte – disse a vozde Petrus depois de longo tempo. – Vocêsó pode aprender quando ensinar. Nósfizemos juntos o Estranho Caminho deSantiago, mas enquanto você aprendia asPráticas, eu passava a conhecer osignificado das Práticas. Ao ensinar-lhe,eu aprendi de verdade. Ao assumir opapel de guia, eu consegui encontrarmeu próprio caminho.

“Se você conseguir encontrar suaespada, terá que ensinar o Caminho aalguém. E só quando isto acontecer,quando você aceitar o papel de Mestre,

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é que vai ver todas as respostas dentrodo seu coração. Todos nós jáconhecemos tudo, antes que alguém nostenha sequer falado a respeito. A vidaensina a cada momento, e o únicosegredo é aceitar que, apenas com onosso cotidiano, podemos ser tão sábioscomo Salomão e tão poderosos comoAlexandre Magno. Mas só tomamosconhecimento disto quando somosforçados a ensinar alguém, e participarde aventuras tão extravagantes comoesta.

Eu estava vivendo uma das despedidasmais inesperadas de minha vida. Alguémcom quem eu tinha tido uma ligação tãointensa, que esperava me conduzisse até

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o meu objetivo, me largava ali no meiodo caminho. Numa estação de trem,cheirando a óleo, e me mantendo deolhos fechados.

– Eu não gosto de dizer adeus –continuou Petrus. – Sou italiano e souemocional. Por força da Lei, você teráque descobrir sua espada sozinho – estaé a única maneira de você acreditar emseu próprio poder. Tudo que eu tinhapara lhe transmitir, já lhe transmiti. Faltaapenas o exercício da dança, que voulhe ensinar agora e que você deverárealizar amanhã, na celebração ritual.

Ficou em silêncio algum tempo, e entãofalou.

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– Aquele que se gloria, que se glorie noSenhor. Pode abrir os olhos.

Petrus estava normalmente sentado numengate da locomotiva. Não senti vontadede falar nada, porque era brasileiro etambém emocional. A lâmpada demercúrio que nos iluminava começou apiscar, e um trem apitou ao longe,anunciando sua próxima chegada.

Petrus então me ensinou o EXERCÍCIODA DANÇA.

O EXERCÍCIO DA DANÇA

Relaxe. Feche os olhos.

Imagine as primeiras músicas que você

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escutou em sua vida. Comece a cantá-lasem pensamento. Aos poucos, vádeixando que determinada parte de seucorpo – pés, barriga, mãos, cabeça etc.–

mas apenas uma parte, comece a dançara melodia que você está cantando.

Cinco minutos depois, pare de cantarmentalmente, e escute os ruídos que tecercam.

Componha com eles uma música e dancecom todo o corpo. Evite pensar emqualquer coisa, mas procure lembrar dasimagens que aparecerãoespontaneamente.

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A dança é uma das mais perfeitas formasde comunicação com a InteligênciaInfinita.

Duração: quinze minutos.

– Mais uma coisa – disse ele olhandofundo nos meus olhos. – Quando euacabei minha peregrinação, pintei umbelo e imenso quadro, revelando tudoque tinha se passado comigo por aqui.Este é o caminho das pessoas comuns, evocê pode fazer o mesmo, se quiser. Sevocê não sabe pintar, escreva algumacoisa, ou invente um ballet. Assim,independente de onde estiverem, aspessoas poderão percorrer a RotaJacobea, a Via Láctea, o EstranhoCaminho de Santiago.

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O trem que havia apitado começou aentrar na estação. Petrus fez um aceno esumiu entre os vagões doestacionamento. E eu fiquei ali no meiodaquele ruído de freios sobre o aço,tentando decifrar a misteriosa ViaLáctea sobre a minha cabeça, com suasestrelas que haviam me conduzido atéaqui e que conduziam, em seu silêncio, asolidão e o destino de todos os homens.

No dia seguinte havia apenas uma notano escaninho do meu quarto: 7:00 PMCASTILLO

DE LOS TEMPLÁRIOS.

Passei o resto da tarde andando de um

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lado para o outro. Cruzei mais de trêsvezes a pequena cidade de Ponferrada,enquanto olhava de longe, numaelevação, o Castelo onde deveria estarao entardecer. Os templários sempreexcitaram muito a minha imaginação, e ocastelo em Ponferrada não era a únicamarca da Ordem do Templo na rotajacobea. Criada pela decisão de novecavaleiros que decidiram não retornardas Cruzadas, eles tinham em poucotempo espalhado seu poder por toda aEuropa e provocado uma verdadeirarevolução de costumes no começo destemilênio. Enquanto a maior parte danobreza da época se preocupava apenasem enriquecer às custas do trabalhoservil no sistema feudal, os Cavaleiros

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do Templo dedicaram suas vidas, suasfortunas e suas espadas a apenas umacausa: proteger os peregrinos a caminhode Jerusalém, encontrando um modelode vida espiritual que os ajudasse nabusca da sabedoria.

Em 1118, quando Hugues de Payns emais oito cavaleiros se reuniram nopátio de um velho castelo abandonado,fizeram um juramento de amor pelahumanidade. Dois séculos depois jáexistiam mais de cinco milcomendadorias espalhadas por todo omundo conhecido, conciliando duasatividades que até então pareciamincompatíveis: a vida militar e a vidareligiosa. As doações de seus membros

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e de milhares de peregrinos agradecidosfez com que a Ordem do Temploacumulasse em pouco tempo umariqueza incalculável, que mais de umavez serviu para resgatar cristãosimportantes seqüestrados pormuçulmanos. A honestidade dosCavaleiros era tão grande que reis enobres confiavam aos Templários osseus valores, viajando apenas com umdocumento para comprovar a existênciadaqueles bens. Este documento podiaser trocado em qualquer Castelo daOrdem do Templo por uma somaequivalente, e deu origem às letras decâmbio, que conhecemos até hoje.

A devoção espiritual, por sua vez, fez

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com que os Cavaleiros Templáriosentendessem a grande verdaderelembrada por Petrus na noite anterior:que a Casa do Pai tinha muitas Moradas.Procuraram então deixar de lado oscombates pela fé, e reunir as principaisreligiões monoteístas da época: cristã,judaica e islâmica. Suas capelaspassaram a ter a cúpula redonda dotemplo judaico de Salomão, as paredesoctogonais das mesquitas árabes, e asnaves típicas das igrejas cristãs.

Porém, como tudo que chega um poucoantes da época, os Templárioscomeçaram a ser olhados comdesconfiança. O grande podereconômico passou a ser cobiçado pelos

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reis, e a abertura religiosa se tornou umaameaça para a Igreja. Na sexta-feira, 13de outubro de 1307, o Vaticano e osprincipais Estados Europeus deflagaramuma das maiores operações policiais daIdade Média: durante a noite, osprincipais chefes templários foramseqüestrados de seus castelos econduzidos à prisão. Eram acusados depraticar cerimônias secretas queincluíam a adoração do Demônio,blasfêmias contra Jesus Cristo, rituaisorgíacos e prática de sodomia com osaspirantes. Depois de uma série violentade torturas, abjurações e traições, aOrdem do Templo foi varrida do mapada história medieval. Tiveram seustesouros confiscados e seus membros

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dispersos pelo mundo. O último mestreda Ordem, Jacques de Molay, foiqueimado vivo no centro de Paris, juntocom outro companheiro. Seu últimopedido foi morrer olhando as torres daCatedral de Notre Dame.1

A Espanha, entretanto, empenhada naReconquista da Península Ibérica, achoupor bem aceitar os Cavaleiros quefugiam de toda a Europa, para ajudarseus reis no combate que travavamcontra os mouros. Estes Cavaleirosforam absorvidos pelas Ordensespanholas, entre as quais a Ordem deSantiago da Espada, responsável pelaguarda do Caminho.

Tudo isto me passou pela cabeça

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quando, exatamente às sete em ponto datarde, eu cruzei a porta principal dovelho Castelo do Templo emPonferrada, onde tinha um encontromarcado com a Tradição.

Não havia ninguém. Esperei durantemeia hora, fumando um cigarro atrás dooutro, até que imaginei o pior: o Ritualdeve ter sido às 7:00 AM, ou seja, demanhã. Mas no momento em que medecidia ir embora, entraram duas jovenscom a bandeira da Holanda e com avieira – símbolo do Caminho deSantiago –

costuradas na roupa. Elas chegaram atémim, trocamos algumas palavras, e

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concluímos que estávamos esperando amesma coisa. O bilhete não estavaerrado, pensei com alívio.

A cada quinze minutos chegava alguém.Apareceram um australiano, cincoespanhóis, e mais um holandês. Aforaalgumas poucas perguntas sobre ohorário – dúvida que era comum a todos– não conversamos quase nada.Sentamos juntos no mesmo local docastelo – um átrio em ruínas que haviaservido de depósito de alimentos nostempos antigos – e decidimos aguardaraté que alguma coisa acontecesse.

Mesmo que fosse necessário esperarmais um dia e mais uma noite.

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A espera se prolongou e resolvemosconversar um pouco sobre os motivosque nos haviam trazido até ali. Foi entãoque vim a saber que o Caminho deSantiago é utilizado por várias ordens, amaioria delas ligada à Tradição. Aspessoas que estavam ali tinham passadopor muitas provas e iniciações, masprovas que eu conheci muito tempoantes, no Brasil. Apenas eu e oaustraliano estávamos em busca do graumáximo do Primeiro Caminho. Mesmosem entrar em detalhes, percebi que oprocesso do australiano eracompletamente distinto das Práticas deRAM.

Aproximadamente às 8:45 da noite,

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quando íamos começar a conversarsobre nossas vidas pessoais, soou umgongo. O barulho vinha da antiga capelado Castelo. E nos dirigimos todos paralá.

Foi uma cena impressionante. A capela– ou o que restava dela, já que a maiorparte eram apenas ruínas – estava todailuminada por archotes. No lugar ondeum dia havia estado o altar, perfilavam-se sete vultos vestidos com os trajesseculares dos Templários: capuz echapéu de aço, uma cota de malhas deferro, a espada e o escudo. Perdi arespiração: parecia que o tempo dera umsalto para trás. A única coisa quemantinha o sentido de realidade eram

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nossos trajes, jeans e camisetas comvieiras costuradas.

Mesmo com a fraca iluminação dosarchotes, eu pude perceber que um dosCavaleiros era Petrus.

– Aproximem-se de seus mestres – disseaquele que parecia ser o mais velho. –Olhem apenas em seus olhos. Tirem aroupa e recebam as vestes.

Eu me encaminhei para Petrus e olheifundo nos seus olhos. Ele estava numaespécie de transe e pareceu não mereconhecer. Mas percebi em seus olhosuma certa tristeza, a mesma tristeza quesua voz denotara na noite anterior. Tireicompletamente a roupa, e Petrus me

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entregou uma espécie de túnica negra,perfumada, que caiu solta por meucorpo. Deduzi que um daqueles mestresdevia ter mais de um discípulo, mas nãopude ver qual era porque tinha quemanter os olhos fixos nos olhos dePetrus.

O Sumo Sacerdote nos encaminhou parao centro da capela, e dois cavaleiroscomeçaram a traçar um círculo ao nossoredor, enquanto o consagravam:

– Trinitas, Sother, Messias, Emmanuel,Sabahot, Adonay, Athanatos, Jesu…2

E o círculo foi sendo traçado, proteçãoindispensável aos que estavam dentrodele. Reparei que quatro destas pessoas

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tinham a túnica branca, o que significavoto total de castidade.

– Amides, Theodonias, Anitor! – disse oSumo Sacerdote. – Pelos méritos dosAnjos, Senhor, eu coloco a vestimentada salvação, e que tudo aquilo que eudesejar possa se transformar emrealidade, através de Ti, oh MuiSagrado Adonai, cujo Reino dura parasempre. Amém!

O Sumo Sacerdote colocou sobre a cotade malhas o manto branco, com a CruzTemplária bordada em vermelho nocentro. Os outros Cavaleiros fizeram omesmo.

Eram exatamente nove horas da noite,

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hora de Mercúrio, o Mensageiro. E aliestava eu, de novo no centro de umcírculo da Tradição. Um incenso dehortelã, manjericão e benjoim foiaspergido na capela. E começou agrande invocação, feita por todos osCavaleiros:

– Oh Grande e Poderoso Rei N., quereina pelo poder do Supremo Deus, EL,sobre todos os espíritos superiores einferiores, mas especialmente sobre aOrdem Infernal do Domínio do Este euvos invoco… (suprimido)… de maneiraque eu possa conseguir meu desejo, sejaele qual for, desde que ele seja próprioao teu trabalho, pelo poder de Deus, EL,que criou e dispõe de todas as coisas,

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celestes, aéreas, terrestres e infernais.

Um profundo silêncio abateu-se sobretodos nós e, mesmo sem ver, pudemossentir a presença do nome invocado. Istoera a consagração do Ritual, um sinalpropício para prosseguir nas operaçõesmágicas. Eu já participara de centenasde cerimônias assim, com resultadosmuito mais surpreendentes quando chegaesta hora. Mas o Castelo Templáriodeve ter estimulado um pouco a minhaimaginação, pois julguei ver, pairandono canto esquerdo da capela, umaespécie de ave brilhante que nunca haviavisto antes.

O Sumo Sacerdote nos aspergiu comágua, sem pisar dentro do círculo.

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Depois, com a Tinta Sagrada, escreveuna terra os 72 nomes pelos quais Deus échamado na Tradição.

Todos nós – peregrinos e Cavaleiros –começamos a recitar os nomes sagrados.O fogo dos archotes crepitou, sinal deque o espírito invocado havia sesubmetido.

Havia chegado o momento da Dança. Euentendi porque Petrus me havia ensinadoa dançar no dia anterior, uma dançadiferente daquela que eu costumavafazer nesta etapa do ritual.

Uma regra não nos foi dita, mas todosnós já a conhecíamos: ninguém podiapisar fora daquele círculo de proteção,

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já que não carregávamos as proteçõesque aqueles Cavaleiros tinham debaixode suas cotas de malhas. Eu mentalizei otamanho do círculo, e fiz exatamente oque Petrus me havia ensinado.

Comecei a pensar na infância. Uma voz,uma longínqua voz de mulher dentro demim começou a cantar cantigas de roda.Eu me ajoelhei, me encolhi todo naposição de semente, e senti que meupeito – apenas meu peito – começava adançar. Sentia-me bem, e já estava porcompleto no Ritual da Tradição. Aospoucos a música dentro de mim foi setransformando, os movimentos ficarammais bruscos, e eu entrei num poderosoêxtase. Via tudo escuro, e meu corpo não

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tinha mais gravidade naquela escuridão.

Comecei a passear pelos camposfloridos de Aghata, e neles me encontreicom meu avô e com um tio que haviamarcado muito a minha infância. Senti avibração do Tempo em sua teia dequadrados, onde todas as estradas seconfundem e se misturam, e se igualam,apesar de serem tão diferentes. Adeterminada altura vi passar, com muitavelocidade, o australiano: ele tinha umbrilho vermelho no seu corpo.

A próxima imagem completa foi de umcálice e uma patena,3 e esta imagemficou fixa durante muito tempo, como sequisesse me dizer alguma coisa. Eutentava decifrá-la, mas não conseguia

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compreender nada, apesar de ter certezade que se relacionava com minhaespada. Depois julguei ver a faca deRAM, surgindo no meio da escuridãoque se formou quando o cálice e apatena desapareceram. Mas quando aface se aproximou era apenas a face deN., o espírito invocado, e meu velhoconhecido. Não estabelecemos qualquertipo de comunicação especial, e sua facese dispersou na escuridão que ia evoltava.

Não sei por quanto tempo ficamosdançando. Mas de repente eu ouvi umavoz:

– IAHWEH, TETRAGRAMMATON…

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– e eu não queria sair do transe, mas avoz insistia:

– IAHWEH, TETRAGRAMMATON…– e reconheci a voz do Sumo Sacerdote,fazendo com que todo mundo voltassedo transe. Aquilo me irritou. A Tradiçãoainda era a minha raiz, e eu não queriavoltar. Mas o Mestre insistia:

– IAHWEH, TETRAGRAMMATON…

Não houve jeito de manter o transe.Contrariado, voltei para a Terra. Estavade novo no círculo mágico, no ambienteancestral do Castelo Templário.

Nós – os peregrinos – nos entreolhamos.O súbito corte parecia haver desgostado

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a todos.

Senti uma imensa vontade de comentarcom o australiano que o havia visto.Quando o olhei, percebi que as palavraseram desnecessárias: ele me havia vistotambém.

Os cavaleiros se colocaram a nossavolta. As mãos começaram a bater comas espadas nos escudos, criando umbarulho ensurdecedor. Até que o SumoSacerdote disse:

– O Espírito N., porque tudiligentemente atendeste às minhasdemandas, com solenidade permito quepartas, sem injúria a homem ou besta.Vai, eu te digo, e esteja pronto e ansioso

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por voltar, sempre quando devidamenteexorcisado e conjurado pelos SagradosRitos da Tradição. Eu te conjuro aretirar-se pacífica e quietamente, epossa a Paz de Deus continuar parasempre entre tu e eu. Amém.

O círculo foi desfeito e nós nosajoelhamos de cabeça baixa. Umcavaleiro rezou conosco sete pai-nossose sete ave-marias. O Sumo Sacerdoteacrescentou sete Creio-Em-Deus-Padre,afirmando que Nossa Senhora deMedjugorje – cujas aparições estavamse dando na Yuguslávia desde 1982 –assim havia determinado. Iniciávamosagora um Ritual Cristão.

– Andrew, levante-se e venha até aqui –

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disse o Sumo Sacerdote. O australianocaminhou até a frente do altar, ondeestavam reunidos os sete Cavaleiros.

Um outro cavaleiro – que devia ser seuguia – falou:

– Irmão, demandais a companhia daCasa?

– Sim – respondeu o australiano. E euentendi qual ritual cristão estávamospresenciando: a Iniciação de umTemplário.

– Sabeis as grandes severidades daCasa, e as ordens caridosas que nelaestão?

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– Estou disposto a suportar tudo, porDeus, e desejo ser servo e escravo daCasa, sempre, todos os dias da minhavida – respondeu o australiano.

Veio uma série de perguntas rituais,algumas das quais já não faziamqualquer sentido no mundo de hoje, eoutras de profundo devotamento e amor.Andrew, de cabeça baixa, a tudorespondia.

– Distinto irmão, pedis-me grande coisa,pois de nossa religião não vedes senão acasca exterior, os belos cavalos, asbelas roupas – disse seu guia. – Mas nãosabeis os duros mandamentos que estãopor dentro: pois é dura coisa que vós,que sois senhor de vós mesmo, vos

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façais servo de outrem, pois raramentefareis vós alguma coisa que queirais. Sequiserdes estar aqui, vos mandarão parao outro lado do mar, e se quiserdes estarem Acre vos mandarão para a terra deTripolis, ou de Antióquia, ou deArmênia. E

quando quiserdes dormir, sereisobrigado a velar, e se quiserdes ficar devela, sereis mandado descansar sobrevosso leito.

– Quero entrar na Casa – respondeu oaustraliano. Parecia que os ancestraistemplários, que um dia habitaram aquelecastelo, assistiam satisfeitos a cerimôniade iniciação. Os archotes crepitavam

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intensamente.

Seguiram várias admoestações, e atodos o australiano contestou queaceitava, que queria entrar na Casa.Finalmente o seu guia virou-se para oSumo Sacerdote, e repetiu todas asrespostas que o australiano dera. OSumo Sacerdote, com solenidade,perguntou mais uma vez se ele estavadisposto a aceitar todas as normas que aCasa exigisse.

– Sim, Mestre, se Deus quiser. Venhodiante de Deus, e diante de vós, e diantedos freires, e vos imploro e solicito, porDeus e por Nossa Senhora, que meacolhais na vossa companhia e nosfavores da Casa, espiritual e

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temporalmente, como aquele que querser servo e escravo da Casa, todos osdias de sua vida, daqui por diante.

– Fazei-o vir, por amor de Deus – disseo Sumo Sacerdote.

E neste momento todos os Cavaleirosdesembainharam suas espadas e aapontaram para o céu. Depois abaixaramas lâminas e fizeram uma coroa de açoem torno da cabeça de Andrew. O fogofazia com que as lâminas refletissemuma luz dourada, dando ao momentocaráter sagrado.

Solenemente seu mestre se aproximou. Elhe entregou sua espada.

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Alguém começou a tocar um sino, e osino ecoava pelas paredes do antigocastelo, repetindo a si próprio até oinfinito. Todos nós abaixamos ascabeças e os Cavaleiros sumiram devista. Quando tornamos a levantar orosto, éramos apenas dez, pois oaustraliano tinha saído com eles para obanquete ritual.

Trocamos nossas roupas e nosdespedimos sem maiores formalidades.A dança deve ter durado muito tempo,pois começava a clarear. Uma imensasolidão invadiu minha alma.

Senti inveja do australiano, que haviarecuperado sua espada e chegado aofinal de sua busca. Eu estava sozinho,

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sem ninguém para me guiar daqui pordiante, porque a Tradição – num distantepaís da América do Sul – havia meexpulsado dela sem ensinar-me ocaminho da volta. E eu tive quepercorrer o Estranho Caminho deSantiago, que agora estava chegando aofinal, sem que soubesse o segredo deminha espada, ou a maneira de encontrá-la.

O sino continuava a tocar. Ao sair doCastelo, com o dia quase amanhecendo,reparei que era o sino de uma igrejapróxima, chamando os fiéis para aprimeira missa do dia. A cidadedespertava para suas horas de trabalho,de amores sofridos, de sonhos distantes

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e de contas a pagar. Sem que nem o sino,nem a cidade soubessem que, naquelanoite, um rito ancestral havia mais umavez sido consumado, e aquilo quejulgavam morto há séculos continuava serenovando e mostrando o seu imensoPoder.

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O CEBREIRO

– O senhor é um peregrino? – perguntoua menina, única presença viva naquelatarde tórrida de Villafranca del Bierzo.

Eu olhei e não disse nada. Ela devia teruns oito anos de idade, estava malvestida, e tinha corrido até a fonte ondeeu havia me sentado para descansar umpouco.

Minha única preocupação agora erachegar rápido a Santiago de Compostelae acabar de vez com aquela aventuralouca. Não conseguia esquecer a voztriste de Petrus no estacionamento devagões de trem, nem seu olhar distante

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quando havia fixado meus olhos no dele,durante o Ritual da Tradição. Era comose todo o esforço que ele tivesse feitopara me ajudar houvesse resultado emnada. Quando o australiano foi chamadopara o altar, tenho certeza de que elegostaria que eu tivesse sido chamadotambém. Minha espada poderia muitobem estar escondida naquele castelo,cheio de lendas e de sabedoriaancestral. Era um local que se encaixavaperfeitamente a todas as conclusões aque eu havia chegado: deserto, visitadoapenas por alguns peregrinos querespeitavam as relíquias da Ordem doTemplo, e em um terreno sagrado.

Mas apenas o australiano fôra chamado

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ao altar. E Petrus devia estar humilhadodiante dos outros, porque não tinha sidoum guia capaz de me conduzir até aespada.

Além disso, o Ritual da Tradição havianovamente despertado em mim umpouco o fascínio pela sabedoria doOculto, que eu já aprendera a esquecerenquanto fazia o Estranho Caminho deSantiago, o

“caminho das pessoas comuns”. Asinvocações, o controle quase absolutoda matéria, a comunicação com osoutros mundos, tudo aquilo era muitomais interessante que as Práticas deRAM. Era possível que as Práticastivessem uma aplicação mais objetiva na

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minha vida; sem dúvida eu haviamudado muito desde que começara apercorrer o Estranho Caminho deSantiago. Tinha descoberto, graças àajuda de Petrus, que o conhecimentoadquirido podia me fazer transporcachoeiras, vencer Inimigos, e conversarcom o Mensageiro sobre coisas práticase objetivas. Havia conhecido o rosto daminha Morte, e o Globo Azul do Amorque Devora, inundando o mundo inteiro.Estava pronto para combater o BomCombate e fazer da vida uma teia devitórias.

Mesmo assim, uma parte escondida demim ainda sentia saudades dos círculosmágicos, das fórmulas transcendentais,

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do incenso e da Tinta Sagrada. O quePetrus havia chamado de “umahomenagem aos Antigos”, tinha sidopara mim contato intenso e saudoso comvelhas lições esquecidas. E a simplespossibilidade de que talvez nunca maispudesse ter acesso a este mundo medeixava sem estímulo para prosseguir.

Quando retornei ao hotel, depois doRitual da Tradição, havia junto comminha chave “El Guia Del Peregrino”,um livro que Petrus utilizava para ospontos onde as marcas amarelas erammenos visíveis, e para que pudéssemoscalcular a distância entre uma cidade eoutra. Deixei Ponferrada naquela mesmamanhã – sem dormir – e segui o

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Caminho. Na primeira tarde descobrique o mapa não estava em escala – oque me obrigou a passar uma noite aorelento, num abrigo natural de rocha.

Ali, meditando sobre tudo que me haviaacontecido desde o encontro com Mme.Lourdes, não saía de minha cabeça oesforço insistente de Petrus para fazercom que eu entendesse que, ao contráriodo que sempre haviam nos ensinado, oimportante eram os resultados. Oesforço era saudável e indispensável,mas sem os resultados eles nãosignificavam nada. E o único resultadoque eu podia esperar de mim mesmo ede tudo aquilo que havia passado, eraencontrar a minha espada. O que não

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havia acontecido até agora. E

faltavam apenas poucos dias decaminhada para chegar até Santiago.

– Se o senhor for peregrino, eu possolevá-lo até a Porta do Perdão – insistiu amenina junto à fonte de Villafranca DelBierzo. – Quem cruza esta Porta, nãoprecisa ir até Santiago.

Eu lhe estendi algumas pesetas, para quefosse logo embora e me deixasse empaz. Mas ao invés disto, a meninacomeçou a brincar com a água da fonte,molhando a mochila e a minha bermuda.

– Vamos, vamos moço – disse ela maisuma vez. Naquele exato momento, eu

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estava pensando numa das constantescitações de Petrus: “aquele que lavra,cumpre fazê-lo com esperança. O quedebulha, faça na esperança de receber aparte que lhe é devida”. Era uma dascartas do Apóstolo Paulo.

Eu precisava resistir mais um pouco.Continuar buscando até o final sem termedo de ser derrotado. Ter ainda aesperança de encontrar a minha espada edecifrar seu segredo.

E – quem sabe? – aquela meninaestivesse tentando me dizer algo que eunão estava querendo entender. Se oPortal do Perdão, que ficava numaigreja, tinha o mesmo efeito espiritualque a chegada a Santiago, porque ali não

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podia estar a minha espada?

– Vamos logo – disse eu à menina. Olheipara o monte que eu tinha acabado dedescer; era preciso voltar atrás e subirparte dele novamente. Eu havia passadopelo Portal do Perdão sem qualquerdesejo de conhecê-lo, pois meu únicoobjetivo fixo era chegar a Santiago.Entretanto, ali estava uma menina, únicapresença viva naquela tarde tórrida deverão, insistindo para eu voltar atrás econhecer algo que havia passado aolargo. Talvez a minha pressa e o meudesânimo me tivessem feito passar pelomeu objetivo sem reconhecê-

lo. Afinal de contas, porque aquela

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garota não havia ido embora depois quelhe dei o dinheiro?

Petrus sempre dissera que eu gostavamuito de fantasiar as coisas. Mas elepodia estar enganado.

Enquanto acompanhava a garota, ia melembrando da história do Portal doPerdão. Era uma espécie de “arranjo”que a Igreja tinha feito com osperegrinos doentes, já que dali parafrente o Caminho voltava a seracidentado e cheio de montanhas atéCompostela. Então, no século XII, algumPapa dissera que quem não tivesseforças para ir adiante, bastavaatravessar o Portal do Perdão ereceberia as mesmas indulgências dos

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peregrinos que chegavam ao fim doCaminho. Num passe de mágica, o talPapa havia resolvido o problema dasmontanhas e estimulado asperegrinações.

Subimos pelo mesmo lugar em que seutinha passado antes: caminhos sinuosos,escorregadios e íngremes, A menina iana frente, disparada como um raio, emuitas vezes eu tive que pedir para queandasse: mais devagar. Ela obedeciapor um certo tempo, e logo perdia osentido de velocidade e começava acorrer de novo. Meia hora depois demuitas reclamações, chegamosfinalmente ao Portal do Perdão.

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– Eu tenho a chave da Igreja – disse ela.– Vou entrar e abrir o Portal, para que osenhor o atravesse.

A menina entrou pela porta principal eeu fiquei esperando do lado de fora. Erauma capela pequena, e o Portal era umaabertura voltada para o norte. Tinha oumbral todo decorado com vieiras ecenas da vida de São Tiago. Quandocomecei a ouvir o barulho da chave nafechadura, um imenso pastor alemão –

surgido de não sei onde – aproximou-see se interpôs entre eu e o Portal.

Meu corpo preparou-se imediatamentepara a luta. “Mais uma vez” – penseicomigo mesmo.

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“Essa história parece que não vai acabarnunca. Sempre provas, lutas ehumilhações. E nenhuma pista daespada”.

Neste momento, porém, a Porta doPerdão se abriu e a menina apareceu. Aover o cachorro olhando para mim – e eujá de olhos fixos nos olhos dele – eladisse algumas palavras carinhosas, e oanimal logo amansou. Abanando o rabo,ele seguiu em direção aos fundos daIgreja.

Era possível que Petrus tivesse razão.Eu adorava fantasiar as coisas. Umsimples pastor alemão tinha setransformado em algo ameaçador esobrenatural. Aquilo era um mau sinal –

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sinal de cansaço que leva à derrota.

Mas ainda restava uma esperança. Amenina fez um sinal para que euentrasse. Com o coração cheio deexpectativa, eu cruzei o Portal dePerdão e recebi as mesmas indulgênciasque os peregrinos de Santiago.

Meus olhos percorreram o templo vazio,quase sem imagens, em busca da únicacoisa que me interessava.

– Ali estão os capitéis em concha,símbolo do Caminho – começou amenina, cumprindo seu papel de guiaturístico. – Esta é Santa Águeda doséculo…

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Em pouco tempo percebi que havia sidoinútil voltar todo aquele trecho.

– E este é Santiago Matamouros,brandindo sua espada e com os mourossob seu cavalo, estátua do século…

Ali estava a espada de Santiago. Masnão estava a minha. Estendi maisalgumas pesetas para a menina e ela nãoaceitou. Meio ofendida, pediu que eusaísse logo e deu por encerrada asexplicações sobre a Igreja.

Desci novamente a montanha e voltei acaminhar em direção à Compostela.Enquanto cruzava pela segunda vezVillafranca del Bierzo, apareceu outrohomem, que disse chamar-se Angel e me

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perguntou se eu queria conhecer a Igrejade São José Operário. Apesar da magiade seu nome,1 eu tinha acabado de teruma decepção, e já estava certo de quePetrus era um verdadeiro conhecedor doespírito humano. Nós sempre temos atendência de fantasiar as coisas que nãoexistem, e de não ver as grandes liçõesque estão diante de nossos olhos.

Mas apenas para confirmar mais umavez isto, deixei-me conduzir por Angelaté chegarmos à outra igreja. Estavafechada e ele não tinha a chave.Mostrou-me, sobre a porta, a estátua deSão José com as ferramentas decarpinteiro na mão. Eu olhei, agradeci, elhe ofereci algumas pesetas. Ele não

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quis aceitar, e me largou no meio da rua.

– Temos orgulho de nossa cidade –disse. – Não é por dinheiro que fazemosisto.

Voltando mais uma vez pelo mesmocaminho, em quinze minutos eu haviadeixado para trás Villafranca DelBierzo, com suas portas, suas ruas, eseus guias misteriosos que nada pediamem troca.

Segui durante algum tempo pelo terrenomontanhoso à minha frente, onde oesforço era muito e o progresso muitopequeno. No começo pensava apenasnas minhas preocupações anteriores – asolidão, a vergonha de haver

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decepcionado a Petrus, a minha espada eseu segredo. Mas aos poucos, a imagemda menina e de Angel começaram avoltar a cada instante ao meupensamento. Enquanto eu estava deolhos fixos em minha recompensa, elestinham me dado o melhor de si. Seuamor por aquela cidade. Sem pediremnada em troca. Uma idéia ainda meioconfusa começou a se formar nasprofundezas de mim mesmo.

Era uma espécie de elemento de ligaçãoentre tudo aquilo. Petrus sempre haviainsistido que a busca da recompensa eraabsolutamente necessária para que sechegasse à Vitória. Entretanto, sempreque eu esquecia o resto do mundo e

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passava a me preocupar apenas com aminha espada, ele me fazia voltar àrealidade através de processosdolorosos. Este procedimento havia serepetido várias vezes durante oCaminho.

Era algo proposital. E ali devia estar osegredo da minha espada. O que estavamergulhado no fundo da minha almacomeçou a sacudir-se e a mostrar umpouco de luz. Eu ainda não sabia o queestava pensando, mas algo me dizia queeu estava na pista certa.

Agradeci por haver cruzado com Angele com a menina; havia o Amor queDevora na maneira como falavam dasigrejas. Fizeram-me percorrer duas

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vezes o caminho que eu haviadeterminado fazer àquela tarde. E porcausa disto, eu havia tornado a esquecero fascínio do Ritual da Tradição, evoltado às terras de Espanha.

Lembrei um dia já muito distante,quando Petrus me contou que havíamoscaminhado várias vezes a mesma rotanos Pirineus. Senti saudades daqueledia. Tinha sido um bom começo – quemsabe se a repetição do mesmo fato,agora, era presságio de um bom final.

Naquela noite cheguei a um povoado epedi pousada na casa de uma velhasenhora, que me cobrou uma quantiamínima pela cama e pela alimentação.

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Conversamos um pouco, ela me falou desua fé em Jesus do Sagrado Coração, ede suas preocupações com a safra deolivas naquele ano de seca. Eu tomei ovinho, a sopa, e fui dormir cedo.

Estava me sentindo mais tranqüilo, porcausa daquele pensamento que seformava em mim e que devia explodirlogo. Rezei, fiz alguns exercícios quePetrus havia me ensinado, e resolviinvocar Astrain.

Precisava conversar com ele sobre oque tinha acontecido durante a luta como cão. Naquele dia ele tinha feito opossível para me prejudicar, e, depoisde sua recusa no episódio da cruz, euestava decidido a afastá-lo para sempre

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de minha vida. Mas se eu não tivesseidentificado sua voz, teria cedido àstentações que apareceram durante todo ocombate.

“Você fez o possível para ajudar Legiãoa vencer”, disse eu.

“Eu não luto contra meus irmãos”,respondeu Astrain . Era a resposta queeu estava esperando. Eu já fôraprevenido a este respeito, e era toliceficar aborrecido pelo Mensageiro seguirsua própria natureza. Tinha que buscarnele o companheiro que me ajudasse emmomentos como o que eu estavapassando agora – esta era a sua únicafunção. Deixei de lado o rancor e

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começamos a conversar animadamentesobre o Caminho, sobre Petrus, e sobreo segredo da espada, que eu pressentiajá estar dentro de mim. Ele não me dissenada de importante, apenas que estessegredos lhe eram vedados. Mas pelomenos eu tive alguém para desabafar umpouco, depois de uma tarde inteira emsilêncio. Conversamos até tarde, quandoa velha bateu na minha porta dizendoque eu estava falando enquanto dormia.

Acordei mais animado e comecei acaminhada de manhã bem cedo. Pelosmeus cálculos, eu chegaria naquelamesma tarde às terras da Galícia, ondeestava Santiago de Compostela. Ocaminho era todo em subida, e eu tive

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que fazer um esforço dobrado durantequase quatro horas, para manter o ritmode caminhada a que havia me imposto. Atodo momento esperava que, na próximalombada, começássemos a descer. Masisto não acontecia nunca e eu acabeiperdendo as esperanças de andar maisrápido naquela manhã. Ao longe, viaalgumas montanhas mais altas, elembrava a todo instante que mais cedoou mais tarde teria que passar por elas.O esforço físico, entretanto, haviaparado quase por completo o meupensamento, e comecei a me sentir maisamigo de mim mesmo.

Ora bolas, pensei eu, afinal de contasquantos homens neste mundo podiam

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levar a sério alguém que larga tudo paraprocurar uma espada? E o que poderiasignificar, verdadeiramente na minhavida, o fato de não conseguir encontrá-la? Eu havia aprendido as Práticas deRAM, tinha conhecido meu Mensageiro,lutado com o cão e olhado para a minhaMorte – repetia eu, mais uma vez,tentando me convencer de como eraimportante para mim o Caminho deSantiago. A espada era apenas umaconseqüência.

Gostaria de encontrá-la, mas gostariamais ainda de saber o que fazer com ela.Porque precisava utilizá-la de algummodo prático, como havia utilizado osexercícios que Petrus me ensinara.

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Eu parei de repente. O pensamento queaté então estava submerso, explodiu.Tudo a minha volta ficou claro e umaonda incontrolável de Ágape jorrou dedentro de mim. Desejei com toda aintensidade que Petrus estivesse ali,para que pudesse contar-lhe aquilo quequeria saber de mim, a única coisa quena verdade esperava que eu descobrisse,e que coroava todo aquele tempoenorme de ensinamentos pelo EstranhoCaminho de Santiago: qual era osegredo da minha espada.

E o segredo da minha espada, como osegredo de qualquer conquista que ohomem busca nesta vida, era a coisamais simples do mundo: o que fazer com

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ela.

Eu jamais havia pensado nestes termos.Durante o Estranho Caminho deSantiago, tudo que eu queria saber eraonde ela estava escondida. Não meperguntei porque desejava encontrá-la, epara que precisava dela. Estava comtoda a minha energia voltada para arecompensa, sem entender que quandoalguém deseja algo, tem que ter umafinalidade muito clara para aquilo quequer. Este é o único motivo de se buscaruma recompensa, e este era o segredo daminha espada.

Petrus precisava saber que eu haviadescoberto isto, mas eu tinha certeza quenão tornaria a vê-lo mais. Ele esperara

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tanto por este dia e não o havia visto.

Então, em silêncio, eu me ajoelhei, tireium papel do meu caderno de anotações,e escrevi o que pretendia fazer com aminha espada. Depois dobrei a folhacuidadosamente, e a coloquei debaixode uma pedra – que me lembrava seunome e sua amizade. O tempo em brevehaveria de destruir este papel, massimbolicamente eu o estava entregando aPetrus.

Ele já sabia o que eu ia conseguir comminha espada. Minha missão com Petrustambém estava cumprida.

Segui montanha acima, com Ágapefluindo de dentro de mim e colorindo

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toda a paisagem ao meu redor. Agoraque havia descoberto o segredo, haveriade descobrir o que procurava. Uma fé,uma certeza inabalável tomou conta detodo o meu ser. Comecei a cantar amúsica italiana que Petrus haviarelembrado no estacionamento devagões, Como eu não sabia a letra damúsica, passei a inventar as palavras.

Não havia ninguém por perto, eu cruzavauma mata espessa, e o isolamento me fezcantar mais alto. Aos poucos, percebique as palavras que eu inventava faziamum sentido absurdo na minha cabeça, eraum meio de comunicação com o mundoque só eu conhecia, pois o mundo estavame ensinando agora.

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Eu experimentara isto de uma maneiradiversa, quando tive meu primeiroencontro com Legião. Naquele dia,havia se manifestado em mim o Dom dasLínguas. Eu tinha sido servo do Espírito,que me utilizou para salvar uma mulher,criar um Inimigo, e me ensinar a formacruel do Bom Combate. Agora eradiferente: eu era o Mestre de mimmesmo, e me ensinava a conversar como Universo.

Comecei a conversar com todas ascoisas que apareciam no caminho:troncos de árvores, poças de água,folhas caídas e trepadeiras vistosas. Eraum exercício de pessoas comuns que ascrianças ensinavam e os adultos

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esqueciam. Mas havia uma misteriosaresposta das coisas, como seentendessem o que eu estava dizendo, eem troca me inundassem com o Amorque Devora. Entrei numa espécie detranse e fiquei assustado, mas estavadisposto a seguir até cansar com aquelejogo.

Petrus mais uma vez tinha razão:ensinando a mim mesmo, eu metransformava num Mestre.

Chegou a hora do almoço e eu não pareipara comer. Quando atravessava aspequenas povoações no caminho eufalava mais baixo, ria sozinho, e sealguém porventura prestou atenção emmim, deve ter concluído que os

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peregrinos hoje em dia chegavam loucosà Catedral de Santiago. Mas isto nãotinha importância, porque eu celebrava avida ao meu redor e já sabia o que tinhaque fazer com a minha espada quando aencontrasse.

Durante o resto da tarde eu caminhei emtranse, consciente de onde queriachegar, mas muito mais consciente davida que me cercava e que me devolviaÁgape. No céu começaram a se formar,pela primeira vez, nuvens carregadas; eeu torci para que chovesse – porquedepois de tanto tempo de caminhada ede seca, a chuva era novamente umaexperiência nova, excitante. Quando deutrês horas da tarde eu pisei em terras da

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Galícia, e vi no meu mapa que sobravaapenas uma montanha para completar atravessia daquela etapa. Decidi comigomesmo que haveria de cruzá-la e dormirno primeiro lugar habitado da descida:Tricastela, onde um grande rei –Alfonso IX – havia sonhado criar umaimensa cidade, que muitos séculosdepois ainda não passava de umpovoado rural.

Ainda cantando e falando a língua queeu havia inventado para conversar comas coisas, comecei a subir a montanhaque faltava: O Cebreiro. O nome vinhade remotos povoados romanos no local,e parecia indicar o mês “fevereiro”,onde algo importante devia ter

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acontecido. Antigamente eraconsiderado o passo mais difícil da rotajacobea, mas hoje as coisas haviammudado. Exceto pela subida, maisíngreme que as outras, uma imensaantena de televisão num monte vizinhoservia sempre de referência aosperegrinos e evitava os constantesdesvios de rota – comuns e fatais nopassado.

As nuvens começaram a baixar muito, eem pouco tempo eu estaria entrando naneblina.

Para chegar a Tricastela, eu tinha queseguir com todo cuidado as marcasamarelas, já que a antena de televisãoestava oculta pelo nevoeiro. Se eu me

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perdesse, terminaria dormindo mais umanoite ao relento – e naquele dia, comameaça de chuva, a experiência seantecipava bastante desagradável. Umacoisa é deixar que os pingos caiam emseu rosto, gozar a plenitude da liberdadee da vida, mas terminar a noite numlugar acolhedor – com um copo de vinhoe uma cama onde descansar o suficientepara a caminhada do dia seguinte.

Outra é deixar que os pingos d’água setransformem numa noite insone, tentandodormir na lama, com as atadurasmolhadas servindo de um solo fértilpara a infecção no joelho.

Tinha que decidir rápido. Era seguir em

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frente e atravessar o nevoeiro – já queainda havia bastante luz para isto – ouvoltar e dormir no pequeno povoadopelo qual eu havia passado há algumashoras, deixando a travessia do Cebreiropara o dia seguinte.

No momento em que notei a necessidadede uma decisão imediata, notei tambémque alguma coisa estranha estavaacontecendo comigo. A certeza de quehavia descoberto o segredo da minhaespada me empurrava para a frente, emdireção ao nevoeiro que em brevehaveria de me cercar. Era um sentimentobem diverso daquele que me havia feitoseguir a menina até a Porta do Perdão,ou o homem que me levou à Igreja de

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São José Operário.

Lembrei-me que, das poucas vezes queaceitei dar um Curso de Magia noBrasil, costumava comparar aexperiência mística a uma outraexperiência que nós todos já tivemos:andar de bicicleta. Você começasubindo na bicicleta, impulsionando opedal e caindo. Você anda e cai, anda ecai, e não vai aprendendo a se equilibraraos poucos. De repente, entretanto,acontece o equilíbrio perfeito e vocêconsegue dominar inteiramente oveículo. Não existe uma experiênciaacumulativa, mas uma espécie de“milagre”, que só se manifesta nomomento em que a bicicleta passa a

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“andar você”; ou seja, quando vocêaceita seguir o desequilíbrio das duasrodas e, a medida que o segue, passa autilizar o impulso inicial de queda paratransformá-lo numa curva ou em maisimpulso para o pedal.

Naquele momento da subida doCebreiro, às quatro horas da tarde, eunotei que o mesmo milagre haviaacontecido. Depois de tanto tempoandando pelo Caminho de Santiago, oCaminho de Santiago passava a “meandar”. Eu seguia aquilo que todoschamam de Intuição. E por causa doAmor que Devora que eu haviaexperimentado durante todo o dia, porcausa do segredo da minha espada que

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tinha sido descoberto, e porque ohomem sempre nos momentos de crisetoma a decisão correta, caminhava semmedo em direção ao nevoeiro.

“Esta nuvem tem que acabar”, pensavaeu enquanto lutava para descobrir asmarcas amarelas nas pedras e nasárvores do Caminho. Fazia quase umahora que a visibilidade era muitopequena, e eu continuava cantando, paraafastar o medo, enquanto esperava quealgo de extraordinário acontecesse.

Cercado pela neblina, sozinho naqueleambiente irreal, comecei mais uma vez aver o Caminho de Santiago como sefosse um filme, no momento onde a gentevê o herói fazer o que ninguém faria,

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enquanto na platéia, a gente pensa queestas coisas só acontecem no cinema.Mas ali estava eu, vivendo esta situaçãona vida real.

A floresta ia ficando cada vez maissilenciosa, e o nevoeiro começou aclarear muito. Podia ser que estivessechegando ao final, mas aquela luzconfundia meus olhos e pintava tudo aminha volta com cores misteriosas eaterradoras.

O silêncio era agora quase total, e euestava prestando atenção nisto quandojulguei ouvir, vinda da minha esquerda,uma voz de mulher. Pareiimediatamente. Esperava que o som se

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repetisse, mas não escutei nenhum ruído– nem mesmo o barulho normal dasflorestas, com seus grilos, insetos eanimais pisando em folhas secas. Olheipara o relógio: eram exatamente 5:15 datarde. Calculei que ainda faltavam unsquatro quilômetros para chegar atéTorrestrela, e o tempo de caminhada eramais que o suficiente para que eupudesse fazer isto ainda com a luz dodia.

Quando eu tirei os olhos do relógio,escutei novamente a voz feminina. Apartir daquele momento, eu iria viveruma das experiências mais importantesde toda a minha vida.

A voz não vinha de nenhum lugar da

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floresta, mas de dentro de mim mesmo.Eu conseguia escutá-la de uma maneiraclara e nítida e ela fazia com que meusentido de Intuição a tornasse mais forte.Não era eu – nem Astrain – o donodaquela voz. Ela me disse apenas que eudevia continuar caminhando, o queobedeci sem pestanejar. Era como sePetrus tivesse voltado, me falando domandar e do servir, e naquele instante eufosse apenas um instrumento doCaminho que “me caminhava”. Onevoeiro foi ficando cada vez maisclaro, mais claro, como se eu estivessechegando perto do seu final. Ao meulado, árvores esparsas, um terrenoúmido e escorregadio, e a mesma subidaíngreme que eu já estava trilhando há

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bastante tempo.

De repente, como num passe de mágica,o nevoeiro se desfez por completo. Ediante de mim, cravada no alto damontanha, estava a Cruz.

Olhei em volta, vi o mar de nuvens deonde saí, e outro mar de nuvens bemacima da minha cabeça. Entre estes doisoceanos, os picos das montanhas maisaltas e o pico do Cebreiro, com a Cruz.Fui tomado de uma grande vontade derezar. Mesmo sabendo que aquilo ia metirar do caminho de Torrestrela, resolvisubir até o alto da montanha e fazerminhas orações ao pé da cruz. Foramquarenta minutos de subida que fiz emsilêncio externo e interno. A língua que

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eu havia inventado tinha desaparecidode minha cabeça, já não servia para mecomunicar nem com os homens, nemcom Deus. O Caminho de Santiago eraquem me

“estava andando", e ele iria revelar olocal da minha espada. Petrus mais umavez estava certo.

Ao chegar no topo, um homem estavasentado ao lado da Cruz, escrevendoalgo. Por alguns momentos pensei queera um enviado, uma visão sobrenatural.Mas a Intuição disse que não e eu vi avieira costurada na sua roupa; eraapenas um peregrino que me olhou porum longo tempo e saiu, importunado com

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a minha presença. Talvez ele estivesseesperando a mesma coisa que eu – umAnjo – e nós tínhamos descoberto comohomens. No caminho das pessoascomuns.

Apesar do desejo de orar, não conseguidizer nada. Fiquei diante da cruz pormuito tempo, olhando as montanhas e asnuvens – que cobriam o céu e a terra,deixando apenas os altos cumes semneblina.

A uma centena de metros abaixo de mim,um lugarejo com quinze casas e umapequena igreja começou a acender suasluzes. Pelo menos eu tinha onde passar anoite, quando o Caminho assimordenasse. Não sabia exatamente a que

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horas isto ia acontecer, mas apesar dePetrus haver partido, eu não estava semum guia. O

caminho “me andava”.

Um cordeiro desgarrado subiu o monte ecolocou-se entre mim e a cruz. Ele meolhou, um pouco assustado. Durantemuito tempo eu fiquei olhando o céuquase negro, a cruz, e o cordeiro brancoaos seus pés. Então eu senti, de uma sóvez, o cansaço de todo aquele tempo deprovas, de lutas, de lições e decaminhada. Uma dor terrível apareceuno meu estômago, e começou a subirpela garganta, até transformar-se emsoluços secos, sem lágrimas, diante

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daquele cordeiro e daquela cruz. Umacruz que eu não precisava colocar empé, porque estava ali diante de mim,resistindo ao tempo, solitária e imensa.Mostrava o destino que o homem dera,não ao seu deus, mas a si mesmo. Aslições do Caminho de Santiagocomeçavam a voltar todas a minhacabeça, enquanto eu soluçava diante dotestemunho solitário daquele cordeiro.

– Senhor – disse eu, finalmenteconseguido rezar. – Eu não estoupregado nesta cruz, e tampouco o vejoaí. Esta cruz está vazia e assim devepermanecer para sempre, porque otempo da Morte já passou, e um deusagora ressuscita dentro de mim. Esta

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cruz era o símbolo do Poder infinito quetodos nós temos, pregado e morto dohomem. Agora este Poder renasce para avida, o mundo está salvo, e eu sou capazde operar os seus Milagres. Porquepercorri o caminho das pessoas comuns,e nelas encontrei Teu próprio segredo.Também tu percorreste o caminho daspessoas comuns. Vieste ensinar tudo doque éramos capazes, e nós não quisemosaceitar. Nos mostraste que o Poder e aGlória estavam ao alcance de todos, eesta súbita visão de nossa capacidadefoi demais para nós. Nós te crucificamosnão porque somos ingratos com o filhode Deus, mas porque tínhamos muitomedo de aceitar nossa própriacapacidade. Nós te crucificamos com

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medo de nos transformarmos em deuses.Com o tempo e com a tradição, tuvoltaste a ser apenas uma divindadedistante, e nós retomamos ao nossodestino de homens.

“Não existe nenhum pecado em ser feliz.Meia dúzia de exercícios e um ouvidoatento bastam para conseguir que umhomem realize seus sonhos maisimpossíveis. Por causa do meu orgulhona sabedoria, me fizestes percorrer ocaminho que todos podiam trilhar, edescobrir o que todos já sabem, seprestarem um pouco mais de atenção navida. Fizestes-me ver que a busca dafelicidade é pessoal, e não um modeloque possamos dar para os outros. Antes

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de descobrir minha espada, tive quedescobrir o seu segredo –

e era tão simples, era apenas saber oque fazer com ela. Com ela e com afelicidade que ela irá representar paramim.

“Caminhei tantos quilômetros paradescobrir coisas que eu já sabia, quetodos nós sabemos, mas que são tãodifíceis de aceitar. Existe algo maisdifícil para o homem, Senhor, quedescobrir que pode atingir o Poder?Esta dor que sinto agora no meu peito, eque me faz soluçar e assustar o cordeiro,vem acontecendo desde que o homemexiste. Poucos aceitaram o fardo daprópria vitória: a maioria desistiu dos

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sonhos quando eles se tornarampossíveis. Recusaram-se a combater oBom Combate porque não sabiam o quefazer com a própria felicidade, estavampor demais presas às coisas do mundo.Assim como eu, que queria encontrar aminha espada sem saber o que fazer comela”.

Um deus adormecido estava acordandodentro de mim, e a dor era cada vezmais intensa.

Sentia por perto a presença do meuMestre, e consegui pela primeira veztransformar os soluços em lágrimas.

Chorei de gratidão por ele me haverfeito buscar minha espada através do

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Caminho de Santiago. Chorei degratidão por Petrus, por me haverensinado, sem dizer nada, que euatingiria meus sonhos se descobrisseprimeiro o que desejava fazer com eles.Vi a cruz sem ninguém e o cordeiro aosseus pés, livre para passear ondequisesse entre aquelas montanhas, e vernuvens sobre sua cabeça e sobre seuspés.

O cordeiro levantou-se e eu o segui. Jásabia onde estava me levando, e apesardas nuvens, o mundo tinha ficadotransparente para mim. Mesmo que eunão estivesse vendo a Via Láctea no céu,eu tinha certeza de que ela existia emostrava a todos o Caminho de

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Santiago. Segui o cordeiro, quecaminhou em direção àquelacidadezinha – também chamadaCebreiro, como o monte. Ali, certa vezum milagre havia acontecido – o milagrede transformar aquilo que você faznaquilo que você crê. O Segredo daminha espada e do Estranho Caminho deSantiago.

Enquanto descia a montanha, recordei ahistória. Um camponês de um povoadopróximo, subiu para ouvir missa noCebreiro, num dia de grande tempestade.Celebrava esta missa um monge quasesem fé, que desprezou interiormente osacrifício do camponês. Mas nomomento da consagração, a hóstia se

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transformou na carne de Cristo, e ovinho em seu sangue. As relíquias aindaestão ali, guardadas naquela pequenacapela, um tesouro maior que toda ariqueza do Vaticano.

O cordeiro parou um pouco na entradado povoado – onde só existe uma rua,que leva até a igreja. Neste momento fuitomado de um imenso pavor, e comeceia repetir sem cessar: “Senhor, eu nãosou digno de entrar em Tua Casa”. Maso cordeiro me olhou e falou comigoatravés de seus olhos. Dizia queesquecesse para sempre a minhaindignidade, porque o Poder haviarenascido em mim, da mesma maneiraque podia renascer em todos os homens

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que transformassem a vida em um BomCombate. Um dia chegará –

diziam os olhos do Cordeiro – que ohomem vai voltar a sentir orgulho de simesmo, e toda a Natureza então louvaráo despertar do deus que ali estavadormindo.

Enquanto o cordeiro me olhava eu podialer tudo isto em seus olhos, e agora eleera meu guia pelo Caminho de Santiago.Por um momento tudo ficou escuro, e eucomecei a ver cenas muito parecidascom as que tinha lido no Apocalipse: oGrande Cordeiro no seu trono, e oshomens lavando suas vestes e asdeixando claras com o sangue doCordeiro. Era o despertar do deus

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adormecido em cada um. Vi tambémalguns combates, períodos difíceis,catástrofes que iam sacudir a Terra nospróximos anos. Mas tudo terminava coma vitória do Cordeiro, e com cada serhumano sobre a face da Terradespertando o deus adormecido comtodo o seu Poder.

Então levantei-me e segui o cordeiro atéa pequena capela, construída pelocamponês e pelo monge que haviapassado a acreditar no que fazia.Ninguém sabe quem foram. Duas lápidessem nome no cemitério ao lado marcamo local onde estão enterrados seusossos. Mas é impossível saber qual é otúmulo do monge, e qual o do camponês.

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Porque, para que houvesse o Milagre,era preciso que as duas forças tivessemcombatido o Bom Combate.

A capela estava cheia de luz quandocheguei a sua porta. Sim, eu era digno deentrar porque tinha uma espada e sabia oque fazer com ela. Não era o Portal doPerdão, porque eu já havia sidoperdoado, lavado minhas vestes nosangue do Cordeiro. Agora eu queriaapenas colocar as mãos na minha espadae sair combatendo o Bom Combate.

Na pequena construção não existianenhuma cruz. Ali, no altar, estavam asrelíquias do Milagre: o cálice e a patenaque tinha visto durante a Dança, e umrelicário de prata contendo o corpo e o

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sangue de Jesus. Eu voltava a acreditarem milagres e nas coisas impossíveisque o homem é capaz de conseguir nasua vida diária. Os altos cumes que mecercavam pareciam dizer que sóestavam ali para desafiar o homem. Eque o homem só existia para aceitar ahonra deste desafio.

O cordeiro se esgueirou por um dosbancos e eu olhei em frente. Diante doaltar, sorrindo –

e talvez um pouco aliviado – estava oMestre. Com minha espada na mão.

Eu parei e ele se aproximou, passandodireto por mim e saindo até o lado defora. Eu o segui. Diante da capela,

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olhando para o céu escuro, eledesembainhou a minha espada e pediuque eu segurasse no punho junto comele. Apontou a lâmina para cima, e disseo Salmo sagrado daqueles que viajam elutam para vencer:

“Caiam mil ao teu lado, e dez mil a tuadireita,

tu não serás atingido.

Nenhum mal te sucederá, praganenhuma chegará

a tua tenda;

pois a seus Anjos dará ordens a teurespeito,

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para que te guardem em todos os teusCaminhos”.

Então eu me ajoelhei, e ele tocou com alâmina nos meus ombros enquantodizia.

“Pisarás o leão e a áspide,

Calçarás aos pés o leãozinho e odragão”.

No momento em que terminou de dizeristo, começou a chover. Chovia efertilizava a terra, e aquela água sótornaria a voltar para o céu depois quetivesse feito nascer uma semente,crescer uma árvore, abrir uma flor.Chovia cada vez mais forte e eu fiquei

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de cabeça erguida, sentindo pelaprimeira vez em todo o Caminho deSantiago a água que vinha dos céus.Lembrei-me dos campos desertos, eestava feliz porque naquela noiteestavam sendo molhados. Lembrei-medas pedras de Leon, dos trigais deNavarra, da aridez de Castilla, dosvinhedos da Rioja, que hoje estavambebendo a água que descia em torrentes,trazendo a força do que está nos céus.Lembrei-me que havia colocado umacruz em pé, mas que a tempestadehaveria de derrubá-la novamente porterra para que outro peregrino pudesseaprender o Mandar e o Servir. Pensei nacachoeira, que agora devia estar maisforte com a água da chuva, e em

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Foncebadon, onde havia deixado tantoPoder para fertilizar novamente o solo.Pensei em tantas águas que bebi emtantas fontes, e que agora estavam sendodevolvidas. Eu era digno de minhaespada porque sabia o que fazer comela.

O Mestre me estendeu a espada, e eu asegurei. Tentei buscar com os olhos ocordeiro, mas ele havia desaparecido.Entretanto, isto não tinha a menorimportância: a Água Viva descia doscéus e fazia com que a lâmina de minhaespada brilhasse.

EPÍLOGO: SANTIAGO DECOMPOSTELA

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Da janela do meu hotel posso ver aCatedral de Santiago, e alguns turistasestão em sua porta principal. Estudantesde roupas medievais negras passeiamentre as pessoas, e os vendedores desouvenirs começam a montar suasbarracas. É de manhã bem cedo, e, foraas anotações, estas linhas são asprimeiras que estou escrevendo sobre oCaminho de Santiago.

Cheguei ontem na cidade, depois depegar um ônibus que fazia linha regularentre Pedrafita

– perto do Cebreiro – e Compostela. Emquatro horas percorremos os 150quilômetros que separavam as duascidades, e lembrei-me da caminhada

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com Petrus – às vezes precisávamos deduas semanas para percorrer esta mesmadistância. Daqui a pouco vou sair edeixar no túmulo de Santiago a imagemde N. Senhora da Aparecida montadanas vieiras. Depois, assim que forpossível, pego um avião de volta para oBrasil, pois tenho muito o que fazer.Lembro-me de Petrus haver dito quetinha condensado toda sua experiênciaem um quadro, e passa pela minhacabeça a idéia de escrever um livrosobre o que passei. Mas isto ainda éuma idéia remota, e tenho muito o quefazer agora que recuperei minha espada.

O segredo da minha espada é meu ejamais irei revelá-lo. Ele foi escrito e

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deixado debaixo de uma pedra, mas coma chuva que caiu, o papel já deve tersido destruído. É melhor assim. Petrusnão precisava saber.

Perguntei ao Mestre como ele sabia adata em que eu iria chegar, ou se jáestava ali há bastante tempo. Ele riu,disse que havia chegado na manhãanterior e iria partir no dia seguinte,mesmo que eu não chegasse.

Perguntei como isto era possível, e elenão respondeu nada. Mas na hora de nosdespedirmos, quando ele já estavadentro do carro alugado que o levaria devolta à Madrid, ele me deu uma pequenacomenda da Ordem de Santiago daEspada, e falou que eu já tivera uma

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grande Revelação, quando olhei nofundo dos olhos do cordeiro.

Entretanto, se eu me esforçasse comohavia me esforçado, talvez conseguisseum dia entender que as pessoas semprechegam na hora exata nos lugares ondeestão sendo esperadas.