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1 O DIREITO AO ESPAÇO PARA A LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ALGUNS PRINCÍPIOS DE AÇÃO GELMI. GISELE. Mestranda em Educação pela UNESP - Universidade Estadual Paulista - Campus de Marília – SP. E-mail: <[email protected]> “[...] quero uma escola retrógrada. Retrógrado quer dizer "que vai para trás". Quero uma escola que vá mais para trás dos "programas" científica e abstratamente elaborados e impostos. Uma escola que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto de referência não seja o programa oficial a ser cumprido (inutilmente!), mas o corpo da criança que vive, admira, encanta- se, espanta-se, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, machuca-se, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios.” (ALVES, p. 57) RESUMO Ler e contar histórias em todas as etapas da educação básica é algo incontestável para um melhor desenvolvimento geral do educando e por isto precisa ser encarado como um direito fundamental desde a mais tenra idade nas atividades com as crianças da educação infantil. Desse modo, para dar à leitura o lugar que lhe cabe na dinâmica escolar, convém, em primeiro lugar salvaguardar a sua função social, por isto, este trabalho procurou conduzir e reconduzir o ensino voltado à leitura, isso supõe uma organização do ambiente escolar e a colaboração dos pais neste percurso. Este projeto, realizado com crianças de um ano e seis meses a dois anos e meio em uma creche municipal, procurou desenvolver espaços para a leitura, ouvir e contar histórias, associando as diferentes leituras à observação do meio, às atividades corporais e de registro, isto possibilitou o aprendizado pela imitação e pela trocas de experiências das crianças com os adultos e entre elas, criando formas próprias de se expressarem e de agirem, fortalecendo e ampliando o desenvolvimento cognitivo e cultural. Palavra-chave: Educação Infantil. Leitura. Contar histórias. Direito Fundamental. 1. Introdução Este projeto destinou-se a primeira etapa da educação Infantil – Berçário e Maternal I, com crianças de um a dois anos e meio de idade de uma creche pública municipal, tendo como tempo de execução o ano letivo de 2009 e como tema “Tudo no faz de conta...”, porque historiando, as crianças aumentam suas possibilidades de fazer perguntas, de querer saber e de construir-se. É com Vigotski (1987, p. 30) que se desenvolveu o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, que se expressa o desenvolvimento atual da criança e aquilo que ela consegue fazer com ao auxílio de outras pessoas. A educação infantil pode fazer muito neste aspecto, pois desde o nascimento a aprendizagem se dá por meio da interação com as pessoas que fazem parte do ambiente cotidiano da criança, geralmente as pessoas da família, até que essas interações vão se alargando, principalmente quando começam a freqüentar o ambiente escolar, assim, vê-se que o desenvolvimento infantil não é algo natural e imutável,

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O DIREITO AO ESPAÇO PARA A LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ALGUNS

PRINCÍPIOS DE AÇÃO

GELMI. GISELE.

Mestranda em Educação pela UNESP -

Universidade Estadual Paulista - Campus de Marília – SP.

E-mail: <[email protected]>

“[...] quero uma escola retrógrada. Retrógrado quer dizer "que vai para trás". Quero uma escola que vá mais para trás dos "programas" científica e abstratamente elaborados e impostos. Uma escola que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto de referência não seja o programa oficial a ser cumprido (inutilmente!), mas o corpo da criança que vive, admira, encanta-se, espanta-se, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, machuca-se, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios.” (ALVES, p. 57)

RESUMO Ler e contar histórias em todas as etapas da educação básica é algo incontestável para um melhor desenvolvimento geral do educando e por isto precisa ser encarado como um direito fundamental desde a mais tenra idade nas atividades com as crianças da educação infantil. Desse modo, para dar à leitura o lugar que lhe cabe na dinâmica escolar, convém, em primeiro lugar salvaguardar a sua função social, por isto, este trabalho procurou conduzir e reconduzir o ensino voltado à leitura, isso supõe uma organização do ambiente escolar e a colaboração dos pais neste percurso. Este projeto, realizado com crianças de um ano e seis meses a dois anos e meio em uma creche municipal, procurou desenvolver espaços para a leitura, ouvir e contar histórias, associando as diferentes leituras à observação do meio, às atividades corporais e de registro, isto possibilitou o aprendizado pela imitação e pela trocas de experiências das crianças com os adultos e entre elas, criando formas próprias de se expressarem e de agirem, fortalecendo e ampliando o desenvolvimento cognitivo e cultural. Palavra-chave: Educação Infantil. Leitura. Contar histórias. Direito Fundamental.

1. Introdução

Este projeto destinou-se a primeira etapa da educação Infantil – Berçário e Maternal I, com

crianças de um a dois anos e meio de idade de uma creche pública municipal, tendo como tempo de

execução o ano letivo de 2009 e como tema “Tudo no faz de conta...”, porque historiando, as crianças

aumentam suas possibilidades de fazer perguntas, de querer saber e de construir-se.

É com Vigotski (1987, p. 30) que se desenvolveu o conceito de Zona de Desenvolvimento

Proximal, que se expressa o desenvolvimento atual da criança e aquilo que ela consegue fazer com ao

auxílio de outras pessoas.

A educação infantil pode fazer muito neste aspecto, pois desde o nascimento a aprendizagem se dá

por meio da interação com as pessoas que fazem parte do ambiente cotidiano da criança, geralmente as

pessoas da família, até que essas interações vão se alargando, principalmente quando começam a

freqüentar o ambiente escolar, assim, vê-se que o desenvolvimento infantil não é algo natural e imutável,

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pois a aprendizagem e o conhecimento é algo social e vai ser mais significativo para o sujeito deste

processo se este puder participar dele, explorar, experimentar, arriscar, transformar e ter acesso a espaços

que reúnam várias possibilidades de desenvolver-se.

Segundo Edmir Perrotti apud Maricato (2005 p.25), quanto mais cedo as crianças tiverem contato

com histórias orais e escritas, maiores serão as chances de gostarem de ler, por isto, defende-se que um

espaço apropriado para a leitura é um direito fundamental, pois as maneiras como as pessoas e os espaços

se organizam e se relacionam com a criança vai orientá-la como sujeito ativo ou passivo frente à realidade

em que vive.

Com o tempo, as crianças vão tendo a possibilidade de interagir com outras pessoas e lugares, e

assim, suas aprendizagens vão se ampliando e suas necessidades de compreender o mundo levam-nas a

querer mais.

Mas para que isto aconteça é importante não esquecer que cada criança tem necessidades

diferentes e o desenvolvimento individual pede tempos e experiências diversas e é por isto, que desde a

mais tenra idade é necessário enxergar os bebês e/ou as crianças da primeira infância como sujeitos

capazes de viver por inteiro, discriminando e separando coisas, lugares e pessoas, ouvindo, reproduzindo,

contando e recontando histórias, que as ajudarão a crescerem e se desenvolverem enquanto sujeitos no

grupo no qual vive.

Daí a importância de propostas pedagógicas que privilegiem princípios éticos, estéticos e

políticos, com a garantia de recursos necessários para que esta promova a apropriação, renovação e

articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens e outros direitos considerados

fundamentais, como o direito à saúde, à proteção, ao cuidado, à liberdade, à confiança, à dignidade, ao

respeito, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças.

2. Objetivos

O objetivo primordial deste trabalho foi deixar as crianças se expressarem nos gestos, nas

brincadeiras, nas falas ou balbucios, no afeto, na raiva, na alegria e na tristeza, experimentando, sentido o

cheiro e a textura, testando os outros e a si mesma, fazendo-as compartilhar das histórias contadas,

instigando-lhes a imaginação. Além de colocar aqui a discussão sobre a forma como a leitura é iniciada

com as crianças na escola de Educação Infantil (em muitos lugares a leitura nem é privilegiada)

ressaltando a importância de uma prática educativa que conceba a leitura como um ato prazeroso e não

como algo que tem tempo certo para ser iniciado e que acaba configurando uma obrigação.

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Este projeto objetivou ainda, dar visibilidade aos bebês na sua participação no processo de ensino

e aprendizagem no ato de ler e contar histórias, fazendo desses momentos, para os pequeninos, um espaço

privilegiado para a criatividade, a fantasia e um melhor desenvolvimento da linguagem, melhor

capacidade cognitiva e de expressão. Isto porque, desde que a criança nasce ela já tem uma história, sendo

um indivíduo que interage e escuta sons, sente medo, alegria, afetos e rejeições, que vê e percebe os

espaços, reconhece fisionomias e balbucia sem parar.

Por isto, este projeto procurou trabalhar com o seguinte bloco temático:

- Ler, ouvir e contar histórias;

- A criança fala com o corpo, com o gesto, com o desenho e com o brincar;

- Recursos utilizados: algumas músicas e poesias transformadas em histórias, fantoches de mão e

construídos com sucata, livros de pano, fantasias, jornais e revistas, frutas e legumes;

Livros de literatura infantil utilizados, dentre outros:

- Arthur faz arte. Autor: Patrick McDonnell. São Paulo: Girafinha, 2007.

- A bela borboleta. Autor: Ziraldo Zélio. São Paulo: Melhoramentos Livrarias, 2006.

- Um redondo pode ser quadrado? Autor: Renato Canini. São Paulo: Saraiva, 2007.

- Um Quadrado pode ser redondo? Autora: Gisele Gelmi. (Inspirada no livro “Um redondo pode ser

quadrado?”);

- O triângulo que descobriu como fazer um redondo e um quadrado lindo! Autora: Gisele Gelmi.

(Inspirada no livro “Um redondo pode ser quadrado?”);

- Viva a diferença!!! Autora: Gisele Gelmi. (Inspirado nos três últimos livros citados acima – redondo,

quadrado e triângulo);

- Que bicho será que a cobra comeu? Autor: Angelo Machado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

- Feito bicho. Autora: Gabriela Brioschi. São Paulo: Gaia, 2007.

- Amanda no país das vitaminas. Autor: Leonardo Mendes Cardoso. Coleção Saúde. São Paulo: Editora

do Brasil, 1998.

- Não vou dormir. Autora: Christiane Gribel Orlando. São Paulo: Global, 2008.

- A grande questão. Autor: Wolf Erlbruch. Tradução Roberta Saraiva e Samuel Titan Jr. 2ª Edição. São

Paulo: Cosac Naify, 2007.

- Menina bonita do laço de fita. Autora: Maria Helena Machado, Ed. Ática, 2007.

- Banho! Autora: Mariana Massarani. Ilustrações da autora. 2. ed. São Paulo: Gaia, 2008.

Teve como conteúdo foco a atividade de ler, ouvir e contar histórias com e para as crianças e

vivenciá-las com o corpo, com as atividades coletivas e individuais.

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3. Desenvolvimento

O desenvolvimento do projeto esteve em consonância com os blocos temáticos (Ler, ouvir e

contar histórias; A criança fala com o corpo, com o gesto, com o desenho, com o brincar e com os

recursos utilizados nas brincadeiras inde criam e recriam) e foi realizado de acordo com as necessidades

que iam surgindo com a turma e os recursos locais.

Assim, procurei trabalhar várias narrativas com os bebês, as quais fizeram parte da rotina diária,

proporcionando um cenário previamente intencional, para chamá-los a participar da história e depois, com

as histórias que já havia contado e trabalhado com eles (na música, na expressão corporal, nas

brincadeiras, na teatralização, em passeios e nos desenhos).

O cenário foi construído com a participação das próprias crianças, de forma coletiva, pois como

ressaltou Bakhtin (2003, p.21): “O texto só vive em contato com outro texto (contexto). Somente em um

ponto de contato é que surge a luz que aclara para trás e para frente, fazendo com que o texto participe de

um diálogo... por trás desse contato, há o contato de pessoas e não de coisas.”

Este processo que se iniciou com o ouvir histórias e perpassou paulatinamente a participação das

crianças no contar e recontar histórias por meio da linguagem, do corpo, dos desenhos, brincadeiras e

gestos, foi conduzido propedeuticamente, pela simples observação de figuras e imagens de livros de

literatura infantil, músicas ou poesias, histórias com fantoches de mão e caixas surpresas, história com

sombra, etc., inicialmente de curta duração, estabelecendo a seguir um vínculo entre as curiosidades que

surgiram das crianças sobre o tema e a instigação provocada pela professora no intuito de ir avançando no

conhecimento.

Houve também momentos de leitura livre em que os bebês tinham acesso a livros de pano com

várias gravuras para que pudessem construir suas próprias narrativas conforme manuseavam as gravuras,

neste momento me tornava expectadora de suas construções.

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É neste contexto que o educador assume o papel de mediador das relações humanas no ambiente

escolar da educação infantil, com as inúmeras vontades e intenções conflitantes, cenário em que o

educando se revela enquanto sujeito, como pessoa diferente e singular que se constrói e reconstrói em

contato com o outro, isto quer dizer, com outras histórias sendo elas reais ou não, trazendo não apenas o

esclarecimento de diversas questões, mas também a reflexão sobre as mesmas e o significativo

desenvolvimento da linguagem.

As crianças pediam para que eu recontasse as histórias que elas mais gostavam, mas eu procurava

sempre intercalar as histórias. Em alguns dias eu lia a que elas pediam e em outros, lia as outras histórias,

para que pudessem ouvir histórias diferentes. Também, dava-lhes a opção de escolher entre duas histórias,

havia uma breve apresentação e alguns escolhiam, outros só apontavam timidamente o dedo para a

história desejada ao serem questionados, porém, aquela que não foi escolhida no dia seria contada no dia

seguinte.

Para este trabalho dar certo fazia uma roda com as crianças (duas vezes na semana) onde uma bola

passava da mão de uma criança para o colega do lado, aquele que tivesse de posse da bola escolhia o livro

que desejava ouvir a história e eu ia marcando os pontos, depois contava com eles.

Após, respeitando seus ritmos de atenção e concentração, brincávamos ou dançávamos alguma

música que tinha algo haver com a história, como por exemplo: na história “Um redondo pode ser

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quadrado?’ brincávamos na casinha de bolinhas observando o formato das bolinhas, cores, etc. já na

história “A Bela Borboleta” pintava a face das crianças de borboleta com pasta d’ água colorida e

colocava a música “borboleta pequenina” – CD Ciranda Cultural e assim, as crianças poderiam fazer

gestos corporais e se expressarem no espelho livremente antes, durante e depois da história, e depois,

sentávamos em almofadões e iniciava a história, logo após, as crianças eram questionadas e se

expressavam sobre a história.

O tema foi desenvolvido na sala de aula e em espaços livres da creche por meio de atividades

corporais, envolvendo a música e a imitação de personagens da história para que a professora pudesse

realizar a sua exploração, sistematização e para a conclusão dos trabalhos.

O acesso aos livros era de primordial importância para que as crianças pudessem adquirir não só o

hábito, mas o prazer de ler, por isto, deixava sempre à disposição na sala revista e livros com os quais

pudessem manusear.

Assim, a criança vai aprendendo a cuidar dos materiais, a dividir com o outro, a trabalhar de um jeito

gostoso, dominando processo e produto, junto com seus colegas e os adultos com quem convive.

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4. Avaliação e fechamento do projeto

A avaliação foi realizada em todo o momento do processo educativo, de forma contínua e

diagnóstica; com a intenção primordial de rever a própria prática docente criando novas possibilidades

para estimular as crianças a desenvolverem suas potencialidades levando em conta, principalmente, os

avanços individuais dentro da coletividade e a participação no desenvolvimento de todas as atividades (de

acordo com as peculiaridades de cada aluno) no decorrer do ano letivo de 2009.

A criança da educação infantil muito mais do que alguém a vir a ser (como dizem), precisa ser

encarada como um ser que é; que já está conosco, construindo-se e construindo um mundo de

possibilidades ao seu redor, com as histórias que vivencia.

Percebi que nos momentos de livre manuseio dos livros, os alunos começavam a contar a história

para os colegas, alguns até me imitavam e às vezes, eles mesmos se organizavam sozinhos entre eles para

ouvir e contar a história, alguns outros sentavam perto do colega e dialogavam sobre suas histórias,

contavam histórias de suas próprias vidas quando as associava ao livro, percebe-se isto em frases como

“olha o cachorro dumindo! é Bruci, o Bruci dómi”, soube disto, quando conversando com uma mãe

perguntei: quem é Bruci? E a mãe me contou que era o cachorro que eles tinham em casa.

Neste viver cotidiano é que a linguagem vai sendo organizada e construída. Assim, quem já sabe,

faz, ensina, comunica-se . . .

No final do ano letivo, as crianças, primeiro com o próprio corpo, depois com um ou dois

coleguinhas, foram ampliando suas possibilidades de aceitar e compreender outros pontos de vistas, já

escolhia os personagens que queriam ser e já não brigavam mais com os colegas por eles terem escolhido

o mesmo personagem; imitavam, fantasiavam e foram crescendo e desenvolvendo seu vocabulário de

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modo surpreendente, contavam histórias e se expressavam tanto nas palavras quanto nos gestos de

maneira exemplar.

Em uma última atividade, relacionada às histórias sobre a Primavera, as crianças escolheram a

história e o personagem que mais gostaram de trabalhar nos momentos dedicados às histórias e fizemos

uma apresentação de final de ano dedicada aos pais intitulada “As borboletas” - apresentação inspirada na

poesia “As Borboletas” de Vinícius de Moraes - a qual foi transformada em história. Montamos com as

crianças uma exposição das fotos dos trabalhos coletivos desses momentos para que fossem apresentados

por elas mesmas aos pais que não puderam estar presentes.

Considerações finais

Em geral, acha-se que a criança quando bebê, não endente nada e por isto, não é ninguém, assim,

elas são preparadas para engatinhar, sentar e falar de modo dissociado do mundo das histórias e do

contato com a leitura e são subestimadas em suas capacidades. Este é um equívoco histórico e cultural

que entende que é preciso esperar uma idade para iniciar a criança na leitura e traduz, infelizmente, até os

dias atuais na maioria das instituições de educação infantil, a invisibilidade de seus jeitinhos próprios de

conhecer, ler e interpretar o mundo, querendo mexer em tudo, percorrer os espaços e descobrir e

redescobrir a realidade que as permeiam.

Quando decidi iniciar este projeto na escola de educação infantil a primeira coisa que ouvi foi

“você está doida, nem os maiores do ensino fundamental estão conseguindo ler”, mas o meu objetivo não

era para que ao final do projeto eles soubessem ler formalmente, mas que pudessem adquirir o hábito da

leitura por meio de um contato com livros e com histórias que pudessem ser vivenciadas por todos.

Vivenciar é o mais importante deste processo.

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Neste contexto, eu tinha o papel fundamental de ler e contar-lhes histórias e depois, de instigá-los

a fazerem o mesmo, no entanto este contato proporcionou, até mesmo sem a intenção, que as crianças

fossem capazes de distinguir letras de desenhos. Expresso de modo literal, alguns diziam para os colegas:

“aqui tá a letinha que esqueveu a histoinha” (passagem esta sem correções para preservar o palavreado da

criança).

Segundo Kuhlmann Júnior (2007, p. 30) é necessário considerar a infância como uma condição da

criança, pois as várias experiências vividas por elas em diferentes lugares históricos, geográficos e sociais

é muito mais do que uma representação dos adultos sobre esta fase da vida. E ainda, “É preciso conhecer

as representações de infância e considerar as crianças concretas, localizá-las nas relações sociais, etc,

reconhecê-las como produtoras da história”, isto é mais do que um respeito ao que lhe é peculiar, mas

considero como um direito fundamental inegável.

Deste modo, o trabalho com as histórias na educação infantil jamais poderá ser apenas teórico. A

vivência deste trabalho apontou que as experiências são fundamentais para que possa atingir os objetivos

do projeto e associá-lo as expressões e produções culturais. E neste viver cotidiano, compartilhado entre

as crianças, é que a linguagem vai sendo construída no meio social e cultural.

As crianças vão conversando, discutindo, tentando entender e entendendo a própria língua.

Conseguem contar e escutar histórias, falam de suas vidas e de suas fantasias, curam feridas. Inventam e

imitam vários sons e criam mundos de faz de conta, como bem ressalta Korczak (1983, p. 23): “Isto não é

uma brincadeira: exige dela grande esforço de vontade, grande atenção. Age como um pesquisador em

seu laboratório, preocupado por algum problema cuja solução não encontra.” ou quando encontra quer

saber mais e entender o por quê.

No entanto, a análise deste projeto não pode mudar imediatamente as práticas profissionais de

uma instituição de educação infantil que transfere ao professor e àqueles que estão em contato direto com

as crianças, a pressão por rituais diários que não explora as capacidades dos bebês enquanto sujeitos

capazes e ainda, impõe resistências de todo tipo, tanto no que concerne à importância que dão aos

materiais que realmente serão utilizados pelas crianças no processo de ensino e aprendizagem

(privilegiando, por exemplo, gastar dinheiro com cadeirões, que deixarão as crianças presas e tristes, do

que gastar com livros de tecido e um ambiente adequado para realizar o trabalho de leitura que seria ideal

para a idade dos pequenos, etc.) e na critica infundada daqueles que ao visualizar um bebê com um livro

na mão diz “pra quê? Eles vão estragar tudo”, mas como nos diz Soares apud Maricato (2005 p. 20): “vai

estragar sim, porque ela ainda não tem os hábitos e a habilidade motora para lidar com o livro”.

Porém, pude perceber que esses momentos de manipulação dos livros pelos pequeninos se

transformaram em oportunidade para ensiná-los a manipular os livros adequadamente, cuidando e

familiarizando-se com eles.

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Os professores podem enfrentar ainda, a falta de apoio moral e de cooperação para enfrentar este

desafio. Porém, mais do que a necessidade de rever a formação docente e dos demais profissionais que

atuam na área da educação infantil, é preciso refletir sobre a própria prática, de maneira constante e em

conjunto procurando atingir não o que facilitará o trabalho dos adultos, mas o que será importante para o

desenvolvimento das crianças, colocando a questão do trabalho que determinada tarefa dará em segundo

plano e privilegiando as interações que as crianças farão com isto.

Finalmente, o contato e a vivencia dos pequeninos com as histórias fazem a mediação necessária

para uma alfabetização menos traumática e mais lúcida, isto não significa que um processo esteja

separado do outro, eles devem seguir juntos em todos os níveis e modalidades de ensino e os professores

precisam garantir que todas as crianças possam entrar em contato com este mundo mágico da leitura,

inclusive na maneira como explicam este processo aos pais, que devem ser orientados, incentivados e

chamados a participar deste processo.

As reuniões de pais é lugar privilegiado para estas conversas e pode até servir de instrumento para

a desmistificação de que a professora de educação infantil é a tia que cuida enquanto os pais trabalham

(muitas pessoas ainda pensam a educação infantil como um lugar que os pais deixam seus filhos para

serem cuidados em suas necessidades básicas enquanto aqueles trabalham, não acreditam que as crianças

podem estar aprendendo nestes ambientes inúmeras coisas, é preciso desmistificar isto! aprendemos em

todos os lugares – a diferença é que podemos ter aprendizagens boas ou ruins) estas são tarefas dos

professores com a família e a comunidade de que fazem parte, mas para tanto, é preciso estar disposto a

trabalhar e estudar tanto a teoria quanto a própria prática.

Explicando nas reuniões com os pais o trabalho realizado e os trazendo a participarem deste

processo, até mesmo confeccionando livrinhos com as crianças que podem ser entregues aos pais para

que façam este trabalho também em casa, demonstramos como as crianças podem ser ajudadas e como

elas podem interagir e se relacionar com o mundo. É uma parceria que pode dar certo e valoriza a

afetividade.

Contudo, percebe-se a fundamental necessidade da educação infantil libertar-se de vez de suas

amarras do assistencialismo, afinal cuidar e educar são indissociáveis. E como bem ressalta Freire (1967,

p. 57) a mera assistência contradiz a vocação natural da pessoa - a de ser sujeito e não objeto - e o

assistencialismo faz de quem recebe a assistência um objeto passivo, sem possibilidade de participar do

processo de sua própria recuperação.

Assim, Smith et. al. (2010, p. 31) escreve sobre a importância de refletir e entender melhor a

prática relacionada ao trabalho com os pequenos, pois “refletir sobre como percebemos as experiências

das crianças pode depender da forma como vemos a criança e do modo como ela participa do ambiente da

escola de educação infantil”, assim, não importa se gaguejam, trocam as palavras ou falam pouco, o que

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importa é que elas vão mergulhando na língua de seus pais, dos seus amigos, e das pessoas que lhe são

importantes.

Em relação à organização do espaço para leitura Perrotti apud Maricato (2005, p. 26), ressalta que

ao contrário de uma biblioteca para adultos com silêncio e imobilidade, na biblioteca infantil as crianças

podem circular, falar e interagir com o adulto que o ajudará a encontrar o caminho para a leitura. Neste

trabalho, infelizmente, não dispomos de uma biblioteca farta de histórias, não dispomos sequer de uma

biblioteca ou sala de leitura.

Porém, um ambiente no qual a criança tem que ficar quieta e sentada na cadeira e sem se

relacionar com os livros acaba associando a leitura à obrigação e não a um ato prazeroso, mas quando há

o respeito pelo interesse do pequeno leitor há a associação da leitura à escolha e ao prazer. Este ambiente

foi possível proporcionar aos pequenos mesmo sem um espaço adequado para isto, com almofadas e um

grande tapete, além de atividades construídas por nós, espalhadas pela sala que se reportavam às histórias.

E estabelecer um momento e ambiente próprio para a leitura de histórias é de fundamental

importância para que o crescimento seja algo que propicie as crianças desde a mais tenra idade a

articulação do pensamento e da livre expressão, pois na liberdade constroem a sua personalidade, a sua

identidade, fazendo suas experiências, interagindo e ampliando o seu mundo numa trama de relações

sociais cada vez mais ricas e proveitosas, desse modo, o incentivo à leitura deve compreender um

momento prazeroso de entendimento e compreensão.

Daí a necessidade de primeiramente reconhecer isto, para que espaços necessários sejam

incorporados não só na teoria dos direitos da criança ou em um Plano Nacional de Leitura e em projetos

pedagógicos escolares expressos em papel, mas fundamentalmente, na prática das ações políticas,

administrativas e pedagógicas direcionadas a este nível de ensino.

Referências

ALVES, Rubem. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. Campinas-SP: Papirus, 2001. BAKTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Ministério da Educação e do Desporto. V. 1, 2 e 3. Brasília: DF, 1999. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Cortez, 1967. KORCZAK, J. Como amar uma criança. Rio de Janeiro. Ed. Lar e Terra, 1983.

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KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. Infância e educação Infantil: Uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. MARICATO, Adriana. O prazer da leitura se ensina. Criança. Brasília. s/v, n. 40, p. 18-26, set. 2005. PAIGE-SMITH, A.; CRAFT, A. (et. al). O desenvolvimento da prática reflexiva na educação infantil. Trad. Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2010. VIGOTSKI, L.S.. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.