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O DISPOSITIVO TELEVISIVO (de ‘O Fenómeno Televisivo’, de F. R. Cádima, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995)) A relação dos media com o mundo - e designadamente a relação específica da "máquina" televisiva - é, no seu complexo campo reticular de produção de saber e fazer, simultâneamente desestabilizadora e apaziguadora, na medida em que a prosa precária que a televisão induz, emerge ora como momento fundador de visibilidade, ora como instrumento de verdade do qual não devem ser iludidos os seus dispositivos, os seus poderes e os seus limites. A televisão é, por excelência, uma máquina produtora de redundância, isto é, recicla continuamente no seu dispositivo e organiza no seu fluxo discursivo, um novo espaço-tempo, uma visão do mundo generalista e compósita. Como se se tratasse de uma grande estrutura narrativa que faz circular em torno de esquemas invariantes um fluxo contínuo e homogéneo de programas. Existe, por assim dizer, uma acção socializante do imaginário televisivo que se configura nos modelos estabilizados das suas "grelhas" de programação e das suas formas de representação do mundo, as quais conduzem, grosso modo, ao espectáculo de ritualização da cultura e da informação. Sintoma, cujo princípio de realidade se manifesta sem se autodesignar, isto é, trabalha num registo de ilusão naturalista e de criação de efeitos de legitimação tendo por horizonte de conhecimento o seu contrato de visibilidade e de credibilidade com o telespectador, um horizonte de acontecimento, em suma. Daí, o dispositivo televisivo parte para a construção do seu "puzzle" - ou da sua "cultura-mosaico", como dizia Abraham Moles. Toda a sua complexa organização discursiva, o seu dispositivo logotécnico, tem como primeira acção do seu interface - do seu écran de univocidades -, solicitar a capacidade de

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O DISPOSITIVO TELEVISIVO (de ‘O Fenómeno Televisivo’, de F. R. Cádima, Círculo de Leitores, Lisboa,

1995))

A relação dos media com o mundo - e designadamente a relação

específica da "máquina" televisiva - é, no seu complexo campo reticular de

produção de saber e fazer, simultâneamente desestabilizadora e apaziguadora,

na medida em que a prosa precária que a televisão induz, emerge ora como

momento fundador de visibilidade, ora como instrumento de verdade do qual

não devem ser iludidos os seus dispositivos, os seus poderes e os seus limites.

A televisão é, por excelência, uma máquina produtora de redundância,

isto é, recicla continuamente no seu dispositivo e organiza no seu fluxo

discursivo, um novo espaço-tempo, uma visão do mundo generalista e

compósita. Como se se tratasse de uma grande estrutura narrativa que faz

circular em torno de esquemas invariantes um fluxo contínuo e homogéneo de

programas.

Existe, por assim dizer, uma acção socializante do imaginário televisivo

que se configura nos modelos estabilizados das suas "grelhas" de

programação e das suas formas de representação do mundo, as quais

conduzem, grosso modo, ao espectáculo de ritualização da cultura e da

informação. Sintoma, cujo princípio de realidade se manifesta sem se

autodesignar, isto é, trabalha num registo de ilusão naturalista e de criação de

efeitos de legitimação tendo por horizonte de conhecimento o seu contrato de

visibilidade e de credibilidade com o telespectador, um horizonte de

acontecimento, em suma.

Daí, o dispositivo televisivo parte para a construção do seu "puzzle" - ou

da sua "cultura-mosaico", como dizia Abraham Moles. Toda a sua complexa

organização discursiva, o seu dispositivo logotécnico, tem como primeira acção

do seu interface - do seu écran de univocidades -, solicitar a capacidade de

identificação do telespectador enquanto parte da audiência, envolvendo-o num

fluxo de tempo sem memória e imaterial, pelo carácter efémero de

materialização visual instantânea das imagens que difunde, estratégia de facto

redutora, designadamente quando se trata de um media com o impacto e o

poder de veicular saber que a televisão, objectivamente, tem.

Imagens em perda, portanto, écrans-espectáculo do esquecimento,

écran de superfícies múltiplas, ambos adstritos ao modelo tecnodiscursivo

unívoco da televisão clássica, onde, em acréscimo, a função hegemónica é, em

regra, a do "divertimento". Dispositivo tanto mais complexo quanto a máquina

televisiva se torna assim, de alguma forma, um "a priori" da consciência

moderna.

Pode por isso dizer-se que a televisão generalista clássica perdeu o

sentido da história, isto é, o seu dispositivo evolui de tal forma ao ritmo do

"quotidiano", como espelho de uma realidade prosaica, vulgar, que, com

alguma perversidade, o registo "telereal" se faz, nela, a uma velocidade

directamente proporcional à fugacidade da ordem natural das coisas, do

tempo, e do mundo...

De facto, a actual sociedade de comunicação, sobretudo com o auxílio

da panóplia audiovisual de fim de século, constituiu-se em "sociedade

transparente", embora o tenha conseguido numa espécie de duplicação do

mundo, provocando assim a erosão do tradicional - ou convencional - "princípio

de realidade". O mundo "verdadeiro" torna-se, então, fábula... E se a história

pode também ser interpretada como um inventário do esquecimento, a

televisão, mais do que inventariar a figura da raridade, no sentido de Foucault,

faz ascender à "dignidade" do seu écran, apenas determinados factos, em

preterição de todos os outros. Produz, por assim dizer, a grande amnésia do

tempo. Mas também aqui nada de fundamentalmente grave se passa (...), isto

é, a perda de memória e o esquecimento já se haviam transformado nos traços

estruturais da sociedade contemporênea...

Para além da "materialização" do mundo no seu dispositivo logotécnico -

técnico e discursivo -, a televisão tem essa faculdade particular de produzir e

reciclar as identidades colectivas, de criar um dispositivo simbólico partilhado -

uma "vida simbólica comum" 1, o que, em última instância, pode ser visto como

uma estratégia de agenciamento de conteúdos e de saberes à imagem do que

acontecia no século passado com a dependência dos meios de comunicação

pública da tutela jurídica-administrativa do Estado, como aliás também

acontecia com o telégrafo óptico, ou, já neste século, com o serviço público de

televisão enquanto sistema de comunicação estatal.

É fundamentalmente com o objectivo de caracterizar essa figura

identitária formada pelos elementos compósitos da raridade, dos seus

estereótipos - que o meio televisão institui como "real" a partir do seu próprio

dispositivo tecnodiscursivo -, que recorremos essencialmente à análise de

Michel Foucault, por forma a melhor problematizarmos a complexa rede de

relações entre os dispositivos maquínicos e as "arqueologias" da produção

mediática - e histórica - de um sentido e de uma "representação", ou da

caracterização de uma realidade social. É essa filiação histórica e arqueológica

que nos permitirá caracterizar o registo inacabado do contexto da emergência,

designadamente, do dispositivo televisivo e da ordem do mundo que este

institui - quantas vezes também em ruptura com as aquisições e a experiência

de um tempo passado.

Como é conhecido, em Foucault, a emergência de processos de

normalização do campo social e político deve ser entendida, em geral, em

função da progressiva disseminação das práticas de poder, em termos de um

"bio-poder". Essas novas formas de poder inscrever-se-iam inclusivamente nos

próprios processos de individuação e distinção dos sujeitos, tecendo uma

malha vinculante, trabalhando as práticas do sujeito num todo coerente. Por um

1 Desaulniers, Jean-Pierre, "Télévision et nationalisme", Communication et Information, Vol. VII, nº 3, pp.25-36.

lado, portanto, o poder não se deteria como uma espécie de totalidade

indivisível nem se transferiria como se se tratasse de uma propriedade, isto é, o

poder funcionaria, nesta perspectiva, como um complexo mecanismo, uma

"tecnopolítica" organizada em pirâmide, de cujo aparelho transcorre o fluxo que

produz o poder e cria um campo simbólico cujo espectáculo nao é já o da sua

exposição, mas antes o seu carácter disciplinar, a modalidade "panóptica" do

poder.

A noção de poder deveria então interpretar-se como um dispositivo

clássico, uma rede de relações, de práticas, de estratégias discursivas e

não-discursivas, que estariam directamente imbricadas nas condições de

enunciação, nas condições de exercício da função enunciativa, nas práticas

disciplinares e no contexto histórico-cultural que enforma a genealogia do

sujeito moderno. A própria dualidade ver/ser visto (bem como o I am/Eye am

proposto por McLuhan), que emerge de uma forma radical a par do universo

pós-tipográfico, como nova ordem disciplinar do olhar moderno, poderia ser

interpretada como um dispositivo de vigilância, um dispositivo panóptico de

espaços recortados, de acontecimentos registados, de indivíduos

"observados", um modelo compacto disciplinar onde os indivíduos, em vez de

sujeitos de comunicação, se tornam objecto de informação.

Verificar-se-ia assim, por um lado, o fim da concepção de poder como

núcleo central, como fonte de um fluxo unívoco de dominação e portanto

vértice "absoluto" de qualquer estrutura hierárquica, por uma concepção de

contaminação hipertélica e microfísica de poder, um poder difuso e

disseminado na multiplicidade de técnicas, discursos, práticas, espaços e

quotidianos; por outro lado, com as novas práticas de poder emergentes,

assiste-se também à expansão de "mecanismos anónimos" normalizadores

dos espaços públicos e privados, expansão essa que se verifica na ordem do

discurso, no que é dito, e, de uma forma mais complexa e insondável, no

domínio do não-dito, na ordem do "extra-discursivo". As teorias da

omnisciência discursiva e semiológicas cederiam assim às teorias dos

contextos historico-comunicacionais, às condições de enunciação, e à teoria da

acção social e comunicacional, no quadro das intenções socialmente dirigidas.

Daí decorrem também as críticas foucaultianas à teoria da essência do

Estado como modelo globalizante, preferindo considerá-lo uma realidade

compósita dentro de um universo de abstracção mitificada, procedendo deste

modo à substituição da análise dos aparelhos e estruturas que exercem o

poder - numa perspectiva althousseriana -, pela dos dispositivos que a

reorganizam e disseminam pelo corpo social, quer através da sua estratégia

"paródica", destruidora da realidade, quer através da estratégia dissociativa,

destruidora das identidades - que embora sendo "usos da história" 2 não

deixam de ser também "usos" dos media. Assim, em termos gerais, na procura

do "sentido histórico", a crítica à "estatização da sociedade" é substituída em

Foucault pela da "governamentalização do Estado" 3 .

Mas daí decorre também que à medida que os mecanismos anónimos

se tornam mais funcionais, os destinatários sobre os quais eles se exercem,

em vez de soçobrarem ao novo dispositivo, reforçam os seus processos de

defesa, a sua resistência, reforçam a sua individualidade, assistindo-se por isso

àquilo que se poderia considerar uma viragem nos processos disciplinares de

individuação. É um pouco a ideia de "inumano" em Lyotard - isto é, onde está o

perigo está também a capacidade que salva... Este novo conceito de "sujeito",

se assim se pode dizer, parece resistir inclusive à ideia de "normalização"

como instrumento absoluto de poder, bem como à caracterização da razão

clássica como "genocidária" - e, enfim, da modernidade como o universo de

todas as rejeições, de todo o ostracismo.

2 Michel Foucault, "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", Hommage a Jean Hyppolite, Paris, PUF, 1971. 3 Michel Foucault, "La gouvernementalité" (texto de uma lição), Actes - les cahiers d' action juridique, Paris, nº 54, été 1986, citado por Armand Mattelart, Le Carnaval des Images - la fiction brésilienne, Paris, INA, 1987, p. 119.

Mas, para Foucault, sublinhe-se, interessa sobretudo compreender

através de que mecanismos nos tornámos prisioneiros da nossa própria

história, isto através de uma análise das relações entre a racionalização e o

poder, de uma nova economia das relações de poder: «Este novo modo de

pesquisa consiste em tomar as formas de resistência aos diferentes tipos de

poder como ponto de partida» 4.

Para Michel Foucault, o principal objectivo dessas formas de resistência,

dessas lutas, é a oposição a uma forma de poder que se exerce sobre a vida

quotidiana imediata, que classifica os indivíduos em categorias, os designa na

sua individualidade própria, uma forma de poder que transforma os indivíduos

em sujeitos.

Daí ser mais importante pôr em evidência as relações de poder e de

poder/resistência do que analisar as figuras de poder do ponto do vista da sua

racionalidade interna. Seria então necessário promover novas formas de

subjectividade, «não para descobrir mas para recusar o que nós somos »,

libertando o sujeito de um duplo constrangimento, emergente na

simultaneidade dos processos de individuação e de totalização das estruturas

do poder moderno (Foucault, idem). Mas é fundamentalmente a caracterização

das práticas da nossa época que anunciavam um Foucault céptico. Essas

práticas seriam o produto de uma confluência de técnicas modernas,

iluministas, e antigas, de "decifração do eu", a fim de racionalizar a "polícia das

populações" - o bio-poder.

A emergência da escrita, como uma dessas técnicas antigas,

determinantes na constituição do sujeito, permite, pois, caracterizar o

dispositivo historico-cultural clássico, cujos meios de regulação dominantes não

se alteraram radicalmente na "comunidade comunicacional" pós-alfabética, ao

ponto de obrigarem, por assim dizer, à definição de um novo dispositivo.

4Foucault,"Deux essais sur le sujet et le pouvoir", in Michel Foucault, un parcours philosophique, de Dreyfus, H., e Rabinow, P., Paris, Gallimard, 1984.

Mesmo a crise do paradigma do progresso, o transpolítico e as "telerealidades"

de fim de século, indo mais longe que o seu próprio fim, apenas anunciam a

crise do dispositivo clássico, não pondo em causa nem o dispositivo

comunicacional moderno - que é, no fundo, a "actualização" do dispositivo

pós-alfabético, nem a especificidade orgânica e naturalista do media televisão,

que tendencialmente, enquanto dispositivo tecnodiscursivo e instrumental,

apresenta inclusivamente a irrupção do acontecimento mais imprevisível como

algo "previsível", e, de igual modo, tende a apresentar o acontecimento banal,

ou o pseudo-acontecimento, como "imprevisto".

Daí, procurarmos agora estabelecer os parâmetros através dos quais a

máquina televisiva trabalha - e se reproduz - a partir do seu dispositivo

específico, técnico e instrumental. O seu modo de agenciamento e de "mise en

ordre" do mundo e das coisas tem determinado claramente, ao longo da sua

história breve, não a informação sobre os referentes da própria realidade, não

os signos da história, nem tão pouco a ideia de singularidade, de liberdade, de

solidariedade, mas antes a reprodução hipertélica dos seus próprios códigos, a

manutenção do seu sistema de "continuum", de "fluxo", a megamáquina

produtora de redundância.

No plano estrito do dispositivo logotécnico da televisão importa agora,

mais para além do quadro epistemológico proposto por Foucault, procurar a

especificidade da linguagem televisiva e, designadamente, o seu dispositivo

tecnodiscursivo, o qual releva, desde logo, da proximidade originária aos

modelos discursivos e narrativos do cinema. Essa especificidade tem de facto

desde há muito vindo a ser analisada em termos comparativos com a própria

linguagem cinematográfica. Christian Metz 5 havia inicialmente colocado a

questão, em termos genéricos, considerando que televisão e cinema

compartilhavam, por assim dizer, alguns dos mesmos "recursos expressivos". 5 Ver designadamente a sua obra Langage et cinéma, Paris, Larousse, 1971. No caso presente foi utilizada a versão castelhana - Lenguaje y Cine, Barcelona, Editorial Planeta, 1973, particularmente o capítulo X.5., "Cine y Televisión".

Tratava-se então de estabelecer uma identidade própria, de um ponto de vista

semiótico, para o "específico televisivo", embora Metz concluísse que cinema e

televisão constituem nas suas características "físicas" essenciais uma única e

mesma linguagem.

Recuando um pouco mais e procurando na própria teoria do cinema,

nomeadamente com Gilbert Cohen-Séat 6, a forma como o específico fílmico

poderia constituir ponto de partida para a caracterização das modalidades

concretas do código televisivo, deparar-nos-íamos com a necessidade de

recorrer à caracterização de um "discurso significante localizável" através de

unidades mínimas ou de sintagmas específicos que, em televisão, na sua

articulação discursiva ou narrativa com as modalidades específicas

cinematográficas, poderiam ser encontrados em "objectos de linguagem" ou

em "factos televisivos", tais como a informação, mas mais claramente na

"sitcom", ou no "docudrama" que são os géneros que trabalham mais os

códigos diferenciais existentes entre cinema e televisão.

Nos seus "Apontamentos sobre televisão", Umberto Eco 7 refere, no

entanto, que foi na "tomada directa" que a televisão foi encontrar aquelas

características pelas quais se pode distinguir de outras formas de

comunicação. A verdade é que no final dos anos 50 - altura em que esta tese

começou a ganhar corpo -, o "directo" era ainda a lei em grande parte das

emissões televisivas - designadamente pelas dificuldades iniciais no recurso

constante à "telegravação" e, depois, também, pelas dificuldades logísticas no

recurso ao videotape. Mas, de facto, foi através do directo que surgiu um

"modo de contar" os factos e de legitimar os acontecimentos totalmente diverso

do que se vinha a fazer até então.

Ao emitir as imagens de um acontecimento no momento da sua

ocorrência - o que implica determinadas dificuldades específicas da 6 Cf. Essai sur les principes d'une philosophie du cinéma, Paris, PUF, 1946. 7 Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1970, pp. 362-363.

organização de um relato "não depurado" -, ainda por cima sujeito, ao contrário

do cinema, ao irrelevante e ao imponderável, a televisão encontra a forma de

mostrar o tempo na sua "durée", e isso era de facto novo. A simultaneidade e

globalidade do directo vinha de facto organizar um novo espaço-tempo cujo

registo é desde logo o da "telerealidade", registo onde velocidade e

proximidade completam a ilusão do dispositivo "global" da televisão.

Mas nomeadamente a partir dos anos 60, verifica-se que as narrativas

clássicas adaptadas a televisão, mercê fundamentalmente do aparecimento do

videotape, e das possibilidades de montagem em video, passam a ter uma

cada vez maior utilização de novos processos de visibilidade como a

découpage. A prática do corte, da manipulação do campo/contracampo, a

inserção, ou o tratamento da durée, do script, etc. -, passam a expor-se a uma

outra apropriação que não a do directo. O campo da informação passa assim a

ser um dos géneros em que a utilização do directo se faz agora de um modo

específico, de acordo com a natureza da prática jornalística.

Tudo se tornava mais complexo, porém, no plano do discurso do "fluxo".

A articulação de algumas das especificidades da nova linguagem televisiva

com o que já era conhecido do cinema, introduz, por assim dizer, uma rede

códica 8 que comporta uma complexa pluralidade de discursos, por um lado

distintos uns dos outros, e, por outro lado, confundidos no fluxo contínuo, o que

quer dizer que a estrutura da linguagem televisiva, composta portanto de um

certo número de códigos - tantos quantos aparentemente compõem o espectro

de emissão diária, designadamente, possui um novo código que ordena as

relações de todos os códigos componentes dando uma nova coerência 8 Segue-se aqui a proposta de Jorge Urrutia (1973:9) que na Introdução à edição espanhola de Langage et cinéma, de Christian Metz, defende exactamente que a linguagem televisiva é composta por um certo número de códigos e de um código do "fluxo" que ordena o funcionamento geral. Também Stuart Hall (1974:9) defendeu a existência de um conjunto de "regras" muito precisas que por exemplo permitem identificar facilmente a forma western - histórias cujo tipo, conteúdo e estrutura são assim facilmente reconhecíveis: «Ces 'règles de codage' sont tellement connues et si bien partagées par le réalisateur et le public que le 'message' peut être décodé de manière symétric au codage. C'est cette réciprocité de codes qu'implique justement la notion de stylisation ou de 'conventionalisation', et ce sont évidemment ces codes réciproques qui définissent ou rendent possible l'existence d'un genre».

discursiva ao fluxo, configurando-o inclusivamente enquanto dispositivo. Temos

assim um conjunto de códigos diferenciais que se reorganizam segundo uma

lógica específica de programação, sendo este alinhamento um novo discurso

no qual se esbatem os diferentes géneros. Trata-se aqui de um código

hegemónico, do continuum onde se esbatem géneros narrativos e

"não-narrativos".

Veja-se ainda que entre cinema e televisão, a transferência, adaptação

ou reutilização de figuras ou de sistemas de figuras é uma constante, podendo

constituir-se múltiplos modelos narrativos comuns. Por outro lado, as

diferenças inegáveis que separam cinema e televisão são, segundo Metz 9

fundamentalmente de quatro tipos. São desde logo diferenças tecnológicas;

diferenças socio-políticas e económicas, designadamente nos processos de

decisão e de produção por parte do emissor; diferenças psicossociológicas e

afectivo-perceptivas nas condições concretas de recepção, e por fim,

diferenças na programação, quer dizer - no plano dos conteúdos -, a

especificidade de determinados géneros e de modelos narrativos. Verifica-se

por exemplo que toda uma série de géneros "nao-narrativos", como os

telejornais, as mesas-redondas, os talk-shows, os tempos de antena, etc., são,

portanto, fundamentalmente televisivos.

Para Metz, cada uma das diferenças encontradas entre cinema e

televisão, abre a possibilidade de se estabelecerem códigos diferenciais. Por

exemplo, no cinema, o código de recomposição técnica do movimento, o

código do fotograma, não é comum pela simples razão de que a imagem

televisiva é electrónica. De qualquer das formas, por muitas diferenças que se

conseguissem apontar, dificilmente se poderiam separar radicalmente os dois

media enquanto linguagens, enquanto integradores de conjuntos ou de séries

de códigos específicos comuns, como, por exemplo, os códigos icónicos, o

9 Christian Metz, Lenguaje y Cine, Barcelona, Editorial Planeta, 1973, pp. 282-293.

código da composição sonora e da composição visual-sonora: «Cinema e

televisão têm em comum todos os traços materiais pertinentes mais

importantes e as suas codificações específicas são em grande parte as

mesmas em ambos os casos» 10 . De facto, num como no outro caso,

encontramos uma grande identidade de processos discursivos, com variações

entre si, é certo, mas variações entre subcódigos, não entre linguagens.

Cinema e televisão são assim linguagens vizinhas que têm em comum um

certo número de características materiais pertinentes, bem como códigos

específicos, e portanto podem tratar-se ambas como se formassem uma

linguagem única, embora com códigos e subcódigos diferenciais específicos

que não invalidam o que têm de fundamental em comum. Enquanto sistema de

signos, e sistema narrativo, com excepção da especificidade do "directo", a

televisão está assim tributária do cinema.

A verdade é que a forma como Metz analisou esta questão, no final dos

anos 60, não era já, nessa altura, de todo pacífica. Por exemplo, Jules Gritti 11

preferia falar de "vários cinemas" e de "várias televisões", e opunha-se à ideia

de uma "ontologia unitária" entre cinema e televisão. As funções poética e

referencial mostram desde logo uma inidentidade de práticas, bem como, aliás,

campos opostos no que concerne à função fática - a manutenção do

"contacto", da "companhia" da televisão.

O cinema, de facto, não interpela o público da mesma maneira que a

televisão. No caso da televisão, a interpelação faz-se de um modo directo,

desde logo pelo seu carácter "electrodoméstico", depois através da

continuidade, assegurada, no passado recente, pela "continuista", a locutora

em permanência, ela própria paradigma da telegenia, e ainda pela identidade

de imagem, pelo "off", pelo olhar nos olhos do apresentador - o "parecer" como

10 Metz, idem, pág, 285. 11 Jules Gritti, "La télévision en regard du cinéma: vrai ou faux probleme?", Paris, Communications , 1966,nº 7, pág. 27.

princípio do "ser". Poder-se-ia também referir a função conativa, a retórica

destinada a captar a atenção do destinatário, a redundância entre imagem e

palavra, os closes ou a leitura afectiva do grande plano - o poder e qualidade

que lhe é intrínseco no écran televisivo -, ou ainda o nivelamento ou

padronização dos programas tendo como alvo o espectador estatístico, a

fidelização tecno-electrónica das audiências, a produção formatada de públicos

através de programas nivelados às grandes audiências, etc.

Um outro modo de estabelecer relações de proximidade e afastamento

entre televisão e cinema é a optada por Serge Daney 12, que na sua forma

poética de descrição não deixa de ser extremamente claro e pertinente,

aceitando mesmo, nesse cruzamento híbrido de linguagens, a "virtude dessa

impureza": «(...)O cinema tirou a sua força e longevidade (um século!) devido

ao facto de se apoiar sobre uma parte da nossa infância. Se a televisão veicula

cultura, o cinema faz passar por experiências. Se a televisão deve ter a sua

deontologia, os travellings do cinema são 'questões de moral'. Se a televisão

pôde ter talento na sua programação, nada poderá dispensar o cinema do

desejo de produzir. Se, enfim, a televisão é a nossa prosa, o cinema não tem

alternativa senão na poesia».

Do dispositivo tecnodiscursivo da televisão emergem também

modalidades específicas do ver televisivo que é, ao contrário de um "ver" de

imagens em excesso do cinema 13 , um modo de ver indolente, quantas vezes

sobredeterminado pela figura da teledependência, ou tão só de um hábito que

não é mais do que uma apatia do olhar configurada nas diferentes ordens da

imagem televisiva e no contrato de visibilidade que instituem. Imagens há, no

entanto, que trabalham na periferia, por assim dizer, da lógica convencional

que caracteriza o dispositivo televisivo nomeadamente o videoclip (se bem que

12 Serge Daney, Le salaire du zappeur, Paris, Éditions Ramsay, 1988, págs. 251-252. 13 Pierre Legendre, na sua obra Paroles poétiques échapées du texte (p.182) diz curiosamente: «Não somente o olho escuta, como se alimenta - há uma espécie de antropofagia no acto de estar no cinema».

sejam visíveis outras apropriações, quer em séries televisivas, quer mesmo na

informação), imagens que emergem na grelha de programas como uma

"imagem-pulsação" 14, imagem saturada, por oposição à rarefacção de sentido,

mas também em oposição à "imagem-pulsão" do cinema, elaborada numa

outra durée, feita de um princípio não ritualizado, mas antes de desassossego

e de prazer, de apelos, tensões, de excessos interpelantes.

A caracterização de dispositivo que nos orienta neste trabalho provém,

como referimos, essencialmente da teoria foucaultiana. Diremos, em síntese,

que procuramos estabelecer uma arqueologia das estratégias e práticas

emergentes da complexa rede interactiva entre os acontecimentos, os

pseudo-acontecimentos e a agenda dos media, o protocolo e as suas

mediatizações, entre estes e os seus enquadramentos jurídicos, institucionais e

políticos, não excluindo as respectivas máquinas censurantes, persecutórias e

propagandísticas. Por outro lado, pretendemos apontar o modo de

configuração dessa rede como programa, e procurar, finalmente, a partir da

identificação dos seus regimes de enunciação, de transparência e de

opacidade, dos seus efeitos de real, e função estratégica da construção do

"espaço-tempo" dominante do dispositivo. Isto, sobretudo a partir da leitura

genealógica, histórico-cultural, do encadeamento de séries de editoriais e

comentários dos telejornais 15 das suas técnicas e usos, do serial e do

repetitivo, das temáticas recorrentes, a própria análise da construção da rede

reticular, vinculante, de uma mise-en-ordre simbólica que pretende mostrar

como evidencia a sua "visão do mundo".

O princípio de realidade emergente, o regime de visibilidade e o contrato

de credibilidade que a informação televisiva, designadamente, institui,

trabalham, em conjunto, um registo de real que funciona enquanto

14 Jean-Marc Vernier,"L'Image-pulsation", Revue d'Esthétique, nº 10, Toulouse, Privat, 1986, pp. 129-134. 15 Vide designadamente a nossa tese de doutoramento O Telejornal e o Sistema Político ao Tempo de Salazar e Caetano (1957-1974), DCC/UNL, 1993 (822 pp.).

telerealidade - uma realidade criada por imagens electrónicas, difundidas por

uma máquina e por um dispositivo que é um "intensificador de poder" 16. Tal

como no panopticon de Bentham, esta nova máquina catódica dissocia a

dualidade ver/ser visto em novas modalidades, através de novos

encadeamentos, nos quais o "ser visto" - tudo o que está virtualmente

disponível para a "mise-en-ordre" da máquina - emerge, no essencial,

enquanto acontecimento, embora no plano absolutamente redutor da política e

da catástrofe - da actualidade trágica dos telejornais.

A complexidade de que se reveste a caracterização do dispositivo

televisivo enquanto estrutura agenciadora, e performativa, do discurso que

produz - daquilo que dá a ver - releva de algum modo, em primeiro lugar, do

reverso do paradoxo atribuído por Wittgenstein à própria linguagem, quando

refere que, se é através dela que mantemos um relação fática, é também por

ela que se cria uma impossibilidade, que se institui um regime de opacidade

nessa relação: na linguagem, as palavras confundem-se de palavras, o seu

campo de representação, o seu universo de convenções, têm uma entropia

própria, têm um grau de imprevisibilidade, entram num processo de

degradação face à sua "transparência" essencial. Lyotard, a este propósito,

dizia que não havia frase que exprimisse o próprio "sentir" - tratar-se-ia de um

diferendo que trairia o próprio sentimento. É o que se passa quando dizemos

«não encontro palavras para exprimir uma determinada emoção»... O

diferendo, neste caso, traduzir-se-ia pelo estado instável e pelo instante da

linguagem em que qualquer coisa, que deve poder ser expressa por palavras, o

não pode ainda.

Ora, esta dissolução do vínculo entre a palavra e o mundo, operada na

linguagem no regime de representação clássico, veio colocar a questão da

existência de um resto, de um "fundo disponível de linguagem". Segundo

16 Nöel Nel, Le débat télévisé, Paris, Armand Colin, 1990, pág. 132.

alguns autores, máquinas produtoras de imagens como a televisão, realizam,

superando-o, este fundo disponível, uma vez que virtualmente têm capacidade

para expor todos os objectos de visibilidade, sendo essa, por assim dizer, a

primeira característica do dispositivo televisivo: «São estas características, a de

ser realização da vontade de ver que no discurso permanece como fundo

indiviso das formas siqnificantes enunciadas, a da autonomização em relação

ao processo enunciativo e a da predisposição de todos os objectos virtuais da

visibilidade que definem a televisão como um dispositivo ao mesmo tempo

técnico e social» 17. E, nessa medida, constitui-se também em dispositivo

objectal.

A natureza instrumental e performativa do dispositivo televisivo -

Umberto Eco referia-se inclusivamente ao "específico televisivo" não na sua

dimensão estética, mas enquanto instrumento técnico -, inscreve-se assim não

só na sua virtualidade de aparelho disponível para um determinado uso mas

também de instrumento cuja estrutura activa ela própria dispõe e expõe,

operando-se deste modo ao cruzamento da ordem do discurso com a ordem da

técnica, óbvia neutralização da antiga dicotomia entre o logos e a techne -

entre o discurso e a técnica.

A lógica instrumental do dispositivo televisivo é, por natureza, uma lógica

multimodal, uma vez que permite diferentes regimes de ordenação do real,

diferentes ordens de disposição e de mise-en-scène do real. Concretamente,

nos alinhamentos dos telejornais do período da ditadura, trata-se sobretudo de

um dispositivo não-conversacional, repressivo do consenso racional, de um

dispositivo dissuasor, monológico - de um dispositivo televisivo unívoco, cujo

modo de funcionamento e cujos regimes de visibilidade e de credibilidade se

estruturam e estabilizam, não na confrontação, mas no convencimento, através

de efeitos de verdade e de estratégias de veridicção tendentes a construir a 17 Adriano Duarte Rodrigues, "Do dispositivo televisivo", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Maio, 1989, pp. 61-65.

ideia de uma única ordem do mundo e das coisas. Dispositivo não-

conversacional que integra uma estratégia monológica num quadro global de

instrumentalização, criando um universo próprio, onde a transparência do real e

o horizonte de acontecimento da televisão são obliterados pela máquina de

"tele-representação" e redistribuídos no discurso, onde a saber é substituído

pelo "fazer persuasivo", pelo ver/sentir das emoções do divertimento televisivo,

e pelo "crer".

Diferentes ordens de imagens televisivas instituem diferentes regimes,

ou contratos de visibilidade com o telespectador, incidindo ora numa "moral do

ver", quando o que é suposto passar é a credibilidade das imagens do

desempenho ou da representação política, por exemplo, ou numa "pregnância"

do olhar quando irrompe, com o directo, um signo do real, ou uma imagem-

pulsação, ou se dissolve - ou quebra - a lógica de eficácia comercial e

consensual do media. O regime de visibilidade específico do dispositivo

televisivo tem a ver com os diferentes montagens cenográficas, espaciais, as

topografias do estúdio, as découpages (os cortes, inserções, tratamento da

durée) e outros tratamentos da imagem - da "imagem-afecção" do grande

plano, da "mise-en-scène", da "mise-en-représentation", etc.

Outro é o caso do contrato de credibilidade que a imagem televisiva

pretende instituir através exactamente do "fazer persuasivo", do desempenho

político-televisivo da sinceridade, do "saber fazer". Tanto o regime e/ou o

contrato de visibilidade, como o contrato de credibilidade, criam um efeito de

legitimação e um regime de verdade que emerge como contrato global, como

programa estratégico de integração social, de dissuasão e consenso,

estabelecendo desse modo um efeito real de autocracia.

Vejamos um pouco mais para além desses parâmetros essenciais do

dispositivo televisivo que estamos a referir. Analisemos concretamente o

suporte onde esta lógica dual se institui, o écran imaterial a que Preikschat

chamou "palimpsesto electrónico" e através do qual emergem as imagens do

mundo, agora convertidas ao regime catódico, imagens das quais nascem

imagens, num sistema de hipertelia definitivamente em crise referencial. Mas

imagens também que se constituem em fundo da referência das esferas

pública e privada dos campos sociais mais directamente dependentes do

dispositivo, desse interface-écran que transforma o antigo modo de ver -

sequencial, politópico, nomádico -, em figura, precisamente em matriz

centrada, em écran catódico, justamente, de onde procede exponencialmente a

infinitude de combinações de pixels sobre os quais se projecta o espectador de

um tal universo, num devir que é, como diz Adriano Duarte Rodrigues, um devir

reticular das identidades, tanto das identidades das coisas e dos

acontecimentos, como dos indivíduos e das sociedades: «Este devir conectado

da identidade tende para a naturalização do dispositivo, condição da sua

eficácia performativa. À medida que atinge o seu termo, o dispositivo técnico

torna-se quase imperceptível, incorporado, acabando por vir quase a

confundir-se com o próprio funcionamento corporal. O vídeo equivale assim ao

processo de biologização da logotécnica» 18. Recorde-se, nesta linha, Edmond

Couchot 19, quando descrevia esta inscrição no corpo como o quiasma da

tecnologia e do sujeito, de realização do "bio-poder", sendo este um ponto

singular da rede, do tecido invisível, que estrutura e conecta esse cruzamento

excessivo, e através do qual o sujeito compõe múltiplas hibridações, múltiplos

cruzamentos.

A questão da natureza bio-tecnológica do dispositivo televisivo em

particular - e das tecnologias de uma forma geral - não é de forma nenhuma

uma questão nova (recorde-se por exemplo Walter Benjamin e Heidegger, e o

próprio Foucault, a que voltaremos), se bem que a sua problematização no

contexto da televisão, e nomeadamente após a sua fase de apogeu no final

dos anos 60, tenha provocado uma reflexão renovada em torno dessas noções. 18 Idem, pág. 64. 19 Edmond Couchot,"Hybridations", Modernes et après. Les immatériaux, Paris, Autrement, 1985, pp. 121-129.

Neste plano, outro exemplo concreto, no caso da teoria da televisão em

Portugal, foi referido por Emídio Rosa de Oliveira cujo ponto de vista incidia

sobre a televisão clássica enquanto "controlo social em casa", que solda e

pressuriza através de uma estratégia de sedução, que tende a colmatar as

brechas, as falhas de onde transcorre irreprimivelmente um pouco de

liberdade. Segundo este autor, é a partir desta nova forma de modelização, que

se estrutura uma "nova repressão" que consiste no nivelamento e na

uniformização acelerada de todos os comportamentos sociais e privados e na

imposição de um hedonismo normativo 20. A televisão reactivaria assim,

diariamente, uma diversidade de sinais através dos quais os indivíduos se

reconhecem enquanto parte de um todo, assegurando-se deste modo o vínculo

social.

De modo idêntico, a partir de práticas discursivas, culturais e

institucionais, Foucault falava de processos de normalização que se

constituíam como novas formas de práticas de poder, as quais se inscreveriam

por sua vez nas práticas do quotidiano, agindo de facto como "bio-poder". Com

efeito, Foucault caracterizava esse processo exactamente como a expansão de

mecanismos anónimos que normalizam o espaço social, as instituições, o

saber, a lei, tecendo como que uma quadrícula vinculante, um solo fundador,

homogeneizante, não só modelizador do corpo social, mas agindo

particularmente sobre as práticas do sujeito, internalizando-se e

"territorializando" os saberes e os corpos.

Interpretando a esta luz o dispositivo instrumental televisivo,

reconhecemos neste uma lógica consensual, criadora portanto dos consensos

reticulares no campo da recepção, no corpo social, onde o "uso" que se faz da

televisão, quer enquanto monopólio do Estado ou mesmo enquanto duopólio,

como se poderia verificar, não se destina a fornecer uma informação 20 Emídio Rosa Oliveira, "A televisão é um electro-doméstico", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Maio, 1989, pp. 67-72.

susceptível de verdade ou de falsidade, mas a garantir a sua performatividade

intrínseca, efectivando o acto enunciado pelo próprio facto de o enunciar. Claro

que não se trata aqui de um dispositivo de representação total, de visão e

integração total do espaço-tempo, mas tão somente de um dispositivo que na

sua rede intersticial, embora unívoca, contém a ilusão do dispositivo "global".

Uma deriva no conhecido aforismo mcluhaniano the medium is the

message, permite introduzir um novo postulado na caracterização do

dispositivo televisivo, que poderá ser enunciado noutra perspectiva, como

sendo as estratégias de reprodução/difusão e a tirania dos processos

electrónicos de medição das audiências - que lhes é intrínseca -, a "fundar" as

estratégias de produção. Há por assim dizer uma racionalidade económica,

para além de especificamente técnica, que assegura a presença do

destinatário na mensagem e no destinador: como alguém disse, a televisão

serve não para produzir programas mas sim para produzir públicos. Sob este

ponto de vista, a televisão, enquanto indústria cultural, faz substituir a "poética"

da forma dos géneros televisivos pelo formato de produção, pelo conjunto

indecomponível e coerente - no limite, pelo fluxo do "continuum", inscrevendo

assim o sistema tecno-discursivo como parte integrante de um processo global

de produção.

Poder-se-ia assim crer que há uma perca de especificidade da produção

televisiva que conduz a um estereótipo, delimitando, a priori, não só um

espectador e um público, mas sobretudo criando um "dispositivo abstracto de

enunciação", espécie de grelha vinculante, que se recicla nos diferentes

géneros, constituindo um todo - a que se chama habitualmente o fluxo contínuo

de emissão.

A questão do código hegemónico e o eventual carácter neutralizador

desse fluxo contínuo, desse dispositivo de enunciação - culture de flot,

chamava-lhe Patrice Flichy, foi também analisado como «um conjunto contínuo

de imagens animadas no qual cada emissão conta menos em si mesma que no

conjunto da programação» 21.

Segundo esta perspectiva, a especificidade da televisão residiria

exactamente no contínuo, jogando a grelha de programas o duplo papel de

dispositivo garante da continuidade, fidelisando a audiência, e de meio

coordenador de uma diversidade restrita. Veja-se, por exemplo, as estratégias

das redes europeias para o prime-time em período de concorrência, fixando os

públicos, e operando simultâneamente à resocialização mediática - redução da

diversidade à unidade.

Nessa redução à unidade, aliás, é importante ver, para além da

recomposição da imagem da sociedade, própria da informação, um fenómeno

mais complexo que reside num retorno à inscrição de modelos a partir de uma

diversidade de oferta, que aparentemente provocaria uma lógica de indiferença

entre destinador e destinatário. Trata-se de facto do risco latente da

omnipresença do mesmo "programa" em toda a linha da oferta, seja ela

generalista, codificada, on demand, por cabo ou por satélite. Os processos

recentes de concorrência entre redes de TV têm-no demonstrado à saciedade.

É aliás algo que se explica através de velhas teorias económicas: segundo

Hotteling, já em 1929 era visível que dois concorrentes no mesmo mercado têm

interesse em oferecer produtos quase idênticos para maximizar o seu lucro, e

assim, «os canais que pretendem maximizar a sua audiência têm interesse em

oferecer o mesmo tipo de programas, mais do que satisfazer as escolhas

afastadas do perfil médio da audiência» 22. Voltaríamos portanto a ter que

reconsiderar uma nova lógica de criação de consensos, uma nova

resocialização das referências e dos imaginários através de uma televisão

fragmentada na multiplicidade de redes, mas de conteúdos normalizados. 21 Paul Beaud, La société de conivence. Médias, médiations et classes sociales, Paris, Aubier,1984, pág. 5. 22 Pedro J. Braumann,"Análise e perspectivas do mercado audiovisual", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Maio, Lisboa,1989 pp. 151-157.

Uma visão radical deste dispositivo de enunciação enquanto dispositivo

total levou alguns autores, entre eles Jean Baudrillard, a considerar, por

exemplo, que a transgressão e a subversão não passam pelas ondas sem

serem subtilmente negadas enquanto tal: o dispositivo emerge assim enquanto

dispositivo de neutralização, em oposição quer à lógica instrumental, quer à

lógica performativa, negando ambas, transformando portanto os conteúdos em

"signos", esvaziando-os de sentido. Mas ainda segundo Baudrillard, é este

sistema neutralizador que torna os media inexoravelmente solidários do

sistema do poder 23 .

A natureza da imagem televisiva tem sido interpretada também, como já

referimos, enquanto fenómeno específico cuja origem radica nas próprias

características técnicas do meio e do seu écran catódico, e cuja lógica

subsume a disponibilidade do meio para admitir todas as imagens tal qual elas

lhe são dadas, tal qual elas são programadas.

Este desvio será assim como que a anulação das diferenças entre as

imagens alinhadas que compõem agora o fluxo contínuo de emissão:

«Deslocando as imagens para a sua cena o dispositivo televisivo confere-lhes

uma outra presença, uma outra actualidade, uma outra realidade; confere-lhes

justamente uma outra natureza, a de serem imagens sem natureza, sem

paternidade, imagens em exílio de uma cena primitiva arqueologicamente

remota perdida no tempo" 24.

Outra perspectiva extremamente interessante, e aliás fundamental para

retomar a questão da redução de conteúdos, já em plena era de fragmentação

23 Para além de Baudrillard, em Simulacres et Simulations (Galilée, 1981), ver também Olivier-René Veuillon: «La télévision, dans son mode de diffusion continu, et dans le relais des chaînes, empêche la constitution de manifestations suffisamment autonomes pour entrer en rapport, éventuellement contraditoire, les unes avec les autres. C'est pourquoi la permissivité de la télévision est pratiquement sans limites: on ne peut tout montrer et tout dire, les déclarations subversives ou les appels aux armes en tant qu'ils ne sont jamais isolables dans le flux, n'ont aucun effet qui leur soit propre». Les arts visuels et le rôle de la télévision, ERI, Edizione RAI, Torino,1979. 24 João Mário Grilo,"O grande programador", Revista de Comunicação e Linguagens, nº 9, Lisboa, Maio, 1989, pp. 73-76.

dos sistemas televisivos, é a dualidade paleo- versus neo-televisão, sugerida

primeiro por Umberto Eco 25 e depois por F. Caseti e R. Odin 26, a partir da

pulverização de redes e sistemas na Europa. Neste trabalho identifica-se

claramente a fase inicial da história da televisão com os diferentes modelos

protocolares e pedagógicos que caracterizaram, em geral, os primeiros trinta

anos de televisão. Era então a fase "institucional" do meio, geradora dos

grandes consensos nacionais - a televisão enquanto sistema de comunicação

de Estado -, que recorria de um contrato de comunicação pedagógico com o

espectador, ao contrário da neo-televisão, fragmentada, que privilegia uma

lógica de contacto, espaços de convivialidade e interactividade. Passava-se

assim de uma fase claramente de "socialização" para uma relação

aparentemente mais individualizada, e indiferenciada, com o meio.

Mas se a estratégia de criação de consensos delimita, como vimos, um

dispositivo de enunciação contratual, o mesmo não se deveria passar a partir

do momento em que se verifica a fragmentação do sistema televisivo e emerge

um novo regime caracterizado pela variação e pela indeterminação e sobretudo

pela indiferença dessa relação individualizada com o meio televisão, a qual

faria, em princípio, com que se esbatesse a natureza instrumental e

performativa da televisão. Trata-se aqui de uma questão complexa, tanto mais

que o desenvolvimento da neo-televisão ainda não deu suficientes pistas para

se defender nesta matéria um ponto de vista fundamentado, tão só

empiricamente que fosse.

Ao regime de indiferença da televisão fragmentária são assim aduzidos

novos argumentos, nomeadamente em consequência de dois dos seus mais

visíveis efeitos: o zapping (como uma espécie de procura de "justamente uma

imagem"...) e a videogravação, enquanto «práticas de desprogramação do 25 Umberto Eco, La guerre du faux, Paris, Grasset, 1985, pág 141. 26 Francesco Caseti e Roger Odin,"De la paléo à la néo-télévision", Communications, nº 51, Maio, Paris,1990 Seuil.

aparato televisivo», como lhes chamou João Mário Grilo (ibid.), são «o que

resta da televisão», ou pelo menos, diríamos nós, o princípio do fim da

televisão enquanto dispositivo criador de consensos.

Mas serão mesmo? Ou dito de outra maneira: será que a lógica

consensual se desarticula na indiferença apenas por um fenómeno de

fragmentação do sistema televisivo? Do ponto de vista do zappeur sim, sem

dúvida. A obra, aqui, perde-se no fluxo. A velocidade a que passam os

diferentes "flashes" - as paragens do telecomando - que são em si mesmo

"acontecimentos televisivos", não só evidenciam que «nada disso está

realmente a acontecer» (Geoffrey Reggio) como se quebra em definitivo essa

aura que atribui um sentido ao medium TV. Doravante esse sentido é apenas

televisivo, passa através da consciência televisiva do mundo, não de olhar

único, orwelliano, mas expondo um écran caleidoscópico, e, em simultâneo, a

virtualidade do retorno da maioridade do espectador.

Serge Daney, no entanto, alerta para o facto dessa "maioridade" ser

apenas aparente: «O zapping é desde sempre uma invenção da televisão, é-

lhe inerente e, fazendo zapping constantemente, não se faz mais que

generalizar o uso e realizar o conceito» 27. Trata-se, no fundo, de uma questão

nova, ainda não suficientemente estudada. Para Mercier 28, por exemplo, a

"liberdade de escolha" e o telecomando são, por assim dizer, a

desdramatização definitiva do objecto e do sistema televisivo, dissipando-se

assim as tradicionais representações excessivas do medium, como por

exemplo a tradicional caracterização da televisão como prodigioso meio de

aculturacão das massas. A lógica do zapping que é em parte a lógica que

deriva da fragmentação dos sistemas televisivos - surge fundamentalmente

como uma ruptura que vem recolocar a questão do contrato de comunicação 27 Serge Daney, Le salaire du zappeur, Paris, Éditions Ramsay,1988, p. 28. 28 Paul-Alain Mercier,"L'art d'accomoder les rogatons télévisuels", Communication et Langages, nº 76, 1988, Paris.

entre emissor e receptor, mas não deixa de ser, no entanto, uma lógica

perversa. De facto, se, por um lado, o emissor perde o poder impositivo,

exclusivo, da sua mensagem - face à disponibilidade de canais e ao

telecomando -, por outro lado, o facto de estar perante novas competências do

telespectador, leva-o a "renegociar" esse contrato, segundo a segundo, e,

nessa medida, renova os seus próprios processos discursivos através de uma

estratégia de "contaminação" do fluxo, a qual se torna, em última instância,

numa estratégia de contaminação extensível a todos os sistemas televisivos

generalistas.

As estratégias de contaminação, derivam do efeito de contágio que

linguagens e práticas como a publicidade, por exemplo, determinam noutros

géneros televisivos. É a standardização, ou padronização - não das grelhas de

programação em geral, nas diferentes redes televisivas, mas do discurso dos

programas em particular. Isto é, verifica-se um cada vez maior esbatimento das

fronteiras entre a publicidade e os programas, nomeadamente através da

integração da concepção publicitária do divertimento ou pelo "efeito de série"

em todos os géneros televisivos, ou, ainda, da preponderância dessa

concepção em programas que inclusive pouco ou nada têm em comum com

essa forma discursiva, como por exemplo os magazines de economia. A

inflação de concursos, talk-shows, telenovelas, reality-shows e programas

"eróticos", nas televisões públicas e privadas europeias, a partir de meados da

década de 80, explicam também esta tendência para a "televisão-espectáculo"

instituir um código de visibilidade, de novo contratual, contaminado pelo próprio

"jogo" da publicidade e pela hibridização de géneros, cuja divisa é, sem dúvida,

e em primeiro lugar, ganhar audiências e "produzir públicos" para as centrais

de compras de espaço publicitário e para a rentabilização dos projectos

comerciais. Uma das lógicas mais perversas desta integração do dispositivo

publicitário nas práticas de programação pode ser visto na divisão dos jogos da

NBA americana em quatro partes (quando anteriormente era em duas), ou em

idêntica pretensão para a Campeonato do Mundo de Futebol nos EUA, em

1994, o que aliás não foi aceite pela UEFA.

O fenómeno em si não deixa de levantar uma nova questão: a de saber

até que ponto não há um "paradigma publicitário" reemergente, agora no final

de século, com características igualmente excessivas, tal como havia

acontecido na primeira fase da genealogia das estratégias consumistas quando

Edward Filene, nos Estados Unidos da América, durante o taylorismo,

identificava "liberdade" com "consumo", e dizia que os americanos ao

comprarem "Ford" ou "General Motors" estavam a "votar" na democracia... O

que se passa no final de século é sem dúvida o retomar da lógica radical do

paradigma publicitário. Por isso, Armand Mattelart 29 chamava a atenção para

novas modalidades discursivas emergentes no modelo tradicional de

comunicação mediática - nomeadamente a contaminação do campo dos media

por práticas, discursos estratégias do universo da publicidade, originando uma

«amálgama abusiva entre a democracia e o 'democratic marketplace' (...) uma

infiltração indiscriminada do paradigma publicitário como modelo de

comunicação entre os homens». No limite, correr-se-ia o risco do discurso dos

media ser apenas um discurso publicitário ou um "discurso-espectáculo",

subsidiário das estratégias dos anunciantes e das agências de compra de

espaço 30 .

29 Armand Mattelart,"La publicidad: fin de una década y princípio de una nueva era", Comunicación Social 1990. Tendencias. Madrid,1990, Fundesco, p. 247. 30 Veja-se por exemplo que em França, analisada a publicidade de um só dia, em período de forte concorrência televisiva (19 de Maio de 1990), nas 5 redes generalistas (TF1, A2, FR3, La5 eM6), num total de 90 horas diárias de programação, apenas 4h30m de publicidade estavam devidamente assinaladas e inscritas nos écrans publicitários, sendo as restantes 8h30m (total de 13 horas de publicidade nas 5 redes) consideradas ilegais ou por se tratar de publicidade 'clandestina' ou por ter 'excesso de patrocínios', com duas a três vezes mais o tempo permitido por lei. De notar que se trata de publicidade que passa sobretudo nos períodos de maior audiência (Cf. 50 Millions de Consommateurs, Oct. 1990, Paris), o que só vem dar legitimidade à análise de Mattelart sobre a reemergência do paradigma publicitário, o que significa que os media, em geral, estão a ver submetido o seu discurso tradicional não só ao metadiscurso publicitário, como ainda às suas estrtaégias de mercado, reforçada agora pela emergência das centrais de compras e pelos departamentos de compra directa.

Na sequência da contaminação viral do continuum das grelhas de

programas, uma outra questão importante a ter em consideração é o

"efeito-série", ou melhor, a relação entre série e televisão. De facto, a série não

diz apenas respeito a um determinado tipo de programas, a um género

televisivo, ela é sobretudo um modo de funcionamento do media - e também,

sem dúvida, um dos parâmetros essenciais não só para uma caracterização da

"estética" televisiva, mas fundamentalmente para a definição do seu dispositivo

tecno-discursivo. Série, seriado, ou serialidade, tem em televisão sobretudo

um significado de repetição. Este género de programas por todos conhecido,

surge em geral com uma estrutura narrativa recorrente, com pequenas

variações topológicas, por vezes com uma estratégia de dispersão das

situações, (que nalguns casos pode inclusive ser de carácter histórico, "mítico"

ou "real"), mas em que a continuidade e a evolução da narrativa não excede,

como referimos, a "habilidade" de ver e prever do telespectador médio, enfim,

do "grande público" televisivo.

Nas séries, de uma forma geral, a televisão restitui em primeiro lugar um

regime de "ocorrências" cuja temporalidade se não confunde com a história

narrada mas sim com o presente-futuro 31, substituindo-se assim ao directo,

enquanto sua metamorfose, encenação e virtualidade, enquanto impressão de

presença imediata de algo que está a acontecer...

Deste modo, o tempo perde claramente a homogeneidade (ou a

"poética" e a coerência espacial, no caso da narrativa fílmica em geral), do seu

próprio devir, para se tornar espiral, exorbital, contaminado pelo acumular

indiscriminado de segmentos narrativos e acções, suspensas quer da

vulgaridade do seu desenlace, quer de um final cuja lógica é permanecer

equidistante de cada um dos segmentos e das acções que o antecedem por

forma a elidir o "eterno presente" que transcorre ao longo, muitas vezes, de

31 Jean Mottet,"L'espace-temps de la télévision: le cas du soap-opera", Quaderni, 1989/90, nº 9, Paris.

centenas de episódios, como no caso das telenovelas. Por sua vez, o espaço

na série evolui sobretudo através da sucessão de arquétipos e tópicos

estereotipados (um pouco a imagem das representações teatrais medievais,

politópicas, que aliás se repetem e reciclam no plateau-estúdio,

designadamente na fase de produção das séries televisivas). Os

enquadramentos são inclusive determinados pelo jogo de convenções da

lógica dialogal, sem "fora-de-campo" nem perspectiva. Trata-se de um contacto

através de visibilidades padronizadas, mas ainda de um contrato.

Deste modo também, a série comporta e expõe na sua estrutura regular,

nas suas narrativas elípticas e alusivas, a mutilação dos poderes da imagem

electrónica. Trata-se, no fundo, da instauração de um regime de visibilidades

perfeitamente formal, tautológico, feito de proximidades, contactos, cuja

recorrência intrínseca denuncia, para além do mais, um amplo conjunto de

práticas de autocelebração, sendo por isso a televisão uma máquina discursiva

fechada sobre si própria, que apenas remete para si mesma como referente,

como única consciência do mundo...

E é, sem dúvida, neste regime de visibilidade e de temporalidade, em

que as imagens se reproduzem em séries 32, e em que a banalização dos

efeitos surge como estratégia de fidelização, que os jogos formais tendem de

facto a substituir-se aos jogos de sentido. A imagem entra então numa era de

insignificância, esvaziada de sentido, numa espiral de esquecimento em que

também cada imagem apenas remete para si própria. E, de facto, repetição e

esquecimento completam-se: a disponibilidade dos telespectadores para se

tornarem cativos deste regime pode ser vista, em primeiro lugar, do ponto de

vista da máquina de organização televisiva, como um dispositivo contra o

tempo e o correr do tempo, e do ponto de vista do destinatário, como

32 Michel Kokoreff,"Sérialité et répétition: l'esthétique télévisuelle en question", Paris, Quaderni, nº 9, 1989/90, Hiver, pp. 19-39.

"paragem" do corpo-receptador 33, enfim, como um écran-interface sem sentido

nem memória - afinal a estratégia natural para que cada série pareça sempre

diferente. Mas no fundo ela subsume no seio da programação a noção de

grelha, que será, por assim dizer, a "hiper-série".

Referíamo-nos atrás ao consenso como memória, isto é, à inscrição dos

consensos como única forma de memória do sujeito reflexivo perante o écran

catódico, ele próprio interface neutralizador de todas as distâncias e da próprio

temporalidade. E aqui radica exactamente um novo parâmetro fundamental na

caracterização do dispositivo televisivo clássico: no écran esbate-se o tempo e

o espaço, havendo como que uma incompatibilidade radical entre a "culture de

flot" e a melancolia por uma imagem, ou tão só a emergência de uma única

imagem que desestabilize o fluxo. Dizia Deleuze que é, pelo contrário, a

totalidade das imagens que se fixa em nós... E seria nesse regime excessivo

de desvitalização das imagens - regime que tem percorrido uma espiral desde

o início da televisão, num processo progressivo, emergente de uma espécie de

palimpsesto electrónico que materializa em telerealidade todas as razões do

mundo, todos os seus acontecimentos -, que é desafiado cada vez mais o

dispositivo contactual passando portanto, aparentemente, a um dispositivo de

contrato, em constante actualização, expondo-se assim a crise do próprio

dispositivo e bem assim a crise da coesão e da produção dos consensos.

O écran catódico funciona, portanto, também, como neutralizador das

especificidades dos processos discursivos que lhe são exteriores, na medida

em que ao integrá-los no seu fluxo homogeneizante, a televisão molda-os ao

seu dispositivo enunciador através de um complexo processo de adequação à

sua lógica tecnodiscursiva. Por outro lado, funciona como neutralizador das

condições - ainda técnicas e discursivas - de retenção das imagens e dos sons, 33 Um depoimento de uma entrevistada dado a Jean-Pierre Corbeau (1978) aquando da realização do seu trabalho de campo intitulado Le village à l'heure de la Télé explicitava isso mesmo: «A 19h20 je me dis, bon maintenant, si tu veux connaître la suite, il faut attendre jusqu'a demain 19 heures, je sais qu'a mon âge, je risque de faire le grand saut, et c'est pour cela que chaque fois que j'entends la musique de générique, je pense, tu as vécu un jour de plus» (p.115).

de registo, não só devido à diversidade da teia enunciativa e da sua lógica de

fragmentação/recomposição, como também devido à essência do seu

dispositivo cujo modo de desvelamento é deixar aparecer o que, de seguida,

inevitavelmente se esquece; sob o ponto de vista técnico trata-se sobretudo da

questão da efemeridade da conservação dos pixels da imagem electrónica, e

portanto da conservação das suas próprias imagens, como se de uma técnica

"erosiva" se tratasse...

Este novo espaço-tempo emergente, que é finalmente caracterizado por

um novo tempo dado pela "velocidade audiovisual" 34 suplanta em definitivo,

através dessa errância logotécnica, a realidade da presença do espaço real,

dos objectos e dos lugares.

Nietzsche dizia que o homem se constituía por uma faculdade activa de

esquecimento, por uma espécie de recalcamento da memória biológica: a

mnemotécnica, com a emergência do alfabeto, teria sido assim o sistema da

crueldade por excelência, um "alfabeto terrível", a organização que traça signos

no próprio corpo e lhe dá uma memória de palavras e imagens, esse

"inventário domesticador" - o que, em última instância, poderá explicar

porventura a natureza desse "pecado" originário - uma convenção, um

contrato, nos quais radica a reemergência da faculdade da indiferença e

esquecimento. Instituída assim uma amnésia do tempo e da história, denegado

o acontecimento e as singularidades, através de um saber circunscrito ao

"pequeno mundo" da política e da catástrofe, resta a memória algorítmica, ou a

"poiética" de uma memória - Jean-Luc Godard lembrava que se a televisão

produzia de facto e esquecimento, o cinema havia criado os seus "souvenirs"...

Mas, dir-se-ia então, é no espaço do esquecimento que novos holocaustos

aguardam a sua hipertelia.

34 Paul Virilio, "La lumière indirecte", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 45-52.

Tal como, no écran catódico, em pleno processo vertiginoso, as imagens

se confundem de imagens, também a memória do mundo e das coisas atinge o

seu estádio de degradação, não por um excesso de imagens e de memória

mas antes pelo seu recalcamento, por aquilo que Michel Foucault reconhecia

ser a possibilidade de memória de um qualquer acontecimento: «Mostra-se às

pessoas não aquilo que elas foram, mas aquilo que é necessário que elas se

lembrem que foram». O que é algo diferente do "métier de vivre" de Bill Viola:

1988:372): «Le regard est son exercice, le monde son théâtre, la perception

son mode de passage, la mémoire sa condition» 35 .

Poder-se-ia pois dizer, com Florence de Mèredieu 36, que todo o sistema

do visível e da representação, tão fina e pacientemente construído após a

Renascença, parece assim desagregar-se brutalmente na pequena dimensão

do écran video, quer no self-media, no video alternativo, quer no écran

generalista ou temático, ainda que, com diferenças expressas. Figuras do

presente e do diferendo que o encerra, as práticas e as representações

singulares da arte video - essa "estética do narcisismo" contemporêneo, como

lhe chamou Rosalind Krauss, colocam-se na linha de resistência ao fluxo,

expõem sobretudo um "trabalho de memória" que guarda uma certa verdade,

salva a ideia de real, pois, como defendia Jean-Luc Godard (referindo-se ao

desporto na televisão), tratar-se-ia do trabalho mostrado na sua durée, ou seja,

tratar-se-ia da memória de um corpo possível de decompôr nos seus mais

ligeiros movimentos, numa vertigem sem tempo, como em Marey ou

Muybridge.

Se ao vídeo cabe o desvelar dos segredos do sujeito reflexivo,

participativo, e do seu processo de afirmação e individuação, à televisão

restar-lhe-á a prosa do mundo, o corpo inscrito pelos signos que iludem o

35 Bill Viola, "Y aura-t-il copropriété dans l'espace de données?", Communications, n º 48, 1988, Paris, Seuil. 36 Florence de Mèredieu,"Babel TV", Revue d'Esthétique, nº 10, 1986,Toulouse, Privat, p. 248.

naturalismo do écran-espelho do real. A televisão será, assim, não uma "janela

sobre o Mundo", mas um interface-écran que na sua vertigem centrípeta

absorve o vitalismo dos seres, das coisas e do mundo, dando a ver apenas os

seus restos e fragmentos - figura, aliás, da "grande política" e do desempenho

mediático dos seus protagonistas, da actualidade trágica e do fait-divers.

E no que concerne à imagem electrónica, a arte vídeo será nesse

sentido uma "antitelevisão", espécie de índice-limite da expressão dos traços

constitutivos do sujeito moderno: «Se a comunicação de massa preenche mais

ou menos no mundo contemporâneo as funções positivas que eram outrora as

da antiga retórica, se a televisão, mais particularmente, detém hoje uma função

global de regulação da invenção e da memória, o autoretrato (video) é

naturalmente a expressão mais subjectiva da resistência que a arte video opõe

de modo específico à televisão (contra, totalmente contra)» 37. Sem dúvida que

o pioneirismo do vídeo e da arte-vídeo, que remonta ao pós-experimentalismo

do novo cinema americano dos anos 40 e 50, nomeadamente através dos

trabalhos de Vostell e Nam June Paik (recorde-se a sua importante exposição

já em finais dos anos 60, "TV as a creative medium", na Howard Wise Gallery),

permitem configurar estratégias cuja especificidade remete para um reencontro

entre o electrónico e o cinematográfico. O próprio conceito de self-media, de

que todos eles eram adeptos, corresponde claramente ao seu posicionamento

enquanto artistas e críticos perante a linguagem convencional da televisão.

Dir-se-ia inclusive que não se tratava de uma demarcação elitista face à TV,

uma vez que as suas propostas surgiam no sentido de propor uma maior

participacão das experiências sociais, de uma televisão "do real", verdadeira

estória alternativa ao discurso dos grandes meios, e portanto de um maior

acesso das diferentes comunidades, a televisão (esse era por exemplo o

objectivo das street-tapes produzidas pelos colectivos-vídeo em diferentes

37 Raymond Bellour,"Autoportraits", Communications, nº 48, Paris, 1988, pp. 345-346.

cidades norte-americanas, experiências que mais tarde se desenvolveriam em

TV's locais, comunitárias e redes por cabo). Como diria o documentarista

Geoffrey Reggio, trinta anos mais tarde, «os acontecimentos relatados pelos

media não interessam - não é isso que está a acontecer».

No fundo, passado todo esse tempo, os problemas continuam os

mesmos... O dispositivo mantém-se. O trabalho a realizar continua ainda a ser

o mesmo - recusa das práticas e dos modelos constituídos, reencontro das

fissuras a partir das quais pode irromper a paixão, o "mundo da vida". Nem que

para tal se deva invocar a interactividade e o video on demand - o que

representará sem dúvida uma ruptura no actual dispositivo da televisão

generalista clássica. «A questão é de se chegar a sociedades autónomas,

verdadeiros laboratórios de resocialização, autorizando as novas tecnologias

do eu (...). É necessário aumentar o desejo de desenvolver uma alternativa ao

modo de grande difusão. Isso implica evidentemente elaborar o protótipo de

uma revolução da comunicação, de a simular: ao desenvolver uma meta-

arquitectura social devemos permitir um largo acesso público a modelos de

redes conversacionais auto-geridas pelos utilizadores» 38.

É esta resistência, esta tensão, que a televisão tenderá por certo a

reduzir, abrindo-se ao pulsar do mundo e das coisas, ao conjunto das

experiências sociais, indo assim ao encontro dos seus "dissidentes" e das

singularidades, democratizando-se, operando a transformação do

sujeito-estatístico, destinatário fantasma, em sujeito operante, reflexivo, "actor"

em corpo, actor em desejo, actor que vê com o corpo todo.

Acrescente-se, finalmente, que no próprio dispositivo televisivo se

poderia notar os efeitos perversos da sua ambivalência. Poder-se-ia dizer que

o tipo de representação do mundo que a televisão reflete é uma visão

secretista, limitada pela dimensão instrumental do dispositivo, francamente

38 Gene Youngblood,"Vidéo et utopie", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 176-181.

mais conservadora do que as possibilidades da técnica permitem... Assim, o

próprio dispositivo instrumental actuaria no interior da "máquina" logotécnica,

articulando a ordem de previsibilidade do seu funcionamento, representando o

mundo e organizando a acção, expondo apenas a sua visão funcional e política

da realidade.