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O DOMÍNIO DA PALAVRA: Reflexões sobre os escritos do Padre João Daniel.
Breno Machado dos Santos *
Palavras-Chave: Jesuítas, missões no Amazonas, Reformas Pombalinas. Resumo: Este artigo tem como principal objetivo correlacionar uma parte da obra do jesuíta João Daniel com alguns problemas enfrentados pela Companhia de Jesus em meados do século XVIII. Embora tenha escrito uma volumosa obra no cárcere tratando de diversos aspectos de sua experiência missionária no Estado do Maranhão e Grão-Pará, João Daniel ressalta o importante papel dos jesuítas com o intuito de resgatar o prestígio da Companhia de Jesus existente em um período anterior a chegada de D. José I ao poder.
Key words: Jesuits, missions, Pombal’s Reforms. Abstract: This article has as its principal objective to connect a part of the jesuit João Daniel's work with some problems faced by Society of Jesus in the middle of the century XVIII. Although he has written a large work in the jail about manifold aspects of his missionary experience in the estate of Maranhão and Grão-Pará, João Daniel rebounds the concernment of the jesuits arguing to rescue the prestige of the Society of Jesus existing in a previous period the arrival of D. José I at the power.
* Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
INTRODUÇÃO A recente publicação da obra do padre jesuíta João Daniel intitulada Tesouro
descoberto no Máximo rio Amazonas tem proporcionado aos historiadores um enorme campo
de pesquisa. 1 Apesar do fato de grandes nomes da historiografia brasileira terem tido a
oportunidade do contato com a obra do inaciano, acredita-se que este tenha se dado apenas
através de fragmentos, pois o texto completo acabou se dividindo em códices que se
espalharam entre distintas bibliotecas. 2
Os manuscritos originais, contendo um número superior a mil páginas supostamente
escritas no período em que o padre esteve recluso nos cárceres de Lisboa, abordam temáticas
diversas, aproximando-se do “espírito enciclopédico” europeu da segunda metade do século
XVIII. Assim, ao buscar rememorar e descrever as características do Estado do Maranhão e
Grão-Pará, território que João Daniel viveu aproximadamente trinta e cinco anos, o
missionário escreve verdadeiros tratados que perpassam pelos domínios geográficos,
etnográficos, políticos, teológicos, culturais e econômicos.
Devido ao grande número de possibilidades de pesquisa proporcionadas pelo Tesouro
de João Daniel, este trabalho busca através da contextualização dos aspectos políticos
antijesuíticos em voga na Europa, apontar a possível intenção do autor inaciano em expressar
uma postura defensiva aos diversos ataques que a Companhia de Jesus vinha sofrendo no
período.
1. AS REFORMAS POMBALINAS E OS JESUÍTAS
Em meados do século XVIII, D. José I chegou ao trono de Portugal e promoveu as
inúmeras reformas traçadas pelo seu Primeiro Ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, o
Marquês de Pombal. Entre elas, a que particularmente interessa para a realização deste
trabalho é a busca incansável pela extinção da Ordem dos jesuítas dos domínios do Império
português. 3
1 DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, 2v. 2 SALLES, Vicente. “Rapsódica Amazônica de João Daniel”. In: DANIEL, João. Tesouros descobertos no máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, 2v., v. 1. 3 Além da atroz perseguição dos jesuítas, podemos apontar como sendo os principais atos de Pombal na vida política a reconstrução de Lisboa após o terremoto, a repressão contra o suposto atentado regicida a D. José I e a reorganização de vários setores tais como a agricultura, a indústria, o comércio e o exército.
Segundo os historiadores José Eduardo Franco e Christine Vogel, a forte concepção
antijesuítica que começou a se formar no século XVI teria como um de seus representantes
mais expressivos o Marquês de Pombal. 4 É com base nos escritos que representam esta
tradição antijesuítica – estando a Monita Secreta entre as obras de maior expressão - que o
Primeiro Ministro português busca construir uma imagem que aponte ser a Companhia de
Jesus “portadora de uma dimensão secreta dirigida por instruções abscônditas, cuja forma
institucional visível era apenas um disfarce”. 5 Pombal chegou mesmo a lançar uma série de
manuais de propaganda antijesuítica – através da publicação da Relação Abreviada, do
Compendio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra e da Dedução Cronológica e
Analítica – “investindo grandemente na internacionalização da imagiologia que ele mesmo
construiu em Portugal em torno dos jesuítas”. 6 Entre as principais características atribuídas
por essa corrente antijesuítica à Companhia de Jesus estavam a cobiça, a riqueza e a busca de
poder, responsáveis por incitar inúmeros ataques aos inacianos em diversos territórios.
Desta forma, os motivos que justificavam a expulsão dos jesuítas do Estado do
Maranhão e Grão-Pará segundo as palavras do capitão general Francisco Xavier de Mendonça
Furtado – executor do banimento - em carta enviada a Thomé Joaquim da Costa Corte Real
eram os grandes negócios e a exploração cometidos em todos os ramos do comércio pela
Ordem. 7 O capitão ainda aponta que no colégio, situado na capital do Pará, haviam amplos
armazéns abastecidos com inúmeros gêneros do sertão, sendo realizadas durante todo o ano
feiras lucrativas. Por fim, o detrator da Ordem não deixa de apontar o controle sobre a mão-
de-obra nativa que “continuamente trabalhão a favor do comum da sua Relligião deixando lhe
hum grandississimo lucro”. 8
A expulsão dos inacianos não ficou restrita aos domínios do Império português. No
mesmo período, ocorreu uma série de expulsões em vários outros territórios, tais como a
França e Espanha e entre alguns Estados localizados na região da Itália, culminando com a
bula Dominus at Redemptor assinada pelo papa Clemente XIV, que suprimia a Companhia de
Jesus no ano de 1773. 9
4 FRANCO, José Eduardo & VOGEL, Christine. Monita Secreta, Instruções Secretas dos Jesuítas: História de um Manual Conspiracionista. Lisboa: Editora Roma, 2002. 5 Id., p. 31. 6 Id., p. 59. 7 Apud SALLES, Vicente. “Rapsódica Amazônica de João Daniel”. In: DANIEL, João. Tesouros descobertos no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, 2v., v. 1, p. 15. 8 Ibid. 15. 9 FRANCO, José Eduardo & VOGEL, Christine. op. cit., p. 32.
2. O ASTUTO JOÃO DANIEL
A realização de uma breve contextualização da obra escrita pelo padre jesuíta João
Daniel nos possibilita lançar luzes sobre uma das possíveis intenções do inaciano com a sua
produção. 10
De certa forma, podemos apontar que o Tesouro descoberto no Máximo rio Amazonas
mantém, apesar das distintas temáticas abordadas nos diversos capítulos, uma uniformidade
quanto ao estilo retórico utilizado. A obra é predominantemente caracterizada pela descrição
minuciosa da experiência de João Daniel na colônia, incluindo sua geografia, população, usos
e costumes, etc.
No entanto, podemos apontar uma parte do extenso manuscrito como merecedora de
especial atenção: o Tratado Sexto da parte Quinta, intitulado “Das missões do Amazonas e
seus estados”. Embora não seja possível afirmar com precisão a data de elaboração desta parte
do manuscrito e também os supostos leitores que João Daniel pretendia alcançar, uma análise
minuciosa sobre esses escritos pode nos fornecer informações preciosas que apontam o fato
de o jesuíta buscar defender de maneira arguciosa os interesses da Companhia de Jesus. 11
De maneira geral, a abordagem do padre jesuíta na parte analisada apresenta como
tema central à situação das missões antes e após a expulsão da Companhia de Jesus do
Império português.
João Daniel inicia seu tratado tecendo uma comparação entre as missões espanholas e
as portuguesas. Segundo o autor, o fracasso das missões portuguesas devia-se a repartição
tripartite dos índios feita entre moradores, jesuítas e serviço real, pois “não há índios estáveis
nas aldeias, todos estão expostos a marcharem para fora a maior parte do ano”. 12 Por outro
lado, o motivo das missões espanholas serem “mui florentes” se deve ao fato de o “regímem
ser muito diverso”, não consentindo a entrada de brancos em seus territórios. Daí o fato “de
uma das mais pequenas aldeias espanholas valer mais que a mais populosa missão
portuguesa”, conclui João Daniel. 13 Além disso, o trabalho com o gentio era ainda
10 Em relação as supostas intenções da obra do inaciano ver: DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão Longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa ilustrada. Rio de Janeiro: Editora do Museu da Republica, 2007. (No prelo). 11 Em relação ao suposto público alvo da obra do padre João Daniel ver: DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão Longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa ilustrada. Rio de Janeiro: Editora do Museu da Republica, 2007. (No prelo). 12 DANIEL, João. Tesouros descobertos no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, 2v., v. 2, p. 310. 13 Id.
prejudicado pelo contato dos “mansos” com os Tapuias e também pelos abusos cometidos
pelos colonos que, na maioria das vezes, não devolviam os índios solicitados. 14
O interessante neste ponto é mostrar que o padre jesuíta não busca tecer longas críticas
a política imperial, mas sim apontar, através de curtos comentários, as falhas da postura
defendida pelo Império português. Entre os apontamentos negativos feitos por João Daniel
são realizadas longas descrições que suavizam o teor de suas críticas. Cabe destacar que esse
recurso será utilizado inúmeras vezes por João Daniel revelando a maneira cuidadosa do
inaciano apresentar suas idéias.
Uma segunda crítica feita é quanto ao tipo de clérigo que se deve adotar nas missões:
os regulares ou os seculares. 15 Neste momento, o autor expõe que está escrevendo após a
expulsão dos jesuítas do Estado do Maranhão e Grão-Pará, ou seja, quando da substituição
dos regulares pelos seculares. Assim, através de um texto comparativo, João Daniel vai buscar
através de “rezões todas convincentes” a superioridade dos padres regulares no amparo
espiritual e temporal dos índios. 16 São inúmeros os motivos apontados pelo padre jesuíta.
Entre eles está em primeiro lugar a perfeição com que realizam os seus ofícios. Outro motivo
é o fato de os regulares estarem atuando com zelo em vários territórios do mundo tais como
na Índia, na China, Conchinchina, Japão, Etiópia, Egito, Palestina, Ásia, África, América
espanhola e portuguesa e também na Europa. Um terceiro motivo é que todos os serviços
realizados são feitos de graça, coisa que os missionários clérigos “não fazem nem hão de
fazer, nem na verdade tem obrigação de fazer”. 17 A falta de preparo dos seculares também
não é poupada pelo jesuíta. O pouco domínio da gramática é apontado como uma falha
inadmissível. 18
Enfim chegaram a dizer alguns destes clérigos novatos, e constituídos párocos de índios, que visto obrigarem-nos a ir parar as missões eles fariam, e obrariam de sorte que o mesmo senhor se visse também obrigado a tirá-los. 19
João Daniel não deixa escapar a oportunidade de estar sempre debatendo com as
acusações comumente feitas à Companhia de Jesus: a suposta cobiça, a busca pelo poder e a
falsidade disfarçadas pelos ideais cristãos são facilmente rebatidas pelo jesuíta através de
frases que exaltam os feitos de seus irmãos de batina.
14 Id., p. 310-312. 15 Id., p. 341. 16 Id., p. 342. 17 Id., p. 355. 18 Id., p. 346. 19 Id., p. 345.
E assim vemos, ou lemos nas histórias, que os Santos Apóstolos, que foram os primeiros, e o modelo de todos os missionários, pregando a sábios, e a rústicos, não lhes propunham não motivos temporais, e humanos para os converter, mas só as verdades evangélicas (...) E este método tem seguido um Xavier na Índia, e Ásia, um Silveira em África, um Anchieta no Paraguai, um Cipriano no rio Madeira, um Samuel Friz no mesmo Amazonas, e tantos outros varões apostólicos (...). 20
Por fim, uma última farpa lançada por João Daniel à Coroa portuguesa digna de
menção por ser talvez a mais dura e clara, é a que compara o reinado de D. José I ao de seu
antecessor D. João V. Na primeira metade do século XVIII, devido a constante falta de apoio
por parte da Coroa para com as missões, os jesuítas, segundo João Daniel, teriam chegado a
abandonar o projeto se não fosse a intervenção de D. João V lhes implorando o retorno a seus
postos. 21
Além disso, o missionário ainda afirma que não faltam aos membros da Companhia de
Jesus outras oportunidades de cumprirem com seus deveres, ou seja, a prática da caridade.
Nem nos faltarão ocasiões de exercitar nas cidades, e vilas o nosso instituto já ensinado nas classes, já pregando nas igrejas, já doutrinando nas praças, já ministrando nos hospitais, já acompanhando os justiçados, já visitando as aldeias, já freqüentando os confessionários, visitando enfermos (...) que todos são próprios do nosso instituto; e muito principalmente missionando os povos com missões pedâneas; que são de muito serviço de Deus, e de muito lucro das almas, como a experiência tem mostrado a um incansável Malagrida; a um fervoroso Silva e a muitos outros zelosos missionários, que a estas tão laboriosas missões dedicaram a maior parte de sua vida. 22
Por fim, a referência feita ao exemplo dado pelos trabalhos realizados pelo padre
Malagrida não parece ser desprovida de uma conotação política, pois em 1760, sob os
comandos de Pombal, o jesuíta acusado de conspirar contra o rei é condenado à fogueira. 23
Se por um lado o monarca antecessor a D. José I teria feito de tudo para manter os
jesuítas no projeto missionário, de outro, sob as Reformas Pombalinas, os trabalhos dos
jesuítas eram vistos com descaso. Daí o tom grosseiro de João Daniel ao escrever “deixem a
administração das missões a quem quiser; pois não hão de dar conta a Deus de que os façam
escravos, vendam, ou atropelem com serviços”. 24 Os vários abusos cometidos às missões são
apontados pelo jesuíta como exclusivos do caso brasileiro, não ocorrendo “em outras partes
do mundo”. 25
20 Id., p. 379. 21 Id., p. 350. 22 Id., p. 351. 23 FRANCO, José Eduardo & VOGEL, Christine. op. cit., p. 32. 24 DANIEL, João. Tesouros descobertos no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, 2v., v. 2, p. 351. 25 Id., p. 352.
Desde a chegada dos primeiros missionários no Brasil acompanhando o primeiro
Governador geral Tomé de Sousa, no ano de 1549, o “modo de proceder” jesuítico já
incomodava alguns segmentos da sociedade.
Num primeiro momento, a arenga se deu com o clero secular em terras brasileiras. O
primeiro bispo do Brasil, D. Pero Sardinha não concordava com a flexibilidade jesuítica nos
diversos sacramentos ministrados junto aos povos autóctones. Entre as críticas mais duras
estava a modificação nas leis de matrimônio que permitia o casamento entre nativos com
parentesco de segundo grau. 26 Outra abertura tolerada pelos padres da Companhia condenada
duramente por Sardinha era violação do princípio da privacidade da penitência, uma vez que
crianças bilíngües eram utilizadas no âmbito do confessionário. 27 Além disso, a utilização de
práticas gentílicas no auxilio a conversão, tais como a música e a dança, também não eram
vistas com “bons olhos” por alguns segmentos da própria Igreja. 28
(...) dizia y digo aora a V.R. que estrañe mucho, y estrañan todos a los padres confesaren las místicas mugeres casadas com portugueses per intérprete, niño de doze o 13 años nacido y creado en la tierra; y también andaren tañendo y cantando los días de fiesta los instrumentos y sonos que os gentiles tañen y cantan quando andan embriagados y hazen sus matares. 29
Poucas décadas após o inicio dos trabalhos missionários os inacianos passaram a ser
alvos de críticas provenientes dos senhores de engenho, principalmente aqueles instalados no
nordeste brasileiro. 30 A animosidade existente devia-se, sobretudo a questão da escravidão
indígena. Os abusos e ataques cometidos pelos senhores do Recôncavo baiano aos indígenas,
graças a abertura proporcionada pela frouxa noção de “guerra justa” apresentada pela Coroa,
gerava uma dura reação da parte dos inacianos. Assim, estes acabavam sendo duramente
perseguidos através de reclamações feitas junto a administração colonial, sob a justificativa de
os padres da Companhia buscarem exercer o domínio exclusivo da mão-de-obra nativa. 31
26 Quadrimestre de Maio a Setembro de 1554, de Piratininga (José de Anchieta). In: ANCHIETA, José de. Informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988. Carta do padre Manuel da Nóbrega para o padre Ignácio [de Loyola] (1556). In: NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988. 27 EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 85. 28 O’MALLEY, John W. Os Primeiros Jesuítas. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS; Bauru, SP: Ed. EDUSC, 2004. 29 Carta escrita pelo primeiro bispo do Brasil, Pedro Fernandes Sardinha, ao jesuíta reitor da escola de S. Antão em Lisboa. Apud EISENBERG, José. op. cit., p. 77. 30 VAINFAS, Ronaldo. A heresia indígena: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 31 Ibid.
Com o a chegada do século XVII, o conflito ganha novas proporções avançando para a
região sul da colônia. Neste momento passam a ocorrer uma série de conflitos entre jesuítas e
a população de São Vicente. Sendo esta região caracterizada como a “porta de entrada para o
sertão” do Brasil, inúmeras expedições de apresamento de indígenas são organizadas nesta
capitania. 32 O crescimento econômico da capitania e a conseqüente falta de mão-de-obra
faziam com que os colonos vissem na escravidão do indígena um “remédio para a pobreza”. 33
Nesse sentido, os inacianos acabaram sendo perseguidos e expulsos da capitania de São
Vicente na década de 1640. A medida tomada pelos colonos junta a Câmara Municipal
permitiu o confisco das propriedades dos inacianos e a transferência dos aldeamentos para o
poder público, formando assim as “aldeias reais”. Os jesuítas seriam readmitidos na capitania
somente treze anos após o incidente, firmando um acordo que destaca a abdicação de qualquer
instrumento de defesa da liberdade dos índios. 34 Situação semelhante a relatada em São
Vicente ocorrera no Estado do Maranhão e Grão-Pará. No ano de 1661 os colonos expulsaram
os jesuítas dos aldeamentos e do colégio. Os inacianos só retornariam aos seus postos em
dezembro de 1663, porém com a perda de toda a jurisdição temporal nos assuntos indígenas
do Brasil, assim como ficava repartida a jurisdição temporal entre todas as Ordens
religiosas.35
Estes são apenas alguns exemplos que demonstram haver na colônia um sentimento
antijesuítico presente em várias camadas da sociedade colonial, sentido este que alcançaria
seu ápice no século XVIII com a expulsão da Ordem do Brasil.
CONCLUSÃO
Dentre os vários aspectos encontrados no Tratado Sexto da Parte Quinta da obra de
João Daniel é possível enfatizar a existência de um posicionamento engajado do inaciano em
relação às acusações sofridas pela Companhia de Jesus naquele período.
Por outro lado, a falta de menção a várias situações negativas que a ordem dos
inacianos vinha sofrendo em outras partes do mundo é intrigante. Porque João Daniel não cita
o conflito ocorrido nos domínios dos Sete Povos das Missões, ou a perseguição dos jesuítas
32 MONTEIRO, Jonh Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 33 Ibid. 34 Ibid. 35 HANSEN, João Adolfo. Introdução. In: VIEIRA, Antônio. Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003. p. 69-70.
nos domínios espanhóis? Talvez a resposta para a ausência de tais referências seja o
isolamento no cárcere.
Tudo nos leva a crer que o inaciano, através de um domínio da palavra escrita, buscava
tecer uma obra que defendesse os interesses dos jesuítas, principalmente daqueles em missão
no Estado do Maranhão e Grão-Pará. O texto de João Daniel nos dá uma nítida impressão de
que o autor jogava com as palavras no intuito de alcançar uma dupla interpretação.
De um lado, os duros ataques feitos à Coroa portuguesa poderiam ser vistos como uma
ferramenta para o fomento de um sentimento de insatisfação com a política imperial. Por
outro lado, o fato de estes ataques serem camuflados por noções de descrição e
aconselhamento demonstra a intenção do inaciano em não manchar ainda mais a imagem dos
jesuítas diante à Coroa. Assim, embora os jesuítas estivessem enfrentando neste momento o
período de maior crise em toda a história da Companhia, podemos apontar que ainda havia
um olhar de esperança da parte seus membros em reatar os laços com a Coroa e
conseqüentemente com o trabalho missionário.
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