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SEGUNDO O ESPIRITISMO O EVANGELHO Contendo a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação nas diversas situações da vida. Tradução atualizada e revisada pela Editora EME: Matheus Rodrigues de Camargo Allan Kardec Capivari-SP — 2020 —

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SEGUNDO O ESPIRITISMOO EVANGELHO

Contendo a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação nas diversas situações da vida.

Tradução atualizada e revisada pela Editora EME: Matheus Rodrigues de Camargo

Allan Kardec

Capivari-SP— 2020 —

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Capítulo I

nãO vIM deStRUIR a leI

As três revelações: Moisés, Cristo, o Espiritismo – Aliança da ciência e da religião – Instruções dos Espíritos: A nova era.

1. Não penseis que eu vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruí-los, mas os cumprir; pois em verdade vos digo que o céu e a Terra não passarão enquanto tudo o que está na lei não seja cumprido perfeitamente, até o último jota e o último ponto. (São Mateus, cap. V, v. 17 e 18.)

mOIsés

2. Há duas partes distintas na lei mosaica: a lei de Deus promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar estabelecida por Moisés; uma é invariável; a outra, adaptada aos costumes e ao caráter do povo, modifica-se com o tempo.

A lei de Deus está formulada nos dez mandamentos seguintes:I. Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou do Egito, da casa de servidão. Não

terás outros deuses estrangeiros diante de mim. Não farás imagem talhada, e nenhuma figura de tudo o que está acima no céu e em baixo na Terra, nem de tudo o que está nas águas sob a terra. Não os adorarás, e não lhes renderás culto soberano.

II. Não pronunciarás em vão o nome do Senhor vosso Deus.III. Lembra-te de santificar o dia de sábado.IV. Honra teu pai e tua mãe, a fim de viveres muito tempo na terra que o

Senhor teu Deus te dá.V. Não matarás.VI. Não cometerás adultério.

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O EvangElhO 31Capítulo I

VII. Não roubarás.VIII. Não prestarás falso testemunho contra teu próximo.IX. Não desejarás a mulher de teu próximo.X. Não desejarás a casa de teu próximo, nem seu servo, nem sua serva,

nem seu boi, nem seu asno, e nem coisa alguma que pertença a ele.Essa lei é de todos os tempos e de todos os países, e tem, por isso mesmo,

um caráter divino. Todas as outras são leis estabelecidas por Moisés, obrigado a manter, através do temor, um povo naturalmente violento e indisciplinado, no qual tinha de combater abusos enraizados e preconceitos obtidos na servidão do Egito. Para dar autoridade às suas leis, ele teve de atribuir uma origem divina a elas, assim como fizeram todos os legisladores dos povos primitivos. A autoridade do homem devia apoiar-se na autoridade de Deus. Mas a ideia de um Deus terrível só podia impressionar homens ignorantes, nos quais o senso moral e o sentimento de uma justiça requintada eram ainda pouco desenvolvidos. É evidente que aquele que pusera em seus mandamentos: “Não matarás; não farás mal ao teu próximo”, não podia contradizer-se fazendo delas um dever de extermínio. As leis mosaicas, propriamente ditas, tinham, portanto, um caráter essencialmente transitório.

crIstO

3. Jesus não veio destruir a lei, isto é, a lei de Deus; veio cumpri-la, ou seja, desenvolvê-la, dar-lhe seu verdadeiro sentido e adequá-la ao grau de adiantamento do homem. É por isso que se encontra nessa lei o princípio dos deveres para com Deus e para com o próximo, que é a base de sua doutrina. Quanto às leis de Moisés propriamente ditas, ao contrário, ele as modificou profundamente, tanto em relação ao conteúdo quanto à forma. Combateu constantemente o abuso das práticas exteriores e as falsas interpretações, e não podia tê-las reformado mais radicalmente senão reduzindo-as a estas palavras: “Amar a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo”, e dizendo: está aí toda a lei e os profetas.

Por essas palavras: “O céu e a Terra não passarão sem que tudo seja cumprido até o último jota”, Jesus quis dizer que era preciso que a lei de Deus fosse cumprida, isto é, fosse praticada em toda a Terra, em toda sua pureza, com todos os seus desenvolvimentos e todas as suas consequências. Pois de que serviria ter estabelecido essa lei se ela devia manter o privilégio de alguns homens ou mesmo de um só povo? Sendo todos os homens filhos de Deus, são, sem distinção, objeto da mesma solicitude.

4. Mas o papel de Jesus não foi simplesmente o de um legislador moralista, sem outra autoridade que sua palavra; veio cumprir os profetas que tinham anunciado sua vinda. Sua autoridade decorria da natureza excepcional do seu Espírito e de sua missão divina. Veio ensinar aos homens que a verdadeira vida

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32 Não vim destruir a lei

não é a da Terra, mas a do reino dos céus; ensinar-lhes o caminho que para lá conduz, os meios de se reconciliar com Deus, e preveni-los sobre o andamento das coisas que virão, para que se cumpram os destinos humanos. No entanto, não disse tudo, e sobre muitos pontos limitou-se a depositar o germe da verdade – pontos que o próprio Cristo declara que ainda não podiam ser compreendidos. Falou de tudo, mas em termos mais ou menos explícitos. Para apanhar o sentido oculto de certas palavras, seria preciso que novas ideias e novos conhecimentos viessem dar-lhes a chave, e essas ideias não podiam vir antes de um certo grau de maturidade do espírito humano. A ciência devia contribuir poderosamente para a eclosão e o desenvolvimento dessas ideias; seria preciso, para isso, dar à ciência tempo de progredir.

O espIrItIsmO

5. O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, através de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e suas relações com o mundo corporal. Mostra-nos essa relação, não mais como algo sobrenatural, mas, ao contrário, como uma das forças vivas e incessantemente ativas da natureza, como a fonte de uma multidão de fenômenos até então incompreendidos e rejeitados, por essa razão, ao domínio do fantástico e do maravilhoso. É sobre essas relações que o Cristo faz alusão em muitas circunstâncias, e é por isso que muitas coisas que disse ficaram ininteligíveis ou foram falsamente interpretadas. O Espiritismo é a chave com a ajuda da qual tudo se explica com facilidade.

6. A lei do Velho Testamento está personificada em Moisés; a do Novo Testamento está personificada no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus, mas não está personificado em nenhum indivíduo, porque é o produto do ensinamento dado não por um homem, mas pelos Espíritos, que são as vozes do céu, em todos os pontos da Terra, e através de uma incontável multidão de intermediários. É de certa forma um ser coletivo, compreendendo o conjunto dos seres do mundo espiritual, cada qual trazendo aos homens o tributo de suas luzes, para fazê-los conhecer esse mundo e a sorte que os espera.

7. Assim como Cristo disse: “Não vim destruir a lei, mas cumpri-la”, o Espiritismo diz igualmente: “Não vim destruir a lei cristã, mas cumpri-la”. Não ensina nada contrário ao que ensina o Cristo, mas desenvolve, completa e explica, em termos claros para todo mundo, o que não fora dito senão sob forma alegórica. Vem cumprir, no tempo predito, o que Cristo anunciou, e preparar o cumprimento das coisas futuras. Portanto, o Espiritismo é a obra do Cristo, que o preside e, assim como a anunciou, a regeneração que se opera e prepara o reino de Deus na Terra.

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O EvangElhO 33Capítulo I

alIança da cIêncIa e da relIgIãO

8. A ciência e a religião são as duas alavancas da inteligência humana; uma revela as leis do mundo material e a outra as leis do mundo moral. Mas uma e outra, tendo o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se. Se são a negação uma da outra, uma necessariamente está errada e, a outra, tem a razão, porque Deus não pode querer destruir sua própria obra. A incompatibilidade que se pensou existir entre essas duas ordens de ideias prende-se a um defeito de observação e a muito exclusivismo de ambas as partes. Daí um conflito do qual nasceram a incredulidade e a intolerância.

É chegado o tempo em que os ensinamentos do Cristo devem receber seu complemento; em que o véu propositadamente atirado sobre certas partes desse ensinamento deve ser levantado; em que a ciência, deixando de ser exclusivamente materialista, deve dar conta do elemento espiritual, e a religião, deixando de desconhecer as leis orgânicas e imutáveis da matéria, e essas duas forças, apoiando-se uma na outra, e caminhando juntas, irão auxiliar-se mutuamente. Então a religião, não mais recebendo desmentido da ciência, adquirirá um poder inabalável, porque estará de acordo com a razão, e não se poderá opor-lhe a irresistível lógica dos fatos.

A ciência e a religião não puderam entender-se até hoje porque cada uma, encarando as coisas exclusivamente de seu ponto de vista, repeliam-se mutuamente. Seria preciso algo para preencher o vazio que as separava, um traço de união que as reaproximasse. Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o mundo espiritual e suas relações com o mundo corporal, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez constatadas essas novas relações pela experiência, uma nova luz se fez: a fé se dirigiu à razão, a razão nada encontrou de ilógico na fé, e o materialismo foi vencido. Mas nisso, como em todas as coisas, há pessoas que ficam para trás, até que sejam arrastadas pelo movimento geral que as esmaga – se querem resistir em lugar de entregar-se a ele. Esse movimento é toda uma revolução moral que neste momento se opera e que prepara os espíritos, trabalhando-os. Após ser elaborada durante mais de dezoito séculos, ora tange seu cumprimento, e vai marcar uma nova era para a humanidade. As consequências dessa revolução são fáceis de prever: deve produzir inevitáveis modificações nas relações sociais, às quais ninguém poderá opor-se, pois estão nos desígnios de Deus e resultam da lei do progresso, que é uma lei de Deus.

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34 Não vim destruir a lei

Instruções dos espírItos

a nOva era

9. Deus é único, e Moisés é o Espírito que Deus enviou em missão para O fazer conhecer, não somente aos hebreus, mas também aos povos pagãos. O povo hebreu foi o instrumento de que Deus se serviu para fazer sua revelação a Moisés e aos profetas, e as vicissitudes desse povo foram destinadas a impressionar os olhos e fazer tombar o véu que lhes ocultava a divindade.

Os mandamentos de Deus dados por Moisés trazem em si o germe da mais ampla moral cristã; no entanto, os comentários da Bíblia restringiram-lhe o sentido, porque, se realizada em sua total pureza naquela ocasião, não teria sido compreendida. Mas, mesmo assim, os dez mandamentos de Deus continuam sendo o brilhante frontispício, o farol que deve iluminar a humanidade na rota a ser percorrida.

A moral ensinada por Moisés era apropriada ao estado de adiantamento em que se encontravam os povos que ela era chamada a regenerar. Esses povos, semi-selvagens quanto ao aperfeiçoamento de sua alma, não teriam compreendido que se pode adorar a Deus de forma diversa da dos holocaustos, e nem que se poderia perdoar a um inimigo. Sua inteligência, notável sob o ponto de vista da matéria – e mesmo sob o das artes e das ciências –, estava bastante atrasada em moralidade, e não se teria convertido sob o império de uma religião inteiramente espiritual. Era preciso uma representação semi-material, tal como então a oferecia a religião hebraica. Assim, os holocaustos falavam a seus sentidos, enquanto a ideia de Deus falava a seu espírito.

Cristo foi o iniciador da moral mais pura, mais sublime. Da moral evangélica cristã que deve renovar o mundo, reaproximar os homens e torná-los irmãos; que deve fazer jorrar de todos os corações humanos a caridade, e o amor ao próximo, e criar entre todos os homens uma solidariedade comum. Enfim, de uma moral que deve transformar a Terra, e fazer dela uma morada de Espíritos superiores aos que hoje a habitam. É a lei do progresso, à qual a natureza está submetida, que se cumpre, e o Espiritismo é a alavanca da qual Deus se serve para fazer avançar a humanidade.

É chegado o tempo em que as ideias morais devem desenvolver-se para cumprir o progresso que está nos desígnios de Deus. Devem seguir o mesmo caminho percorrido pelas ideias de liberdade – que lhe foram precursoras. Mas é preciso saber que esse desenvolvimento não se fará sem luta. Não; elas necessitam, para chegar à maturidade, de abalos e de discussões, a fim de que atraiam a atenção das massas. Uma vez fixada a atenção, a beleza e a santidade da moral tocarão os espíritos, e eles se interessarão por uma ciência que lhes dá a chave da vida futura e lhes abre as portas da felicidade eterna. Moisés abriu o caminho; Jesus continuou a obra; o Espiritismo a acabará. (Um

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O EvangElhO 35Capítulo I

Espírito israelita. Mulhouse, 1861.)10. Um dia, Deus, em sua caridade inesgotável, permitiu ao homem ver a

verdade atravessar as trevas; esse dia foi o advento do Cristo. Depois da luz viva, as trevas voltaram. O mundo, após alternância entre verdade e obscuridade, perdia-se novamente. Então, semelhantes aos profetas do Velho Testamento, os Espíritos se põem a falar e a advertir-vos. O mundo é abalado em suas bases; o trovão rebentará; sede firmes!

O Espiritismo é de ordem divina, pois repousa sobre as próprias leis da natureza, e, crede, tudo o que é de ordem divina tem um objetivo grande e útil. Vosso mundo se perdia. A ciência, desenvolvendo-se em detrimento dos interesses morais, em tudo vos conduzia ao bem-estar material, e desviava-se em favor do Espírito de trevas. Vós o sabeis, cristãos, o coração e o amor devem caminhar unidos à ciência. O reino do Cristo, ai de mim!, após dezoito séculos, e apesar do sangue de tantos mártires, ainda não chegou. Cristãos, voltai ao Mestre que vos quer salvar. Tudo é fácil para quem crê e quem ama. O amor preenche-o com uma alegria inefável. Sim, meus filhos, o mundo está abalado. Os bons Espíritos já muito vos disseram. Curvai-vos ao sopro precursor da tempestade, para não serdes derrubados; ou seja: preparai-vos, e não sejais como as virgens loucas que foram apanhadas desprevenidas à chegada do esposo.

A revolução que se prepara é antes moral que material. Os grandes Espíritos, mensageiros divinos, sopram a fé para que todos vós, obreiros esclarecidos e ardentes, façais ouvir vossa humilde voz. Pois sois grão de areia, mas sem grãos de areia não haveria montanhas. Assim, que esta fala: “Somos pequenos”, não tenha sentido para vós. A cada um sua missão, a cada um seu trabalho. A formiga não constrói o edifício de sua república, e animálculos imperceptíveis não erguem continentes? A nova cruzada começou. Apóstolos da paz universal, e não da guerra, São Bernardos modernos, olhai e caminhai para frente; a lei dos mundos é a lei do progresso. (Fénelon. Poitiers, 1861.)

11. Santo Agostinho é um dos maiores divulgadores do Espiritismo. Manifesta-se quase por toda parte. Temos a razão disso em sua vida de grande filósofo cristão. Ele pertenceu a essa vigorosa falange de Pais da Igreja, aos quais a cristandade deve seus mais sólidos alicerces. Como muitos, foi arrancado do Paganismo, melhor dizendo, da impiedade mais profunda, pelo brilho da verdade. Quando, em meio a seus excessos, sentiu em sua alma esta estranha vibração que o trouxe de volta a si mesmo, e lhe fez compreender que a felicidade estava alhures e não nos prazeres enervantes e fugitivos; quando, enfim, sobre sua estrada de Damasco, ouviu, ele também, a santa voz lhe gritar: Saulo, Saulo, por que me persegues?, exclamou: Meu Deus! Meu Deus! Perdoai-me, eu acredito, eu sou cristão! E desde então tornou-se um dos mais firmes defensores do Evangelho. Pode-se ler, nas confissões notáveis que nos deixou esse eminente Espírito, as palavras ao mesmo tempo características e proféticas que pronunciou após ter perdido Santa Mônica: “Estou convencido de que minha mãe voltará

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36 Não vim destruir a lei

visitar­me e me dar conselhos, revelando­me o que nos espera na vida futura”. Que ensinamento nessas palavras, e que previsão brilhante da futura doutrina! É por isso que, hoje, vendo chegada a hora da divulgação da verdade que ele pressentira outrora, fez-se dela ardente propagador, e se multiplica, por assim dizer, para responder a todos aqueles que o chamam. (Erasto, discípulo de São Paulo, Paris, 1863.)

Nota – Santo Agostinho vem, então, derrubar aquilo que ergueu? Seguramente não; mas, como tantos outros, vê com os olhos do espírito o que não via como homem. Sua alma, livre, entrevê novas claridades; compreende o que não compreendia antes. Novas ideias revelaram-lhe o verdadeiro sentido de certas palavras. Quando na Terra, julgava as coisas segundo os conhecimentos que possuía, mas quando uma nova luz se fez para ele, pôde julgá-las com maior sanidade. Foi assim que teve de voltar atrás sobre sua crença a respeito dos Espíritos íncubos e súcubos, e sobre o anátema que tinha lançado contra a teoria dos antípodas. Agora que o Cristianismo lhe aparece em toda sua pureza, pode, sobre certos pontos, pensar de forma diferente de quando vivo, sem deixar de ser o apóstolo cristão. Pode, sem renegar sua fé, fazer-se o propagador do Espiritismo, porque vê nele o cumprimento das coisas preditas. Proclamando-o hoje, não faz mais do que nos levar a uma interpretação mais sã e mais lógica dos textos. Ocorre o mesmo a outros Espíritos que se encontram numa posição análoga.

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Capítulo II

MeU ReInO nãO é deSte MUndO

A vida futura – A realeza de Jesus – O ponto de vista – Instruções dos Espíritos: Uma realeza terrena.

1. Então Pilatos reentrou no palácio, fez vir Jesus e lhe disse: Tu és o rei dos judeus? Jesus lhe respondeu: Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, minha gente teria combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus; mas meu reino não é aqui.

Pilatos então lhe disse: És, portanto, rei? Jesus lhe replicou: Tu o dizes; eu sou rei; nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade; quem é da verdade escuta a minha voz. (João, cap. XVIII, v. 33, 36 e 37.)

a vIda futura

2. Por essas palavras Jesus designa claramente a vida futura, que apresenta em todas as circunstâncias como o fim a que se destina a humanidade, e que deve ser objeto das principais preocupações do homem na Terra. Todas as suas máximas estão relacionadas a esse grande princípio. Sem a vida futura, com efeito, a maior parte de seus preceitos de moral não teriam nenhuma razão de ser. Por isso, os que não creem na vida futura imaginam que ele não fala senão da vida presente, não compreendendo esses preceitos, ou achando-os pueris.

Portanto, esse dogma pode ser considerado como o pivô do ensinamento do Cristo. Por isso é colocado como um dos primeiros, encabeçando esta obra, pois deve ser o alvo de todos os homens. Só ele pode justificar os absurdos da vida terrestre e pô-la em acordo com a justiça de Deus.

3. Os judeus tinham ideias muito incertas sobre a vida futura. Acreditavam em anjos, que consideravam seres privilegiados da criação, mas não sabiam

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38 Meu reino não é deste Mundo

que os homens poderiam tornar-se anjos e partilhar sua felicidade. Para eles, a observação das leis de Deus era recompensada com os bens terrenos, a supremacia de sua nação, as vitórias sobre seus inimigos. As calamidades públicas e as derrotas eram o castigo por sua desobediência. A um povo pastor, ignorante, que devia comover-se sobretudo com coisas deste mundo, Moisés não podia dizer mais do que disse. Mais tarde, Jesus viria revelar que existe um outro mundo onde a justiça de Deus segue seu curso. É esse mundo que ele promete àqueles que observam os mandamentos de Deus, e onde os bons encontrarão sua recompensa. Esse mundo é seu reino. Lá ele está em toda sua glória, e é para onde retornará deixando a Terra.

Jesus, entretanto, conformando seu ensinamento ao estado dos homens de sua época, acreditou que não devia transmitir-lhes a luz absoluta, que os deslumbraria sem esclarecê-los, pois não a compreenderiam. Limitou-se, de algum modo, a propor a vida futura como um princípio, uma lei da natureza, da qual ninguém pode escapar. Portanto, todo cristão forçosamente acredita na vida futura. Mas a ideia que muitos fazem dela é vaga, incompleta, e por isso mesmo falsa em vários pontos; daí as dúvidas e até a incredulidade.

O Espiritismo veio completar – nesse ponto como em muitos outros – o ensinamento do Cristo, quando os homens estavam mais maduros para compreender a verdade. Com o Espiritismo, a vida futura não é mais um simples artigo de fé, uma hipótese. É uma realidade material demonstrada pelos fatos, pois são as testemunhas oculares que vêm descrevê-la em todas as suas fases e em todas as suas peripécias. De tal sorte que não somente a dúvida não é mais possível, mas também a inteligência mais vulgar pode representá-la sob seu verdadeiro aspecto, como se representa um país de que se leu uma descrição detalhada. Ora, essa descrição da vida futura é de tal forma circunstanciada, as condições de existência feliz ou infeliz dos que nela se encontram são tão racionais, que acabamos por concordar que não pode ser de outro modo, e que, certamente, aí está a verdadeira justiça de Deus.

a realeza de jesus

4. O reino de Jesus não é deste mundo, é o que todos compreendem; mas também não há uma realeza na Terra? O título de rei nem sempre exige o exercício do poder temporal. É dado através de um consentimento unânime àquele cujo gênio o coloca em primeiro lugar numa ordem de ideias quaisquer, que domina seu século e influi no progresso da humanidade. É nesse sentido que se diz: o rei ou príncipe dos filósofos, dos artistas, dos poetas, dos escritores, etc. Essa realeza, nascida do mérito pessoal e consagrada pela posteridade, frequentemente não é muito superior à que carrega o diadema? É uma realeza imperecível, enquanto a outra é o jogo das vicissitudes. Sempre é abençoada pelas gerações futuras, enquanto a outra muitas vezes é amaldiçoada. A realeza

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O EvangElhO 39Capítulo II

terrestre tem seu fim quando a vida acaba. A realeza moral governa ainda, e sobretudo, após a morte. Nesse aspecto, Jesus não é um rei mais poderoso do que muitos potentados? Portanto, é com razão que ele dizia a Pilatos: Sou rei, mas meu reino não é deste mundo.

O pOntO de vIsta

5. A ideia clara e precisa que se faz da vida futura dá uma fé inabalável no porvir, e essa fé tem imensas consequências sobre a moralização dos homens. Ela muda completamente o ponto de vista sob o qual eles encaram a vida terrestre. Para aquele que se coloca, através do pensamento, na vida espiritual – que é infinita –, a vida corporal não é mais que uma passagem, uma curta estação num país ingrato. As vicissitudes e as tribulações da vida não são mais que incidentes que ele recebe com paciência, pois sabe que são de curta duração, e devem ser seguidos por um estado mais feliz. A morte não é mais algo assustador, não é mais a porta do nada, mas a da libertação, que abre ao exilado a entrada de uma morada de felicidade e paz. Sabendo que está num lugar temporário e não definitivo, encara as preocupações da vida com mais indiferença, e disso resulta-lhe uma calma de espírito que abranda a amargura daquela.

Pela simples dúvida sobre a vida futura, o homem torna a levar todos os seus pensamentos para a vida terrestre. Incerto sobre o porvir, ele dá tudo pelo presente. Não entrevendo bens mais preciosos que os da Terra, é como a criança que não vê nada além de seus brinquedos. A perda do menor de seus bens é uma ferida pungente. Um engano, uma esperança desiludida, uma ambição não satisfeita, uma injustiça da qual seja vítima, o orgulho ou a vaidade ferida são tormentos tais que tornam sua vida uma angústia perpétua, fazendo de todos os seus instantes, voluntariamente, uma verdadeira tortura. Fixando seu ponto de vista pela vida terrestre, no centro da qual ele está colocado, tudo ao seu redor toma vastas proporções. O mal que o atinge, como o bem que compete aos outros, tudo adquire, aos seus olhos, uma grande importância. Assim também ocorre a quem está no interior de uma cidade: tudo lhe parece grande – os homens que estão em altas escadas, os monumentos. Mas, subindo numa montanha, homens e coisas vão parecer-lhe muito pequenos.

Assim ocorre com quem encara a vida terrestre do ponto de vista da vida futura: a humanidade, como as estrelas do firmamento, perde-se na imensidão. Ele então percebe que grandes e pequenos se confundem como formigas sobre um monte de terra. Que proletários e patrões são da mesma estatura, e lamenta estes efêmeros que se ocupam tanto em conquistar aqui um posto que os eleva tão pouco, e que guardam por tão pouco tempo. É assim que a importância atribuída aos bens terrenos está sempre em razão inversa à fé na vida futura.

6. Se todos pensassem desse modo, dir-se-ão, ninguém mais se ocupando

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40 Meu reino não é deste Mundo

das coisas da Terra, tudo nela estaria em perigo. Não. O homem busca instintivamente seu bem-estar, e, mesmo com a certeza de só estar por pouco tempo num lugar, ainda assim quer passar da melhor maneira – ou menos ruim – possível. Ninguém, encontrando um espinho sob sua mão, não o retira para não se picar. Ora, a busca do bem-estar força o homem a melhorar todas as coisas, empurrado pelo instinto do progresso e da conservação, que está na lei da Natureza. Portanto, ele trabalha por necessidade, por gosto e por dever, e com isso cumpre os desígnios da Providência, que o coloca na Terra com essa finalidade. Só aquele que considera o futuro pode atribuir ao presente uma importância relativa, e facilmente se consola de seus fracassos, pensando no destino que o espera.

Deus não condena, pois, os gozos terrenos, mas o abuso desses gozos em prejuízo das coisas da alma. Contra esse abuso estão prevenidos os que aplicam a si esta fala de Jesus: Meu reino não é deste mundo.

Aquele que se identifica com a vida futura assemelha-se a um homem rico que perde uma pequena soma sem se perturbar; aquele que concentra seus pensamentos na vida terrestre é como um homem pobre que perde tudo o que possui e se desespera.

7. O Espiritismo alarga o pensamento e abre-lhe novos horizontes. Em lugar dessa visão estreita e mesquinha, que o concentra sobre a vida presente – e que faz do instante que se passa na Terra o único e frágil eixo do futuro eterno –, ele mostra que esta vida é só um anel no conjunto harmonioso e grandioso da obra do Criador. Mostra a solidariedade que religa todas as existências do mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os mundos, ao passo que a doutrina da criação da alma no momento do nascimento do corpo torna os seres estranhos uns aos outros. Essa solidariedade das partes de um mesmo todo explica o que é inexplicável se só se focaliza um único ponto do todo. É esse conjunto que, no tempo do Cristo, os homens não poderiam ter compreendido, e por isso ele deixou esse conhecimento reservado para um outro tempo.

Instrução dos espírItos

uma realeza terrena

8. Quem melhor que eu pode compreender a verdade dessa fala de Nosso Senhor: Meu reino não é deste mundo? O orgulho fez que eu me perdesse na Terra. Quem, pois, compreenderia o vazio dos reinos terrenos, se eu não o compreendesse? O que levei comigo de minha realeza terrestre? Nada, absolutamente nada. E para tornar-me a lição mais terrível, ela não me acompanhou nem até a tumba! Rainha eu era entre os homens, rainha eu

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O EvangElhO 41Capítulo II

acreditava entrar no reino dos céus. Que desilusão! Que humilhação quando, em lugar de lá ser recebida com soberania, vi acima de mim, mas muito acima, homens que eu acreditava muito pequenos, e que desprezava, porque não eram de sangue nobre! Oh! o que então eu compreendi da esterilidade das honrarias e das grandezas que se buscam com tanta avidez na Terra!

Para se preparar um lugar nesse reino é preciso abnegação, humildade, caridade em toda sua celeste prática, benevolência para com todos. Não vos perguntam quem fostes, qual posto ocupastes, mas o bem que fizestes, as lágrimas que enxugastes.

Oh! Jesus, tu o disseste, teu reino não era deste mundo.Pois é preciso sofrer para chegar ao céu, e os degraus do trono não vos

aproximam dele. São os atalhos mais penosos da vida que para lá conduzem. Portanto, procurai a estrada do céu entre os abrolhos e os espinhos, e não entre as flores.

Os homens correm atrás dos bens terrenos como se pudessem guardá-los para sempre. Mais ilusão. Logo percebem que se agarraram a uma sombra, e negligenciaram os únicos bens sólidos e duráveis, os únicos que lhes têm proveito na celeste morada, os únicos que podem abrir-lhes o acesso dela.

Tende piedade daqueles que não ganharam o reino dos céus. Ajudai-os com vossas preces, pois a prece reconcilia o homem com o Altíssimo – é o traço de união entre o céu e a Terra, não o esqueçais. (Uma rainha da França. Havre, 1863.)

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Capítulo III

HÁ MUItaS MORadaS na caSa de MeU PaI

Diferentes estados da alma na erraticidade – Diversas categorias de mundos habitados – Destinação da Terra. Causa das misérias humanas – Instruções dos Espíritos: Mundos superiores e mundos inferiores – Mundos de expiações e de provas – Mundos regeneradores – Progressão dos mundos.

1. Que vosso coração não se perturbe. Crede em Deus, crede em mim também. Há muitas moradas na casa de meu Pai. Se assim não fosse, eu vos teria dito, pois vou para preparar-vos um lugar, e depois que me for, e que vos tiver preparado um lugar, eu retornarei, e vos levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, vós aí também estejais. (São João, cap. XIV, v. 1, 2, 3.)

dIferentes estadOs da alma na erratIcIdade

2. A casa do Pai é o Universo. As diferentes moradas são os mundos que circulam no espaço infinito e oferecem aos Espíritos encarnados estadas adequadas ao seu avanço.

À parte a diversidade dos mundos, essas palavras também podem ser entendidas como o estado feliz ou infeliz do Espírito na erraticidade. Conforme ele seja mais ou menos depurado e desprendido dos laços materiais, o meio em que se encontra, o aspecto das coisas, as sensações que experimenta e as percepções que possui variam ao infinito. Enquanto uns não podem se

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distanciar da esfera na qual viveram, outros se elevam e percorrem o espaço e os mundos. Enquanto certos Espíritos culpados erram nas trevas, os justos gozam de uma claridade resplandecente e do sublime espetáculo do infinito. Enfim, enquanto o mau, atormentado por remorsos e lamentos, frequentemente só, sem consolação, separado dos objetos de sua afeição, geme sob a opressão dos sofrimentos morais, o justo, junto dos que ama, saboreia as doçuras de uma indizível felicidade. Portanto, essas também são várias moradas, embora não sejam nem circunscritas nem localizadas.

dIversas categOrIas de mundOs habItadOs

3. Resulta, do ensinamento dado pelos Espíritos, que os diversos mundos estão, uns em relação aos outros, em condições muito diferentes quanto ao grau de adiantamento ou de inferioridade de seus habitantes. De sua totalidade, há aqueles cujos habitantes são ainda mais inferiores que os da Terra, física e moralmente. Outros estão no mesmo grau, e outros lhe são mais ou menos superiores, em todos os sentidos. Nos mundos inferiores, a existência é totalmente material, as paixões reinam soberanas, a vida moral é quase nula. À medida que esta se desenvolve, a influência da matéria diminui, de tal modo que nos mundos mais avançados a vida é, por assim dizer, totalmente espiritual.

4. Nos mundos intermediários, há mistura de bem e mal, e predominância de um ou de outro segundo o grau de adiantamento. Embora não se possa fazer uma classificação absoluta dos diversos mundos, pode-se, todavia, em razão de seu estado e de sua destinação, e baseando-se nas nuanças mais acentuadas, dividi-los de um modo geral, como segue: mundos primitivos, destinados às primeiras encarnações da alma humana; mundos de expiações e provas, nos quais domina o mal; mundos regeneradores, nos quais as almas que ainda têm o que expiar vão buscar novas forças, repousando inteiramente das fadigas da luta; mundos felizes, nos quais o bem supera o mal; mundos celestes ou divinos – morada dos Espíritos depurados –, nos quais o bem reina exclusivo. A Terra pertence à categoria dos mundos de expiações e provas; é por isso que nela o homem está exposto a tantas misérias.

5. Os Espíritos encarnados num determinado mundo não estão indefinidamente ligados a ele, e não cumprem nele todas as fases progressivas que devem percorrer para chegar à perfeição. Quando atingem, num mundo, o grau de adiantamento que ele comporta, passam para outro mais avançado, e assim sucessivamente até que tenham chegado ao estado de Espíritos puros. São outras tantas estações, em cada uma das quais eles encontram elementos de progresso proporcionais ao seu adiantamento. Para os Espíritos, é uma recompensa passar a um mundo de ordem mais elevada, como é um castigo prolongar sua estada num mundo infeliz, ou serem relegados a um mundo ainda mais infeliz que aquele que são forçados a deixar, quando estão obstinados no mal.

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destInaçãO da terra. causa das mIsérIas humanas

6. Espanta encontrar-se na Terra tanta maldade e más paixões, tantas misérias e enfermidades de todo tipo, e conclui-se que a espécie humana é uma triste coisa. Esse julgamento provém do limitado ponto de vista a partir do qual é emitido, e que dá uma falsa ideia do conjunto. É preciso considerar que não se vê sobre a Terra toda a humanidade, mas uma pequenina fração dela. Com efeito, a espécie humana compreende todos os seres dotados de razão que povoam os inumeráveis mundos do Universo. Ora, o que é a população da Terra ante a população total desses mundos? Bem menos que a de um lugarejo em relação à de um império. A situação material e moral da humanidade terrena nada mais tem de surpreendente, se se leva em conta a destinação da Terra e a natureza dos que a habitam.

7. Far-se-ia uma ideia muito falsa dos habitantes de uma grande cidade se fossem julgados pela população de bairros ínfimos e sórdidos. Num hospício, só se veem doentes ou estropiados. Num presídio, veem-se todas as torpezas, todos os vícios reunidos. Nas regiões insalubres, a maioria dos habitantes são pálidos, fracos e necessitados. Pois bem. Imagine-se a Terra como sendo um subúrbio, um hospício, uma penitenciária, um país malsão – pois ela é tudo isso ao mesmo tempo –, e compreender-se-á por que as aflições sobrepujam os prazeres. Pois não se enviam ao hospício pessoas sadias, nem às casas de correção os que não fizeram o mal. E nem os hospícios nem as casas de correção são lugares de delícias.

Ora, do mesmo modo que numa cidade nem toda a população está nos hospícios ou nas prisões, nem toda a humanidade está sobre a Terra. Assim como se sai do hospício quando se está curado, e da prisão quando se cumpriu o tempo, o homem deixa a Terra por mundos mais felizes quando está curado de suas enfermidades morais.

Instruções dos espírItos

mundOs superIOres e mundOs InferIOres

8. A qualificação de mundos inferiores e mundos superiores é antes relativa que absoluta. Tal mundo é inferior ou superior em relação aos que estão acima ou abaixo dele na escala progressiva.

Tomando-se a Terra como ponto de comparação, é possível ter uma ideia do estado de um mundo inferior supondo-se nele o homem no mesmo grau evolutivo das raças selvagens ou das nações bárbaras que ainda se encontram na superfície terrestre, e que são restos de seu estado primitivo. Nos mundos mais atrasados, os seres que os habitam são de certo modo rudimentares. Têm a

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forma humana, mas sem nenhuma beleza. Os instintos não são temperados por nenhum sentimento de benevolência, nem pelas noções de justo e injusto. A força bruta faz a lei, sozinha. Sem indústria e sem invenções, os habitantes gastam a vida na conquista de seu alimento. Entretanto, Deus não abandona nenhuma de suas criaturas. No fundo das trevas da inteligência jaz, latente, mais ou menos desenvolvida, a vaga intuição de um Ser supremo. Esse instinto basta para fazer que uns se tornem superiores a outros, preparando-lhes a eclosão numa vida mais plena. Não são seres degradados, mas crianças em crescimento.

Entre esses graus inferiores e os mais elevados, existem inumeráveis escalões. Nos Espíritos puros, desmaterializados e resplandecentes de glória, é difícil reconhecer aqueles que animaram os seres primitivos, do mesmo modo que no homem adulto é difícil reconhecer o embrião.*

9. Nos mundos que chegaram a um grau superior, as condições de vida moral e material são muito diferentes do que as da Terra. A forma do corpo sempre é, como em toda parte, a forma humana, mas embelezada, aperfeiçoada e, sobretudo, purificada. O corpo não tem nada da materialidade terrestre e, por conseguinte, não está sujeito nem às necessidades, nem às doenças, nem às deteriorações geradas pela predominância da matéria. Os sentidos, mais delicados, têm percepções que, aqui, a grosseria dos órgãos sufoca. A especial leveza dos corpos torna a locomoção rápida e fácil. O corpo, em lugar de se arrastar penosamente sobre o solo, desliza, por assim dizer, na superfície, ou plana na atmosfera, sem outro esforço que o da vontade, à maneira das representações de anjos, ou como os antigos imaginavam os manes nos Campos Elíseos. Os homens conservam conforme seu gosto os traços de suas migrações passadas, e aparecem aos seus amigos tal como os conheceram, mas iluminados por uma luz divina, transfigurados pelas impressões interiores, que são sempre elevadas. Em lugar de rostos apagados, assolados pelos sofrimentos e pelas paixões, a inteligência e a vida irradiam este brilho que os pintores traduziram pelo nimbo ou pela auréola dos santos.

A pouca resistência que a matéria oferece aos Espíritos já bem evoluídos torna rápido o desenvolvimento dos corpos, e a infância curta ou quase nula. A vida, isenta de cuidados e angústias, é proporcionalmente muito mais longa que na Terra. Em princípio, a longevidade é proporcional ao grau de avanço dos mundos. A morte nada tem dos horrores da decomposição. Longe de ser uma causa de pavor, é considerada uma transformação feliz, porque nesses mundos não há dúvida sobre o futuro.

Durante a vida, a alma, não estando encerrada em matéria compacta, irradia e goza de uma lucidez que a põe num estado quase permanente de emancipação, e permite a livre transmissão do pensamento.

10. Nesses mundos felizes, as relações entre povos, sempre amigáveis,

* Ver nota explicativa na página 290

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nunca são perturbadas pela ambição de escravizar o vizinho, nem pela guerra, que é sua consequência. Não há nem senhores, nem escravos, nem privilegiados pelo nascimento. Só a superioridade moral e intelectual estabelece a diferença das condições e dá a supremacia. A autoridade sempre é respeitada, porque só é conseguida pelo mérito, e se exerce sempre com justiça. O homem não procura elevar­se acima do homem, mas acima de si mesmo, aperfeiçoando­­se. Seu objetivo é chegar entre os Espíritos puros, e esse desejo incessante não é um tormento, mas uma nobre ambição que o faz estudar com ardor para conseguir igualá-los. Todos os sentimentos elevados da natureza humana lá se encontram engrandecidos e purificados. Os ódios, os ciúmes mesquinhos, as cobiças vis da inveja são desconhecidas. Os mais fortes ajudam os mais fracos. Um laço de amor e de fraternidade une todos os homens. Possuem mais ou menos, conforme mais ou menos tenham adquirido graças à sua inteligência, mas ninguém sofre pela falta do necessário, pois ninguém está lá em expiação. Em uma palavra, o mal não existe nesses mundos.

11. Em vosso mundo, tendes necessidade do mal para sentir o bem. Da noite para admirar a luz, da doença para apreciar a saúde. Lá, esses contrastes não são necessários. A eterna luz, a eterna beleza e a paz eterna da alma proporcionam uma eterna alegria, que não é perturbada nem pelas angústias da vida material, nem pelo contato dos maus, que lá não têm acesso. Eis o que o espírito humano tem maior dificuldade em compreender: foi engenhoso para pintar os tormentos do inferno, mas nunca pôde representar as alegrias do céu. Por que isso? Porque, sendo inferior, ele só suportou penas e misérias, e não entreviu as celestes claridades. Só pode falar do que conhece. Mas, à medida que se eleva e depura, o horizonte ilumina-se, e ele compreende o bem que está diante de si, como compreendeu o mal que ficou atrás de si.

12. Entretanto, esses mundos afortunados não são privilegiados, pois Deus não é parcial com nenhum de seus filhos. Dá a todos os mesmos direitos e as mesmas facilidades para chegarem lá. Faz que partam todos do mesmo ponto, e não dota nenhum mais do que outros. Os primeiros postos são acessíveis a todos: cabe-lhes conquistá-los através de seu trabalho, e atingi-los o mais cedo possível, ou abandonar-se durante séculos e séculos nas baixas camadas da humanidade. (Resumo do ensinamento de todos os Espíritos superiores)

mundOs de expIações e de prOvas

13. Que vos direi dos mundos de expiações que já não saibais, pois basta considerar a Terra que habitais? A superioridade da inteligência, em grande número de seus habitantes, indica que ela não é um mundo primitivo, destinado à encarnação de Espíritos que acabaram de sair das mãos do Criador. As qualidades inatas que eles trazem consigo são a prova de que já viveram e realizaram um certo progresso. Mas os numerosos vícios aos quais são inclinados também

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são o índice de uma grande imperfeição moral. Por isso Deus os colocou sobre uma terra ingrata, para aí expiarem suas faltas através de trabalhos penosos e de misérias da vida, até que mereçam ir para um mundo mais feliz.

14. No entanto, nem todos os Espíritos encarnados na Terra encontram-se em expiação. As raças denominadas selvagens são constituídas de Espíritos apenas saídos da infância, e que estão, por assim dizer, educando-se e desenvolvendo-se ao contato de Espíritos mais evoluídos. Vêm, a seguir, as raças semicivilizadas, formadas por esses mesmos Espíritos em progresso. São as raças indígenas da Terra, que se desenvolveram pouco a pouco, em longos períodos seculares, conseguindo, algumas, alcançar a perfeição intelectual dos povos mais esclarecidos.

Os Espíritos aí em expiação são – se assim se pode exprimir – como que estrangeiros. Já viveram em outros mundos, dos quais foram excluídos em consequência de sua obstinação no mal, e por serem motivo de perturbações para os bons. Foram relegados, por um tempo, a conviver entre Espíritos mais atrasados, e têm por missão fazê-los avançar, pois levaram consigo a inteligência desenvolvida e o germe dos conhecimentos adquiridos. Por isso encontram-se Espíritos punidos entre as raças mais inteligentes. São para estas, também, que as misérias da vida têm maior amargura, por terem maior sensibilidade, e serem mais afligidas pelo pesar do que as raças primitivas, cujo senso moral é mais obtuso.*

15. A Terra fornece-se, pois, como um dos tipos de mundos expiatórios, cujas variedades são infinitas, mas que têm por caráter comum servir como local de exílio a Espíritos rebeldes à lei de Deus. Esses Espíritos aí têm que lutar, de uma só vez, contra a perversidade dos homens e a inclemência da natureza. Trabalho duplamente penoso, que desenvolve ao mesmo tempo as qualidades do coração e as da inteligência. É assim que Deus, em sua bondade, reverte o próprio castigo em favor do progresso do Espírito. (Santo Agostinho. Paris, 1862.)

mundOs regeneradOres

16. Entre estas estrelas que cintilam na abóboda azulada, quantos mundos há, como o vosso, designados pelo Senhor para a expiação e a prova! Mas há também os mais infelizes e os melhores, como há os transitórios, que se pode chamar de regeneradores. Cada turbilhão planetário, correndo no espaço em torno de um foco comum, arrasta consigo seus mundos primitivos, de exílio, de prova, de regeneração e de felicidade. Já vos foi falado desses mundos em que a alma nascente é colocada, enquanto ainda ignorante do bem e do mal. Ela pode caminhar até Deus, senhora de si, possuindo seu livre-arbítrio. Já vos foi dito sobre as amplas faculdades de que a alma foi dotada para fazer o bem.

* Ver nota explicativa na página 290

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Mas, ah! Há as que sucumbem, e Deus, não as querendo aniquilar, permite-lhes ir para esses mundos em que, de encarnação em encarnação, se depuram, regeneram-se, e retornam dignas da glória que lhes fora destinada.

17. Os mundos regeneradores servem de transição entre os mundos de expiação e os mundos felizes. A alma que se arrepende lá encontra calma e descanso, terminando sua depuração. Sem dúvida, nesses mundos o homem ainda está sujeito às leis que regem a matéria. A humanidade experimenta vossas sensações e desejos, mas está liberta das paixões desordenadas das quais sois escravos. Lá não há mais o orgulho que faz calar o coração, nem a inveja que o tortura, nem o ódio que o sufoca. A palavra amor está escrita em todas as frontes, uma perfeita equidade regula as relações sociais. Todos reconhecem Deus, e tentam chegar até Ele seguindo suas leis.

Entretanto, ainda não existe, lá, a felicidade perfeita, mas a aurora da felicidade. O homem ainda é carne e, por isso mesmo, sujeito às vicissitudes das quais só estão isentos os seres completamente perfeitos. Ainda há provas a sofrer, mas elas não têm as pungentes angústias da expiação. Comparados à Terra, esses mundos são bem felizes, e muitos entre vós ficariam satisfeitos em fixar-se neles, pois é a calma após a tempestade, a convalescença após uma cruel doença. Neles o homem, menos absorvido pelas coisas materiais, entrevê melhor do que vós o futuro. Compreende haver outras alegrias que o Senhor promete àqueles que se tornam dignos delas, quando a morte novamente ceifar seus corpos para dar-lhes a verdadeira vida. É então que, liberta, a alma planará sobre todos os horizontes. Não mais os sentidos materiais e grosseiros, mas os sentidos de um perispírito puro e celeste, aspirando as emanações do próprio Deus, sob os aromas do amor e da caridade que se expandem de seu seio.

18. Mas, ah! Nesses mundos, o homem ainda é falível, e o Espírito do mal não perdeu completamente seu império. Não avançar é recuar, e se ele não está firme no caminho do bem, pode tornar a cair nos mundos de expiação, nos quais o esperam novas e mais terríveis provas.

Contemplai, pois, essa abóboda azulada, à noite, à hora do repouso e da prece, e nessas esferas inumeráveis que brilham sobre vossas cabeças, perguntai-vos quais levam a Deus, e rogai-Lhe que um mundo regenerador vos abra o seio após a expiação da Terra. (Santo Agostinho. Paris, 1862.)

prOgressãO dOs mundOs

19. O progresso é uma das leis da natureza. Todos os seres da criação, animados e inanimados, estão sujeitos a ele pela bondade de Deus, que quer que tudo cresça e prospere. A própria destruição, que parece aos homens o termo das coisas, não é senão um meio de se chegar, pela transformação, a um mundo mais perfeito. Tudo morre para renascer, e coisa alguma retorna ao nada.

Ao mesmo tempo que os seres vivos progridem moralmente, os mundos

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que eles habitam progridem materialmente. Quem pudesse acompanhar um mundo em suas diversas fases, desde o instante em que se aglomeraram os primeiros átomos que serviram para constituí-lo, vê-lo-ia percorrer uma escala incessantemente progressiva – mas através de degraus insensíveis a cada geração –, até oferecer a seus habitantes uma morada mais agradável, à medida que eles próprios avançam no caminho do progresso. Assim caminham, paralelamente, o progresso do homem, o dos animais – seus auxiliares –, dos vegetais e da habitação, pois nada é estacionário na natureza. Quanto essa ideia é grande e digna da majestade do Criador! E quanto, ao contrário, é pequena e indigna de sua potência a que concentra sua solicitude e sua providência no imperceptível grão de areia que é a Terra, ideia que restringe a humanidade a alguns homens que a habitam!

A Terra, seguindo essa lei, esteve material e moralmente num estado inferior ao de hoje, e atingirá, sob esse duplo aspecto, um degrau mais avançado. Ela chegou a um de seus períodos de transformação em que, de mundo expiatório, vai tornar-se mundo regenerador. Então os homens serão felizes, porque a lei de Deus aí reinará. (Santo Agostinho. Paris, 1862.)