O Fantasma de Eliza Samudio

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  Intercom  Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação  XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação   Foz do Iguaçu   2 a 5/9/2014 1 O Fantasma de Eliza Samudio 1  Felipe BORGES 2  Bruno Souza LEAL 3  Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG Resumo Este artigo trata da cobertura midiática sobre os desdobramentos do caso de assassinato de Eliza Samudio, analisando como o foco do noticiário está sempre no goleiro Bruno Fernandes, autor do crime. A partir de Mouillaud, mostramos como é projetada uma sombra sobre Eliza, que desaparece da mídia ao mesmo tempo em que projeta a fama de Bruno, quando discorremos sobre o conceito de celebridade. Concluímos relacionando o caso com a questão da visibilidade dos crimes de gênero. Palavras-chave: mídia; Eliza Samudio; goleiro Bruno; noticiabilidade; crimes de gênero “Causa da morte: emprego de violência aplicada na forma de asfixia mecânica (esganadura)” “Sepultamento: O corpo está insepulto, pois o cultado o cadáver”  “Observações: A falecida deixou sobrevivente um filho menor, com 4 meses de vida”  (Certidão de óbito de Eliza Samudio) “Me deixem jogar” (Bruno Fernandes na capa da Revista Placar - abril/2014)  1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Jornalismo, da Intercom Júnior    X Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2  Bacharel em Comunicação Social pela UFMG. Bolsista de apoio técnico CNPq. Email:  [email protected] 3  Doutor em Estudos Literários pela UFMG, pesquisador permanente do PPGCOM/UFMG. Email:  [email protected] om 

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Artigo de Felipe Borges e Bruno Leal apresentado no Intercom Nacional - 2014

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  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Foz do Iguau 2 a 5/9/2014

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    O Fantasma de Eliza Samudio1

    Felipe BORGES2

    Bruno Souza LEAL3

    Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

    Resumo

    Este artigo trata da cobertura miditica sobre os desdobramentos do caso de assassinato

    de Eliza Samudio, analisando como o foco do noticirio est sempre no goleiro Bruno

    Fernandes, autor do crime. A partir de Mouillaud, mostramos como projetada uma

    sombra sobre Eliza, que desaparece da mdia ao mesmo tempo em que projeta a fama de

    Bruno, quando discorremos sobre o conceito de celebridade. Conclumos relacionando o

    caso com a questo da visibilidade dos crimes de gnero.

    Palavras-chave: mdia; Eliza Samudio; goleiro Bruno; noticiabilidade; crimes de

    gnero

    Causa da morte: emprego de violncia aplicada na forma de asfixia mecnica

    (esganadura)

    Sepultamento: O corpo est insepulto, pois ocultado o cadver

    Observaes: A falecida deixou sobrevivente um filho menor, com 4 meses de vida

    (Certido de bito de Eliza Samudio)

    Me deixem jogar

    (Bruno Fernandes na capa da Revista Placar - abril/2014)

    1Trabalho apresentado na Diviso Temtica Jornalismo, da Intercom Jnior X Jornada de Iniciao Cientfica em Comunicao, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao.

    2 Bacharel em Comunicao Social pela UFMG. Bolsista de apoio tcnico CNPq. Email: [email protected]

    3 Doutor em Estudos Literrios pela UFMG, pesquisador permanente do PPGCOM/UFMG. Email:

    [email protected]

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    O contraste grande entre as frases acima: o peso e a brutalidade das primeiras

    se choca com a banalidade da ltima. Esse abismo explicita um descompasso entre o

    que nos sensibiliza e mais relevante e o que parece ser importante para a mdia, que d

    voz e vez ao goleiro Bruno Fernandes, acusado do assassinato da atriz porn Eliza

    Samudio.

    A certido de bito da vtima, emitida trs anos aps o seu desaparecimento,

    relata a violncia sofrida, o sumio do corpo e a orfandade de seu filho com o goleiro,

    elementos que compuseram o intricado e ainda misterioso caso. Perto desse quadro, o

    apelo de Bruno torna-se ainda mais irrelevante e explicita como a mdia insiste em

    cobrir o caso num vis que tende a protagonizar Bruno e excluir Eliza.

    Na poca do assassinato, Bruno j era um goleiro famoso e consagrado. Aps a

    descoberta do seu envolvimento no caso, ele adquiriu um status diferente de

    celebridade, alado a uma fama ainda maior graas a Eliza. Esta, por sua vez, passou a

    ser cada vez mais apagada pela mdia, num movimento contrrio. Responsvel pelo

    destaque atual dado ao goleiro, e sempre associada a ele, Eliza tornou-se um fantasma,

    na medida em que assombra a imagem do goleiro, mas tambm fica sua sombra,

    desaparecendo da cobertura miditica.

    Este artigo um recorte do projeto Narrativas de um problema cotidiano, que

    pesquisa a cobertura miditica sobre os crimes de proximidade contra mulheres4. Nos

    meses de coleta, foram selecionados materiais relativos ao tema em trs portais da

    internet, trs telejornais, dois jornais impressos, e um radiojornal, a saber: G1, Uai e

    Uol; Jornal Nacional, Balano Geral e Jornal da Alterosa - 2 Edio; Estado de Minas

    e Super Notcia; e Jornal da Itatiaia - 1 Edio.

    No presente trabalho, nos alinhamos aos pensamentos de Mouillaud (2002) a

    respeito da visibilidade promovida pelas notcias e da consequente invisibilidade gerada

    no processo, que deixa de lado certas informaes em favor de outras. Segundo o autor,

    impossvel haver um "todo-informativo"; afinal, produzir uma superfcie visvel induz

    4 Financiado pelo CNPq.

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    a uma invisvel. Sabendo disso, chegamos ao caso do assassinato de Eliza Samudio,

    cuja cobertura oferecida pela mdia serve de exemplo para o conceito de informao de

    Mouillaud.

    Em julho de 2010, os noticirios reportam o desaparecimento e o suposto

    assassinato de Eliza Samudio, me do filho recm-nascido de Bruno, que herdou o

    nome do pai. Logo a seguir, a polcia comea a trabalhar com a hiptese de que o

    goleiro seria o mandante do crime. A cobertura miditica intensifica-se e passa a

    acompanhar de perto o desenrolar do caso, que leva priso de Bruno, seus comparsas

    Bola e Macarro, as buscas por Eliza e as diferentes verses a respeito do que aconteceu

    no percurso at o stio do jogador, localizado em Esmeraldas-MG, suposto perodo em

    que ocorreu o assassinato e ocultamento do corpo.

    A respeito do ocorrido, preciso perceber, antes de tudo, como o destaque dado

    a ele no se origina de apenas um fator, e sim de uma ampla conjuntura. Primeiramente,

    Bruno Fernandes era o goleiro titular do time mais popular do pas, o Flamengo, do Rio

    de Janeiro. Seu status de celebridade, de dolo da maior torcida de futebol do pas,

    claramente serviu para que um caso de assassinato, em meio a tantos outros crimes de

    gnero que acontecem no pas, ganhasse destaque. Afinal, o envolvimento de algum

    conhecido num caso de sequestro, desaparecimento e assassinato serviria para atrair a

    cobertura da mdia.

    Sua transformao de dolo do time em vilo de uma histria digna de filmes de

    terror, sem dvida, contribuiu para que a visibilidade dada ao caso aumentasse. Os

    detalhes macabros do ocorrido, que envolviam um suposto esquartejamento de Eliza,

    seguido, em uma verso, de que os pedaos do corpo foram atirados aos ces,

    alimentaram a curiosidade da mdia e do pblico leitor, telespectador e radiouvinte.

    Alm disso, a prpria inconclusividade do caso, decorrente do fato de at hoje o corpo

    da vtima no ter sido encontrado, gera uma aura de mistrio a respeito do que

    realmente aconteceu e sobre a certeza da culpa de Bruno (por mais que todas as

    evidncias apontem para isso), que jamais confessou o crime.

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    Aps julho de 2010, por conseguinte, Bruno passou a ser manchete dos jornais

    no pelas defesas e ttulos conquistados em campo. Sua possvel ligao com o

    assassinato de uma annima ruiu sua carreira e trouxe sua vida pessoal tona, passando

    a ser aquilo que de mais importante poderia ser noticiado sobre o jogador. A partir de

    ento, a vida de Bruno mudaria completa e definitivamente. O goleiro continuaria a ser

    uma celebridade - mas de outro tipo.

    Bruno: celebridade antes, celebridade depois

    Em seu artigo Celebridades na sociedade midiatizada: em busca de uma

    abordagem relacional, Paula Simes (2013) problematiza os conceitos de dolo, heri e

    estrela, fazendo aproximaes e distanciamentos entre os termos. De forma geral, pode-

    se dizer que os trs envolvem aspectos positivos e louvveis. Segundo ela, o termo

    celebridade, no entanto, o mais utilizado na contemporaneidade para nomear as figuras

    pblicas aladas ao lugar da fama (2013, p.106).

    Atualmente, os diferentes tipos de celebridades

    (...) so construdos na sociedade midiatizada e povoam o cenrio

    miditico de visibilidade. As pessoas famosas se tornam onipresentes

    na vida cotidiana, a partir da circulao de significados que se inicia

    nos dispositivos miditicos e permeia as interaes ordinrias.

    (SIMES, 2013, p.110)

    A ascenso de algum ao status de celebridade passa, portanto, obrigatoriamente

    pelo crivo dos canais miditicos, e os significados propostos por eles so retrabalhados

    junto ao pblico.

    interessante observar como o conceito de celebridade vem na esteira dos de

    dolo, heri e estrela todos, como j dito, de carter positivo. No entanto, no se pode

    esquecer que nem sempre as celebridades se configuram como figuras pblicas

    admirveis: sua fama pode advir de algo negativo, como a criminalidade. Talvez o

    exemplo mais conhecido seja o do americano Charles Manson, lder de um grupo que

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    assassinou vrias pessoas no fim dos anos 60, at hoje lembrado e adorado por muitos

    e uma celebridade.

    Guardadas as devidas propores, o caso de Bruno seria outro exemplo.

    Enquanto goleiro de sucesso, ele gozava do tipo de status de celebridade apontado por

    Simes. Atualmente, porm, seus feitos no campo foram esquecidos frente ao seu

    envolvimento no assassinato de Eliza, no auge de sua carreira. No se trata mais de uma

    celebridade no sentido clssico, por assim dizer.

    Levando-se em conta que pouqussimos goleiros brasileiros, sejam eles do

    Flamengo ou de outros times populares do pas ou de fora, recebem o mesmo destaque

    no noticirio do que Bruno, por motivos, muitas vezes, insignificantes, de se pensar

    que a visibilidade que ele ganha , tambm, consequncia direta do assassinato de Eliza.

    Esta seria, assim, um trampolim para o destaque dado ao goleiro, para a luz que

    jogada sobre ele constantemente, para o novo tipo de celebridade que ele se tornou.

    Afinal, notvel como seu nome passou a circular at mesmo entre aqueles que no

    acompanham o futebol, e que no o conheciam anteriormente.

    Um exemplo o destaque dado pelo noticirio brasileiro sua possvel

    transferncia para o Montes Claros, time do norte de Minas Gerais. Em situaes

    normais, a transferncia jamais receberia tamanha ateno por parte da mdia. Pelo

    contrrio: uma ou outra nota sairia, mas nada que justificasse um foco no modesto time

    mineiro, insignificante no cenrio esportivo nacional. A atual fama de Bruno e o olhar

    atento a cada um de seus passos se deve muito mais, agora, ao escndalo envolvendo

    Eliza Samudio. Bruno uma celebridade, mas no mais pelas faanhas nos gramados, e

    sim pelo assassinato de sua amante e me de seu filho. Como nos lembra Simes

    (2013), Leo Lowenthal, um dos primeiros estudiosos do tema de celebridades, j

    apontava como o interesse em indivduos se tornou um tipo de fofoca massiva

    (LOWENTHAL, 1986, p. 203). Nas matrias encontradas mais recentemente sobre o

    caso, os ganchos so, muitas vezes, fatos pequenos que apenas incentivam uma

    curiosidade a respeito do andamento do caso e sobre o declnio de um dolo.

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    Faz-se necessrio notar, nesse mesmo movimento, o modo pelo qual o goleiro

    cai num tipo de visibilidade que parece nico e definitivo. Na coleta de dados da

    pesquisa, pudemos observar como o nome de Bruno vem sempre atrelado,

    necessariamente, ao de Eliza. quase um padro, um mantra repetido em narrativas que

    independem do suporte miditico: o goleiro Bruno o condenado a 22 anos e trs

    meses de priso pela morte de Eliza Samudio ou o condenado por homicdio

    qualificado e ocultao de cadver de Eliza. O ex-jogador est, em suas aparies na

    mdia brasileira, assombrado pelo fantasma de Eliza, que o persegue em qualquer

    notcia. Bruno , assim, uma celebridade-assombrada. Os que sofrem desse tipo de

    maldio o so, geralmente, por algo ligado questo moral - como o caso aqui.

    Seu apelo na capa da Placar vem na esteira dessa assombrao. Segundo Simes

    (2010, p.109), a expanso da mdia gera um novo tipo de visibilidade, que importante

    para a maneira pela qual os indivduos se situam no mundo. Para ns, agora, Bruno , e

    sempre ser, o assassino de Eliza. Resta-nos perguntar quem seria ela.

    A sombra que assombra

    A visibilidade do goleiro Bruno vem a um preo. Retomando Mouillaud,

    vemos que alguns fatos, ou, no caso, personagens, so destacados em detrimento de

    outros, renegados sombra. No caso estudado, quem acaba esquecida Eliza Samudio.

    Nas matrias mais recentes sobre o assunto, se no some por completo, ela cumpre

    apenas o papel de localizar melhor o acontecimento, lembrando aos leitores, ainda que

    brevemente, do que se trata a histria. Segundo Mouillaud: A informao,

    prosseguindo, apaga atrs de si seu prprio rastro, perde de vista sua origem, o ponto

    donde partiu (2002, p.41). Ainda segundo o mesmo autor, no jornal, (...) as

    informaes aparecem como figuras nmades, que so apagadas em seu fluxo

    cotidiano (idem, p.44). O rastro perdido aqui, a origem esquecida, justamente Eliza

    Samudio. Com o passar dos anos, o foco deixou de ser o assassinato e a falta de

    concluso a respeito de onde est o seu corpo, e de como ela foi realmente assassinada.

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    Ao mesmo tempo em que esse mistrio parece insolvel, a imprensa d sinais de no

    querer abandonar o caso. Para isso, Eliza deixada de lado em favor das novidades a

    respeito da vida de Bruno, cujo melhor exemplo talvez seja a matria de capa da revista

    Placar.

    Algumas das notcias coletadas no mbito da pesquisa deixam claro o foco em

    um dos personagens logo no momento de localizar o acontecimento. O Jornal da

    Itatiaia - 1 edio, majoritariamente, refere-se a ele como Caso Bruno, enquanto no

    portal UOL adota-se Julgamento do caso Eliza Samudio. Vemos, de antemo, uma

    preferncia a respeito do que merece ganhar visibilidade, de quem o protagonista.

    Bruno Fernandes quase goza, por sinal, de um status reservado a poucos: o de

    ser conhecido apenas por um nome. Ele precisa apenas de sua antiga posio nos

    gramados, associada ao seu primeiro nome, para ser reconhecido instantaneamente, com

    a alcunha que se tornou definitiva: goleiro Bruno. Seu sobrenome, Fernandes,

    lembrado em menos oportunidades, e nunca nas manchetes. Ao mesmo tempo, outra

    forma de se identific-lo, j discutida aqui e to eficiente quanto, associar Eliza a ele.

    Se o nome dele est sempre atrelado ao dela, o de Eliza quase uma muleta para

    sustentar a identificao do goleiro.

    O portal Uai, especialmente, merece destaque por adotar um mesmo padro para

    todas as matrias sobre o assassinato e seus desdobramentos: (...) goleiro Bruno

    Fernandes, condenado a 22 anos e trs meses de priso pela morte de Eliza Samudio....

    Esse lide aparece nas quatro matrias coletadas, numa frma pronta. E, em todas elas,

    Eliza no mais citada. Para o portal, ela aparece apenas por obrigao jornalstica,

    de lembrar do que se trata a condenao e isso feito em menos de uma linha, e para

    abrir matrias como Advogados procuram casa para parentes de Bruno em Montes

    Claros para facilitar transferncia (01/02/2014). um exemplo do que podemos

    chamar de convenes narrativas na configurao miditica dos acontecimentos.

    Essas convenes referem-se a modos de narrar cristalizados no fazer jornalstico e que

    se apresentam recorrentemente, em diferentes narrativas e mdias informativas (LEAL,

    2014, p.214). Um caso em que a abordagem do tema se faz de forma mais completa na

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    matria do portal G1 de 29 de janeiro de 2014 (Goleiro Bruno tenta transferncia de

    penitenciria de segurana mxima), quando Eliza citada mais de uma vez ao longo

    da matria, e uma retomada do caso feita ao final, de maneira aprofundada. A foto da

    vtima tambm ilustra a reportagem, caso nico na coleta realizada na pesquisa.

    A forma como a mdia a identifica, por sua vez, merece ateno. Na grande

    maioria dos casos, Eliza definida apenas como a ex-amante do goleiro Bruno, como

    na reportagem do Jornal da Alterosa - 2 edio, do dia 29 de janeiro de 2014 (Goleiro

    Bruno tenta transferncia para presdio de Nova Lima). Para a imprensa, ela pode ser

    identificada somente em relao a ele, e no de maneira independente. Bruno vive

    assombrado pelo fantasma de Eliza, e ela vive sua sombra. Numa longa reportagem da

    Rdio Itatiaia do dia 12 de maio de 2013, ela citada, primeiramente, como ex-amante

    do goleiro, para s depois ser nomeada pelo reprter. Em apenas um caso, que apareceu

    no jornal Super Notcia de 31 de janeiro (Time de Montes Claros quer goleiro Bruno),

    ela foi identificada como ex-modelo. Ao fazer isso, a imprensa parece querer fugir da

    complexidade de lidar com o fato de quem era Eliza e de como identific-la junto ao

    pblico. O uso da profisso de modelo nos parece mais forte nos primeiros meses

    aps o assassinato (perodo que no foi contemplado pela pesquisa), algo que perdeu

    fora mais recentemente, quando a mdia pareceu se sentir confortvel ao adotar,

    majoritariamente, ex-amante, dando essa questo como resolvida.

    O receio em se adotar atriz porn e o seu disfarce sob a profisso de modelo

    revelam uma vontade de encobrir ou desvalorizar o que Eliza fazia. Podemos pensar

    tambm que uma forma de proteg-la (ainda que de forma problemtica, por se tratar

    de uma proteo que refora preconceitos e um modelo moral), j que boa parte dos

    leitores no se apiedaria da moa que no de famlia e at mesmo jogaria nela a

    culpa (como, de fato, recorrente) - ou seja, ela mereceria morrer. Num paralelo, a

    cobertura da mdia sobre o caso Pimenta Neves (e mais algumas narrativas identificadas

    na pesquisa acima referida) refora essa suspeita, j que a vtima, Sandra Gomide,

    assassinada pelo editor do jornal O Estado de S. Paulo, Antnio Marcos Pimenta Neves,

    quase sempre identificada como jornalista, uma profisso considerada de respeito.

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    Alm disso, a identificao de Eliza apenas como ex-amante, se parece confortvel

    para a imprensa, evidencia, por outro lado, como a mulher pode ser vista apenas em

    relao ao homem, e como parca a visibilidade dada aos crimes de gnero pela mdia.

    O novo desaparecimento de Eliza

    As ocorrncias de mulheres mortas, estupradas, espancadas e agredidas por

    homens prximos so bastante comuns, assim como sua apario na mdia. Porm, a

    cobertura jornalstica no aborda esses crimes sob o vis da violncia de gnero.

    O caso de Eliza Samudio se encaixa nos chamados crimes de proximidade,

    englobados pela pesquisa Narrativas de um problema cotidiano. Segundo Leal (2014),

    os crimes de proximidade so aqueles atos de violncia entre pessoas ligadas por

    relaes afetivas, como casais, namorados, e com parentesco familiar (p. 210). Esses

    crimes so, em sua maioria, cometidos por um homem contra uma mulher,

    estabelecendo a no s um crime de proximidade, mas tambm de gnero. A violncia

    cometida por um homem prximo, com quem, a princpio, se estabelece uma relao de

    confiana, tema corrente nos noticirios. Porm, o que podemos observar a partir da

    pesquisa, de maneira reflexiva, mas no ainda conclusiva, que, por mais que estejam

    cotidianamente presentes na mdia jornalstica, esses crimes no so tratados sob a tica

    dos crimes de gnero, de a vtima ser agredida por ser uma mulher.

    O caso de Eliza apenas mais um desses, com a diferena de ganhar em termos

    de durao de visibilidade por envolver uma celebridade. Por isso, tambm, ela

    desaparece no noticirio, existindo apenas como uma sombra de Bruno: como mulher e

    annima, no merecedora de grande destaque.

    Enquanto Bruno permanece na mdia de maneira duplamente discutvel, pelo

    destaque decorrente do assassinato que desaparece com Eliza e pela forma como a

    cobertura feita, sempre atrelando-o vtima, como uma assombrao que o persegue,

    por outro lado, a representao sobre Eliza ainda mais problemtica: ela quase no

    aparece. Num movimento que vem se intensificando desde o incio do caso, a mdia

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    transforma Eliza Samudio num personagem-fantasma, no sentido de sumir com ela do

    noticirio e de restringir sua representao ao mero papel de assombrar o goleiro Bruno.

    Retomando a reportagem da Placar, uma reao interessante foi a da publicitria

    Rosiane Pacheco, cuja recriao da capa da revista com o foco da matria em Eliza

    Samudio circulou pelas redes sociais. Nas chamadas, o destaque o crime e o desejo de

    Eliza que jamais ser realizado: Eu queria ter visto meu filho crescer. Frases fictcias

    da me da vtima, que lamenta no poder enterrar a filha, e de Bola, que explica os

    motivos do assassinato, dividem espao com menes s torturas infligidas a Eliza. A

    ideia da publicitria foi chamar a ateno para o lado esquecido da histria, daquele que

    no tem voz na mdia.

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    Essa reao matria da revista, apenas uma entre vrias que abordam o caso de

    maneira a destacar apenas um lado da histria, o da celebridade, e a ignorar outro,

    renegado sombra, mostra como, apesar de tudo, o que esquecido continua, de

    alguma forma, presente - e de maneira incmoda. Conforme Mouillaud: O que est

    fora de quadro testemunho de uma presena mais inquietante, a qual no se pode mais

    dizer que existe, mas preferencialmente, que insiste ou subsiste (...) (2002, p.41).

    Eliza Samudio desapareceu, talvez para sempre. E, de outra forma, a mdia est

    sumindo com ela novamente.

    O crime j aconteceu h quatro anos, mas ainda ganha destaque da mdia. Por

    que isso acontece? uma pergunta que devemos nos fazer. Talvez para saciar uma

    curiosidade do pblico, ansioso por ver os prximos captulos da queda de um dolo? E

    at quando Bruno continuar sendo associado a Eliza, indefinidamente? O fantasma

    dela, sempre sombra, continuar a ser convocado apenas para assombrar o goleiro?

    Crimes como esse continuaro a acontecer, envolvendo famosos ou annimos. O

    importante que jamais fiquem sombra. O mais grave, em termos de cobertura, ver

    como vrios noticirios, de diferentes mdias, continuem a reproduzir um modelo de

    notcia que ignora a vtima e a questo dos crimes de proximidade e de gnero no pas.

    Referncias bibliogrficas

    MOUILLAUD, Maurice (2002). A Informao ou a Parte da Sombra. Em, Mouillaud, Maurice

    e Porto, Srgio D. (org). O Jornal: da forma ao sentido. (pp. 2936). Braslia. EdUnb.

    LEAL, Bruno (2014). Convencionalidades narrativas e os crimes de proximidade: a violncia

    contra mulheres no Brasil e as tenses na escrita jornalstica. Interfaces da Lusofonia:

    Universidade do Minho, p.210-220.

    SIMES, P.G. (2013). Celebridades na sociedade midiatizada: em busca de uma abordagem

    relacional. Revista Eco-ps, V.16, n.1, p. 104-119.