O Fracasso Da Narrativa Testemunhal
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O FRACASSO DA NARRATIVA TESTEMUNHAL NA PERLABORAO DO
TRAUMA Geisi
Mara Rodrigues
Viviana Carola Velasco Martnez
O FRACASSO DA NARRATIVA TESTEMUNHAL NA PERLABORAO DO
TRAUMA
Geisi Mara Rodrigues1
Viviana Carola Velasco Martnez2
Resumo
O trauma, com o sofrimento psquico que lhe decorrente, abre caminho para diversas
discusses a respeito de suas possveis perlaboraes, isto , sobre as tentativas do
psiquismo em ligar o excesso de excitaes s representaes. Dentre tais
possibilidades, o sonho e o testemunho escrito ganham espao peculiar. Diante disso,
este artigo busca discutir a perlaborao do trauma na literatura de testemunho, mais
especificamente na insuficincia dessa escrita, pois a criao literria revela-se
traumtica pelas rupturas pulsionais que dela decorrem. Alm disso, a falta de
interlocuo do entorno social pode contribuir para o fracasso da perlaborao
traumtica da narrativa testemunhal.
Palavras - chave: psicanlise; trauma; literatura de testemunho; escrita.
Abstract
The trauma, with the psychological suffering caused for him, opens the way to several
discussions about his possible working-through, in other words, about attempts of the
psychism to link excessive excitations to the representations. Among such possibilities,
the dream and written testimony gain peculiar space. In view of this, this article aims to
discuss working through the trauma in the literature of witnessing, specifically the
insufficiency of this writing, because the literary creation it reveals traumatic for the
ruptures of the drives caused by it. Moreover, the lack of interlocution of the social
1 Psicloga, mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maring, linha de pesquisa
Psicanlise e Civilizao. 2 Professora doutora da graduao e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia, da Universidade
Estadual de Maring. Coordenadora do Laboratrio de Estudos e Pesquisa em Psicanlise e Civilizao.
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environment may contribute to the failure of traumatic working-through in the literature
of witnessing.
Keywords: trauma; literature of witness; writing
A vivncia traumtica, seguida de intenso sofrimento psquico, abre caminhos
para questionamentos, principalmente na clnica psicanaltica, sobre as possibilidades e
meios de expresso do sofrimento e da dor (Caruth, 1995). E nesse percurso que nosso
trabalho se inscreve, o da perlaborao do trauma, tratando especificamente da literatura
de testemunho e da insuficincia dessa narrativa na perlaborao do trauma.
Na poca em que a humanidade se depara com algumas das piores catstrofes
produzidas pelo prprio homem denominada de man made disasters (Bohleber, 2007)
como a Shoah3 na Europa e as grandes ditaduras na Amrica Latina, o homem foi
movido a escrever. Seligmann-Silva (2005) apresenta esse fato do seguinte modo:
Lembrando duas expresses que se tornaram famosas nos ltimos anos,
respectivamente de Hobsbawm e de Shoshana Felman, podemos dizer que era das
catstrofes corresponde-se a era dos testemunhos. (p. 82).
A literatura de testemunho e a situao traumtica esto intimamente ligadas,
pois a primeira surge aps uma situao de catstrofe, e a catstrofe provocadora de
trauma (Nestrovski, 1997). Narrar em primeira pessoa a experincia traumtica,
segundo Rosenblum (2002), uma das sadas que algumas pessoas encontram para lidar
com o traumtico, alm do silncio ou da falsificao da memria. Mas, o que se
conjeturaria como uma via tranquila, tambm mostra seus perigos, pois alguns textos
provocam - ainda mais - horror ao seu autor por lhe aproximarem do sofrimento do
trauma, por exporem o dio e pela revivescncia da culpabilidade e da vergonha
(Rosenblum, 2002). Por outro lado, no contar a situao traumtica, no coloc-la em
palavras para fazer-se testemunha, perpetua a tirania do evento (Nestrovski, 1997).
Sobre a necessidade de escrita aps a vivncia traumtica passamos a discorrer.
Na narrativa do trauma o reencontro com as palavras
Os afetos que uma pessoa pode sentir - alegria, amor, medo, dio, dentre outros
suscitados por uma experincia, quando transbordam os limites cotidianos do sujeito
podem servir, segundo Mezan (1998), de disparador da necessidade artstica. Isso
3 Shoah um termo hebraico que significa catstrofe ou devastao, tem sido usado no lugar de
holocausto, pois esse remete a uma ideia de morte como sacrifcio (Nestrovski, 1997).
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ocorre, ainda segundo o mesmo autor, porque o psiquismo tenta ligar o excesso de
excitao s representaes. E desse processo que pode vir a originar-se uma obra
artstica como um modo de perlaborao.
Ora, o excesso de excitao o terreno do traumtico. assim que Freud
(1920/1996), em Alm do princpio do prazer, define a situao traumtica:
Descrevemos como traumticas quaisquer excitaes provindas de fora que
sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me
que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexo desse tipo com
uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os estmulos.
(p.40).
A ruptura do escudo protetor pra-excitao - deixa o aparelho psquico
inundado de estmulos e, para Freud (1920/1996), surge, ento, o problema de como
dominar e ligar tal excesso. Freud, ento, hipotetiza ser o investimento de energia que
possibilita ao sistema, invadido pelo excesso excitatrio, ligar psiquicamente a energia
livre, atenuando, desse modo, as consequncias da ruptura do escudo protetor. Ligao
entendida aqui como um modo de tratar a pulso, de dominar sua irrupo e torn-la
assimilvel. Tal ligao pode ser tanto simblica como narcsica (Laplanche, 1989).
Segundo Mezan (1998), quando tal excesso de excitao pode ser trabalhado
psiquicamente, pode resultar em um trabalho artstico, embora no exclusivamente;
pode ainda implicar em um sonho, em uma neurose ou delrio.
O resultante do trabalho de ligao que abordaremos aqui a arte. E a arte de
que tratamos a narrativa; esse gnero discursivo traz cena a palavra, pois por meio
dela, da palavra, que a narrativa se materializa. Em psicanlise, a palavra tem
importncia capital: nos Estudos sobre a Histeria (Freud & Breuer, 1883-1895/1995),
Ana O. denomina o mtodo psicanaltico incipiente de talking cure, cura pela fala.
A palavra e a fala so consideradas por Berlink (1999) como uma das incrveis
invenes humanas na busca de recuperao da normalidade perdida. E, das diversas
propriedades da palavra, a caracterstica mais extraordinria a de representar. Mas,
quando se trata de um evento traumtico, a sua peculiaridade precisamente a
impossibilidade de represent-lo, de coloc-lo em palavras. Sobre essa falta de palavras,
encontramos em Benjamim (1935/1994) o seguinte relato sobre os combatentes da
Primeira Guerra Mundial: No final da guerra, observou-se que os combatentes
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voltavam mudos do campo de batalha no mais ricos, e sim mais pobres em experincia
comunicvel. (p.198).
A justificao para tal emudecimento, segundo Uchitel (2001), se deveria ao fato
do trauma se inscrever no psiquismo, sem poder ser simbolizado, isto , o trauma fica
como uma marca perceptiva sem palavras, isolado das representaes. Essa
impossibilidade de representao pode ser encontrada no que afirma Kaplan (2006)
sobre as experincias traumticas, em crianas sobreviventes de genocdios. Nessa
situao, essas experincias no ficam registradas como lembranas na memria, mas,
sim, como um desconforto corporal indescritvel. Berlink (1999) tambm afirma que,
quando se vive um evento catastrfico, nos faltam palavras; e o que advm so
movimentos corporais que se assemelham a ataques histricos.
O excesso pulsional, liberado pela situao traumtica, sobrepe-se capacidade
do psiquismo de lig-lo e elabor-lo. Tal impossibilidade culmina na no representao
psquica e faz com que haja uma estreita articulao entre o trauma e indizvel (&
Cardoso, 2009). Nesse mesmo raciocnio, Uchitel (2001) afirma que O trauma no se
representa, apresenta-se (p.77).
Baseada na Teoria da Seduo Generalizada de Jean Laplanche, Cardoso (2011),
ao fazer uma discusso sobre as neuroses atuais e as neuroses traumticas, entende o
acontecimento traumtico como elemento ou impresso intraduzvel que, em alguns
casos, pode ser desencadeador de um pulsional des-ligado que, nem representado e nem
recalcado, fica encravado no psiquismo.
Ainda, segundo Cardoso (2011), nessa situao, o ego fica passivo diante de um
pulsional des-ligado. Essa situao de passividade e, tambm, de desamparo, segundo a
autora citada, encontra seu prottipo na constituio traumtica do psiquismo humano.
Apesar de toda essa dificuldade de representao do trauma e da ao da
compulso repetio, Maldonado e Cardoso (2009) insistem na necessidade de narr-
lo, mesmo diante da impossibilidade de tal tarefa. Estaria a uma das aporias da
literatura de testemunho narrar o inenarrvel (SeligmannSilva, 2008).
A importncia da palavra para falar do sofrimento de sobreviventes de um
genocdio, como j citada anteriormente, tambm destacada por Mannoni (1995):
Quanto mais o silncio pesa sobre o trauma, mais o sujeito paga o preo por
isso em sintomas diversos. quando as palavras para dizer so finalmente
encontradas que pode surgir uma queixa e que, graas a ela, as foras
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reparadoras podem colocar-se a servio do prazer, ou, muito simplesmente, de
uma autorizao de viver. Caso contrrio, todas as vezes que o sujeito se
aproxima de um sucesso ou de uma satisfao, perfilam-se a depresso, a
somatizao ou a necessidade de fracassar. (p.36).
Apesar da dificuldade de encontrar palavras que retratem a situao traumtica,
alguns sujeitos se vem, por outro lado, impelidos a escrever sobre o ocorrido. E tal
necessidade ganha tamanha proporo que o romancista francs, George Perec, citado
por SeligmannSilva (2008), diz que compete com as necessidades mais elementares da
vida, tais como comer, dormir, entre outras. Primo Levi (1958/1998) relata a mesma
intensidade da necessidade de narrar. No prefcio de isto um homem?, ele diz:
Se no de fato o livro, pelo menos como inteno e concepo o livro j nasceu
no Campo. A necessidade de contar aos outros, de tornar os outros
participantes, alcanou entre ns, antes e depois da libertao, carter de impulso
imediato e violento, at o ponto de competir com outras necessidades
elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro
lugar, portanto, com a finalidade de liberao interior. (p.08).
Esse carter imperioso da escrita aparece, tambm, nos escritores em geral e leva
Green (1973/1994) a qualificar o trabalho da escritura de tirnico e inevitvel; e
perguntar: Por que tamanha obsesso mortfera para escrever? (p.53). Tal impulso
para escrever tambm descrito pelo escritor e ensasta francs Maurice Blanchot. Para
Blanchot (2005), mais que um algo a dizer, h, na escrita, uma tormenta da
impetuosidade criadora, cuja razo se desconhece (p.43). Essa tormenta s pode ser a
exigncia pulsional.
Desse modo, pensamos que pode haver uma aproximao entre o escritor de
testemunho de escritores de outros gneros naquilo que impele escrita, ou seja, o
excesso pulsional do traumtico. Porm devemos respeitar as distncias entre o trauma
de um sobrevivente de uma catstrofe e uma possvel situao traumtica, vivida por um
escritor de outros gneros literrios.
Mesmo reconhecendo tais distncias e possveis diferenas, buscamos o
referencial de Michel de Muzan, que teoriza sobre a literatura de um modo geral, por
acreditarmos serem vlidas para uma aproximao da compreenso da literatura de
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testemunho. Ao falar sobre a criao literria, MUzan (1978) questiona precisamente
por que, em alguns sujeitos, aparece tal necessidade, a de escrever. E, na sua resposta,
encontra-se o paradoxo da escrita. Para o autor, aquele que impelido a escrever, o faz
pela sua dificuldade na perlaborao, pelo relativo fracasso na sua vida imaginativa, isto
, busca na escrita um suprimento para lidar com a situao traumtica. Como se seu
psiquismo no conseguisse trabalhar o excesso pulsional apenas em seu interior.
Mesmo com sua atividade fantasmtica bem desenvolvida, continua Muzan
(1978), o artista no consegue utiliz-la com eficcia na elaborao de seus conflitos e
tenses. Na tentativa de criar e restabelecer sua integridade narcsica, pela escrita, ele se
v submergido novamente em uma situao traumtica, pois a criao de uma obra
provoca novas rupturas do pulsional. E o autor completa, o artista se v ameaado pelo
sistema que precisamente deveria proteger-lhe (p.28)4.
Portanto, na concepo de MUzan (1978), o que leva o sujeito a escrever a
prpria dificuldade de elaborao traumtica que, por sua vez, joga em novos
microtraumas, rupturas pulsionais, necessrias para a criao. E, talvez, encontre-se a,
como diz Mezan (1998), no o fracasso da arte, mas o fracasso da vida, quando um
autor comete o suicdio. Ou seja, seu sofrimento j no encontra na obra uma sada e ele
conduzido ao desespero.
Tais apontamentos encontram ligao com o que escreveu o ensasta britnico
A. Alvarez (1999) em seu livro O deus selvagem: um estudo do suicdio. Nessa obra, o
autor trata, especificamente, do suicdio na literatura, bem como do suicdio de sua
amiga - a poeta Sylvia Plath- e de sua prpria tentativa de morte voluntria. Quando
comenta sobre a crena de Plath, da escrita como tentativa de se libertar do passado, o
autor diz:
[...] para o prprio artista, a arte no necessariamente teraputica; ele no se
livra automaticamente de suas fantasias ao express-las. Ao contrrio, por uma
espcie de lgica perversa da criao, o ato da expresso formal pode
simplesmente tornar o material trazido tona mais prontamente disponvel para
o artista. O ato de lidar com essas fantasias em seu trabalho pode muito bem
fazer com que ele de repente se perceba vivendo-as. (p.50).
4 Traduo nossa.
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E, assim, somos levados a falar do paradoxo da expresso pela escrita que, ao
mesmo tempo em que permite a transformao da dor em arte - derivada de uma
situao traumtica - e permite ao sujeito suportar seu sofrimento, pode, tambm, jogar
o indivduo na dor, novamente. O que haveria no ato da escritura capaz de reavivar os
fantasmas? o que tentaremos explanar no prximo tpico.
O duplo poder da escrita: proteo e perigo
Nada mais possuo a no ser minha morte, minha experincia de morte, para
contar minha vida, express-la, lev-la adiante. Tenho que fabricar vida com
toda essa morte. E a melhor maneira de conseguir a escrita. Ora, esta me leva
morte, a me tranca, a me asfixia. Estou nesse ponto: s posso viver assumindo
essa morte pela escrita, mas a escrita me impede literalmente de viver.
(Semprn, citado em Kirschbaum, 2007, p.162).
com esta citao de Semprn (cit. p. Kirschbaum, 2007), escritor espanhol,
sobrevivente de um campo de concentrao onde foi preso poltico, que nos lanamos
ao territrio obscuro da escrita de si mesmo. Escrita essa que, segundo Maldonado e
Cardoso (2009), auxilia seu autor, tendo passado por uma catstrofe, a dar continuidade
sua sobrevida. Ideia essa tambm encontrada em Laub e Podell (1995), quando
afirmam ser a arte ajuda na sobrevivncia e recuperao. Mas, que, afirmamos ns,
tambm aproxima seu autor da morte, como diz Semprn acima.
Na filosofia, encontramos em Plato, discutido por Derrida (1991), o escrito
Fedro, no qual h um dilogo com Scrates. Ao receber os textos de Fedro, Scrates os
compara ao phrmakon, isto , a uma droga, ao mesmo tempo remdio e veneno. O
phrmakon produz encanto, tem em si a virtude da fascinao e a potncia de feitio,
diz Derrida, trazendo tanto benefcio como malefcio. J para Blanchot (2005) a escrita
um enigma, porm um enigma que no tem orculo ao qual se possam fazer perguntas
sobre a mesma; perguntas sobre o impulso ou a obrigao de escrever.
Alm da filosofia e da critica literria, a psicanlise tambm nos fornece
elementos para pensar a escrita para alm de uma sada idealizada. Green (1973/1994)
afirma que o trabalho da escritura tirnico e inevitvel para o escritor. Ocorre como
uma tentativa de encobrir uma perda, uma ferida e um luto. Tal trabalho de luto no
cessa. O sujeito est sempre sendo impelido a escrever novamente. Essa inquietude
pode ser - pensando com Laplanche (1988) - a angstia que necessita ser ligada.
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Conforme Muzan (1978), a literatura no se produz de modo idlico, sua criao
dramtica. Para o autor, o drama composto pelo caos que, para converter-se em
criao, traduzido em representaes, em fantasmas, ainda que sejam os mais
aterradores.
O incio do processo de criao, de um modo geral, pode ser entendido como
traumtico nessa concepo de MUzan (1978), pois quando o autor descreve tal incio,
do ponto de vista econmico, diz haver uma inundao pulsional no psiquismo. Esse
seria o momento da captao artstica e, em cada nova etapa de desenvolvimento da
obra, ocorreriam novas rupturas, porm menos dramticas que a primeira. Para
Laplanche (1981/1989), as foras que levam criao nascem do trauma e recriam uma
nova situao traumtica:
[...] essas foras so as que nascem do traumatismo, ao mesmo tempo que so as
que levam a renovar incessantemente o traumatismo, portanto, numa espcie de
crculo vicioso; mas o traumatismo que constitui o ponto preciso dessa espcie
de neognese de uma energia que impele sublimao. (p. 177).
As idias desses autores nos remetem ao que apresenta Freud (1923/1996), em O
ego e o id, quando fala sobre a sublimao. Para Freud, a sublimao seria possvel pelo
trabalho do ego de transformar a libido objetal sexual em narcsica para assim dar-lhe
um novo objetivo. Pensamos, aqui, em uma criao artstica. Mas, o ponto que
gostaramos de sublinhar o questionamento que faz Freud, em seguida, quando
pergunta se essa transformao poderia levar desfuso de pulses, que se encontram
fundidas. Ou seja, a desfuso entre pulso de vida e pulso de morte. Nesse trabalho de
sublimao, o ego ajuda a pulso de morte do id a dominar a libido; por sua vez, as
pulses agressivas so liberadas no superego. Nesse movimento pulsional, o ego corre
risco de ser aniquilado.
A ameaa integridade do eu na escrita poderia ser aumentada na narrativa
testemunhal, pensamos ns, pela vivncia traumtica anteriormente j ter ameaado tal
integridade, levando, inclusive, uma sensao do sobrevivente de que algo em si morreu
ou que j no habita mais o prprio corpo.
A presena da morte na narrativa testemunhal se faz constante, no se trata de
uma morte real, mas da morte sentida. As mais ricas descries de tal sensao nos so
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dadas por Jorge Semprn (1995) e Flvio Tavares5 (1995) em seus respectivos livros A
escrita ou vida e Memrias do esquecimento.
Para Semprn ele no sobreviveu ao campo de concentrao, algo essencial dele
permaneceu l, o que retornou era uma assombrao, um fantasma que atravessou a
barreira da morte ou foi atravessado por ela: compreendi de sbito que eles tinham
razo de se apavorar, aqueles militares, de evitar meu olhar. Pois eu no havia
propriamente sobrevivido morte, no a tinha evitado. No havia escapado dela. (...) Eu
era uma assombrao, em suma. (p. 24).
Das diversas citaes da morte em vida, na narrativa de Tavares (1995), duas
podem ser destacadas. A primeira ocorre durante uma simulao de fuzilamento pelo
Exrcito uruguaio, enquanto andava vendado e de costas para seus algozes ele narra:
Cada vez a passo mais lento, pensei nos meus filhos e rezei o Pai Nosso e a Ave-Maria
com o convencimento de que estava morrendo ali. E morri. Morri dentro de mim
mesmo (p. 254). J ao final de seu livro Tavares fala o que restou do vivido foi o
namoro com a morte. A escrita poderia, ento, ser o resultado de namoro com a morte,
pois Tavares (1999), pois o autor termina sua narrativa dizendo: (...) foi, tambm,
nesse mesmo Uruguai que, 16 anos depois, fui sequestrado, fuzilado e morri. Ou
comecei a morrer nas memrias desse esquecimento que quis contar aqui. (p.271).
Durante as experincias de traumas massivos, que incluem torturas, o corpo e o
eu parecem no ser mais representados para o sobrevivente como uma unidade. Para
Semprn (1995) o corpo se soltou dele, para Tavares (1999) seu pnis, atingido pelos
choques, lhe saa do corpo nos sonhos agonizantes.
com essas experincias de fragmentao - de fragmentao da percepo, da
prpria histria e das relaes com a famlia e a comunidade (Laub, 2002), e por que
no dizer de fragmentao do prprio eu que o sobrevivente se depara, novamente, ao
escrever. Assim a experincia da escrita sentida por Semprn (1995): A felicidade da
escrita, eu comeava saber, jamais apagava essa desgraa da memria. Muito pelo
contrrio: aguava-a, escavava-a, reaviva-a. Tornando-a insuportvel. (p. 160). Do
mesmo modo Tavares (1999) narra: Agora que chego ao fim, pergunto-me o que me
angustiou mais: ter vivido o que vivi ou ter rememorado, aqui, tudo o que quis
esquecer. (p.263).
5 Flvio Tavares um jornalista sobrevivente da tortura da Ditadura Militar brasileira e da Ditadura
Militar uruguaia.
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A no atenuao da dor pela escrita uma das compreenses de Blanchot
(2011), que diz que materializar a dor pela escrita no transform-la, nessa
materializao dor apresentada e no representada, tal como o trauma descrito
acima por Uchitel (2001).
Mas narrar sua prpria experincia traumtica no uma simples rememorao
do passado, , tambm, uma reconstruo deste passado, pois ao escrever processos
tradutivos e destradutivos so postos em ao (Laplanche, 2001), ou seja, novas
significaes podem ser dadas ao vivido.
Palavras finais...
A recordao, embora dolorosa, faz parte da elaborao, no questionamos a
possibilidade que a escrita tem de perlaborao, o que questionamos a sua
insuficincia de apenas por si s dar guarida ao desamparo do sobrevivente. O trauma
social - como foram a Shoah e as Ditaduras Militares na Amrica Latina - precisa de um
entorno social que acolha e escute o sobrevivente. Quem chama ateno para este fato
Judith Herman (2004), a autora afirma que as a recuperao de sobreviventes de
traumas depende, primeiramente, do reconhecimento pblico do acontecimento
traumtico e de algum tipo de ao comunitria. O que parece no acontecer
comumente com os traumas sociais, pois, segundo a mesma autora, diferentemente do
que ocorre com outras perdas, aps o trauma no h ritos que auxiliem o sobrevivente a
significar seu sofrimento.
Pensando do mesmo modo que a Herman (2004), mas com as noes da Teoria
da Seduo Generalizada, podemos afirmar que, o silncio da comunidade, demonstra a
falta de agentes de traduo que auxiliariam o sobrevivente a traduzir as mensagens
enigmticas da situao traumtica. Mensagens essas, pensamos aqui, sdicas.
A escrita no pode ser a nica garantia de anistia ao sobrevivente6. Pois, alm de
correr o risco de no se obter a anistia, o sobrevivente acaba por revelar o ressentimento
e dio pela no punio dos seus carrascos, e a culpa pelos meios utilizados para
sobreviver.
No podemos deixar de considerar que a escrita testemunhal, principalmente da
Shoah, em alguns pontos das ditaduras, comporta um mais alm que refora a dor, a
6 O sobrevivente da Ditadura Militar Brasileira, Luiz Roberto Salinas Fortes, afirma que escrever foi uma
tentativa de obter a anistia que ningum lhe concedeu (Cardoso, 1998).
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culpa e a vergonha, pois tal escrita revela publicamente uma satisfao proibida para o
ser humano, isto , ter rompido a barreira da civilizao. Culpa por ter sido uma das
personagens de uma histria de horror em que, de alguma maneira, compartilhou das
sentenas de morte dos semelhantes.
Por fim, o que possvel afirmar que, o trauma, ainda que cale o traumatizado
inicialmente, exige do psiquismo que dele se fale. Assim, o trauma comporta em si uma
potncia tanto criadora quanto destruidora, por vezes, a destruio da prpria vida.
Finalizamos com as palavras de Paul Celan que acabou por dar um fim em sua prpria
vida e calou-se para sempre, deixando apenas o eco de suas palavras e do seu
sofrimento em suas poesias.
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer bebemo-lo ao meio-dia e
pela manh bebemo-lo de noite bebemos e bebemos cavamos um tmulo nos
ares a no ficamos apertados. Na casa vive um homem que brinca com
serpentes escreve escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
Margarete [...]. Celan (1996b, cit. p. Oliveira, 2008, p. 6)
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