O Fracasso Da Narrativa Testemunhal

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O FRACASSO DA NARRATIVA TESTEMUNHAL NA PERLABORAÇÃO DO TRAUMA Geisi Mara Rodrigues Viviana Carola Velasco Martínez O FRACASSO DA NARRATIVA TESTEMUNHAL NA PERLABORAÇÃO DO TRAUMA Geisi Mara Rodrigues 1 Viviana Carola Velasco Martínez 2 Resumo O trauma, com o sofrimento psíquico que lhe é decorrente, abre caminho para diversas discussões a respeito de suas possíveis perlaborações, isto é, sobre as tentativas do psiquismo em ligar o excesso de excitações às representações. Dentre tais possibilidades, o sonho e o testemunho escrito ganham espaço peculiar. Diante disso, este artigo busca discutir a perlaboração do trauma na literatura de testemunho, mais especificamente na insuficiência dessa escrita, pois a criação literária revela-se traumática pelas rupturas pulsionais que dela decorrem. Além disso, a falta de interlocução do entorno social pode contribuir para o fracasso da perlaboração traumática da narrativa testemunhal. Palavras - chave: psicanálise; trauma; literatura de testemunho; escrita. Abstract The trauma, with the psychological suffering caused for him, opens the way to several discussions about his possible working-through, in other words, about attempts of the psychism to link excessive excitations to the representations. Among such possibilities, the dream and written testimony gain peculiar space. In view of this, this article aims to discuss working through the trauma in the literature of witnessing, specifically the insufficiency of this writing, because the literary creation it reveals traumatic for the ruptures of the drives caused by it. Moreover, the lack of interlocution of the social 1 Psicóloga, mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá, linha de pesquisa Psicanálise e Civilização. 2 Professora doutora da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Estadual de Maringá. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Civilização.

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  • O FRACASSO DA NARRATIVA TESTEMUNHAL NA PERLABORAO DO

    TRAUMA Geisi

    Mara Rodrigues

    Viviana Carola Velasco Martnez

    O FRACASSO DA NARRATIVA TESTEMUNHAL NA PERLABORAO DO

    TRAUMA

    Geisi Mara Rodrigues1

    Viviana Carola Velasco Martnez2

    Resumo

    O trauma, com o sofrimento psquico que lhe decorrente, abre caminho para diversas

    discusses a respeito de suas possveis perlaboraes, isto , sobre as tentativas do

    psiquismo em ligar o excesso de excitaes s representaes. Dentre tais

    possibilidades, o sonho e o testemunho escrito ganham espao peculiar. Diante disso,

    este artigo busca discutir a perlaborao do trauma na literatura de testemunho, mais

    especificamente na insuficincia dessa escrita, pois a criao literria revela-se

    traumtica pelas rupturas pulsionais que dela decorrem. Alm disso, a falta de

    interlocuo do entorno social pode contribuir para o fracasso da perlaborao

    traumtica da narrativa testemunhal.

    Palavras - chave: psicanlise; trauma; literatura de testemunho; escrita.

    Abstract

    The trauma, with the psychological suffering caused for him, opens the way to several

    discussions about his possible working-through, in other words, about attempts of the

    psychism to link excessive excitations to the representations. Among such possibilities,

    the dream and written testimony gain peculiar space. In view of this, this article aims to

    discuss working through the trauma in the literature of witnessing, specifically the

    insufficiency of this writing, because the literary creation it reveals traumatic for the

    ruptures of the drives caused by it. Moreover, the lack of interlocution of the social

    1 Psicloga, mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maring, linha de pesquisa

    Psicanlise e Civilizao. 2 Professora doutora da graduao e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia, da Universidade

    Estadual de Maring. Coordenadora do Laboratrio de Estudos e Pesquisa em Psicanlise e Civilizao.

  • environment may contribute to the failure of traumatic working-through in the literature

    of witnessing.

    Keywords: trauma; literature of witness; writing

    A vivncia traumtica, seguida de intenso sofrimento psquico, abre caminhos

    para questionamentos, principalmente na clnica psicanaltica, sobre as possibilidades e

    meios de expresso do sofrimento e da dor (Caruth, 1995). E nesse percurso que nosso

    trabalho se inscreve, o da perlaborao do trauma, tratando especificamente da literatura

    de testemunho e da insuficincia dessa narrativa na perlaborao do trauma.

    Na poca em que a humanidade se depara com algumas das piores catstrofes

    produzidas pelo prprio homem denominada de man made disasters (Bohleber, 2007)

    como a Shoah3 na Europa e as grandes ditaduras na Amrica Latina, o homem foi

    movido a escrever. Seligmann-Silva (2005) apresenta esse fato do seguinte modo:

    Lembrando duas expresses que se tornaram famosas nos ltimos anos,

    respectivamente de Hobsbawm e de Shoshana Felman, podemos dizer que era das

    catstrofes corresponde-se a era dos testemunhos. (p. 82).

    A literatura de testemunho e a situao traumtica esto intimamente ligadas,

    pois a primeira surge aps uma situao de catstrofe, e a catstrofe provocadora de

    trauma (Nestrovski, 1997). Narrar em primeira pessoa a experincia traumtica,

    segundo Rosenblum (2002), uma das sadas que algumas pessoas encontram para lidar

    com o traumtico, alm do silncio ou da falsificao da memria. Mas, o que se

    conjeturaria como uma via tranquila, tambm mostra seus perigos, pois alguns textos

    provocam - ainda mais - horror ao seu autor por lhe aproximarem do sofrimento do

    trauma, por exporem o dio e pela revivescncia da culpabilidade e da vergonha

    (Rosenblum, 2002). Por outro lado, no contar a situao traumtica, no coloc-la em

    palavras para fazer-se testemunha, perpetua a tirania do evento (Nestrovski, 1997).

    Sobre a necessidade de escrita aps a vivncia traumtica passamos a discorrer.

    Na narrativa do trauma o reencontro com as palavras

    Os afetos que uma pessoa pode sentir - alegria, amor, medo, dio, dentre outros

    suscitados por uma experincia, quando transbordam os limites cotidianos do sujeito

    podem servir, segundo Mezan (1998), de disparador da necessidade artstica. Isso

    3 Shoah um termo hebraico que significa catstrofe ou devastao, tem sido usado no lugar de

    holocausto, pois esse remete a uma ideia de morte como sacrifcio (Nestrovski, 1997).

  • ocorre, ainda segundo o mesmo autor, porque o psiquismo tenta ligar o excesso de

    excitao s representaes. E desse processo que pode vir a originar-se uma obra

    artstica como um modo de perlaborao.

    Ora, o excesso de excitao o terreno do traumtico. assim que Freud

    (1920/1996), em Alm do princpio do prazer, define a situao traumtica:

    Descrevemos como traumticas quaisquer excitaes provindas de fora que

    sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me

    que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexo desse tipo com

    uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os estmulos.

    (p.40).

    A ruptura do escudo protetor pra-excitao - deixa o aparelho psquico

    inundado de estmulos e, para Freud (1920/1996), surge, ento, o problema de como

    dominar e ligar tal excesso. Freud, ento, hipotetiza ser o investimento de energia que

    possibilita ao sistema, invadido pelo excesso excitatrio, ligar psiquicamente a energia

    livre, atenuando, desse modo, as consequncias da ruptura do escudo protetor. Ligao

    entendida aqui como um modo de tratar a pulso, de dominar sua irrupo e torn-la

    assimilvel. Tal ligao pode ser tanto simblica como narcsica (Laplanche, 1989).

    Segundo Mezan (1998), quando tal excesso de excitao pode ser trabalhado

    psiquicamente, pode resultar em um trabalho artstico, embora no exclusivamente;

    pode ainda implicar em um sonho, em uma neurose ou delrio.

    O resultante do trabalho de ligao que abordaremos aqui a arte. E a arte de

    que tratamos a narrativa; esse gnero discursivo traz cena a palavra, pois por meio

    dela, da palavra, que a narrativa se materializa. Em psicanlise, a palavra tem

    importncia capital: nos Estudos sobre a Histeria (Freud & Breuer, 1883-1895/1995),

    Ana O. denomina o mtodo psicanaltico incipiente de talking cure, cura pela fala.

    A palavra e a fala so consideradas por Berlink (1999) como uma das incrveis

    invenes humanas na busca de recuperao da normalidade perdida. E, das diversas

    propriedades da palavra, a caracterstica mais extraordinria a de representar. Mas,

    quando se trata de um evento traumtico, a sua peculiaridade precisamente a

    impossibilidade de represent-lo, de coloc-lo em palavras. Sobre essa falta de palavras,

    encontramos em Benjamim (1935/1994) o seguinte relato sobre os combatentes da

    Primeira Guerra Mundial: No final da guerra, observou-se que os combatentes

  • voltavam mudos do campo de batalha no mais ricos, e sim mais pobres em experincia

    comunicvel. (p.198).

    A justificao para tal emudecimento, segundo Uchitel (2001), se deveria ao fato

    do trauma se inscrever no psiquismo, sem poder ser simbolizado, isto , o trauma fica

    como uma marca perceptiva sem palavras, isolado das representaes. Essa

    impossibilidade de representao pode ser encontrada no que afirma Kaplan (2006)

    sobre as experincias traumticas, em crianas sobreviventes de genocdios. Nessa

    situao, essas experincias no ficam registradas como lembranas na memria, mas,

    sim, como um desconforto corporal indescritvel. Berlink (1999) tambm afirma que,

    quando se vive um evento catastrfico, nos faltam palavras; e o que advm so

    movimentos corporais que se assemelham a ataques histricos.

    O excesso pulsional, liberado pela situao traumtica, sobrepe-se capacidade

    do psiquismo de lig-lo e elabor-lo. Tal impossibilidade culmina na no representao

    psquica e faz com que haja uma estreita articulao entre o trauma e indizvel (&

    Cardoso, 2009). Nesse mesmo raciocnio, Uchitel (2001) afirma que O trauma no se

    representa, apresenta-se (p.77).

    Baseada na Teoria da Seduo Generalizada de Jean Laplanche, Cardoso (2011),

    ao fazer uma discusso sobre as neuroses atuais e as neuroses traumticas, entende o

    acontecimento traumtico como elemento ou impresso intraduzvel que, em alguns

    casos, pode ser desencadeador de um pulsional des-ligado que, nem representado e nem

    recalcado, fica encravado no psiquismo.

    Ainda, segundo Cardoso (2011), nessa situao, o ego fica passivo diante de um

    pulsional des-ligado. Essa situao de passividade e, tambm, de desamparo, segundo a

    autora citada, encontra seu prottipo na constituio traumtica do psiquismo humano.

    Apesar de toda essa dificuldade de representao do trauma e da ao da

    compulso repetio, Maldonado e Cardoso (2009) insistem na necessidade de narr-

    lo, mesmo diante da impossibilidade de tal tarefa. Estaria a uma das aporias da

    literatura de testemunho narrar o inenarrvel (SeligmannSilva, 2008).

    A importncia da palavra para falar do sofrimento de sobreviventes de um

    genocdio, como j citada anteriormente, tambm destacada por Mannoni (1995):

    Quanto mais o silncio pesa sobre o trauma, mais o sujeito paga o preo por

    isso em sintomas diversos. quando as palavras para dizer so finalmente

    encontradas que pode surgir uma queixa e que, graas a ela, as foras

  • reparadoras podem colocar-se a servio do prazer, ou, muito simplesmente, de

    uma autorizao de viver. Caso contrrio, todas as vezes que o sujeito se

    aproxima de um sucesso ou de uma satisfao, perfilam-se a depresso, a

    somatizao ou a necessidade de fracassar. (p.36).

    Apesar da dificuldade de encontrar palavras que retratem a situao traumtica,

    alguns sujeitos se vem, por outro lado, impelidos a escrever sobre o ocorrido. E tal

    necessidade ganha tamanha proporo que o romancista francs, George Perec, citado

    por SeligmannSilva (2008), diz que compete com as necessidades mais elementares da

    vida, tais como comer, dormir, entre outras. Primo Levi (1958/1998) relata a mesma

    intensidade da necessidade de narrar. No prefcio de isto um homem?, ele diz:

    Se no de fato o livro, pelo menos como inteno e concepo o livro j nasceu

    no Campo. A necessidade de contar aos outros, de tornar os outros

    participantes, alcanou entre ns, antes e depois da libertao, carter de impulso

    imediato e violento, at o ponto de competir com outras necessidades

    elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro

    lugar, portanto, com a finalidade de liberao interior. (p.08).

    Esse carter imperioso da escrita aparece, tambm, nos escritores em geral e leva

    Green (1973/1994) a qualificar o trabalho da escritura de tirnico e inevitvel; e

    perguntar: Por que tamanha obsesso mortfera para escrever? (p.53). Tal impulso

    para escrever tambm descrito pelo escritor e ensasta francs Maurice Blanchot. Para

    Blanchot (2005), mais que um algo a dizer, h, na escrita, uma tormenta da

    impetuosidade criadora, cuja razo se desconhece (p.43). Essa tormenta s pode ser a

    exigncia pulsional.

    Desse modo, pensamos que pode haver uma aproximao entre o escritor de

    testemunho de escritores de outros gneros naquilo que impele escrita, ou seja, o

    excesso pulsional do traumtico. Porm devemos respeitar as distncias entre o trauma

    de um sobrevivente de uma catstrofe e uma possvel situao traumtica, vivida por um

    escritor de outros gneros literrios.

    Mesmo reconhecendo tais distncias e possveis diferenas, buscamos o

    referencial de Michel de Muzan, que teoriza sobre a literatura de um modo geral, por

    acreditarmos serem vlidas para uma aproximao da compreenso da literatura de

  • testemunho. Ao falar sobre a criao literria, MUzan (1978) questiona precisamente

    por que, em alguns sujeitos, aparece tal necessidade, a de escrever. E, na sua resposta,

    encontra-se o paradoxo da escrita. Para o autor, aquele que impelido a escrever, o faz

    pela sua dificuldade na perlaborao, pelo relativo fracasso na sua vida imaginativa, isto

    , busca na escrita um suprimento para lidar com a situao traumtica. Como se seu

    psiquismo no conseguisse trabalhar o excesso pulsional apenas em seu interior.

    Mesmo com sua atividade fantasmtica bem desenvolvida, continua Muzan

    (1978), o artista no consegue utiliz-la com eficcia na elaborao de seus conflitos e

    tenses. Na tentativa de criar e restabelecer sua integridade narcsica, pela escrita, ele se

    v submergido novamente em uma situao traumtica, pois a criao de uma obra

    provoca novas rupturas do pulsional. E o autor completa, o artista se v ameaado pelo

    sistema que precisamente deveria proteger-lhe (p.28)4.

    Portanto, na concepo de MUzan (1978), o que leva o sujeito a escrever a

    prpria dificuldade de elaborao traumtica que, por sua vez, joga em novos

    microtraumas, rupturas pulsionais, necessrias para a criao. E, talvez, encontre-se a,

    como diz Mezan (1998), no o fracasso da arte, mas o fracasso da vida, quando um

    autor comete o suicdio. Ou seja, seu sofrimento j no encontra na obra uma sada e ele

    conduzido ao desespero.

    Tais apontamentos encontram ligao com o que escreveu o ensasta britnico

    A. Alvarez (1999) em seu livro O deus selvagem: um estudo do suicdio. Nessa obra, o

    autor trata, especificamente, do suicdio na literatura, bem como do suicdio de sua

    amiga - a poeta Sylvia Plath- e de sua prpria tentativa de morte voluntria. Quando

    comenta sobre a crena de Plath, da escrita como tentativa de se libertar do passado, o

    autor diz:

    [...] para o prprio artista, a arte no necessariamente teraputica; ele no se

    livra automaticamente de suas fantasias ao express-las. Ao contrrio, por uma

    espcie de lgica perversa da criao, o ato da expresso formal pode

    simplesmente tornar o material trazido tona mais prontamente disponvel para

    o artista. O ato de lidar com essas fantasias em seu trabalho pode muito bem

    fazer com que ele de repente se perceba vivendo-as. (p.50).

    4 Traduo nossa.

  • E, assim, somos levados a falar do paradoxo da expresso pela escrita que, ao

    mesmo tempo em que permite a transformao da dor em arte - derivada de uma

    situao traumtica - e permite ao sujeito suportar seu sofrimento, pode, tambm, jogar

    o indivduo na dor, novamente. O que haveria no ato da escritura capaz de reavivar os

    fantasmas? o que tentaremos explanar no prximo tpico.

    O duplo poder da escrita: proteo e perigo

    Nada mais possuo a no ser minha morte, minha experincia de morte, para

    contar minha vida, express-la, lev-la adiante. Tenho que fabricar vida com

    toda essa morte. E a melhor maneira de conseguir a escrita. Ora, esta me leva

    morte, a me tranca, a me asfixia. Estou nesse ponto: s posso viver assumindo

    essa morte pela escrita, mas a escrita me impede literalmente de viver.

    (Semprn, citado em Kirschbaum, 2007, p.162).

    com esta citao de Semprn (cit. p. Kirschbaum, 2007), escritor espanhol,

    sobrevivente de um campo de concentrao onde foi preso poltico, que nos lanamos

    ao territrio obscuro da escrita de si mesmo. Escrita essa que, segundo Maldonado e

    Cardoso (2009), auxilia seu autor, tendo passado por uma catstrofe, a dar continuidade

    sua sobrevida. Ideia essa tambm encontrada em Laub e Podell (1995), quando

    afirmam ser a arte ajuda na sobrevivncia e recuperao. Mas, que, afirmamos ns,

    tambm aproxima seu autor da morte, como diz Semprn acima.

    Na filosofia, encontramos em Plato, discutido por Derrida (1991), o escrito

    Fedro, no qual h um dilogo com Scrates. Ao receber os textos de Fedro, Scrates os

    compara ao phrmakon, isto , a uma droga, ao mesmo tempo remdio e veneno. O

    phrmakon produz encanto, tem em si a virtude da fascinao e a potncia de feitio,

    diz Derrida, trazendo tanto benefcio como malefcio. J para Blanchot (2005) a escrita

    um enigma, porm um enigma que no tem orculo ao qual se possam fazer perguntas

    sobre a mesma; perguntas sobre o impulso ou a obrigao de escrever.

    Alm da filosofia e da critica literria, a psicanlise tambm nos fornece

    elementos para pensar a escrita para alm de uma sada idealizada. Green (1973/1994)

    afirma que o trabalho da escritura tirnico e inevitvel para o escritor. Ocorre como

    uma tentativa de encobrir uma perda, uma ferida e um luto. Tal trabalho de luto no

    cessa. O sujeito est sempre sendo impelido a escrever novamente. Essa inquietude

    pode ser - pensando com Laplanche (1988) - a angstia que necessita ser ligada.

  • Conforme Muzan (1978), a literatura no se produz de modo idlico, sua criao

    dramtica. Para o autor, o drama composto pelo caos que, para converter-se em

    criao, traduzido em representaes, em fantasmas, ainda que sejam os mais

    aterradores.

    O incio do processo de criao, de um modo geral, pode ser entendido como

    traumtico nessa concepo de MUzan (1978), pois quando o autor descreve tal incio,

    do ponto de vista econmico, diz haver uma inundao pulsional no psiquismo. Esse

    seria o momento da captao artstica e, em cada nova etapa de desenvolvimento da

    obra, ocorreriam novas rupturas, porm menos dramticas que a primeira. Para

    Laplanche (1981/1989), as foras que levam criao nascem do trauma e recriam uma

    nova situao traumtica:

    [...] essas foras so as que nascem do traumatismo, ao mesmo tempo que so as

    que levam a renovar incessantemente o traumatismo, portanto, numa espcie de

    crculo vicioso; mas o traumatismo que constitui o ponto preciso dessa espcie

    de neognese de uma energia que impele sublimao. (p. 177).

    As idias desses autores nos remetem ao que apresenta Freud (1923/1996), em O

    ego e o id, quando fala sobre a sublimao. Para Freud, a sublimao seria possvel pelo

    trabalho do ego de transformar a libido objetal sexual em narcsica para assim dar-lhe

    um novo objetivo. Pensamos, aqui, em uma criao artstica. Mas, o ponto que

    gostaramos de sublinhar o questionamento que faz Freud, em seguida, quando

    pergunta se essa transformao poderia levar desfuso de pulses, que se encontram

    fundidas. Ou seja, a desfuso entre pulso de vida e pulso de morte. Nesse trabalho de

    sublimao, o ego ajuda a pulso de morte do id a dominar a libido; por sua vez, as

    pulses agressivas so liberadas no superego. Nesse movimento pulsional, o ego corre

    risco de ser aniquilado.

    A ameaa integridade do eu na escrita poderia ser aumentada na narrativa

    testemunhal, pensamos ns, pela vivncia traumtica anteriormente j ter ameaado tal

    integridade, levando, inclusive, uma sensao do sobrevivente de que algo em si morreu

    ou que j no habita mais o prprio corpo.

    A presena da morte na narrativa testemunhal se faz constante, no se trata de

    uma morte real, mas da morte sentida. As mais ricas descries de tal sensao nos so

  • dadas por Jorge Semprn (1995) e Flvio Tavares5 (1995) em seus respectivos livros A

    escrita ou vida e Memrias do esquecimento.

    Para Semprn ele no sobreviveu ao campo de concentrao, algo essencial dele

    permaneceu l, o que retornou era uma assombrao, um fantasma que atravessou a

    barreira da morte ou foi atravessado por ela: compreendi de sbito que eles tinham

    razo de se apavorar, aqueles militares, de evitar meu olhar. Pois eu no havia

    propriamente sobrevivido morte, no a tinha evitado. No havia escapado dela. (...) Eu

    era uma assombrao, em suma. (p. 24).

    Das diversas citaes da morte em vida, na narrativa de Tavares (1995), duas

    podem ser destacadas. A primeira ocorre durante uma simulao de fuzilamento pelo

    Exrcito uruguaio, enquanto andava vendado e de costas para seus algozes ele narra:

    Cada vez a passo mais lento, pensei nos meus filhos e rezei o Pai Nosso e a Ave-Maria

    com o convencimento de que estava morrendo ali. E morri. Morri dentro de mim

    mesmo (p. 254). J ao final de seu livro Tavares fala o que restou do vivido foi o

    namoro com a morte. A escrita poderia, ento, ser o resultado de namoro com a morte,

    pois Tavares (1999), pois o autor termina sua narrativa dizendo: (...) foi, tambm,

    nesse mesmo Uruguai que, 16 anos depois, fui sequestrado, fuzilado e morri. Ou

    comecei a morrer nas memrias desse esquecimento que quis contar aqui. (p.271).

    Durante as experincias de traumas massivos, que incluem torturas, o corpo e o

    eu parecem no ser mais representados para o sobrevivente como uma unidade. Para

    Semprn (1995) o corpo se soltou dele, para Tavares (1999) seu pnis, atingido pelos

    choques, lhe saa do corpo nos sonhos agonizantes.

    com essas experincias de fragmentao - de fragmentao da percepo, da

    prpria histria e das relaes com a famlia e a comunidade (Laub, 2002), e por que

    no dizer de fragmentao do prprio eu que o sobrevivente se depara, novamente, ao

    escrever. Assim a experincia da escrita sentida por Semprn (1995): A felicidade da

    escrita, eu comeava saber, jamais apagava essa desgraa da memria. Muito pelo

    contrrio: aguava-a, escavava-a, reaviva-a. Tornando-a insuportvel. (p. 160). Do

    mesmo modo Tavares (1999) narra: Agora que chego ao fim, pergunto-me o que me

    angustiou mais: ter vivido o que vivi ou ter rememorado, aqui, tudo o que quis

    esquecer. (p.263).

    5 Flvio Tavares um jornalista sobrevivente da tortura da Ditadura Militar brasileira e da Ditadura

    Militar uruguaia.

  • A no atenuao da dor pela escrita uma das compreenses de Blanchot

    (2011), que diz que materializar a dor pela escrita no transform-la, nessa

    materializao dor apresentada e no representada, tal como o trauma descrito

    acima por Uchitel (2001).

    Mas narrar sua prpria experincia traumtica no uma simples rememorao

    do passado, , tambm, uma reconstruo deste passado, pois ao escrever processos

    tradutivos e destradutivos so postos em ao (Laplanche, 2001), ou seja, novas

    significaes podem ser dadas ao vivido.

    Palavras finais...

    A recordao, embora dolorosa, faz parte da elaborao, no questionamos a

    possibilidade que a escrita tem de perlaborao, o que questionamos a sua

    insuficincia de apenas por si s dar guarida ao desamparo do sobrevivente. O trauma

    social - como foram a Shoah e as Ditaduras Militares na Amrica Latina - precisa de um

    entorno social que acolha e escute o sobrevivente. Quem chama ateno para este fato

    Judith Herman (2004), a autora afirma que as a recuperao de sobreviventes de

    traumas depende, primeiramente, do reconhecimento pblico do acontecimento

    traumtico e de algum tipo de ao comunitria. O que parece no acontecer

    comumente com os traumas sociais, pois, segundo a mesma autora, diferentemente do

    que ocorre com outras perdas, aps o trauma no h ritos que auxiliem o sobrevivente a

    significar seu sofrimento.

    Pensando do mesmo modo que a Herman (2004), mas com as noes da Teoria

    da Seduo Generalizada, podemos afirmar que, o silncio da comunidade, demonstra a

    falta de agentes de traduo que auxiliariam o sobrevivente a traduzir as mensagens

    enigmticas da situao traumtica. Mensagens essas, pensamos aqui, sdicas.

    A escrita no pode ser a nica garantia de anistia ao sobrevivente6. Pois, alm de

    correr o risco de no se obter a anistia, o sobrevivente acaba por revelar o ressentimento

    e dio pela no punio dos seus carrascos, e a culpa pelos meios utilizados para

    sobreviver.

    No podemos deixar de considerar que a escrita testemunhal, principalmente da

    Shoah, em alguns pontos das ditaduras, comporta um mais alm que refora a dor, a

    6 O sobrevivente da Ditadura Militar Brasileira, Luiz Roberto Salinas Fortes, afirma que escrever foi uma

    tentativa de obter a anistia que ningum lhe concedeu (Cardoso, 1998).

  • culpa e a vergonha, pois tal escrita revela publicamente uma satisfao proibida para o

    ser humano, isto , ter rompido a barreira da civilizao. Culpa por ter sido uma das

    personagens de uma histria de horror em que, de alguma maneira, compartilhou das

    sentenas de morte dos semelhantes.

    Por fim, o que possvel afirmar que, o trauma, ainda que cale o traumatizado

    inicialmente, exige do psiquismo que dele se fale. Assim, o trauma comporta em si uma

    potncia tanto criadora quanto destruidora, por vezes, a destruio da prpria vida.

    Finalizamos com as palavras de Paul Celan que acabou por dar um fim em sua prpria

    vida e calou-se para sempre, deixando apenas o eco de suas palavras e do seu

    sofrimento em suas poesias.

    Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer bebemo-lo ao meio-dia e

    pela manh bebemo-lo de noite bebemos e bebemos cavamos um tmulo nos

    ares a no ficamos apertados. Na casa vive um homem que brinca com

    serpentes escreve escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro

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