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437 O HISTORIADOR, A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E AS DEMANDAS COMUNITÁRIAS: O CASO DO REGISTRO E SALVAGUARDA DO MODO DE FAZER JURUPIGA, O PRIMEIRO PATRIMÔNIO IMATERIAL DO MUNICÍPIO DE RIO GRANDE – RS HELISSA RENATA GRÜNDEMANN Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, graduanda de História Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande - FURG e Bolsista do Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu) [email protected] Resumo Este trabalho visa problematizar e discutir o papel social do historiador enquanto extensionista, agindo em prol das demandas comunitárias e em defesa do patrimônio cultural. Para atingir este fim, irá discorrer sobre os conceitos acima citados, assim como apresentará o projeto “O Modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal”, inserido no Programa de Extensão Comunidades FURG - COMUF (PROEXT-2012/MEC/ SESu), que visa a salvaguarda da produção de Jurupiga (bebida artesanal à base de uva) na Ilha dos Marinheiros (Rio Grande/RS), debatendo seus resultados. Palavras-chave: Extensão Universitária, Patrimônio Cultural Imaterial, Salvaguarda. Considerações iniciais O ofício do historiador é muito antigo, e vem modificando-se, adaptando-se as necessidades e as problemáticas de seu tempo, com o mesmo dinamismo da própria história. As fontes para a produção da História se ampliaram ao longo dos séculos, notadamente com a corrente historiográfica da Escola dos Annales, assim como de outros autores, podemos citar aqui os brasileiros Sérgio Buarque de Hollanda, que já em 1936 publicava seu livro, “Raízes do Brasil”, e Gilberto Freyre, com “Casa Grande e Senzala” de 1933, que começaram a pensar a História além das temáticas clássicas: política e economia. Ao analisarmos as características socioeconômicas de nossa sociedade hoje, vemos que aspectos da globalização e do neoliberalismo vêm tornando o abismo entre os que detêm a maior parte da riqueza do mundo e os que nada possuem cada vez maior; características culturais centenárias vem se perdendo por não possuírem apelo econômico imediato; assim como as identidades comunitárias vem se fragmentando e individualizando; a qualidade de vida em muitas cidades é menos importante do que o investimento em indústrias e empresas que apenas sugam os benefícios do centro destas e nada dão em troca, além de retorno financeiro que novamente não é aplicado em causas sociais; citando apenas algumas características visíveis na cidade de Rio Grande – RS.

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O HISTORIADOR, A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E AS DEMANDAS COMUNITÁRIAS: O CASO DO REGISTRO E SALVAGUARDA DO MODO

DE FAZER JURUPIGA, O PRIMEIRO PATRIMÔNIO IMATERIAL DO MUNICÍPIO DE RIO GRANDE – RS

Helissa Renata GRündemann

Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, graduanda de História Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande - FURG e Bolsista do Programa de

Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu)[email protected]

Resumo

Este trabalho visa problematizar e discutir o papel social do historiador enquanto extensionista, agindo em prol das demandas comunitárias e em defesa do patrimônio cultural. Para atingir este fim, irá discorrer sobre os conceitos acima citados, assim como apresentará o projeto “O Modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal”, inserido no Programa de Extensão Comunidades FURG - COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu), que visa a salvaguarda da produção de Jurupiga (bebida artesanal à base de uva) na Ilha dos Marinheiros (Rio Grande/RS), debatendo seus resultados.

Palavras-chave: Extensão Universitária, Patrimônio Cultural Imaterial, Salvaguarda.

Considerações iniciais

O ofício do historiador é muito antigo, e vem modificando-se, adaptando-se as necessidades e as problemáticas de seu tempo, com o mesmo dinamismo da própria história. As fontes para a produção da História se ampliaram ao longo dos séculos, notadamente com a corrente historiográfica da Escola dos Annales, assim como de outros autores, podemos citar aqui os brasileiros Sérgio Buarque de Hollanda, que já em 1936 publicava seu livro, “Raízes do Brasil”, e Gilberto Freyre, com “Casa Grande e Senzala” de 1933, que começaram a pensar a História além das temáticas clássicas: política e economia.

Ao analisarmos as características socioeconômicas de nossa sociedade hoje, vemos que aspectos da globalização e do neoliberalismo vêm tornando o abismo entre os que detêm a maior parte da riqueza do mundo e os que nada possuem cada vez maior; características culturais centenárias vem se perdendo por não possuírem apelo econômico imediato; assim como as identidades comunitárias vem se fragmentando e individualizando; a qualidade de vida em muitas cidades é menos importante do que o investimento em indústrias e empresas que apenas sugam os benefícios do centro destas e nada dão em troca, além de retorno financeiro que novamente não é aplicado em causas sociais; citando apenas algumas características visíveis na cidade de Rio Grande – RS.

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Tendo isto em vista, acreditamos que o papel do historiador neste contexto possa ser justamente o de evidenciar e problematizar estes aspectos e, principalmente, a partir de suas pesquisas e do contato com a realidade, agir em prol de melhorias sociais. Há lugar para vários perfis de historiadores neste mundo, porém defendo e tento colocar em prática o que eu acredito ser necessário no país e na época em que vivemos: um historiador que conheça sua realidade local e utilize-se dos conhecimentos adquiridos em sua formação, - no caso das Universidades Federais, formação esta que foi paga pela população brasileira -, para efetivar ações que levem em conta as demandas das comunidades com que estabelece contato.

Demandas como a salvaguarda de patrimônios que estão se perdendo por falta de valorização e estímulo; evidenciação de aspectos históricos desconhecidos que podem gerar benefícios para as comunidades; registro de histórias comunitárias não contadas, para que as comunidades saibam que não só os grandes heróis possuem direito à História, assim colaborando para sua autoestima; articulação com movimentos sociais e o poder público para concretizar interesses comunitários; assim como outras demandas que surgirem e que o historiador tenha capacidade de auxiliar na resolução, de acordo com sua competência.

Desta forma, este artigo tem por objetivo justamente problematizar este papel social do historiador, levando em conta o próprio papel social da Universidade. Para isto, serão abordados aspectos da extensão universitária, que acreditamos ser de grande auxilio para que se cumpra a função social da Universidade; a legislação patrimonial, onde devemos nos apoiar a fim de buscar a salvaguarda e valorização das práticas culturais estudadas; assim como a metodologia da pesquisa-ação e da Educação Não-formal, que são de grande auxilio no que diz respeito à uma prática de pesquisa construída juntamente com os sujeitos envolvidos e que almeja por uma melhoria social. Por fim, como estudo de caso será apresentado o projeto “O modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal”, inserido no Programa de Extensão em Defesa do Patrimônio Comunitário Comunidades FURG – COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu), que utilizou estes conceitos para efetivar suas ações.

Aporte teórico-metodológico

Os aspectos culturais imateriais ao longo dos séculos foram muitas vezes menosprezados em relação aos materiais, às edificações e prédios “históricos”. Aqui no Brasil, principalmente os de origem ou influência europeia, que eram considerados como possuindo um valor excepcional assim merecendo serem protegidos.

Para melhor compreendermos a questão, se faz necessário entender o que é Patrimônio Imaterial. O artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003 apud CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.11), assim o define:

[As] práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.

Este conceito vem sendo formulado e debatido desde o final da II Guerra Mundial

(1945) com a criação da UNESCO, que possui como um de seus objetivos a defesa da diversidade cultural. De maneira geral, as bases das definições de Patrimônio Imaterial

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estão no documento da UNESCO “Recomendações sobre a Salvaguarda do Folclore e da Cultura Popular” (1989), e na instituição do programa de “Proclamação das Obras-primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade” (1997). Porém, foi em apenas em 2003 que a UNESCO organizou uma “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” em Paris, incentivando seus países-membros na criação de políticas públicas que salvaguardem seus Patrimônios Imateriais.

Em termos nacionais, podemos perceber que o Brasil foi um pioneiro quando se trata deste conceito. Ele já vinha sendo debatido desde a década de 1920, com as preocupações expressas pelo Modernismo, exemplificadas na proposta de implantação de políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro por Mário de Andrade em 1936, a pedido do ministro de Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema. Esta proposta, que já incluía aspectos próximos do conceito de Patrimônio Imaterial, resultou na criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1937, que, entretanto, dava prioridade apenas ao aspecto material do nosso Patrimônio, levando em conta critérios de valor histórico e artístico que na maior parte das vezes priorizava as influências europeias na arquitetura brasileira, como já dito acima.

Com o passar das décadas, o debate a respeito destes aspectos culturais intangíveis, chamados também de folclore, ou referência cultural, veio crescendo exponencialmente, sendo alvo de inúmeros projetos e campanhas nacionais para a preservação destes saberes, porém ainda de forma rudimentar e não sistematizada. Assim, o primeiro avanço efetivo em prol da salvaguarda do patrimônio imaterial, e a mais completa definição do conceito até então surge com o art. 216 da Constituição Federal de 1988, lendo-se:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Também, interessante destacar que isso influenciará no Decreto 3.551 de 2000, uma vez que no inciso 1º deixa claro que cabe ao Estado e aos brasileiros em geral zelar por este patrimônio: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.

Desta forma, 12 anos após a Constituição Federal, é promulgado o Decreto 3.551 – acima mencionado, que cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), instrumentos concretos para a salvaguarda dos bens considerados como patrimônio imaterial, pois agora eles serão beneficiados com políticas públicas voltadas para a sua preservação.

É interessante destacar que este conceito é valioso no que diz respeito a democracia cultural, ou seja, garantir que todos tenham direito a produzir e ter acesso à cultura. Ele vem diretamente ao encontro da própria Constituição Federal, que no seu artigo 215 declara: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Assim, trabalhar em prol da defesa destes aspectos culturais muitas vezes a beira do desaparecimento é fazer cumprir a legislação brasileira.

O Decreto 3.551 também deixa claro que quem define o que é ou não patrimônio é a própria comunidade, evitando assim imposições muitas vezes por parte da Academia, que costuma achar que seus saberes são superiores e que pode dizer às comunidades o que é digno de ser preservado. Da mesma forma, como vimos na definição da UNESCO acima, é reconhecido o caráter dinâmico da cultura e por consequência das práticas consideradas patrimônio imaterial; com o advento de novas tecnologias e um novo contexto, os detentores destes saberes vão se adaptando. O que é importante analisar é se estas práticas e saberes

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continuam ou não possuindo um caráter de referência cultural, ou seja, “representações que configuram uma identidade da região para seus habitantes, e que remetem à paisagem, às edificações e objetos, aos fazeres e saberes, às crenças, hábitos, etc.” (FONSECA, s/d, p.113) para determinado grupo.

Tendo isto em vista, acreditamos que o historiador pode muito colaborar em prol da defesa destes patrimônios, fazendo valer a Constituição e cumprindo sua responsabilidade social, pois irá agir em prol de demandas comunitárias. Neste sentido, vemos que é necessário não só que o historiador esteja pensando em seu papel social, mas sim a Universidade como um todo. Segundo Boaventura de Sousa Santos, no contexto presente, as Universidades estão sofrendo uma crise em sua definição, o que leva à discussão sobre o que de fato é função da Universidade. Será só contribuir para o conhecimento científico, mantendo-se isolada da sociedade em sua volta? Segundo Santos, as crises enfrentadas pela Universidade são a) crise de hegemonia: que resulta das contradições entre as funções tradicionais da universidade e as novas funções atribuídas a ela ao longo do século XX; b) crise de legitimidade, onde o conflito é gerado pela contradição entre a hierarquização dos saberes especializados e as exigências sociais e políticas de democratização da universidade; c) crise institucional, que resulta da contradição entre a pretensa autonomia da universidade e a pressão crescente que submete-a a critérios de eficácia e produtividade tendo em vista o sistema econômico atual ou de responsabilidade social (SANTOS, 2008, p.13-14).

Assim, ainda segundo Santos, faz-se necessária uma reforma “democrática e emancipatória” da Universidade, pois o conhecimento elitizado, imposto de cima para baixo, menosprezando outros saberes está ultrapassado. E uma das formas de concretizar isto, é justamente encarar a responsabilidade social da Universidade, oferecer um retorno à sociedade do que é produzido dentro dos muros universitários, ou melhor, eliminar estes muros. Isto significa produzir conhecimentos que sejam plurais, como é a própria sociedade brasileira. Em relação a isto, Maria Antônia de Souza afirma:

Há que se superar a ideia de universidade apartada da sociedade, uma vez que a universidade é a sociedade; nela estão expressas as contradições sociais e as faces da exclusão social. A sala de aula, os grupos de pesquisa, a vida acadêmica é constituída mediante práticas oriundas de várias comunidades, diferentes valores, costumes, etc. A frieza acadêmica algumas vezes ofusca a diversidade que marca a universidade, que deveria ser o lugar da pluralidade teórica e sociocultural (SOUZA, 2011, p.12).

Para almejar estes objetivos, acreditamos ser a extensão universitária um bom começo. Como se sabe, a extensão é um dos três pilares da Universidade brasileira, ao lado da pesquisa e ensino. Segundo o artigo 207 da Constituição: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. O conceito de extensão universitária, entretanto, é amplo e foi utilizado de inúmeras formas para atender a interesses diversos. Segundo Rossana Maria Souto Maior Serrano:

“Pela analise histórica da extensão universitária vamos encontrar pelo menos quatro momentos expressivos de sua conceituação e prática: o modelo da transmissão vertical do conhecimento; o voluntarismo, a ação voluntaria sócio-comunitária; a ação sócio-comunitária institucional; o acadêmico institucional. Tais momentos apresentam-se numa transitoriedade no interior de cada universidade em razão de sua história e de seu projeto pedagógico, assim podemos encontrar nas universidades brasileiras instituições em vários desses momentos conceituais” (2008, p.1).

Podemos definir estes momentos de tal forma: a) o modelo da transmissão vertical do conhecimento, presente desde às escolas gregas e também nas universidades da Inglaterra no

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século XIX, parte do pressuposto de que o saber acadêmico é superior e precisa ser imposto ao não acadêmico, não havendo diálogo entre os pesquisadores e os sujeitos (SERRANO, 2008, p.3); b) o modelo de voluntarismo, presente nos movimentos estudantis na América Latina desde 1916, parte de uma perspectiva mais politizada, dialógica, comprometida com mudanças sociais e é o início de uma tomada de consciência do papel social da Universidade (SERRANO, 2008, p.4-6); c) o modelo de ação sócio-comunitária institucional caracteriza-se pelo processo da reforma universitária na década de 30 no Brasil e a institucionalização da extensão na forma de difusão do conhecimento a partir de uma via de “mão única”, de uma Universidade que sabe para uma comunidade que não sabe. Com o advento das ditaturas na América Latina, as práticas de extensão foram tornadas esporádicas e desvinculadas das universidades, tornando novamente a extensão em uma prática conservadora, antidialógica e assistencialista (SERRANO, 2008, p.7-9); d) O modelo acadêmico institucional surge no começo dos anos 60, iniciando na Universidade do Recife com o movimento de Extensão Cultural onde nasce o método Paulo Freire. As ideias e práticas de Freire passaram a fundamentar os conceitos e práticas da Extensão Universitária de que se institucionaliza a partir dos anos 80 (SERRANO, 2008, p.9-10).

Se aproximando no momento atual desta trajetória, em 1987 é instaurado o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, onde a definição de extensão universitária é articulada. Abaixo um trecho desta definição:

A Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidade e Sociedade. A Extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade de elaboração da praxis de um conhecimento acadêmico (Fórum Nacional, 1987 apud SERRANO, 2008, p.10)

Já em 1998, o Fórum Nacional elabora o Plano Nacional de Extensão Universitária, institucionalizando o conceito, e reiterando a definição anterior porém de forma mais completa, conforme trecho abaixo:

Sua função básica de produção e de socialização do conhecimento, visando a intervenção, na realidade, possibilita acordos e ação coletiva entre universidade e população. Por outro lado, retira o caráter de terceira função da extensão, para dimensioná-la como filosofia, ação vinculada, política, estratégia democratizante, metodologia, sinalizando para uma universidade voltada para os problemas sociais com o objetivo de encontrar soluções através da pesquisa básica e aplicada, visando realimentar o processo ensino-aprendizagem como um todo e intervindo na realidade concreta.

A partir de então, esforços para o fortalecimento da extensão nas universidades

brasileiras tem sido consideráveis. Há maiores investimentos nesta área que está em evidente expansão, e acreditamos ser ela capaz de justamente articular o ensino e a pesquisa, levando em conta as demandas sociais e agindo em prol delas, assim concretizando o papel social das Universidades. Santos afirma:

A área de extensão vai ter no futuro próximo um significado muito especial. [...] a reforma da universidade deve conferir uma nova centralidade às actividades de extensão (com implicações no curriculum e nas carreiras dos docentes) e concebê-las de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às universidades uma participação activa na construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural. (2008, p.66-67).

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Justamente no aspecto da defesa da diversidade cultural, acredito que o historiador possa atuar de forma competente. Entretanto, vemos que a extensão no curso de História é pouco ou nada valorizada. Acredito que os debates em relação ao historiador enquanto extensionista necessitam continuar e ser ampliados, pois há muito que este profissional pode fazer agindo em prol de uma conexão entre a Universidade e a sociedade.

Outro aspecto que é inerente ao conceito atual e institucionalizado de extensão universitária é a necessidade de diálogo com as pessoas com quem entramos em contato durante nossas pesquisas, chamados “sujeitos”, ou “atores”. Ou seja, manter um diálogo aberto e sem hierarquias, pois não há saber superior a outro. Desta forma, as metodologias que utilizamos partem justamente deste princípio básico, e são a Pesquisa-ação e a Educação Não-formal.

A Pesquisa-ação, por vezes considerada como uma “metodologia de ação” e não só como uma metodologia de pesquisa, já que seu objetivo primeiro é a ação social, a mudança efetiva de uma situação específica (DIONNE, 2007, p.34-35), surgiu com a constatação cada vez mais evidente dos pesquisadores das Ciências Humanas dos limites da pesquisa científica tradicional em relação aos problemas cruciais da nossa sociedade (BARBIER, 2006, p.19-20). Jean Dubost, define pesquisa-ação como uma “ação deliberada visando a uma mudança no mundo real, [...] englobada por um projeto mais geral e submetendo-se a certas disciplinas para obter efeitos de conhecimento ou de sentido” (DUBOST, 1987, apud BARBIER, 2006, p. 36). René Barbier também explicita:

Se por muito tempo o papel da ciência foi descrever, explicar e prever os fenômenos, impondo ao pesquisador ser um observador neutro e objetivo, a pesquisa-ação adota um encaminhamento oposto pela sua finalidade: servir de instrumento de mudança social. Ela está mais interessada no conhecimento prático do que no conhecimento teórico. Os membros de um grupo estão em melhores condições de conhecer sua realidade do que as pessoas que não pertencem ao grupo. A mudança na pesquisa clássica, quando há lugar para isso, é um processo concebido de cima para baixo. (2006, p.53).

A participação dos sujeitos na própria definição do que é ou não importante a ser pesquisado, ou o que necessita de mudança, é essencial. Também, a ação é algo essencial, pois é ela que gerará novos conhecimentos e pesquisas, que por sua vez, gerarão novas ações cada vez mais embasadas. Michel Thiollent assim define a pesquisa-ação:

“... a pesquisa-ação pode ser concebida como método, isto quer dizer um caminho ou um conjunto de procedimentos para interligar conhecimento e ação, ou extrair da ação novos conhecimentos. Do lado dos pesquisadores, trata-se de formular conceitos, buscar informações sobre situações; do lado dos atores, a questão remete à disposição a agir, a aprender, a transformar, a melhorar etc” (2011, p.8).

Há muitas críticas em relação a esta metodologia, considerada “alternativa” tendo

em vista as metodologias tradicionais utilizadas na produção de conhecimento científico. Alguns advogam que ela tende tanto à prática que não poderia ser considerada uma pesquisa, com consistência científica. Utilizá-la na área da História, como estamos fazendo, pode ser considerado inovador, pois não há muitas pesquisas que registram o uso desta metodologia no nosso campo de atuação, sendo assim um aprendizado constante. Porém, através dos resultados obtidos com os projetos do Programa de Extensão Comunidades FURG conseguimos legitimar que este método é aplicável sim à produção de um conhecimento histórico que leve em conta a visão de mundo e as demandas das comunidades com quem interagimos, assim como pode servir para a conquista de direitos das mesmas. Neste sentido, Thiollent afirma:

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...alguns partidários da metodologia convencional veem na pesquisa-ação e na pesquisa participante um grande perigo, o do rebaixamento do nível de exigência acadêmica. Como veremos mais adiante, existem efetivos riscos e exageros na concepção e na organização de pesquisas alternativas: abandono do ideal cientifico, manipulação política, etc. Nosso desafio consiste em mostrar que tais riscos, que também existem em outros tipos de pesquisa, são superáveis mediante um adequado embasamento metodológico” (2011, p.14).

Como dito, manter um “ideal cientifico” de imparcialidade e objetividade é desafio de todo o tipo de pesquisa, especialmente às pesquisas das ciências humanas e sociais. Não podemos utilizar metodologias das ciências exatas e sermos julgados pelos mesmo critérios de análises laboratoriais enquanto lidamos com pessoas, com realidades sociais sempre mutáveis.

Porém, ao deixarmos clara nossa posição e nosso objetivo em relação à pesquisa, já que a completa imparcialidade é impossível, acreditamos fazer um trabalho honesto e, o mais importante, que irá trazer algum benefício para os envolvidos no processo da pesquisa.

É necessário, acima de tudo, respeitar e não tratar os membros comunitários como “objetos de pesquisa” como muitos o fazem, pois não são objetos e sim pessoas, com uma vida, com a necessidade de um fonte de renda, com uma visão de mundo própria, com problemas, defeitos e qualidades como todo mundo. As nossas ações são sempre pensadas neste sentido, e levando em conta a vontade de participação das pessoas envolvidas.

A Pesquisa-ação também tem como característica o trabalho em âmbitos locais ou regionais bem definidos, sua abrangência não é totalizante. Trata-se de uma pesquisa com base empírica, “voltada para a descrição de situações concretas e para a intervenção ou a ação orientada em função da resolução de problemas efetivamente detectados nas coletividades consideradas” (THIOLLENT, 2011, p.15), agindo juntamente com estas coletividades. A base teórica também é necessária e somente fortalece as ações, porém como afirma Thiollent:

...no plano teórico, a retórica sem controle corre solta. Há um crescente descompasso entre o conhecimento usado na resolução de problemas reais e o conhecimento usado apenas de modo retórico ou simbólico na esfera cultural. A linha seguida pelos partidários da pesquisa-ação é diferente: pretendem ficar atentos às exigências teóricas e práticas para equacionarem problemas relevantes dentro da situação social (2011, p.16).

Também utilizamos os princípios da Educação Não-formal, que é um conceito ainda em construção interessado em encontrar alternativas às abordagens formais da educação, e que como a pesquisa-ação serve de auxílio no que diz respeito à busca de uma mudança efetiva na sociedade. Segundo Maria da Glória Gohn (2006), uma das principais teóricas desta abordagem, na Educação Não-formal percebe-se que há uma intencionalidade na ação, no sentido de colaborar, aprender e trocar saberes (GOHN, 2006, p.29-30). Quanto à metodologia empregada, Gohn explica:

O método nasce a partir da problematização da vida cotidiana, os conteúdos emergem a partir dos temas que se colocam como necessidades, carências, desafios, obstáculos ou ações empreendedoras a serem realizadas; os conteúdos não são dados a priori. São construídos no processo. (GOHN, 2006, p. 31-32).

Vale destacar que estas metodologias levam em conta principalmente o interesse dos próprios atores. Como cita Gohn acima, o método e os conteúdos são construídos no processo; desta forma, as ações se dão a partir dos horários e disponibilidade dos atores, acarretando que o planejamento das ações seja sempre flexível e que se adapte as circunstâncias, não sobrando

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espaço para uma maior previsibilidade e linearidade. Como mencionado brevemente acima, “o planejamento [...] é visto de modo circular. Várias sequências são articuladas em ciclos que ‘rodam’, trazendo, a cada vez que se completa uma rotação, diversas melhorias à ação ou acréscimos de conhecimento que serão ponto de partida para um novo ciclo” (DIONNE, 2007, p.13).

Tendo isto em vista, as abordagens entre os participantes do projeto e os membros da comunidade sempre são feitas de igual para igual, sem nenhum tipo de hierarquização de saberes que coloca o saber acadêmico no topo e despreza os demais; também, quando estamos nas comunidades nosso objetivo primeiro é ouvir e aprender, e não “despejar” conhecimento, como muitos acadêmicos fazem justamente por acreditar que seus saberes são superiores. As ações então são variadas, desde conversas com os moradores para melhor identificar determinadas situações e demandas – nunca usando questionários fechados que limitam a riqueza das respostas; realização de Rodas de Memória, que proporcionam um maior diálogo tanto entre os membros da coletividade quanto entre estes e os pesquisadores; documentação e registro audiovisual, mediante permissão dos interessados, dos aspectos relevantes para determinado objetivo; entre outras que acabam sendo específicas de cada caso, pois aparecem com as demandas de cada comunidade.

Podemos perceber, então, que este tipo de abordagem extensionista, que tem como base metodológica a pesquisa-ação e a Educação Não-formal acaba efetivamente beneficiando ambos os lados da questão; a comunidade tem um retorno social da Universidade, pois quem paga pela educação nas instituições federais é o próprio povo brasileiro, que então merece este retorno; e os estudantes e pesquisadores, a partir deste contato, além de estarem cumprindo seu papel social como beneficiários de uma educação pública, aprendem muito sobre a realidade de sua localidade, conseguem produzir inovadoras pesquisas, metodologias, e divulgar e registrar cada vez mais a enorme diversidade cultural e social presente no nosso país. Acredito que o historiador possui função chave neste sentido, pois pode colaborar na valorização de histórias e memórias que ao longo do tempo vem sendo negadas e menosprezadas.

Estudo de caso

Tendo em vista estas considerações, agora será apresentado o projeto “O modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal”, integrante do Programa de Extensão em Defesa do Patrimônio Comunitário Comunidades - FURG (COMUF), que abarca vários projetos cujos objetivos são comuns. Estes são: a proteção e registro da história e do patrimônio dos distritos de Rio Grande (focando-se atualmente na Ilha dos Marinheiros, Povo Novo e Vila da Quinta); divulgação das leis patrimoniais às comunidades; garantia, ampliação e criação de ações afirmativas para negros, indígenas e quilombolas, dentro da Universidade Federal do Rio Grande; ações visando a defesa dos direitos humanos e ao combate ao racismo, homofobia, e todas as formas de opressão; e atender às demandas sociais com que nos deparamos nas nossas visitas às comunidades em questão.

Assim, se faz necessário uma breve explicação sobre o que é a Jurupiga, onde é produzida e porque se faz necessária sua salvaguarda. A Jurupiga é uma bebida artesanal feita a partir da uva. Seu modo de fazer é herança dos colonos do norte de Portugal, onde também é produzida até hoje na região das Beiras, do Douro, do Minho, de Trás-os-Montes e do Alto Douro. Em Portugal, é conhecida como “Jeropiga” ou “Geropiga”; até onde pudemos observar, a variação “Jurupiga” é apenas brasileira.

O modo artesanal de fazer a bebida consiste em “quebrar” a uva (pisando ou utilizando-

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se de um quebrador ou esmagador a manivela ou elétrico), retirando este primeiro líquido (mosto) considerado a “nata” da uva antes que fermente, pois assim mantém sua doçura natural. Após este processo, é adicionado o álcool, na proporção que varia de 17% a 20%, não adicionando açúcar, pois o sabor adocicado se dá pela própria fruta. Após isto, se deixa a mistura nos tonéis ou pipas por cerca de 2 a 3 meses para que ela se torne homogênea e o líquido cristalino.

Para melhor entender sua atual situação, também é necessário falar do local onde os detentores deste saber-fazer residem, e das circunstâncias que ocasionaram que a bebida se tornasse uma referência cultural da cidade de Rio Grande.

A Ilha dos Marinheiros, 2º distrito da cidade de Rio Grande, é a maior ilha do Estado, com uma área total de 39,28 km², e segundo o censo do IBGE de 2010 possui 1.259 habitantes. Foi o primeiro local do Estado a cultivar em grande escala a uva do tipo Isabel (RUIVO, 1994, p.156), se tornando também uma grande produtora de vinho e de Jurupiga, pois foi nesta época (meados do século XIX) que começaram as migrações dos portugueses do norte de Portugal, aumentando cada vez mais a população da ilha e trazendo os conhecimentos de plantio de uva e produção de vinho e jurupiga (AZEVEDO, 2003, p.62).

Assim, a produção de uva, e consequentemente de vinho, suco de uva e jurupiga foi abundante desde meados do século XIX até meados do século XX. Porém, a partir do início do século XX ela começou a cair drasticamente devido a vários fatores. O principal foi a enchente de 1941, que devastou a Ilha e suas plantações, afugentou muitos moradores, e acabou trazendo uma praga que tomou conta do terreno da ilha, a pérola, que é especialmente prejudicial às videiras. Com isto tornou-se necessário comprar uvas de outras cidades (Bento Gonçalves, Caxias do Sul, etc.), o que torna o processo muito mais caro. Outros fatores notáveis foram a chegada dos italianos na Serra gaúcha, e sua produção de vinho que se tornou abundante e sindicalizada, acabando por abastecer locais que somente a ilha abastecia; e a crescente industrialização de Rio Grande, que ocasionou a cada vez maior marginalização da ilha e por consequência gerou também muito êxodo rural (em 1940 haviam 7.200 habitantes na ilha, e em 1974 apenas 2.725 (AZEVEDO, 2003, p.30).

Assim, chegamos à situação atual da produção de Jurupiga, onde apenas uma família ainda produz a bebida em larga escala e a comercializa: a família Dias. Composta por Hermes da Silva Dias, 44 anos, Rosângela Maria da Costa Dias, e seus dois filhos Samuel Costa Dias e Gabriel Costa Dias, começou a comercializar a bebida como forma de melhorar sua renda e acabou obtendo grande sucesso, principalmente após sua iniciativa de voltar a cultivar a uva. Muitos acreditaram que o intento iria fracassar, por considerar que a praga pérola impediria o crescimento saudável das parreiras, porém deu certo e hoje a família possui mais de 400 pés de uva, o que barateia o custo da produção.

Assim, o projeto “O modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal”, existente desde 2010, teve como objetivo a salvaguarda do modo de fazer Jurupiga, por perceber sua importância na localidade e por ficar ciente de um aspecto jurídico que ameaçava a continuidade do modo de fazer, como será abordado a seguir.

Nossa pesquisa começou a partir de conversas com a família Dias, a qual sempre agiu de forma muito simpática em nos receber. Com o mesmo intuito, realizamos pesquisas documentais, onde foi comprovado o importante papel que a Jurupiga possui em relação à cultura da Ilha, já fazendo parte da identidade dos ilhéus. Assim, mantendo contato com a família, mostrando nosso interesse em melhor conhecer e registrar a história da Ilha, como também da produção de Jurupiga, algumas semanas depois eles se sentiram seguros o suficiente para nos contar sobre um acontecimento que estava ameaçando a continuidade de sua produção artesanal. A família foi intimada pelo Ministério da Agricultura do Rio Grande do Sul, a fim de que se enquadrassem nos preceitos industriais de produção de bebida alcoólica no Brasil. Entretanto, sendo esta uma pequena produção artesanal, eles não teriam condições de pagar as altíssimas taxas previstas, e nem de reestruturar o seu galpão

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de acordo com as normas vigentes; além de que isto iria modificar todo o modo de fazer, e a acarretaria na completa descaracterização da bebida, que perderia o sentido de referência cultural da localidade.

Hermes relatou que o fiscal do Ministério da Agricultura encontrou uma garrafa da bebida em algum comércio de Rio Grande e identificou que não possuía registro, indo então contatá-los. Ele também relatou que não foi a primeira vez que indagaram sobre sua produção, pois seu comércio já é bem conhecido na cidade. A partir disto, quando receberam a intimação e a visita do fiscal, este chegou a perguntar “cadê o resto do galpão?” e “onde fica o depósito, o resto dos produtos?”, “cadê os empregados?”, pois acreditava que a produção era a nível industrial, de tão bem feito que é o produto final e a sua exposição.

Assim, a explicação de que era apenas um comércio familiar não foi o suficiente para o fiscal, que os intimou em 06 de abril de 2010 a regularizar seu comércio segundo as normas de produção de bebida alcoólica e registrar a sua produção no Ministério da Agricultura em até 60 dias. Eles, não sabendo o que fazer, ignoraram a intimação, e no dia 27 de agosto de 2010, receberam um Auto de Infração. Com isto, resolveram fazer um modelo do que precisavam para reestruturar seu galpão, a fim de demonstrar que estavam querendo se enquadrar nas normas, mas apenas ainda não tinham dinheiro. Ficaram temerosos esperando algum tipo de resposta, e foi após disto que nos contaram o que havia acontecido.

Sabendo desta situação, assim como da ampla legislação que protege os patrimônios imateriais brasileiros, percebemos que eles estavam sofrendo uma injustiça pois uma bebida artesanal, um comércio familiar que é também um modo de fazer centenário que vem passando em geração em geração dentro de suas famílias, não pode nem deve ser taxado a partir das normas de produção de bebida alcoólica industrial. A família estava prestes a desistir do comércio e arranjar outra fonte de renda, pois estavam com a autoestima abalada e se sentindo “criminosos”. Importante ressaltar que Hermes deixa bem claro que em nenhum momento eles se negaram ou negariam a pagar qualquer taxa ou imposto sobre a sua produção e comércio; entretanto, querem e merecem taxas justas que eles consigam pagar e não os levem à falência.

Assim, a medida que encontramos para garantir o direito da família continuar produzindo e comercializando a bebida, assim como forma de valorizar e registrar este bem cultural, tentamos a patrimonialização da bebida em âmbito municipal. Conseguimos o contato da representante do IPHAE na cidade, Letícia Estima, que trabalha na Secretaria Municipal de Coordenação e Planejamento e marcamos uma reunião com ela, o Secretário Paulo Renato Cuchiara, o produtor de Jurupiga Hermes da Silva Dias, e eu, Jean Baptista e Rodrigo de Assis Brasil, representantes da Universidade agindo como mediadores entre a comunidade e o poder público a fim de tentar a resolução do problema.

Na reunião fomos bem recebidos e compreendidos, tendo em vista que a produção de Jurupiga e a família de Hermes já são bem conhecidas na cidade. Falamos sobre a necessidade de patrimonializar esta produção para assegurar sua continuidade, e para que os produtores não precisem descaracterizar o produto para se encaixar na legislação padrão de bebidas alcoólicas. Também apresentamos uma pesquisa sobre casos semelhantes ocorridos no país e em como a patrimonialização fora contributiva no enfrentamento de pressões do contemporâneo, recomendando que o município elevasse a jurupiga como patrimônio imaterial. O Secretário então nos indicou a redigir um documento destinado ao prefeito, contendo a argumentação discutida na reunião e a situação emergencial para que a bebida fosse registrada como Patrimônio Imaterial da cidade o quanto antes.

Para redigir o documento, fomos visitar a família novamente, para conversamos sobre a legislação patrimonial e os direitos deles enquanto detentores de um modo de fazer que se enquadra no conceito de patrimônio imaterial. Mediante estas informações, e discutindo sobre os possíveis benefícios de um registro em âmbito municipal, buscamos a opinião deles sobre o que deveria constar no documento a ser enviado à Prefeitura.

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Deste modo, através das informações obtidas desde o início do projeto, junto com a pesquisa histórica e principalmente as conversas com a família Dias, Jean, Rodrigo e eu redigimos o documento, que depois de pronto foi mostrado para que a família Dias o aprovasse antes do envio, e que em dois meses resultou na lei municipal de número 6.972/2010 (ver Anexo) que salvaguarda, enquanto Patrimônio Cultural Imaterial, o modo de fazer Jurupiga, se tornando o primeiro passo para a defesa desta produção em risco. Assim, o que de início partiu de uma demanda emergencial de um núcleo familiar de pequenos produtores rurais, acabou tornando-se de extrema importância para a salvaguarda de uma bebida típica da cidade.

No ano de 2011, as pesquisas sobre o modo de fazer continuaram e serviram de base para a monografia intitulada: “O modo de fazer Jurupiga: ações de extensão e salvaguarda do primeiro patrimônio imaterial de Rio Grande”. Em 2012, as ações do projeto continuaram e, já tendo efetivado a lei, achamos necessário divulga-la e discuti-la com os produtores a fim de fortalecê-la. Inicialmente mantivemos contato apenas com a família Dias, buscando contar sua história e valorizar sua produção. No ano presente, nos focamos em tentar abranger uma maior quantidade de produtores, divulgando a lei e percebendo outras demandas que poderiam surgir. Foi assim então que planejamos a organização da I Roda de Memória: O modo de fazer Jurupiga, em parceria com Hermes e Rosângela Dias. Convidamos pessoalmente 20 produtores de Jurupiga da Ilha para se reunirem, trocarem experiências, contarem suas história e memórias, discutindo qual é o modo tradicional de fazer a Jurupiga, e quais as modificações que este modo sofreu ao longo das décadas. Estiveram presentes 14 produtores e seus familiares e 10 estudantes de história, interessados em conhecer um pouco mais do primeiro patrimônio imaterial da cidade.

A Roda foi proveitosa, os produtores compartilharam suas vivências e memórias em relação à Jurupiga, lembrando suas infâncias ajudando os pais a pisarem a uva, furtivamente comendo uma ou outra uva que acabava escapando do processo de esmagamento, e recordando todos os motivos pelos quais eles até hoje seguem produzindo a bebida. Acredito que a Roda foi outro passo importante para a valorização da bebida, para mostrar que a Universidade apoia e visa a sua salvaguarda, e para mostrar que há estudantes de História interessados em contar a história deles, que também é nossa, pois é a história do município de Rio Grande.

Considerações finais:

A cidade de Rio Grande possui incontáveis modos de fazer, saberes tradicionais, expressões e festas típicas, que vem desaparecendo com o tempo, mediante as conjunturas econômicas atuais. Também, muitos ainda enxergam como patrimônio aquele que está edificado, e dentro destes apenas aqueles que possuem características arquitetônicas europeias. Desta forma, faz-se necessário iniciativas, projetos e parcerias com a prefeitura que visem o reconhecimento e salvaguarda destes patrimônios antes que seja tarde demais. A riqueza e diversidade cultural presentes em Rio Grande são algo ímpar, tendo em vista seu território enorme e com distritos muito afastados do centro e entre si, que vem resistindo e conseguindo manter suas diferentes tradições e modos particulares de enxergar o mundo. Porém devemos destacar que a atual situação socioeconômica aqui presenciada, que influencia o modo como lidamos com o nosso patrimônio, é apenas um exemplo local de algo que de fato está acontecendo em todo o país, em maior ou menor escala.

Portanto, levando em conta a problemática inicial do projeto, que foi a necessidade de salvaguardar a produção de Jurupiga antes que esta fosse extinta, tendo em vista a situação dos produtores atualmente e a intimação recebida pela única família que ainda produz em maior escala e comercializa a bebida, acredito que o objetivo foi cumprido. A geração da lei

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municipal que salvaguarda a bebida enquanto patrimônio imaterial da cidade, certamente dá uma seguridade à produção, pois agora a prefeitura, reconhecendo-a como patrimônio, se responsabiliza em promover e protege-la.

Entretanto, não houve por parte da prefeitura maiores incentivos, pois ainda não há uma legislação municipal específica que discorra sobre planos de salvaguarda destinados ao patrimônio imaterial de Rio Grande, e apesar de até o presente momento não ter havido mais pressão do Ministério da Agricultura, seria útil conseguir um registro empresarial para a produção. Este registro, entretanto, deve ser justo com os produtores, e levar em conta o caráter artesanal e patrimonial da bebida. Como parte do projeto, procuramos estas alternativas de registro em diversas instâncias, porém, não encontramos uma forma que seja justa com os produtores artesanais de bebidas alcoólicas, talvez este tipo de registro ainda não exista, sendo necessário criá-lo. Também ficou aparente a falta de advogados e contadores com conhecimento em legislação patrimonial, o que dificulta enormemente todo o processo de conseguir efetivar um registro empresarial de um bem cultural.

Acredito que este projeto demonstra que é possível o historiador agir em prol de demandas comunitárias e em defesa ao patrimônio, e que buscando o contato também com o poder público estas demandas conseguem ser atendidas de forma efetiva. A meu ver, a lei agiu em dois aspectos importantes em relação a este bem cultural: um simbólico, que foi a valorização e reconhecimento do excelente trabalho que a família Dias vem fazendo há quase duas décadas; e outro prático, pois conseguiu salvaguardar o modo de fazer, trazendo mais segurança para os produtores seguirem produzindo e comercializando, pois este é seu sustento.

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ANEXO