O Império Continental de Havana

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    Fotos de DesmondBoylan/Reuters

    montadas porZilberman

    O imprio

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    continental de HavanaDivulgao

    Olavo deCarvalhoJornalista,escritor e

    professor deFilosofia

    Cuba imperando sobre toda a Am-rica Latina? Eis um cenrio que, nocomeo dos anos 60, era um perigoreal e iminente. Trinta anos de-pois, era a sombra de um pesadelo (para al-guns, de um sonho dourado) extinto para sem-pre. Hoje no nem uma coisa, nem a outra: uma realidade, um fato consumado.

    Muitos, claro, ainda no a enxergam, por-que no entendem a poltica internacional emtermos da distribuio real do poder, mas to so-mente de tratados entre governos, de explora-o econmica ostensiva ou de ocupao mili-tar. o bom e velho formalismo burgus queos marxistas achincalham com justa razo e doqual j tiraram gostoso proveito milhares de ve-zes. Que pode haver de mais confortvel do quelutar contra um inimigo que no entende o pe-rigo e no quer enxergar de onde ele vem?

    Ao lidar com a sutileza e a inesgotvel malea-bilidade do movimento comunista, a mente edu-cada nos cnones da modernidade ocidental cincia, positivismo, racionalidade econmicaetc. age no mais das vezes como quem tentasseagarrar com as mos um fio de gua corrente.

    A um exame superficial, o regime de Havanaparece fraco, politicamente isolado e em vias deextino. Quem procura marcas visveis de umainterveno cubana na poltica das naes vizi-nhas encontra alguns vagos sinais na Venezuelae nada mais. No entanto, a tolice das tolices seriamedir o vigor do movimento comunista pelopoder nacional ostensivo dos pases que o re-presentam ou hospedam. O movimento comu-nista transnacional na origem, nos objetivos,

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    na estratgia e nos meios de ao. Naes e Estados so apenasinstrumentos de que se serve ou camuflagens de que se reveste,frequentemente usando-as no preciso sentido da mxima deSun Tzu: Quando est fraco, finja que est forte; quando estforte, finja que est fraco.

    Mais enganador ainda avaliar a periculosidade do comu-nismo pela prosperidade ou declnio econmico das naes queele governa. Pobreza, misria, desemprego, carestia podem der-rubar um governo democrtico, que vive da aprovao popular.Podem arranhar a casca de regimes meramente autoritrios,que sonham com essa aprovao futura. Mas ditaduras totali-trias sobrevivem majestosamente a todas as crises, a todas aspenrias, a todas as bancarrotas. Precisam at delas, para man-ter o povo naquele estado de fraqueza sub-humana no qual eleno tenha energias para organizar-se e reagir. Outro dia, quandoeu falava da ameaa atmica norte-coreana, algum me respon-deu que a Coreia do Norte est nas ltimas, numa pindaba de-plorvel, que at casos de canibalismo tm aparecido entre suapopulao miservel. Pois bem: o canibalismo entre os famintosera endmico na URSS precisamente nos anos em que Stlinconstrua ali a potncia industrial-militar destinada a esmagarseu concorrente alemo incomparavelmente mais prspero.Muito menos pode a debacle econmica de qualquer nao co-munista em particular ou mesmo de todas elas afetar no quequer que seja a desenvoltura e a pujana do movimento comu-nista mundial como um todo, cuja flexibilidade depende justa-mente da sua destreza em tirar proveito da variedade das situa-es econmicas nas diversas naes onde opera, sugando os re-cursos das mais prsperas e ao mesmo tempo denunciando-oscomo produtos da explorao das outras, tanto quanto enalte-cendo a misria destas ltimas, seja como sofrimento impostode fora, seja mesmo vejam s! como prova de uma forma devida superior, menos apegada aos bens materiais.

    O rosto ameaador das guerrilhas dos anos 60, que tanto as-sombrou os governos do continente, ocultava uma fragilidademilitar pattica. As guerrilhas nunca tiveram efetivamente ob-jetivo militar nenhum: foram apenas o boi-de-piranha de queos comunistas se serviram para desviar as atenes enquantopromoviam discretamente a vasta operao de ocupao deespaos na mdia, nas universidades e no movimento edito-rial, do qual resultou em menos de uma gerao a mudana ra-dical da opinio pblica, hoje pronta a aceitar passivamente,ou alegremente, toda proposta esquerdista que teria lhe pare-cido obscena trinta anos atrs. Mutatis mutandis, a aparente de-bilidade do regime cubano hoje em dia encobre o poder avas-salador do Foro de So Paulo, que no nada mais que umaverso melhorada da antiga OLAS, Organizao Latino-Ame-ricana de Solidariedade, um rgo e extenso do governo deHavana. rgo e extenso extra-oficiais e por isso mesmo do-tados de uma liberdade de ao incomum. Do mesmo modoque, naquela poca, os governos militares concentraram suasbaterias no combate esquerda armada, fazendo vista grossa revoluo cultural gramsciana ou at celebrando-a comoconverso da esquerda s vias democrticas e pacficas decombate politico, agora a expectativa otimista de uma mudan-a no regime de Havana torna a plateia cega para a realidade dopoder crescente do Foro de So Paulo.

    Contribui ainda mais para confundir os observadores o fatode que o Foro, alm de no ter vnculo oficial com o governo deHavana, foi fundado e dirigido eminentemente por brasilei-ros. Mas no preciso ser muito esperto para notar que indiv-duos como os srs. Lus Incio Lula da Silva, Jos Dirceu e MarcoAurlio Garcia tm para com a nao do Caribe compromissosde fidelidade e solidariedade patritica que jamais tiveram paracom Brasil. Eles mesmos j expressaram esses sentimentos mui-tas vezes, em pblico, e num tom emocionado que jamais se viunos seus rostos quando falam da nossa terra. Os trs e muitosoutros na esquerda brasileira so acima de tudo patriotas cu-banos, e patriotas daquele patriotismo especificamente comu-nista, que se apega a uma nao no por amar suas tradies na-cionais, sua lngua ou sua cultura, mas porque v nela a encar-nao histrica, o centro irradiante da expanso revolucionria.A prpria Dilma Rousseff, convm no esquecer, foi enaltecidapor Hugo Chvez como uma grande patriota... da Ptria Gran-de (sic), isto , da Amrica Latina unificada sob o comunismo.

    Fbio Motta/AE

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    Os srs. Jos Dirceu (acima),Marco Aurlio Garcia (esq.)

    e Lus Incio Lulada Silva (dir.), tm paracom a nao do Caribe

    compromissos defidelidade e solidariedade

    patritica que jamaistiveram para com o Brasil.

    Eles mesmos jexpressaram esses

    sentimentos muitas vezes,em pblico.

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    A primeira linha de respostas possveis deve ser buscada nosimples fato de que, na prpria concepo originria de KarlMarx, a estatizao total da economia no deve ser uma tran-sio abrupta, mas um processo lento e gradual. A experinciada URSS e da China levou as melhores inteligncias do movi-mento comunista a repensar e rejeitar o comunismo por de-creto ali implantado por Stlin e Mao.

    A segunda linha ecoa o fato de que, no presente estgio domovimento comunista internacional, a prioridade no im-plantar regimes comunistas aqui ou ali, e sim juntar foras,quanto mais heterogneas melhor, na grande operao de des-mantelamento do Imprio americano. O projeto eurasianodo prof. Alexandre Duguin arregimenta nesse empreendi-mento todas as correntes ideolgicas as mais disparatadas,unidas to somente pelo dio comum ao Grande Sat. At aelite globalista que ele finge combater sua aliada nessa guer-ra, como se v pelo apoio que d ao presidente Barack HusseinObama, provavelmente o mais eficiente e bem sucedido inimi-go interno que os EUA j tiveram.

    A terceira reflete as dificuldades internas da prpria noo deeconomia comunista, das quais hoje os tericos do movimento fi-nalmente tomaram conscincia. No h e, no presente momen-to, no pode haver nenhum projeto claro de economia comu-nista capaz de ser implantado em parte alguma. A teoria vem pas-sando por exames crticos e revises que esto longe de chegar auma concluso aplicvel. Por enquanto, as iniciativas econmi-cas dos comunistas no mundo todo tm-se limitado a expansesmodestas do intervencionismo estatal no plano interno e a ten-tativas de articular o velho discurso nacionalista (arma ideolgicatradicional do anti-imperialismo) com uma poltica de integra-es regionais que, na prtica, vai contra todo nacionalismo pos-svel. Essa complexidade de fatores faz com que, hoje, a polticaeconmica dos comunistas no poder se parea muito mais com ofascismo do que com o comunismo propriamente dito: no pro-cura dominar a economia diretamente, mas apenas, como diziaHitler, colocar o empresariado de joelhos.

    Voltarei ao exame dessas questes na primeira oportu-nidade.

    E Hugo Chvez sabia do que estava falando. Se, por outro lado,essas pessoas se empenham na implementao de uma estrat-gia que ainda em substncia a mesma que foi concebida emCuba nos anos 60, e se ao aplic-la convergem sempre com aorientao do governo cubano, que que falta para um obser-vador desperto entender que so agentes de uma revoluo quejamais cessou de ser exportada de Havana para o resto do con-tinente? A diferena entre as vises pblicas do fenmeno nasduas pocas ditada pelos cacoetes retricos predominantes namdia e entre polticos de direita em geral, ento e agora: nosanos 60, o apelo conservador ao sentimento de honra naciona-lista impelia-os a buscar o dedo cubano por trs de toda inicia-tiva comunista, para poder denunci-la como aliengena. Ho-je, o triunfalismo liberal inaugurado pela queda da URSS probeat mesmo reconhecer a persistncia do movimento comunista,quanto mais admitir que o moribundo regime cubano aindad as cartas. Como sempre, as anlises da mdia popular no soanlises: so jogos de cena.

    J nem digo nada daqueles amadores que, sem qualquerexame do problema, negam como exagerado e fantasiosotudo o que saia do seu crculo de experincia corriqueira. A es-ses no se deve prestar ateno um s minuto.Non raggionam dilor, ma guarda e passa.

    Mas uma pergunta ou objeo bastante cabvel a se-guinte: se os comunistas dominam to confortavelmente a si-tuao na Amrica Latina, se por quase toda parte consegui-ram mesmo neutralizar, castrar as foras de oposio, que que lhes falta para implantar no continente um regime comu-nista franco e indisfarado? Por que, na mesma medida em quefomentam desbragadamente a ingerncia do Estado na vidaparticular dos cidados, conservam a economia funcionandoem direes que, deformadas o quanto sejam, ainda denotamde algum modo um capitalismo?

    Isso seria assunto para mais um artigo. Tudo o que posso fazeraqui enunciar trs linhas de investigao que me parecem fru-tferas. Essas linhas so baseadas em dados histricos patentes,cuja substncia estratgica elas buscam trazer luz.

    Leandro Martins/Futura Press/AE

    Miguel Gutirrez/EFE

    Imagem de Hugo Chvez: presidente daVenezuela trata da sade em Cuba.