O Julgamento Pelo STF Da ADIN 2806
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O julgamento pelo STF da ADIN 2806-5: umaexegese a luz da análise crítica do discurso
» Flávia Moreira Guimarães Pessoa
ISSN - 1984 - 0454
Co-autor: Dilson Cavalcanti Batista Neto[1][2]
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Análise Crítica e Manipulação do Discurso Jurídico.3. Liberdade
de Religião, Estado Laico, Autonomia Universitária, Princípio Da Igualdade: UmaAnálise da Posição do Stf no Julgamento Da Adi 2806-5. 3.1. Considerações iniciais.
3.2. Apresentação do problema: liberdade religiosa enquanto proteção a um dia de
guarda e o Poder Judiciário. 3.3. Análise Crítica da ADI 2806/RS. 3.3.1 Voto do
Ministro Ilmar Galvão (Relator). 3.3.2 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence. 3.4. Existe
neutralidade entre o Estado Brasileiro e a Igreja? 3.5 Soluções Possíveis. 4.
Considerações Finais. 6. Referências bibliográficas.
RESUMO
O artigo aborda a existência de manipulação no discurso jurídico de uma forma
ampla, partindo do referencial teórico dos estudos de Fairclough sobre o tema,
aprofundando valores jurídicos como Liberdade Religiosa, Estado laico, Autonomia
Universitária e Igualdade. De forma específica, analisa o Acórdão exarado pelo
Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI 2806-5 que versa sobre a adequação das
atividades do serviço público aos dias de guarda de diferentes religiões.
1 Introdução
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O presente artigo visa a proceder à avaliação, a luz dos estudos de análise
crítica do discurso, da posição do STF nos autos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 2806-5, que trata da adequação das atividades do serviço público
aos dias de guarda de diferentes religiões. Para atingir o objetivo proposto, o artigo
divide-se em duas partes, sendo ao final expostas as conclusões. Na primeira, éprocedida a revisão bibliográfica dos estudos de Fairclough sobre Análise Crítica do
Discurso. Na segunda, é avaliada a manipulação do discurso jurídico de uma forma
ampla em todas as instâncias do Poder Judiciário. Na terceira, analisa-se criticamente o
Acórdão proferido nos autos da ADI 2806 pelo Supremo Tribunal Federal. Finalmente,
são apontados os pontos principais do texto.
2 Análise crítica e manipulação do discurso jurídico
Mister, inicialmente, para a adequada compreensão da manipulação do
discurso jurídico, frisar a relevância dos estudos de análise crítica do discurso[3],
disciplina que se interessa pela relação que há entre a linguagem e o poder, ocupando-
se, fundamentalmente, de análises que dão conta das relações de dominação,
discriminação, poder e controle, na forma como elas se manifestam através da
linguagem (WODAK, 2003). Nessa perspectiva, a linguagem é um meio de dominação
e de força social, servindo para legitimar as relações de poder estabelecidas
institucionalmente.
As noções de crítica, ideologia e poder são conceitos básicos para a Análise
Crítica do Discurso. Entende-se a crítica, segundo Wodak (2003), como o resultado de
certa distância dos dados, considerados na perspectiva social e mediante uma atitude
política e centrada na autocrítica. Já ideologia é um termo utilizado para indicar o
estabelecimento e conservação de relações desiguais de poder. O poder “se refere às
formas e aos processos sociais em cujo seio, e por cujo meio, circulam as formas
simbólicas no mundo social” (WODAK, 2003, p. 30). Por isso, a análise crítica do
discurso indica, como um de seus objetivos, a desmistificação dos discursos por meio da
decifração da ideologia.
Fairclough, criador do termo Análise Crítica do Discurso, propõe sua teoria
através da operacionalização de teorias sociais na análise do discurso linguisticamente
orientada, a fim de compor um quadro teórico – metodológico adequado à perspectiva
crítica de linguagem como prática social. Para alcançar tal objetivo, a Análise Crítica do
Discurso assenta-se, inicialmente em uma visão científica de crítica social. Em segundo
lugar, funda-se no campo da pesquisa social crítica sobre a modernidade tardia. Por fim,
sustenta-se na teoria e na análise lingüística e semiótica. (RESENDE; RAMALHO,2006, p. 23)
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A primeira sustentação apontada justifica-se pelo fato de que a Análise do
Discurso Crítica é motivada pelo objetivo de prover base científica para um
questionamento crítico da vida social em termos políticos e morais, ou seja, em termos
de justiça social e de poder. Por outro lado, o enquadramento no campo da pesquisa
social crítica sobre a modernidade tardia resulta do interesse de aplicação da Análise doDiscurso Crítica em pesquisas que contemplam, direta ou indiretamente, investigações
sobre discurso em práticas sociais da modernidade tardia. Por fim, a sustentação na
teoria e análise lingüística e semiótica auxiliam a prática interpretativa e explanatória
tanto a respeito de constrangimentos sociais sobre o texto como de efeitos sociais
desencadeados por sentidos de texto. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 23)
Fairchough (2001) propõe um modelo tridimensional de Análise de
Discurso, que compreende a análise do texto, da prática discursiva e da prática social,
nessa ordem encaminhados, partindo da análise do texto para a análise da prática social.
Assim, na análise do texto avalia-se, dentre outros, o vocabulário,
gramática, coesão e estrutura social. Em seguida, na análise da prática discursiva,
avalia-se a produção, distribuição, consumo, contexto, força, coerência e
intertextualidade. Finalmente, na análise da prática social, observa-se a ideologia,
sentidos, pressuposições, metáforas, hegemonia, orientações econômicas, políticas,
culturais, ideológicas etc. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 23)
Por seu turno, as reflexões em Análise do Discurso Crítica sobre as
características da modernidade tardia fundam-se em Giddens (1991, p. 22) para quem
modernidade tardia é a fase atual de desenvolvimento das instituições modernas,
marcada pela radicalização dos traços básicos da modernidade, ou seja, a separação de
tempo e espaço, mecanismos de desencaixe e reflexividade institucional. Realmente, as
instituições modernas apresentam descontinuidades em relação a culturas e modos de
vida pré-modernos, em decorrência de seu dinamismo, grau de interferência nos
costumes tradicionais e impacto global. A reflexividade da vida social, por seu turno,
refere-se à revisão intensa, por parte dos atores sociais, da maioria dos aspectos da
atividade social, a luz de novos conhecimentos gerados pelos sistemas especialistas.
sendo que boa parte desse conhecimento é veiculada pela mídia. Assim, diferentemente
da época anterior, a reflexividade foi “externalizada” na modernidade, de forma que as
informações de que os atores sociais se valem para a reflexividade vem “de fora”
(RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 31).
Saliente-se, ademais, que embora a difusão dos produtos da mídia seja
globalizada na modernidade, a apropriação desses materiais simbólicos é localizada, ou
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seja, ocorre em contextos específicos e por indivíduos especificamente localizados
(RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 32).
Assim, o conceito de reflexividade refere-se à possibilidade de os sujeitos
construírem ativamente suas auto-identidades, em construções reflexivas de suaatividade na vida social. Por outro lado, identidades sociais são construídas e podem ser
contestadas por meio de classificações mantidas pelo discurso (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 32).
Vistos, assim, alguns conceitos básicos de Análise do Discurso Crítica,
mister analisar-se, no item seguinte, como ocorrem, de forma genérica, alguns casos de
manipulação no discurso jurídico.
O discurso jurídico tradicionalmente caracteriza-se pelo tecnicismo,presença da linguagem arcaica e de latinismos, que, em geral, dificultam a produção de
sentido pelos interlocutores. Com efeito, desde cedo os estudantes, já no início do curso
de Direito, são adestrados e perdem o vínculo com a linguagem que antes possuíam e
com que se comunicavam. Tornam-se, assim, “profissionais do Direito” e produtores de
um discurso, propositadamente, inacessível (ASHIKAWA, 2004, p. 16).
Na vida prática dos operadores do direito, o distanciamento em relação à
linguagem comum é instrumental utilizado muitas vezes para disfarçar ou esconder o
real significado das afirmações. Com efeito, em audiências em que a parte comparece
pessoalmente, sem intermédio de um advogado, como por exemplo, em juizados
especiais ou na justiça do trabalho, muitas vezes são proferidas sentenças ou decisões
interlocutórias em linguagem hermética, que impossibilita ao autor ou réu compreender
o conteúdo das decisões exaradas.
Não bastasse a dificuldade de compreensão pelo leigo, outro problema
nitidamente presente é o da manipulação na transcrição de depoimentos. Assim,
observa-se grande distância da linguagem oral da colheita dos depoimentos, para aqueladas transcrições.
Além da utilização de linguagem hermética e da manipulação discursiva
presente na transcrição de depoimentos, é muito importante ainda ressaltar, no âmbito
de um estudo sobre a manipulação presente no discurso jurídico, a questão da utilização
de topoi aceitos pela coletividade com o objetivo de conseguir adesão ao conteúdo do
discurso.
Assim, pode-se facilmente notar em várias petições a referência aos“direitos humanos”, ao “Estado Democrático de Direito”, às “prerrogativas dos
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advogados”, que curiosamente são utilizados por ambas as partes com objetivos
opostos.
É interessante notar, outrossim, a apropriação ou influência da mídia sobre o
discurso jurídico. Veja-se que cada vez mais as decisões judiciais são objeto dedivulgação e comentários especializados nos meios de comunicação, em especial
aquelas que abordam temas polêmicos e aquelas exaradas pela mais alta corte do país, o
Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, decisões sobre aborto anencefálico, uniões
homossexuais, intervenção do poder judiciário em políticas públicas, por exemplo,
foram objeto de intenso debate na mídia nacional o que leva a observância de uma
reflexividade retro-alimentada. Assim, a veiculação pela mídia tanto toma por objeto as
decisões judiciais, como também estimula a reflexividade e a própria produção de novas
decisões seguindo determinada ideologia.
Abordado, de um ponto de vista geral, a questão da manipulação do
discurso jurídico, passa-se, no tópico que segue a avaliar-se o discurso jurídico presente
na decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal os autos da ADI 2806-5.
3 Liberdade de religião, estado laico, autonomia universitária, princípio da
igualdade: Uma análise da posição do STF no Julgamento da ADI 2806-5
3.1 Considerações iniciais
A Análise de Discurso Crítica, proposta por Chouliaraki e Fairclough é
composta por um rol de cinco etapas que devem ser seguidos pelos estudiosos ao se
debruçarem sobre o objeto, são elas: 1) A percepção de um problema, que normalmente
está baseada em relações de poder; 2) A identificação de obstáculos para que o
problema seja superado, ou seja, deve-se buscar conhecer o que mantêm na prática tal
problema. Este item pode ser desdobrado em mais três, quais sejam, a análise de
conjuntura; análise da prática particular e a análise do discurso; 3) Verificar a função do
problema na prática; 4) Se há algum modo de ultrapassar os obstáculos; 5) Reflexõessobre a análise. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 37).
Para a presente análise, buscar-se-á a percepção do problema abordando a
questão das ações envolvendo liberdade religiosa, autonomia universitária, Igualdade
como forma de introduzir a análise em si. Na análise da ADI, que, a nosso ver, já é por
si mesma uma função do problema na prática, será feita a análise estrutural e
interacional do discurso, a percepção das vozes ideológicas, o significado
representacional, destacando os atores sociais envolvidos. Num outro momento, serão
abordadas algumas maneiras possíveis de superação dos obstáculos construídas pela
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própria doutrina jurídica. E finalmente em outro tópico, qual seja a conclusão, far-se-á
uma reflexão sobre a análise.
Um ponto importante para se destacar é que não se pretende aqui, malgrado
incursões doutrinárias sobre o mérito da ADI, fazer uma defesa jurídica, sociológica ouaté teológica a favor de um segmento religioso. O objetivo é visualizar na decisão
escolhida elementos de manipulação do discurso através da ADC e da doutrina jurídica.
Para que, por fim, sejam traçadas algumas formas de possíveis soluções para os
problemas identificados.
3.2 Apresentação do problema: liberdade religiosa enquanto proteção a
um dia de guarda e o Poder Judiciário
Cumpre-nos esclarecer que a maioria das discussões atuais sobre a laicidadedo Estado gira em torno de decisões tomadas pelo mesmo sob influência de uma visão
religiosa, a qual acaba repercutindo sobre direitos como a liberdade de expressão, à
saúde pública. Como exemplo, pode-se citar questões polêmicas como o aborto, ou a
pesquisa com células-tronco. Nestes casos, grupos defendem que é “preciso insistir
nesta diferença, ou seja, ter dogmas é um direito da/o cidadã/o. Entretanto, os dogmas
não podem impedir que direitos democráticos se efetivem na sociedade brasileira.”
(ROHDEN, 2006, p. 31). Em contrapartida, outros afirmam que: “quando se sustenta
que o Estado deve ser surdo à religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste estemesmo Estado de características pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas
pelas Constituições brasileiras.” (MARTINS, 2007)
Acontece que na ADI 2806/RS a realidade é outra. Aqui estamos diante de
uma prática estatal (jurisdição), que por influência de um discurso hegemônico religioso
em relação ao dia de guarda, acaba tomando decisões que repercutem sobre uma
minoria religiosa. Ou seja, aqui a influência religiosa hegemônica acaba tolhendo a
própria liberdade religiosa da minoria discordante.
Em um estudo profundo sobre a jurisprudência brasileira envolvendo a
proteção ao dia de guarda, Letícia de Campos Velho Martel (2007) chegou a cinco
conclusões, das quais quatro delimitam bem o problema a ser apresentado. Após a
apresentação destas, perceber-se-á que elas se encaixam perfeitamente ao acórdão
prolatado pelo STF na ADI 2806. Passemos, então, a abordar o conteúdo destas
conclusões imprescindível para o presente momento da apresentação do problema, pois
oportunamente, aplicaremos tais conclusões no corpo da decisão em estudo (ADI
2806/RS). :
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1) A primeira conclusão foi a verificação da falta de estrutura
argumentativa das decisões envolvendo a liberdade religiosa em sua modalidade
proteção ao dia de guarda. É de fundamental importância que a linha argumentativa seja
bem definida dentro de uma decisão, para que esta tenha um maior de legitimidade me
relação aos jurisdicionados. Referindo-se aos acórdãos pesquisados, a autora afirma:
Em significativa parcela dos acórdãos analisados
apresentou-se uma espécie de sincretismo metodológico. Por
exemplo, diversas vezes os julgadores anunciaram um conflito
entre princípios, mencionaram a ponderação e apresentaram a
prevalência, sem permitir aos jurisdicionados perfilhar o iter
entre a identificação do conflito horizontal e o resultado. Foram
meras invocações retóricas. (MARTEL, 2007, p. 46)
A não adoção de um posicionamento jurisprudencial pode acarretar
“demasiadas incoerências entre decisões sobre temas semelhantes, ferindo a integridade
do sistema, bem como a igualdade de tratamento devida aos jurisdicionados.”
(MARTEL, 2007, p. 46).
2) Outra conclusão é que muitas vezes, em um mesmo Tribunal, a autora
percebeu que foram proferidas decisões radicalmente distintas[4]. Percebe-se, inclusive,
que não há referência entre os julgados sobre o tema dentro do próprio Tribunal, e quenão há confronto entre decisões. “Assim, não se consegue compreender os elementos
distintivos que fazem com que, por exemplo, em uns casos adote-se a igualdade formal
e noutros a material” (MARTEL, 2007, p. 47). Ressalta que não propugna um
engessamento das decisões nos Tribunais, chama-se atenção, unicamente, “para a
carência de motivação e de padrões para o desapego do precedente.” (MARTEL,
2007,p. 47).
3) Na maior parte dos acórdãos analisados por Martel (2007), o valor
Estado laico acarretou a denegação de pedidos dos fiéis que em virtude do sábado buscavam uma tutela jurisdicional específica. “Isso significa que os magistrados
reputam a laicidade como a neutralidade formal, ou seja, como a não imposição de
benefícios ou de prejuízos em virtude da afiliação religiosa.” (MARTEL, 2007,p. 47)
Ocorre que a neutralidade estatal em matéria religiosa é intensamente
problemática.[5] Se ao invés de prolatarem decisão sem um fundamento mais bem
construído, os julgadores passassem a encarar profundamente os argumentos contrários
e ao demonstrarem as razões que levam uma Corte a seguir os precedentes ou reputá-los
como erros, estariam demonstrando respeito e compromisso pela igualdade detratamento devida a todos os jurisdicionados.
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4) Em 93,10% do total de julgados em relação a todo conjunto pesquisado
sobre todas as modalidades de liberdade religiosa[6], os postulantes eram membros da
mesma agremiação religiosa, os Adventistas do Sétimo Dia. “Em assim sendo, é
possível concluir que as normas atinentes à educação pública e aos concursos públicos,
ainda que editadas sem qualquer intento discriminatório (neutras na origem ou primafacie), possuem efeitos colaterais sobre uma minoria religiosa específica.” Ressalta-se
que não é por causa deste dado que, na visão da autora, este pequeno grupo tem um
direito fundamental preponderante, mas que tal dado demonstra que a Justiça deve se
aproximar destas discussões. Ou seja, deve-se proporcionar a grupos excluídos uma
arena de participação, “apta a desobstruir canais democráticos e a evitar que pré-
concepções compartilhadas atinjam núcleos vitais da autonomia e da construção da
identidade dos membros de uma sociedade democrática.” (Ibdem))
Já se pôde perceber neste estudo que o direito à liberdade religiosa é
complexo e exige um esmero peculiar, em virtude, principalmente, da relação híbrida
entre o Estado e a Religião. Weingartner Neto (2007), comentando sobre as ADI´s
similares à 2806/RS que estão aguardando julgamento (São elas a 3714/SP e a
3901/PA), afirma que “como se vê, trata-se de questões formais e não parece provável
que o STF manifeste-se acerca de mérito do direito fundamental à liberdade religiosa
como um todo envolvido nos pleitos”. (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 242).
Contrariando a previsão do referido autor, o STF na ADI 2806 manifestou-se, mesmo que de maneira sucinta, sobre a inconstitucionalidade material da lei estadual
11.830 do RS.
3.3 Análise Crítica da ADI 2806/RS
Trata-se de ação que pugna a declaração da inconstitucionalidade da lei
11.830 do Estado do Rio Grande do Sul que teve como pólo ativo o Governador do
referido Estado, e como pólo passivo a Assembléia Legislativa. Antes mesmo que fosse
impetrada tal ação no Supremo Tribunal Federal, outra ADI (esta a nível estadual) jáestava em andamento, sendo considerada prejudicada devido à publicação do acórdão
da Excelsa Corte Nacional.
O requerente alegou que a lei ofendeu o princípio da independência e
harmonia dos Poderes, já que desrespeitou a iniciativa privativa do Presidente da
República para legislar sobre servidores públicos civis (art. 61, §1º, “c” c/c art. 84, III e
VI da CF/88), da União (art. 22, XXIV da CF/88), e agrediu a Igualdade (art. 5º, caput
da CF/88). Invocou ainda o caráter laico do Estado não podendo se submeter a
interesses de uma religião, nem aos dispositivos da referida lei, principalmente no que
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concerne a prestação diferenciada por parte dos organizadores. (art. 1º, §1º da extinta lei
11.830/RS)
A Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul alegou em sua defesa que
teve como objetivo regulamentar o que está previsto na Declaração Internacional dosDireitos do Homem e do Pacto de São José da Costa Rica, no que concerne à proteção
ao dia de guarda e feriados religiosos, “princípios estes a que estão submetidas às ações
administrativas de qualquer natureza, tanto as praticadas no âmbito do setor público
como no setor privado [...] não podendo nenhum ato administrativo obrigar qualquer
cidadão a abdicar de sua crença para poder ter acesso ao seu direito.”[7]
A fim de esclarecer e situar a análise, é importante conhecer o teor da lei
impugnada. Eis o texto:
Lei Estadual nº 11830, de 16 de setembro de 2002. Dispõe
sobre fatos relacionados com a liberdade de crença religiosa,
determinando à administração pública e a entidades privadas o
respeito e a observância às doutrinas religiosas no Rio Grande
do Sul.
Art. 1 º - O processo seletivo para investidura de cargo,
função ou emprego, nas estruturas do Poder Público Estadual, na
administração direta e indireta, das funções executiva,
legislativa e judiciária, e, ainda, as avaliações de desempenho
funcional e outras similares, realizar-se-ão com respeito às
crenças religiosas da pessoa, propiciando a observância do dia
de guarda e descanso, celebração de festas e cerimônias em
conformidade com a doutrina de sua religião ou convicção
religiosa.
§ 1 º - Quando inviável a promoção de certames emconformidade com o caput, dar-se-á à pessoa a alternativa de
realizar a prova no primeiro horário em que lhe permitam suas
convicções, ficando o candidato incomunicável desde o horário
regular previsto para os exames até o início do horário
alternativo previamente estabelecido.
§ 2 º - Considera-se primeiro horário, para efeitos desta lei,
à luz das convicções religiosas dos judeus ortodoxos, adventistas
do sétimo dia, entre outras análogas, o término do interregno dospores-do-sol de sexta-feira a sábado.
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§ 3 º - Aplica-se também o disposto neste artigo à
realização de provas de acesso a cursos, em qualquer nível, de
instituições educacionais públicas e privadas.
Art. 2 º - É assegurado ao aluno , por motivo de crençareligiosa, requerer à instituição educacional em que estiver
regularmente matriculado, seja ela pública ou privada, e de
qualquer nível, que lhe sejam aplicadas provas e trabalhos em
dias não coincidentes com o período de guarda religiosa.
§ 1 º - A instituição de ensino fixará data alternativa para a
realização das atividades estudantis, que deverá coincidir com o
período ou turno em que o aluno estiver matriculado, contando
com sua expressa anuência, se em turno diferente daquele.
§ 2 º - Para o gozo dos direitos dispostos neste artigo, o
aluno comprovará, preferencialmente, no ato de matrícula, esta
condição de crença religiosa, através de declaração da
instituição religiosa a que pertença.
§ 3 º - O aluno, caso venha a se congregar a uma instituição
religiosa no decorrer do ano letivo, gozará dos mesmos direitos,
com a apresentação de declaração após a sua congregação.
Art. 3 º - Os servidores públicos civis de qualquer das
funções que compõem a estrutura do Estado, da administração
direta, gozarão do repouso semanal remunerado
preferencialmente aos domingos, ou em outro dia da semana, a
requerimento do servidor, por motivo de crença religiosa, desde
que compense a carga horário exigida pelo Estatuto e Regime
Único dos Servidores Públicos Civis do Estado do Rio Grandedo Sul ou legislação especial.
Art. 4 º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 5 º - Revogam-se as disposições em contrário.
3.3.1 Voto do Ministro Ilmar Galvão (Relator)
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Ao proferir seu voto, o Ministro Ilmar constrói sua argumentação da
inconstitucionalidade formal em virtude de desobediência à regra da iniciativa para
legislar sobre os assuntos tratados na lei. Conforme se pode verificar:
No que toca à Administração Pública estadual, odiploma impugnado padece de vício formal, uma vez que
proposto por membro da Assembléia Legislativa gaúcha,
não observando a iniciativa privativa do Chefe do Executivo,
corolário do princípio da separação de poderes.
Já, ao estabelecer diretrizes para as entidades de
ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada revela-se
contrária ao poder de disposição do Governador do Estado,
mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de
órgãos administrativos, no caso das escolas públicas; bem
como, no caso das particulares, invade competência
legislativa privativa da União.
Por fim, em relação às universidades, a Lei estadual n.º
11.830/2002 viola a autonomia constitucionalmente garantida a
tais organismos educacionais. Ação julgada
procedente. [8] (grifo nosso)
A leitura do trecho referente ao voto pode dar a impressão de que o último
item (relacionado à autonomia universitária) tenha de igual forma aos outros, sido
considerado como uma inconstitucionalidade formal, muito embora se possa dizer que
é, ao fundo, material, pois a autonomia universitária é princípio substantivo. Malgrado a
invocação de tal direito das universidades, não se apontou qualquer restrição concreta
em virtude do exercício da Liberdade Religiosa “Esse modo de agir pode soar como
uma ocultação do problema, pois a autonomia universitária foi trabalhada como se fosse
um espaço de competência intocável das instituições de ensino superior.” (MARTEL,2007, p. 25)
A autonomia universitária, como já exposta, não é uma liberdade absoluta.
Deve guardar consonância com as normas constitucionais, principalmente no que
concerne aos princípios da educação elencados no art. 206 da Carta Magna. Dentre eles
está igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I da
CF/88).
A partir deste princípio pode ser questionado se a lei consideradainconstitucional está ou não de acordo com a Igualdade. Retomando os requisitos para
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aferição de possível quebra da Isonomia, deve-se saber: 1) Qual o fator que elenca para
haver a discriminação? 2) Este valor tem relação lógica com a situação que se quer
tutelar? 3) A discriminação efetuada é querida pela Constituição?
O fator de discriminação escolhido na 11.830/RS foi a religião. Mais precisamente, “crenças religiosas da pessoa, propiciando a observância do dia de guarda
e descanso, celebração de festas e cerimônias em conformidade com a doutrina de sua
religião ou convicção religiosa.” (MARTEL, 2007, p.25). No caso em tela, o elemento
escolhido atende o primeiro requisito, pois a lei não fora feita para um determinado
sujeito ou religião especificamente. Mas para qualquer um, de qualquer religião, desde
que guarde realmente o dia no qual irá se realizar a prova ou a aula. Mesmo que em
alguma situação no caso concreto somente uma pessoa viesse a exercer tal direito, ainda
assim a lei teria o caráter de impessoalidade.
Ainda neste requisito, é importante salientar que o critério aferido pela lei
considerada inconstitucional não está em algo externo ao indivíduo. Está ligado ao
direito individual fundamental da liberdade religiosa.
Em relação ao segundo requisito, não se encontra motivo pelo qual não se
afirme que não há conexão lógica entre o sujeito ser, p. ex., guardador do sábado, e ele
ter o direito de fazer a prova de concurso em horário diferente compatível com sua
crença. Pode-se perguntar então este não teria uma vantagem em relação aos outroscandidatos. A lei previa, em seu art. 1º, §1° a incomunicabilidade do candidato até o
pôr-do-sol, a partir de quando este começaria a realizar o mesmo certame aplicado aos
demais. Sendo assim, o segundo requisito é observado.
A grande questão está no terceiro requisito. Aqui se precisaria de um juízo
de ponderação dos valores envolvidos, de uma análise à luz dos princípios
constitucionais e da doutrina. Aprofundar tal questionamento seria defender uma tese, o
que, como já foi afirmado, não é o objeto deste estudo. Fica apenas a crítica de que nas
decisões envolvendo o tema, ainda não existe posição jurisprudencial fundamentada.Segundo Martel (2007, p.46):
Nos acórdãos examinados, três pontos demonstram com
singularidade esse problema. Primeiro, o conceito
indeterminado interesse público, via de regra, não recebeu
determinação de conteúdo. Em certas ocasiões foi associado à
igualdade, noutras à seleção do candidato mais apto, noutras à
ausência ou presença de prejuízos à administração e, na maior
parte, foi usado como se seu conteúdo fosse óbvio e por todos
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conhecido. Em nenhum julgado houve distinção entre interesse
público primário e secundário, tal qual levantado nas razões dos
autores e, por vezes, em pareceres ministeriais. Segundo. Ao
princípio da igualdade foram conferidas duas interpretações
diametralmente opostas, o mesmo valendo, em menor medida,para o princípio da impessoalidade.
O interessante é que o Estado brasileiro a tanto tempo já consagra a
Liberdade Religiosa como direito fundamental, mas ainda, nessa questão específica
sobre o dia de guarda, ainda não tem uma construção jurisprudencial, legislativa sobre o
tema. Certamente, tal fenômeno está ligado a fatores além do Direito. A resposta vem
da formação histórico-cultural da nação, e de como o Estado lidou, e lida com
determinada confissão religiosa. O Estado legitima de várias formas, inclusive através
de decisões, a hegemonia desta linha de pensamento religioso em detrimento de outras
minorias.
Um dos modos de operação da ideologia elencados pela ADC molda-se
perfeitamente ao presente voto: a dissimulação na modalidade tropo. A dissimulação
ocorre quando se sustenta uma relação de dominação por meio de sua negação ou
ofuscação (RESENDE; RAMALHO, 2006). O tropo é “o uso figurativo da linguagem,
que pode servir a interesses de apagamento de relações conflituosas”. (Martel, 2007, p.
51). É justamente isso que acontece quando, na feitura da decisão, não se aborda osconteúdos jurídicos dos conceitos levantados, o que os tornam vagos, corroborando para
que a situação hegemônica atual permaneça.
3.3.2 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence
O que torna este voto particularmente um terreno fértil para a análise do
discurso foi o fato do Ministro ter deixado claro que também julgava a lei como
materialmente inconstitucional, não somente formalmente como todos os outros. E o fez
apesar de não ter havido qualquer argumentação sobre liberdade religiosa no acórdão,nem no STF, nem no TJRS. Inclusive, nos autos da ADI nº 70005720321 desta
Corte[9], foi declarado pelo, à época, Procurador Geral de Justiça:
A Mesa da Assembléia Legislativa do Estado, em suasinformações, em nenhum momento contesta osfundamentos jurídicos da inconstitucionalidade. Apenas tececonsiderações sobre o mérito da iniciativa, de assegurar emsua plenitude o exercício da garantia constitucional daliberdade religiosa no Estado. Ora, não se discute o mérito
da iniciativa legislativa. O que se discute é a validade dainiciativa de legislar em afronta ao princípio constitucional daindependência e separação dos Poderes. (grifo nosso)
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Malgrado se prestar a julgar a lei materialmente inconstitucional, o
magistrado constrói uma argumentação simplória para a magnitude do tema. Eis o voto
na íntegra:
Sr. Presidente, estou de pleno acordo com o eminenteRelator, mas creio que a lei tem implicações maiores do que o
simples problema de iniciativa legislativa. Pergunto: seria
constitucional uma lei de iniciativa do Poder Executivo que
subordinasse assim o andamento da Administração Pública aos
“dias de guarda” religiosos? Seria razoável, malgrado fosse a
iniciativa do governador, acaso crente de alguma fé religiosa
que faz seus cultos na segunda-feira à tarde, que todos esses
crentes teriam direito a não trabalhar na segunda feira e pedir
reserva de outra hora para seu trabalho? É desnecessário à
conclusão, mas considero realmente violados, no caso,
princípios substanciais, a partir do “due process” substancial e
do caráter laico da República. Deixo claro que também julgo a
lei materialmente inconstitucional.
De pronto já se pode destacar o uso amplamente da primeira pessoa em todo
o voto. O que denota um alto grau de subjetividade, pois a tentativa de demonstrar seu
pensamento foi feita através de somente uma pergunta. Tal destaque é fundamental,pois, como assevera Resende e Ramalho (2006, p. 67):
Analisar em textos quais vozes são representadas em
discurso direto, quais são representas em discurso indireto e
quais as conseqüências disso para a valorização ou depreciação
do que foi dito e daqueles(as) que pronunciaram os discursos
relatados no texto pode lançar luz sobre questões de poder no
uso da linguagem.
Para que se possa visualizar, destacaremos no voto o destaque feito acima:
Sr. Presidente, estou de pleno acordo com o eminente
Relator, mas creio que a lei tem implicações maiores do que o
simples problema de iniciativa legislativa. Pergunto: seria
constitucional uma lei de iniciativa do Poder Executivo que
subordinasse assim o andamento da Administração Pública aos“dias de guarda” religiosos? Seria razoável, malgrado fosse a
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iniciativa do governador, acaso crente de alguma fé religiosa
que faz seus cultos na segunda-feira à tarde, que todos esses
crentes teriam direito a não trabalhar na segunda feira e pedir
reserva de outra hora para seu trabalho? É desnecessário à
conclusão, mas considero realmente violados, no caso,princípios substanciais, a partir do “due process” substancial e
do caráter laico da República. Deixo claro que também julgo a
lei materialmente inconstitucional. (Grifo nosso)
O principal destaque neste voto está no conteúdo do único argumento
levantado pelo Ministro. Mais precisamente, o fato de ele ter usado o termo “dia de
culto”, e não “dia de guarda”. Este fato, que parece ser inexpressivo, é de fundamental
importância para a Liberdade Religiosa.
Qualquer dia pode ser dia de culto. A Constituição Federal, em seu art. 5º,
inciso VI, declara que é assegurado exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. Mas não se refere à proteção a
um dia de guarda. Nem mesmo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nem o
Pacto de São José da Costa Rica trazem esta especificidade. Todas estas normas falam
em proteção ao exercício do culto, independente do dia.
Doutrinariamente, é que se constrói uma proteção ao dia de guarda, no qual,logicamente, existe o culto.[10] Mas pensar nesta sentença ao contrário é exigir que
sejam respeitados todos os dias em que houver um culto numa igreja.
A lei 11.830/RS, no caput do seu art. 1º, é clara quando se refere não a dia
de culto, mas sim a dia de guarda. Este também é conhecido como descanso semanal.
Segundo Amauri Mascaro Nascimento, este tem “origem em uma tradição de índole
religiosa do povo hebreu que ordenava que no sétimo dia dever-se-ia descansar das
atividades seculares. Tal mandamento tem como base o fato de Deus ao criar o mundo
em seis dias ter abençoado, santificado e descansado no sétimo dia (sábado =descanso).” (NASCIMENTO, apud OLIVEIRA, 2007, p. 92).
Toledo Filho (2003, p. 18) faz uma breve análise de como o descanso, que
teve sua origem no sábado, começou a ser guardado no domingo:
No caso específico das comunidades vinculadas à tradição
judaica, e bem assim, à acepção cristã que àquela se seguiu,
estabeleceu- se a tradição de efetuar-se a cessação do labor após
um ciclo de 06 dias, parando-se inicialmente no sábado e,posteriormente, mercê da intensa influência que a Igreja
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Católica passou a gradativamente desempenhar, fixou-se o
domingo como dia de descanso. São neste particular recorrentes,
na doutrina, referências a um decreto assinado pelo imperador
romano Constantino, no ano 321, proibindo o labor aos
domingos para todas as atividades, exceto as do campo, quandoo tempo o permitisse.
Porém, ao contrário do que sugere Toledo Filho, “a guarda do sábado
subsiste até os dias de hoje entre os judeus, bem como entre grupos cristãos minoritários
como adventistas e batistas do sétimo dia entre outros.” (OLIVEIRA, 2007, p. 93). No
entanto, é notória que a grande maioria da cristandade observa o domingo. “Não se pode
olvidar que a mudança da guarda do sábado para o domingo foi disseminada e aceita a
tal ponto que se tornou quase que universal pela cristandade, com poucas exceções.”
(OLIVEIRA, 2007, p. 93).
Não é por acaso que, mesmo sem este revestimento religioso, o Estado, em
praticamente todo o mundo, hoje designa um dia de repouso semanal. Este fenômeno de
internalização de um instituto religioso para os ordenamentos jurídicos se deu,
modernamente, durante a em contraponto à Revolução Industrial. “Com a organização
da classe operária em busca de melhores condições de trabalho, fundou-se uma
federação como resultado de um congresso internacional em Genebra, no ano de 1870,
tendo como um dos objetivos disseminar a prática do repouso semanal.” (OLIVEIRA,2007, p. 94).
No Brasil, apenas nos anos 30 do século passado, foi que surgiram os
primeiros decretos que previam o descanso semanal remunerado para certas classes
trabalhadoras, “até que a Constituição de 1934 trouxe a previsão do repouso dominical
no art. 121, §1º, alínea “e”, sendo também todos os decretos, surgidos até então sobre a
matéria, agrupados na Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 – CLT, artigos 67 a
69. (OLIVEIRA, 2007, p. 95)
A partir deste momento, as Constituições que se seguiram continuaram com
a essência da Constituição de 1934, garantindo o repouso semanal aos domingos.
(Atualmente ele está previsto no art. 7º, inc. XV da CF/88).
Por mais que o descanso semanal, nos dias de hoje, tenha um caráter
eminentemente constitucional-trabalhista, “O aspecto religioso, contudo, ainda
permanece na escolha do dia da semana a ser interrompido, ao se adotar a fórmula
“preferencialmente aos domingos”, bem como na fixação de alguns feriados religiosos.”
(PESSOA, 2009, p. 93). E quando o Estado faz este tipo de escolha, mesmo sem
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intenção, ele acaba privilegiando um segmento religioso de maior quantidade de
membros, em detrimento das minorias.
É lógico que no caso do Brasil, por ser um país na qual a maioria da
população se diz católico apostólico romano, é compreensível que se escolha odomingo. Porém, não se pode olvidar que existem minorias que se prestam do Poder
Jurisdicional do Estado para que este garanta seus direitos.
Um último ponto sobre o voto do Ministro Pertence é que em ADC existem
categorias relacionadas ao significado identificacional, pois, em suas experiências no
mundo, as pessoas se posicionam mesmo que involuntariamente como agentes na
transformação social. Uma categoria é a identificação no discurso de afirmações
avaliativas. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 79)
Após formular a pergunta base para sua argumentação, o Ministro
simplesmente afirma que: “É desnecessário à conclusão, mas considero realmente
violados, no caso, princípios substanciais, a partir do “due process” substancial e do
caráter laico da República. Deixo claro que também julgo a lei materialmente
inconstitucional.”[11](grifo nosso). Percebe-se de maneira cristalina a visão sobre
proteção constitucional ao dia de guarda do, hoje aposentado, Ministro do STF.
3.4 Existe neutralidade entre o Estado Brasileiro e a Igreja?
Prosseguindo nos termos do método da ADC, precisa-se apontar de maneira
sucinta algumas objeções para que o problema central desta análise não seja
solucionado.
A grande objeção é a falta de neutralidade do Estado Brasileiro em relação a
preferência a Igreja Católica. Só à título de ilustração, trataremos de dois temas atuais
envolvendo o grau de laicidade do Brasil: a questão dos crucifixos em órgãos do Poder
Judiciário, e a questão dos feriados religiosos.
O Conselho Nacional de Justiça, em sessão realizada no dia 29 de
maio, entendeu, nos julgamentos dos Pedidos de Providências nºs 1.344, 1.345,
1.346 e 1.362, que a aposição de símbolos religiosos no âmbito de Fóruns e
Tribunais revela-se compatível com a cláusula constitucional da separação Estado-
Igreja. (PINHEIRO, 2009). A Justificativa, inclusive, apoiada por doutrina jurídica
bem fundamentada é que as festividades religiosas sob o amparo do Estado
constitucional “sempre que se refiram a símbolos que reacendam na memória
coletiva as suas raízes culturais históricas que lhe conferem identidade.”
(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 464).
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Não se pode negar a influência que o catolicismo teve na formação do povo
brasileiro. Porém, para que se obedeçam aos princípios acima expostos que determinam
a laicidade do Estado, é preciso que se repense a influência e privilégio que ainda, nos
dias atuais, uma determinada religião tem sobre o Estado. Além disso, por mais que os
símbolos religiosos das confissões preponderantes, por sua maior difusão, possamtambém se configurar como distintivos de uma dada tradição nacional, “o fato é que
essa nova significação que lhes é agregada jamais terá o condão de esvaziá-los da
mensagem de fé que lhes confere sentido.” (PINHEIRO, 2009).
Deve-se ressaltar que a Liberdade Religiosa é também destinada aos ateus,
agnósticos, humanistas, entre outros, que não são obrigados a aceitar que os órgãos
públicos (que também são deles) tenham crucifixos em suas paredes. A identificação
simbólica, mesmo que seja através de um simples crucifixo, entre Poder Público e uma
dada crença, portanto, “para além de representar inaceitável vinculação entre religião e
Estado, envia aos cidadãos de diferentes crenças, aos descrentes e às minorias
silenciosas, subalternas mensagens de desvalor, de preterição e de inferioridade.
(PINHEIRO, 2009)
Em relação aos feriados, a discussão é mais extensa e, para que se atendam
aos objetivos aqui perseguidos, observe-se a contribuição esclarecedora dada por Santos
(2007):
Imagine-se um dono de estabelecimento comercial Judeu
ou Protestante, por exemplo. Fica ele obrigado a não abrir o seu
estabelecimento no dia 12 de outubro, vez que neste dia
homenageia-se Nossa Senhora Aparecida, santa assim
reconhecida pela Igreja Católica Apostólica Romana.
Vejamos por outro lado. Imagine-se seja instituído o "Dia
do Ateu" ou mesmo o "Dia dos Orixás". Como se sentiria um
Colégio Católico ao ter que deixar de ministrar aulas nesse dia?Imaginem a insustentabilidade da medida, caso o Estado
resolvesse criar feriados religiosos para homenagear todas as
religiões? Certamente, é uma hipótese difícil de se vislumbrar.
A esse respeito há quem argumente que a manutenção e
criação de tais feriados nacionais traduziria os costumes e
tradições do povo brasileiro. Tal argumento até tem uma certa
validade com relação à Páscoa e o feriado do Natal, que são
datas consagradas em praticamente todos os povos ocidentais e
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que não representam, necessariamente, apenas a religião
Católica Apostólica Romana, mas todo o Cristianismo e até
Judaismo (Páscoa) há muitos séculos, tornando-se pelo tempo
uma verdadeira tradição. O mesmo não se pode dizer com
relação ao feriado do dia 12 de outubro, que, conforme prevê alei que o instituiu, presta-se ao "culto público e oficial à Nossa
Senhora Aparecida, padroeira do Brasil". Como pode, em um
Estado Leigo, haver "culto oficial" a uma santa católica?
3.5 Soluções Possíveis
A própria doutrina jurídica já encontrou soluções práticas, possíveis e
realizáveis para o problema levantado, qual seja a dificuldade estatal em lidar com a
proteção constitucional ao dia de guarda.
Em relação à escolha do dia do domingo como dia de descanso semanal
remunerado, e seus reflexos sobre minorias, que guardam outro dia diverso, “o Estado
laico deve favorecer, “através da legislação civil, o direito de escolha, de forma que
cada ser humano possa observar o dia de descanso ou guarda, segundo a sua
consciência.” (SORIANO apud WEINGARTNER NETO, p. 238) Sendo que o
princípio da dominicidade estampado na CF/88 deve ser interpretado em harmonia com
a Liberdade Religiosa. (WEINGARTNER, 2007).
Silva Neto (2008, p. 141-143) traz-nos uma solução para as tutelas
estabelecidas na considerada inconstitucional, lei 11.830/RS. Primeiramente em relação
à realização de concurso no sábado por fiel da Igreja Adventista do Sétimo Dia ou
Judeu ortodoxo, ele defende que:
Atente-se, de logo, para o seguinte: a Administração
Pública deve reverência ao princípio da impessoalidade, dentre
outros assinalados no art. 37, caput, da Constituição. [...] Ora, seo conteúdo do princípio da impessoalidade retrata uma
Administração que não beneficia ou prejudica determinados
indivíduos, impedido-se, destarte, tratamento diferenciado,
como tornar aceitável que o Adventista do Sétimo Dia realize
prova de concurso público em data distinta da fixada para os
demais candidatos? Não haveria quebra do sigilo e vulneração
de todo o certame? [...] Embora represente um custo maior para
o órgão que disponibiliza as vagas a serem preenchidas por via
de concurso público, o direito individual à liberdade religiosa do
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adventista não deve ceder espaço à comodidade da
Administração Pública. [...] o candidato a concurso público
adepto da religião Adventista do Sétimo Dia realizará a prova a
partir das 18:00 do sábado – isso na hipótese do concurso ser
realizado neste dia -, devendo permanecer incomunicável emsala no local de aplicação das provas, submetendo-se à mesma
avaliação feita aos demais candidatos do certame.
Na mesma linha, o autor defende que no caso do acesso à educação, em
relação às aulas em dias de guarda, se existe possibilidade de compensação, ou aulas
similares em outro momento, deve-se privilegiar o direito fundamental à liberdade
religiosa. Afirma Silva Neto (2008, p. 148):
Com evidência, se o aluno pode optar entre o curso noturnoou diurno, possibilitando-lhe (caso opte por aulas pela manhã) oexercício pleno da liberdade religiosa inerente ao culto, é óbvioque não haverá espaço para a tutela de pretensão dirigida aoreconhecimento judicial da legitimidade de ausência em taisdias; contrario sensu, isto é, diante da inviabilidade quanto àfreqüência em curso noturno pela mera e simples inexistência deaulas naquele horário, é possível o acolhimento da tese deofensa à liberdade de religião.
4 Considerações finais
No presente estudo buscou-se através dos instrumentos da Análise Crítica
do Discurso, bem como através de uma revisão doutrinária, analisar a ADI 2806/RS.
Foram apresentados alguns conceitos da ADC, dos quais se destaca o de
ideologia. Este pode ser considerado a força-motriz da prática do discurso. Nesta linha,
abordou-se que na vida prática dos operadores do direito, o distanciamento em relação à
linguagem comum é instrumental utilizado muitas vezes para disfarçar ou esconder o
real significado das afirmações. Ou, como foi verificado, esvaziando os conceitos jurídicos usados nas decisões de seus verdadeiros conteúdos, a fim de favorecer certo
ponto de vista hegemônico na sociedade.
Vencida vertente teórica deste estudo, passou-se a analisar efetivamente a
ADI 2806/RS, tendo como base metodológica o roteiro sugerido pela ADC. Portanto,
foi primeiramente identificado a dificuldade do Estado enquanto Jurisdição em lidar
com a proteção constitucional do dia de guarda. Num segundo momento, foi feita a
análise dos votos presentes nos autos da Ação em estudo.
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No voto do Ministro Ilmar Galvão, constatou-se o esvaziamento do
conteúdo da autonomia universitária, dando-lhe um caráter absoluto e formal. O que foi
desmistificado através da análise doutrinária da própria autonomia universitária e do
postulado da Igualdade.
Já no voto do Ministro Pertence, identificou-se por várias vezes o discurso
direto, na 1ª pessoa do singular, indicando um forte subjetivismo em seu voto, em
detrimento do cargo público que ocupava. Outra questão foi a confusão feita entre os
termos “dia de culto” e “dia de guarda”, que, como foi demonstrado, apesar das
semelhanças, não são sinônimos. Um último ponto destacado foi em relação a um juízo
de valor interno do discurso, o que na ADC chama-se afirmação avaliativa, que no caso
prático, auxilia o interprete na ligação do ator social com a ideologia envolvida em seu
discurso. (RESENDE; RAMALHO, 2006)
Dando continuidade ao esquema metodológico da ADC, buscou mostrar que
o principal obstáculo para que o Poder Judiciário ainda não tenha se firmado com uma
jurisprudência sólida e bem fundamentada sobre a proteção constitucional ao dia de
guarda, é justamente o relacionamento “não-neutro” entre o Poder Público e uma
confissão religiosa em especial, em detrimento das minorias religiosas ou não.
Por fim, apresentaram-se soluções construídas doutrinariamente para o
problema levantado. bem como para as relações que a extinta lei 11830/RS tutelava.
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17 – 34.
NOTAS:
[1] Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Sergipe, bolsista do
PIBIC, integrante do grupo de pesquisa “Hermenêutica ConstitucionalConcretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da
Universidade Federal de Sergipe.
[2] O presente artigo foi elaborado no âmbito do grupo de pesquisa
“Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e
Reflexos nas Relações Sociais”, projeto de pesquisa “Direitos fundamentais e
manipulação do discurso jurídico: uma análise da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal e sua repercussão na sociedade através dos meios de
comunicação” da Universidade Federal de Sergipe.
[3] A partir da década de setenta, desenvolveu-se uma forma de análise do
discurso e do texto que identificava o papel da linguagem na estruturação das
relações de poder na sociedade, o que se chamou de Análise do Discurso. Já em
1990, devido aos estudos limitadores de algumas teorias em Análise do Discurso,
surge a Análise Crítica do Discurso, a qual se propõe a estudar a linguagem como
prática social e, para tal, considera o papel crucial do contexto (FAIRCLOUGH,
2001, p. 20).
[4] No caso do STF, antes da ADI 2806/RS,que julgou inconstitucional a lei
estadual 11.830 do RS, fora indeferido pelo Min. Marco Aurélio a Suspensão de
Mandado de Segurança 2144, na qual a União pretendia cassar a concessão de
tutela antecipada a um candidato em concurso público que impetrara mandado de
segurança contra a Escola de Administração Fazendária, justamente porque a
data da prova caia em um sábado. Neste caso, a Corte “pondo na balança o valor
„liberdade religiosa‟, não o deixou perecer em prol da conveniência dos
organizadores do concurso público” (SORIANO, apud WEINGARTNER NETO,2007, p. 240-241).
5/17/2018 O Julgamento Pelo STF Da ADIN 2806 - slidepdf.com
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[5] A neutralidade estatal em relação a liberdade religiosa será tratada no item 5.4.
que é justamente o principal obstáculo para que o problema seja superado. (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 37).
[6] Na apresentação da metodologia, a autora explicitou amplitude da sua pesquisa, explica: “Foram visitados os sítios de todos os Tribunais de Justiça brasileiros,
de todos os Tribunais Regionais Federais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal. (...) Houve falha de pesquisa em cinco Tribunais de Justiça, pois seus
sistemas de busca apresentaram erro ou não estavam disponíveis durante o período de
consulta. Foram eles: a) Piauí; b) Ceará; c) Alagoas; d) Espírito Santo; e) São Paulo.
Deste modo, a coleta nos Tribunais de Justiça restringiu-se a vinte e dois (22). Em seis
Tribunais de Justiça não houve ocorrências para as chaves de pesquisa utilizadas: a)
Tocantins; b) Acre; c) Amazonas; d) Rio Grande do Norte; e) Amapá; f) Sergipe.”
(MARTEL, 2007, p. 14).
[7] STF. ADI 2806/RS. Relator: Ministro Ilmar Galvão.
[8] ADI 2806/RS. Op. Cit. P. 366.
[9] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ação Direitade Inconstitucionalidade nº 70005720321. Relator: Des. Cacildo de AndradeXavier.
[10] Weingartner Neto (2007, p. 73), em suas posições jusfundamentais
anteriormente já citadas, defende o “direito à dispensa do trabalho e de
aulas/provas por motivo religioso, quando houver coincidência com os dias de
descanso semanal, das festividades e nos períodos e horários que lhes sejam
prescritos pela confissão que professam.”
[11] ADI 2806/RS. Op. Cit. P. 367.