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O limite da representação em A dor, de Marguerite Duras: entre o testemunho e a ficção Aline de Almeida MOURA 1 Resumo Conforme aponta o historiador Eric Hobsbawm, o século XX é marcado por eventos catastróficos que impõem questões sobre a capacidade da linguagem de representá-los. Partindo da análise de Paul Ricouer, analisaremos a Shoah como um desses momentos cujas memórias traumáticas traçam certos limites para a representação, embora haja a necessidade premente de seus testemunhos serem ouvidos. Para tal, o presente artigo contemplará o esforço operado por Marguerite Duras para transmitir seu testemunho no texto A dor (1986). Nesse livro, a autora utiliza a ficção para expor a sua vivência na situação limite que foi a Shoah. Duras não esteve presente fisicamente em nenhum campo de concentração, mas a narração da espera pelo retorno de seu marido que fora preso é pungente e comovente, demonstrando o auxílio que as narrativas de ficção podem dar nessas situações limites. Palavras-chave: Situação limite. Representação. Marguerite Duras. Crítica. Abstract As the historian Eric Hobsbawm points out, the twentieth century was marked by catastrophic events that impose questions about the ability of language to represent them. Based on the Paul Ricoeur analysis, we focus on the Shoah as one of those moments whose traumatic memories trace certain limits for the representation, although there is a pressing need for their testimony to be heard. To this end, this paper will cover the operated effort by Marguerite Duras to convey her testimony in the text A dor (1986). In this book, the author has used fiction to present her experience in extreme situation that was the Shoah. Duras was not physically present in any concentration camp, but her narration of waiting for her husband who was arrested is poignant and moving, showing the aid that fictional narratives can give to these extreme situations. 1 Doutoranda em Literatura, cultura e contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). CEP: 22451-900. Rio de Janeiro, RJ. E-mail: [email protected]

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O limite da representação em A dor, de Marguerite Duras: entre o testemunho e a

ficção

Aline de Almeida MOURA1

Resumo

Conforme aponta o historiador Eric Hobsbawm, o século XX é marcado por eventos

catastróficos que impõem questões sobre a capacidade da linguagem de representá-los.

Partindo da análise de Paul Ricouer, analisaremos a Shoah como um desses momentos

cujas memórias traumáticas traçam certos limites para a representação, embora haja a

necessidade premente de seus testemunhos serem ouvidos. Para tal, o presente artigo

contemplará o esforço operado por Marguerite Duras para transmitir seu testemunho no

texto A dor (1986). Nesse livro, a autora utiliza a ficção para expor a sua vivência na

situação limite que foi a Shoah. Duras não esteve presente fisicamente em nenhum

campo de concentração, mas a narração da espera pelo retorno de seu marido que fora

preso é pungente e comovente, demonstrando o auxílio que as narrativas de ficção

podem dar nessas situações limites.

Palavras-chave: Situação limite. Representação. Marguerite Duras. Crítica.

Abstract

As the historian Eric Hobsbawm points out, the twentieth century was marked by

catastrophic events that impose questions about the ability of language to represent

them. Based on the Paul Ricoeur analysis, we focus on the Shoah as one of those

moments whose traumatic memories trace certain limits for the representation,

although there is a pressing need for their testimony to be heard. To this end, this paper

will cover the operated effort by Marguerite Duras to convey her testimony in the text A

dor (1986). In this book, the author has used fiction to present her experience in

extreme situation that was the Shoah. Duras was not physically present in any

concentration camp, but her narration of waiting for her husband who was arrested is

poignant and moving, showing the aid that fictional narratives can give to these

extreme situations. 1 Doutoranda em Literatura, cultura e contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro (PUC-Rio). CEP: 22451-900. Rio de Janeiro, RJ. E-mail: [email protected]

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Keywords: Extreme situation. Representation. Marguerite Duras. Criticism.

“A dor é a coisa mais importante de minha vida. A palavra

‘escrito’ não seria adequada (...) Encontrei-me diante de uma

fenomenal desordem do pensamento e do sentimento que não

ousei tocar, e comparada à qual a literatura me envergonha.”

(Marguerite Duras, 1986)

“Ele [o século XX] foi o século mais assassino de que temos

registro, tanto na escala, freqüência e extensão da guerra que o

preencheu (...), como também pelo volume único das catástrofes

humanas que produziu.”

(Eric Hobsbawn, 1995)

Como é perceptível na última epígrafe, o século XX se caracteriza por suas

grandes catástrofes. Eric Hobsbawn, historiador renomado, descreve o que ele chama de

“breve século XX”, período entre 1914 e 1991, como a época do colapso da ascensão

pela qual a civilização passou durante o século XIX. O seu livro A era dos extremos

(1995), em que faz uma espécie de autobiografia através da narração e análise de

diversos fatos importantes ocorridos durante o século XX, tem por objetivo

“compreender e explicar por que as coisas deram no que deram e como elas se

relacionam entre si” (HOBSBAWN, 1995, p. 15). É possível notar o tom de

descontentamento com o rumo que a civilização vem tomando e que ele analisa não só

na perspectiva de teórico, mas de alguém que viveu no período e que observou os fatos

e as suas consequências. De acordo com o historiador, não se trata de uma crise na

forma de organizar a sociedade, mas uma crise geral e sistemática em todos os campos.

Retomando as palavras do poeta T. S. Eliot, “é assim que o mundo acaba – não como

uma explosão, mas como uma lamúria”, Hobsbawn afirma: “O breve século XX se

acabou com os dois” (HOBSBAWN, 1995, p. 21). Foram tantas as mortes, torturas,

crises que o temor crescente foi com a banalização dessas catástrofes. Por exemplo, ao

tratar especificamente da Segunda Guerra Mundial, afirma: “o aspecto não menos

importante dessa catástrofe é que a humanidade aprendeu a viver num mundo em que a

matança, a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências do dia a dia que não

mais notamos” (HOBSBAWN, 1995, p. 58). A questão que emerge é como o

pesquisador deve lidar com esses fatos e seus testemunhos. Não se trata mais de que não

haja fontes ou materiais de pesquisa, mas tais materiais se referem a eventos que

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demandam um olhar mais cuidadoso para que as diversas nuanças do evento não sejam

perdidas por uma homogeneização do relato. Contudo, são inúmeros os relatos

testemunhais que indicam a dificuldade em tornar perceptíveis as catástrofes

vivenciadas. Tem-se como exemplo Elie Wiesel, um dos sobreviventes da Shoah, que

trata a escrita de sua experiência como um dever moral por ter sobrevivido: “escrever

não é uma profissão, e sim uma atividade de dever” (WIESEL, 1994, p. 23). Legar o

testemunho se torna uma forma de justificar a sobrevivência, mesmo que palavra e

significado não coincidam mais:

Nós todos sabíamos que jamais, jamais poderíamos dizer o que tinha

de ser dito, que jamais poderíamos expressar em uma escala absoluta,

em palavras coerentes, inteligíveis, nossa experiência de loucura (...)

Pensei que nunca seria capaz de falar deles. Todas as palavras

pareciam inadequadas, gastas, tolas, sem vida, e eu as queria ardentes

(WIESEL, 1994, p. 24).

Como é perceptível nesse trecho, a necessidade de contar o que aconteceu se mescla

com a inadequação das palavras. O evento foi tão catastrófico que a linguagem

corriqueira não consegue dar conta dos fatos ocorridos, as palavras perdem sentido,

apesar de instrumento necessário para se legar o testemunho. A linguagem se apresenta

como um instrumento ineficaz para transmitir toda a dor e sofrimento passados durante

a situação limite. E nesse sentido, surge a ideia entre alguns teóricos de que há eventos

que impõem limites para a representação histórica2. Como as palavras foram gastas e

perderam seu sentido, a representação do evento através da linguagem fica

comprometida, embora haja essa urgência de testemunhar o evento.

Para o presente trabalho, analisar-se-á o caso da Shoah como um desses eventos

catastróficos ocorridos no século XX. A questão que emerge é como tratar desse tema,

uma vez que a narração da política de extermínio liderada por Hitler, falar da relação da

Alemanha com os outros países, falar das causas, da tentativa de reafirmação alemã

após o fiasco da Primeira Guerra Mundial, todos esses dados não são suficientes para

mostrar o terror que foi o evento. O conhecimento histórico mais tradicional3 não

consegue dar dimensão ao evento catastrófico. A enumeração de dados não consegue

2 Paul Ricoeur apresenta a noção de representação como polissêmica, utilizando-a para tratar da escrita da

história, pois “o discurso do historiador declara a sua ambição, sua reivindicação, sua pretensão, a de

representar em verdade o passado” (RICOEUR, 2007, p. 240). 3 Por tal, entende-se a construção de narrativas lineares, em que os fatos são narrados em busca de relação

causa-consequência. Sabe-se, contudo, que a História passou por questionamentos epistemológicos, mas

que não são foco desse trabalho.

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dimensionar o evento. A homogeneização das diversas perspectivas presentes no

evento, através da busca por uma síntese explicativa característica da escrita da História

mais tradicional, surge como um impedimento para a tentativa de se entender o que um

homem foi capaz de fazer a outro.

Muitos relatos testemunhais foram deixados, relatos cuja força e pungência

seriam vitais em uma tentativa de compreender o evento ou de pelo menos conhecer a

parte mais viva e humana, não a somente ligada às questões políticas estéreis. Com o

advento da história oral, os relatos testemunhais passam a ser fonte cabal para tratar de

eventos históricos. Contudo, trata-se de testemunhos de pessoas que, por terem passado

por uma situação tão devastadora e cuja memória do evento é causa de transtorno,

impõem limites que parecem intransponíveis. Ou seja, a memória, matéria complexa em

relação ao seu uso como fonte, dependendo da articulação com dados materiais, após

eventos traumáticos, apresenta-se como fonte ainda mais problemática. O trauma do

evento se torna uma causa patológica para limites da memória enquanto fonte. Nesse

sentido, demonstrar-se-á o esforço operado para se transmitir o testemunho do evento

em A dor, de Marguerite Duras. Nesse texto, a autora utiliza a ficção para expor a sua

vivência na situação limite que foi a Shoah. Duras não esteve presente fisicamente em

nenhum campo de concentração, mas a narração da espera pelo retorno de seu marido

que fora preso é pungente e comovente. E por sua contundência, o texto é considerado

um importante testemunho desse evento catastrófico, numa mistura de diário e

literatura. A escolha pela análise desse material se deu justamente pelo uso da ficção, da

qual a autora se serve para legar o seu testemunho. A crença no limite da representação

em eventos catastróficos exige a utilização de recursos. E Marguerite Duras fez

belíssimo uso do recurso literário.

O título desse trabalho sugere uma relação entre “testemunho e ficção”, em que

o esforço argumentativo segue na tentativa de demonstrar que esses dois elementos não

são contraditórios, mas podem ser complementares. A inserção da ficção pode até

mesmo ser necessária quando se trata de situações traumáticas como a vivenciada por

Duras. Pelo menos foi o recurso utilizado pela autora, em que a escrita consegue fazer

com que aquela situação vivida consiga ser entendida, ou pelo menos conhecida pelas

pessoas. Pode parecer que o uso do recurso literário será fonte de catarse para o

espectador, que irá apenas se purificar com a leitura, sem que esta seja de fato relevante

para a tentativa de se mostrar a experiência limite. De fato, a leitura desse livro é

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instigante, mas não se trata de simples leitura fruitiva. Saber que tais fatos ocorreram e

que o uso da ficção faz com que não seja necessário procurar falsificações torna de fato

o relato mais significativo. Através da leitura, não se busca a verdade dos fatos, mas

sentir o quão forte foi a experiência.

A imposição de limites para a representação para se analisar o caso da Shoah

pode ter como chave de análise a perspectiva psicanalítica4. Maria Rita Kehl parte do

princípio de que há um pressuposto segundo o qual algo na catástrofe fica fora da

representação e “aquilo que, de uma catástrofe, permanece fora do alcance da

representação, é justamente o que confere a certos acontecimentos da vida, sobre os

quais não conseguimos pronunciar imediatamente, o caráter catastrófico” (KEHL, 2000,

p. 137). Tais acontecimentos podem ser chamados de “trauma”, na perspectiva

freudiana, ou “real”, na perspectiva lacaniana. Para a autora, o que fica fora da

representação são as dimensões da existência humana que não fazem parte da

experiência, pois são eventos “em que nossa passividade absoluta faz de nós uma coisa

viva, porém inerte, entregue ao poder absoluto do Outro” (KEHL, 2000, p. 138). Ou

seja, não é possível representar eventos em que há a condição de completa passividade

do sujeito. Observa-se que essa ideia de passividade está no cerne do que Freud chama

de trauma, pois as situações que não permitem reação são condições objetivas para que

esse ocorra (LAPLANCHE, 1987, p. 680). Em seu artigo, Kehl considera como as três

dimensões fundamentais da existência em que há a passividade a mãe, o sexo e a morte.

Contudo, é possível tratar dessa passividade no evento da Shoah. Foram inúmeras as

pessoas levadas para campos de concentração, vivendo, ou melhor, sub-existindo em

uma situação-limite inexplicável em que não podiam fazer nada, na mais completa

passividade.

A autora analisa a noção de irrepresentável nas narrativas de catástrofe, tendo

como um dos exemplos os textos de Primo Levi, importante testemunha da Shoah.

Afirma que ele recua num certo ponto em seu relato sobre a catástrofe “não porque seria

indizível, nem mesmo insuportável, e sim porque este autor parece não querer intoxicar,

fascinar ou nausear o leitor com a memória do sofrimento” (KEHL, 2000, p. 148). Kehl

mostra como o relato de Levi não abarca todas as nuanças possíveis por uma escolha do

4 A proposição do uso da psicanálise na análise da memória em sua relação com a História pode parecer

estranha, já que aquela lida com categorias estáveis e não históricas. Porém é a teoria utilizada por Paul

Ricoeur ao abordar o que ele chamou de “memória impedida”, ou seja, nos casos em que a memória é

vista como uma ferida, uma cicatriz causada por um trauma, como é o caso da Shoah (cf.: RICOUER,

2007, p. 83-93).

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autor de não querer mostrar o que seria desnecessário para o conhecimento do evento.

Contudo, parte-se do princípio de que a escrita é uma forma de inverter, mesmo que

precariamente, a passividade experimentada diante do evento catastrófico (cf.: KEHL,

2000, p. 139). Seria através da escrita que, ao usar desse artifício para trazer o evento

traumático para a dimensão humana, reduzir-se-ia aquilo que oprime (cf.: KEHL, 2000,

p. 145). Não se trata de reduzir tudo à linguagem. O recuo dado por Primo Levi teria o

sentido de produzir “outra ética também: a que consiste em implicar o leitor na

continuação da escritura e responsabilizá-lo através do pensamento” (KEHL, 2000, p.

145). Ou seja, não se trata de irrepresentabilidade, mas de uma escolha com

consequências éticas. Kehl ressalta:

gostaria de propor que a dimensão traumática da experiência humana,

esta que escapa à representação, não tem suas fronteiras delimitadas de

antemão. Nossa tarefa vital, como seres de linguagem, consiste em

ampliar continuamente os limites do simbólico, mesmo sabendo que ele

nunca recobrirá o real todo (KEHL, 2000, p. 138)

Mesmo que algo sempre fique fora da representação, e é isso que garante a existência

objetiva do mundo, deve-se sempre pensar em expandir o simbólico. Deve-se pensar em

novas formas para se lidar com o evento catastrófico em vez de apenas clamar pela sua

irrepresentabilidade.

No campo histórico, a Shoah também é vista como apresentando limites.

Citando o texto de Saul Friedlander, Probing the limits of representation, Ricoeur

aponta dois limites para a representação: um relacionado ao esgotamento das formas de

representação disponíveis em dada cultura; e outro, a uma solicitação de ser dito e

representado, elevando-se do próprio cerne do acontecimento (cf.: RICOEUR, 2007, p.

267). Isto é, tais limites são impostos quando as formas de apresentação de dado evento

não conseguem abarcar a complexidade do que é narrado, tratando-se de um limite

interno; e quando a necessidade de falar se eleva do próprio cerne do acontecimento,

como uma exigência de se narrar, tratando-se de um limite externo. Nesse sentido, a

Shoah proporia ao mesmo tempo a singularidade de um fenômeno, “na fronteira da

experiência e do discurso, e exemplaridade de uma situação em que não seriam

desvendados apenas os limites da representação sob suas formas narrativas e retóricas,

mas todo o empreendimento da escrita da história” (RICOEUR, 2007, p. 267).

Apontando a discussão entre Hayden White e Carlo Ginzburg sobre a

representação histórica, Ricoeur assinala a perspectiva de White, segundo o qual tal

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situação limite torna ilusório acreditar “que os enunciados factuais possam satisfazer à

idéia de irrepresentável” (RICOEUR, 2007, p. 270), ou seja, não é através da

apresentação literal dos fatos que a concepção de figuração irá se esvair, demonstrando

o cuidado que o historiador deve ter para não cair no realismo ingênuo. Já Ginzburg

defende a história não no sentido do realismo, mas “da própria realidade histórica do

ponto de vista do testemunho” (RICOEUR, 2007, p. 270). Segundo esse autor, a

situação limite da Shoah faz como que o historiador repense a sua prática, uma vez que

não deve mais “caçar falsificações” nos testemunhos dos envolvidos, mas de explicar

por que a escrita de uma história abrangente poderia anular a diferença existente entre as

variadas perspectivas possíveis. Nesse sentido, há uma necessidade de distinguir esses

testemunhos levando em consideração a sua origem, uma vez que são diferentes os

testemunhos dos sobreviventes, dos executantes, dos espectadores envolvidos5.

Ressalta-se que a Shoah, segundo Ricoeur, torna-se situação limite na medida

em que a fonte do traumatismo inicial “não está na representação, mas na experiência

viva de ‘fazer história’ tal como é diversamente enfrentada pelos protagonistas”

(RICOEUR, 2007, p. 273). Assim, a fonte da demanda pela verdade se dá no local do

traumatismo inicial, na situação em que o acontecimento já se faz dentro de uma

memória coletiva antes mesmo que o historiador tenha acesso aos dados e proponha

uma análise dos fatos. Assim, Ricoeur trata Auschwitz como um acontecimento no

limite, pois está na memória coletiva e individual antes mesmo de ser parte do discurso

do historiador. Historiador que, nesse sentido, exerce uma dupla função, pois além de

cientista profissional, que busca narrar e analisar os dados, é também intelectual crítico,

responsável em relação ao passado de forma cidadã (cf.: RICOEUR, 2007, p. 272).

Ricoeur continua a sua análise tratando sobre a existência ou não de um limite

externo para a autossuficiência das formas de representação, apontando uma reposta

negativa e positiva. Negativa, pois a própria relação entre história e memória é de

retomada crítica, tanto externa quanto internamente (cf.: RICOEUR, 2007, p. 273).

Positiva uma vez que a pretensão de autossuficiência “proclama o fechamento em si das

configurações narrativas e retóricas e declara a exclusão do referente extralingüístico”

(RICOEUR, 2007, p. 273). Assim, para o autor, o limite, entendido como “a impossível

adequação das formas disponíveis de figuração à demanda da verdade que surge do

5 Tal princípio é abordado na análise que Shoshana Felman faz do filme Shoah, de Claude Lanzmann em

seu artigo “Seven. The return of the voice: Claude Lanzmann’s Shoah”. Ela mostra como no filme há três

grupos distintos que apresentam performances diferentes para tratar do evento da Shoah.

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coração da história viva” (RICOEUR, 2007, p. 273), não deve impedir de narrar, mas

estimular a exploração de formas de expressão alternativas.

O psicólogo Rollo May aponta uma interessante reflexão sobre os limites

impostos, no seu caso, para a criatividade, mas cuja perspectiva pode ser utilizada para

entender os limites na escrita da História quando se trata de uma situação catastrófica.

Segundo o autor, no artigo “Os limites da criatividade” (2002) os limites são

inevitáveis, e até mesmo necessários para a criação humana, “pois o ato criativo origina-

se na luta do ser humano contra e com aquilo que o limita” (MAY, 2002, p. 115). Ou

seja, são os limites que fazem o ser humano procurar formas alternativas para se

expressar. Dessa forma, esses têm um valor positivo para a criação humana uma vez que

caso eles não houvessem, toda a busca por novas formas desapareceria e haveria apenas

regozijo, sem mais assuntos para debate. O autor aponta diversas formas de limite e

começa citando a morte como limitação física inevitável. Nesse sentido, não é possível

deixar de lembrar o testemunho por delegação operado por Primo Levi. Ele fala pelos

que submergiram ao evento, pelos que não conseguiram sobreviver. A testemunha do

sobrevivente traz uma lacuna, uma falta e é esse seu valor e a necessidade de se

testemunhar: falar pelos que não podem falar (cf.: AGAMBEN, 2008). Outro limite

físico é a doença e no caso da Shoah, pode-se dizer que a situação de trauma pode ser

entendida nesse sentido. O autor ainda elenca o limite metafísico como o mais

importante no seu entender. Segundo o autor, a criatividade resulta da tensão entre a

espontaneidade e as limitações, e a arte surge como resultado da luta bem-sucedida do

artista com as limitações. A forma, podendo ser entendida como algo que limita, na

visão de May ao tratar da poesia, é interpretada como “um instrumento para se

encontrar novos sentidos, um estímulo para condensá-los” (MAY, 2002, p. 120). Mais

uma vez, apresenta-se a ideia de se encontrar novas maneiras de se lidar com o que

limita a representação, que deve ser entendido como um estímulo e não como algo que

paralisa.

No caso da Shoah, os limites são decorrentes da “memória impedida”, como

afirma Paul Ricoeur, partindo da relação entre História e violência; e limites na própria

escrita da História, que deve procurar novas formas de tratar sobre a catástrofe sem

diminuir a sua importância e sem homogeneizar aspectos relevantes como, por exemplo,

as especificidades de cada testemunho. A narrativa A dor, de Marguerite Duras emerge

como forma alternativa de se figurar o acontecimento que não seja pelo testemunho tal

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como é encarado grosso modo. O texto se divide em duas partes principais (I e II). A

primeira parte se intitula “A dor” e será objeto de análise mais detida nesse trabalho. A

segunda parte é composta por cinco histórias diferentes – “O sr. X, aqui chamado Pierre

Rabier” (p. 84-128), “Albert do bar Les Capitales” e “Ter, o miliciano” (p. 129-158 e

159-178), “A urtiga partida” (p. 179-192) e “Aurélia Paris” (p. 193-205). Antes de cada

um desses fragmentos, a autora aponta caminhos para leitura, em uma espécie de

prólogo indicado em itálico, em que diz se o texto que se segue é verdadeiro, se é

ficcional, se foram mudados apenas os nomes. A especificidade desse texto é que ele

une a narrativa testemunhal, com a narração de fatos ocorridos na realidade empírica,

com fatos ficcionais. Não é possível distinguir no âmbito formal quais são as partes

fictícias e quais são as verídicas, a não ser nas passagens escritas antes do texto em si,

nas quais fica claro que ela mudou o nome de personagens, etc. Contudo, parte-se do

pressuposto que, mesmo o livro não seguindo os moldes tradicionais do testemunho, é

importante fonte de pesquisa para historiadores, assim como importante leitura para os

que se interessam pelo tema. No caso da Parte I, a autora diz se tratar de trecho de um

diário, mas que não tem “a mínima lembrança de havê-lo escrito” (p. 8). Ela retoma o

texto quando a revista Sorcières, que circulava bimestralmente entre os anos de 1975 e

1982, solicitou a ela alguma produção de juventude.

O testemunho, uma das fontes mais relevantes para a História, constitui-se como

lugar de transição entre a memória e a História, mas também é atormentado pela

questão da fronteira entre ficção e realidade. O testemunho está relacionado com a

confiabilidade necessária para que o relato seja aceito. Como qualquer outra fonte,

requer uma relação veritativa com o passado, sendo posta em cheque a partir da análise

de outros materiais. Nesse sentido, Ricoeur ressalta a disponibilidade de que o relato

testemunhal possa ser redito sempre que necessário: “insere-se então em uma dimensão

suplementar de ordem moral destinada a reforçar e reiterar a credibilidade e a

confiabilidade do testemunho, a saber, a disponibilidade da testemunha de reiterar seu

testemunho” (RICOUER, 2007, p. 174). Mas Duras, mais do que testemunhar, quer

disponibilizar suas palavras e a força perceptível nelas. Ela ainda afirma que A dor “é

uma das coisas mais importantes de minha vida”, diante da qual “a literatura me

envergonha” (p. 8). E por utilizar o recurso ficcional, tanto a autora fica mais livre em

sua escrita, quanto o leitor pode ter uma relação menos desconfiada com o texto.

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O testemunho é um evento dialogal, em que é constantemente solicitado que o

Outro lhe dê crédito, confie no que está sendo relatado numa evocação do “eu estava

lá”. É através dele que se outorga a realidade da coisa passada, mas “é diante de alguém

que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual diz ter assistido, eventualmente

como ator ou como vítima, mas, no momento do testemunho, na posição de um terceiro

com relação a todos os protagonistas de ação” (RICOEUR, 2007, p. 173). Nesse sentido

é bastante interessante o uso da narrativa ficcional como recurso utilizado por

Marguerite Duras. Primeiramente, não se espera que a literatura conte a realidade,

embora seja isso que Duras faça de certa forma. Mesmo que os fatos tenham sido

romanceados, isso não deixa o texto menos impactante para quem sabe que de fato

Duras viveu tal situação na espera por Robert Antelme. Por outro lado, se o testemunho

necessita desse diálogo com o Outro e é encarado como uma narração em terceira

pessoa, como aponta Ricoeur, o uso da ficção como estratégia é bastante interessante,

pois a literatura pressupõe uma leitura, essa situação dialogal. Usando a proposição de

Seligmann-Silva, em que “uma literatura de testemunho, é uma arte da leitura de

cicatrizes” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 56), pode-se dizer que Duras utiliza a

literatura como forma de cicatrizar as feridas causadas pela Shoah, uma forma de

testemunhar de forma visceral os fatos traumáticos que a atormentaram.

Outro aspecto relevante é que a testemunha depende de uma confiança na

linguagem, no poder narrar os fatos e ser entendido por outrem. Contudo, “é contra esse

fundo de confiança presumida que se destaca de maneira trágica a solidão das

‘testemunhas históricas’ cuja experiência extraordinária mostra as limitações da

capacidade de compreensão mediana, comum” (RICOEUR, 2007, p. 175); ou seja, há

testemunhas que não conseguem encontrar espectador capaz de entendê-las por esse

esmaecimento na linguagem. E a ficção mais uma vez aparece como recurso para que se

consiga testemunhar a alguém, mesmo que de forma turva, a experiência do evento.

Dessa forma, a narrativa de Duras, embora possa ser encarada apenas como produto

estético, também pode ser entendida como estratégia alternativa para se apresentar a

situação limite da Shoah.

Um fato extremamente relevante na situação de Marguerite Duras é que antes de

sua morte ela deixa seus diários para o governo francês, que são publicados em forma

de livro. Esse texto é considerado como documento da Segunda Guerra Mundial, uma

fonte histórica. A primeira parte do livro “A dor” corresponde a trechos desse diário.

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Talvez a premência em falar de sua situação limite a tenha encorajado a transformar o

seu diário em ficção. A publicação desse diário somente na iminência de sua morte

corrobora com a hipótese de que, por motivos difíceis, ou mesmo impossíveis de serem

delimitados, não poderia ter sido lançado no momento em que o fora a narrativa A dor.

Saindo das hipóteses e entrando na análise, “A dor” corresponde à primeira e

maior parte do livro. No prólogo inicial, a autora esclarece a procedência do texto.

Como explicitado anteriormente, trata-se de um diário escrito em dois cadernos que

foram encontrados nos armários azuis de Neauphle-le-Château. A narrativa de sua

espera por Robert L., nome pelo qual ela chama seu marido no texto, é tão visceral que

o próprio leitor anseia por saber se ele de fato irá aparecer ou não. É uma espera em

conjunto. Ela não está mais sozinha. E aquela pressuposição de Ricoeur, segundo o qual

a testemunha solicita do Outro que o escute e que o legitime, torna-se contundente a

cada página que se segue.

A dor é personificada, como alguém que não a deixa, que a acompanha e que

acompanha o seu leitor: “A dor é tanta, ela sufoca, está sem ar. A dor precisa de espaço”

(DURAS, 1986, p. 12). A retórica é usada com toda a sua potência e por mais que o

leitor nunca tenha passado por essa mesma situação limite, a testemunha não se

encontra mais sozinha.

Essa primeira parte segue as marcas existentes em um diário, com divisões por

datas. Mas que podem ser mais gerais – “Abril” – ou mais específicas – “20 de abril”,

“Quinta-feira, 26 de abril”. A mesma data pode ter duas entradas – “Sexta-feira, 27 de

abril” e “27 de abril” –, indicando que foram escritas em momentos diferentes do dia. E,

tal qual em um diário, a quantidade de texto varia conforme a necessidade de explicitar

melhor os sentimentos ou descrever algum fato que aconteceu.

Assim começa o texto propriamente dito: “Abril. Na frente da lareira, o telefone,

a meu lado. No fundo do corredor, a porta de entrada. Ele poderia vir direto, tocaria na

porta de entrada” (p. 9). Podemos imaginá-la tensa, olhando tanto a porta quanto o

telefone, enquanto ela descreve cenas de como seria o reencontro, se iria ligar antes de

aparecer ou não. Tenta pensar que sua volta não seria nada de “extraordinário”, mas

algo perfeitamente aceitável. Ao sair de casa, tudo parece normal. Pessoas ligam para

saber dela e dele. Ela não quer explicar, só quer que o telefone seja usado para ouvir a

voz de Robert.

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E se ele morrer? Tenta afastar isso e continua a sua espera. Um trecho relevante

é quando afirma: “Ele que está ao mesmo tempo contido nos milhares de outros e

destacado dos milhares de outros apenas para mim, totalmente separado, só. Tudo o que

se pode saber quando nada se sabe, eu sei” (DURAS, 1986, p. 12). Aqui, é possível

identificar que Robert L. está tanto na esfera do individual quanto na do coletivo. Ele

faz parte da catástrofe humana que é a Shoah. A narradora tem consciência disso. Mas

ele também faz parte do universo individual, do homem, do único homem pelo qual ela

espera. Como afirmou Ricoeur, esse evento está tanto no coletivo quanto no individual

no momento de seu acontecimento. Não foi necessário que nenhum historiador o

estudasse para que já fizesse parte do imaginário coletivo. Essa mesma duplicidade do

evento está presente quando ela afirma que “não se trata de notícias. Trata-se de

informações sobre as atrocidades nazistas” (DURAS, 1986, p. 18).

Ao relatar a chegada de comboios com deportados, a autora mostra as diversas

reações que compõem o quadro. A reação histérica de mulheres, que gritam a espera de

respostas dos filhos, maridos, pais. Enquanto algumas pessoas, situadas um pouco

distantes, estão lá apenas como espectadores, para ver a cessar ou continuar do

sofrimento alheio. Duras está lá em busca de notícias também, causando comoção entre

seus familiares e amigos. Chegam a dizer que ela não deveria se anular tanto,

chamando-a de louca, doente. Mas ela afirma não conseguir perceber isso e, entre

colchetes, coloca uma observação: “[Mesmo agora, quando transcrevo esses episódios e

minha juventude, não consigo perceber o sentido dessas frases]” (p. 28). Essa

interferência da autora nos escritos de sua juventude não interrompe o fluir da narrativa.

Ao contrário, faz emergir o caráter testemunhal do texto. Testemunho que ela reitera

mesmo depois do passar dos anos.

A sua espera é angustiante. Então, ela relata o caso de uma senhora que não

espera mais. Recebeu uma carta e sabia que nunca mais reveria seu filho. O relato é

comovente e a autora afirma: “Penso nela porque não espera mais” (p. 37).

Durante o texto, é premente a necessidade de relatar, dando um valor coletivo ao

evento:

Se derem um valor alemão ao horror e não um valor coletivo, o homem

de Belsen será reduzido às dimensões da alçada regional. A única

resposta para esse crime é transformá-lo num crime de todos. Partilhá-

lo. Assim como a ideia de igualdade, de fraternidade, Para suportá-lo,

para tolerar a ideia, partilhar o crime (DURAS, 1986, p. 59-60)

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É preciso falar, transmitir o que se passou com os homens e mulheres que foram

vítimas, tanto indo para os campos, quanto os que ficaram esperando. É preciso

partilhar as atrocidades que foram cometidas, que o homem foi capaz de fazer a outro

homem, não se tratando mais de questões nacionalistas, mas humanas.

Em outro trecho, a narradora trata da sua relação com a leitura de forma

emblemática:

Tentamos ler, teríamos tentado qualquer coisa, mas as frases não se

encadeiam, embora suspeitemos que esse encadeamento exista (...) Não

há mais espaços entre mim e a primeira linha dos livros que são

escritos. Todos os livros estão atrasados em relação à Sra. Bordes e a

mim. Estamos na vanguarda de uma luta sem nome, sem armas, sem

sangue derramado, sem glória, na vanguarda da espera. Atrás de nós

estendem-se a civilização em cinzas e o saber acumulado durante

séculos (DURAS, 1986, p. 42-43)

A literatura existente não consegue dar conta da profusão de sentimentos pela qual a

narradora está passando. A literatura está gasta, é preciso que haja uma forma de se

relatar mais pungente, que consiga dimensionar o quão difícil é a espera. Em muitos

eventos históricos são narrados apenas os grandes feitos, sociedades homogeneizadas, o

lado da vítima e do perpetrador. Ela está no lado de quem espera, de quem também

sofre com o evento. Ela também é uma vítima e a História tal como é escrita não

contempla a sua dor. Mas, em vez de apenas se lamentar, mostrar que a literatura

existente não dá conta, a publicação de A dor aparece como uma forma de contornar

essa situação, de mostrar outro lado que é apagado na literatura e na História.

Quando Robert retorna, já não é mais o mesmo. Apenas uma forma, “aquela

forma ainda não estava morta, flutuava entre a vida e a morte, e ele havia sido chamado,

o médico, para tentar revivê-la. O médico entrou e foi até a forma e a forma lhe sorriu”

(p. 65). O mais angustiante é, como a autora aponta, que esta catástrofe não ocorreu

com um, dez, cem. Mas milhões de pessoas foram mortas, exterminadas. “Esta nova

face da morte, organizada, racionalizada, descoberta na Alemanha, desconcerta antes de

indignar” (p. 59). Não há precedentes na História, mas o que ocorreu deve ser

considerada em sua dimensão humana, e não apenas centrada em determinada nação. O

texto de Duras acaba por dar uma dimensão individual a esse evento que afetou a

humanidade. Os historiadores, os sociólogos, teóricos tentam mostrar, a partir de suas

próprias ferramentas, a dimensão coletiva, os dados, o funcionamento. Mas a dor da

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espera, o sofrimento de quem lê as informações sobre as atrocidades cometidas, mas

não tem o que fazer, em total passividade nesse evento traumático, essa dor precisa de

outros meios para ser sentida e compartilhada. Ao entrarmos em contato com algo tão

íntimo quanto é um diário, olharmos mais de perto o que acontece com uma pessoa de

carne, osso, sentimentos, assim como nós somos.

A importância do livro de Marguerite Duras é que ela, por ter liberdade de

escrever o que bem entender por ter escolhido o recurso literário, consegue enlaçar seu

leitor na dor de sua espera. O testemunho se torna veemente e contundente porque não

há a necessidade de se expor o livro às questões fundamentais para o testemunho grosso

modo, a saber, a busca pela verdade. O único limite existente é o da ética, o que ela

pode ou não narrar para não intoxicar o leitor. Mas é um limite com o qual ela não se

prende. Ela não deixa de falar das situações mais corriqueiras, mas que são abjetas, que

mostram o inumano no humano. A autora, mesmo sem seguir o testemunho de forma

tradicional, como foi apontada pela análise de Paul Ricoeur, consegue, através da

ficção, falar de sua dor, de sua espera, de forma que seu testemunho não possa ser mais

esquecido por quem leu a narrativa.

A volta de Robert já não é mais parte do diário, mas uma narrativa, que não

sabemos muito bem quando foi escrita. Se foi feito propriamente para o livro, se foi

retirado de anotações da época. Mas, isso pouco importa, uma vez que estamos diante

de um texto ficcional. A narrativa continua com a mesma força. As descrições de como

foi lidar com Robert, de sua situação abjeta, e de como “as forças voltaram”, frase

repetida três vezes, a fim de demonstrar o progresso alcançado pelo tratamento.

Duras ainda afirma: “Eu me apoiava nas venezianas, a rua passava lá embaixo,

e como desconhecessem o que estava acontecendo no quarto, tinha vontade de dizer

que naquele quarto, acima deles, um homem voltara dos campos alemães, vivo” (p. 68).

E ela consegue gritar não apenas pela janela, mas ao mundo todo através da publicação

de seu livro. Quem lê, consegue ter a dimensão da espera, da sensação de ver a pessoa

diante de si, do medo de que o tratamento não funcione. Ela descreve a fragilidade do

corpo, o aspecto das fezes: “dezessete dias sem se parecer com alguma coisa conhecida.

Sentíamos seu cheiro em cada uma das sete vezes por dia em que ele evacuava” (p. 69).

Estamos realmente diante de um ser humano, e não de teorias ou tentativas de

explicação. O relato é libertador para quem sofreu tamanho trauma. Tanto que o próprio

Robert Antelme também publica um livro chamado A espécie humana – traduzido para

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o português apenas em 2013 –, em que retrata a rotina de um campo de concentração. E

Duras termina dizendo que por toda a sua vida “em todas as horas, em todos os dias, eu

não parava de pensar: ‘Ele não morreu no campo de concentração’” (p. 79).

Terminando, assim, o seu relato.

Em suma, o presente trabalho analisou a noção de limite da representação nas

narrativas de catástrofe, tal como aponta Paul Ricoeur. Em sua perspectiva, há situações

que exigem que o modo de falar sobre determinados fatos históricos tenham outra

abordagem, que não a usada tradicionalmente. Um dos fatos mais relevante é o papel da

testemunha nesses casos de situação limite. A memória, além dos problemas que já

apresenta em si, como a exigência de comprovação através de outros dados, após evento

traumático, torna-se mais problemática. A pessoa que passou pelo trauma tem

problemas em relatar o fato, embora tal relato seja visto como necessário. Nesse sentido,

apresentou-se a utilização da ficção como recurso para se legar o testemunho na

narrativa A dor, de Marguerite Duras. Se, em um primeiro momento, o uso de tal

recurso pode ser encarado como problemático por não se tratar do uso da verdade, de se

falar com a autoridade dos fatos, torna-se uma experiência pungente para o leitor, que

de fato é tocado pela narrativa. Obviamente, a perspectiva de Ricoeur sobre testemunho

e História apresenta alguns problemas. Por exemplo, Beatriz Sarlo (2007) afirma que o

autor fora seduzido pelos relatos das vítimas da Shoah, pelo discurso da

irrepresentabilidade (cf.: SARLO, 2007, p. 38). Mas o esforço desse trabalho não se

operou na tentativa de apontar o pensamento de Ricoeur como o único possível para se

tratar do testemunho. O esforço foi demonstrar que Duras consegue transpor os tais

limites da representação de uma situação catastrófica como foi o caso da Shoah

utilizando o recurso ficcional, de forma magistral.

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