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O LIVRO-ARBÍTRIO DAS EVAS dentro e fora do jardim

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OLIVRO-ARBÍTRIO

DAS EVASdentro e fora

do jardim

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Universidade Estadual de Santa Cruz

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OLIVRO-ARBÍTRIO

DAS EVASdentro e fora

do jardim

Neuzamaria Kerner

Ilhéus - Bahia

2014

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Copyright ©2014 by NEUZAMARIA KERNER

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K39 Kerner, Neuzamaria. O livre-arbítrio das ervas : dentro e fora do jardim / Neuzamaria Kerner. – Ilhéus, BA: Editus, 2014. 224 p. ISBN: 978-85-7455-366-5

1. Poesia brasileira. 2. Literatura brasileira.3. Mulheres na literatura. I. Titulo.

CDD 869.91

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Dedicatória

Henrique Você faz com que todos os dias eu reinvente motivos para continuar!

Júlia Você me trouxe de volta!

Leonardo Você é o presente especial que recebi!

IsabelaVocê é a fadinha!

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ÀS EVAS(dentro e fora do jardim):

Graça Ruy Eliane SiqueiraCarol Kerner Vieira Mendonça Helyane

BermudesVieira Maria Angélica Cuzzuol Ângela Cristina Araújo

Renata Polli Maria da Penha CarvalhoBeatriz Paoliello Vanilza Marques da

Silva Tânia Maria Almeida VianaAnna Secomandi Eliana SalvadorBaisa Nora Silvia Kerner de Melo

Leda Lima Juçara Barros Clilza Ferreira Rita Peterli Bernadete Sena Martha Cellin

Marci Maia Leda Landuete Maria Fachetti Bete Anghinoni Geloca Dórea Cristina Nora

Marize Avelar Elisa MendonçaAninha Mendonça Márcia Mendonça

Damiana Almeida dos Santos

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Mara Bergamaschi Fernanda Ferreira Liliane Kalil Neide Vieira Necy Porto Acy

Mendonça Ivete Preta SalvadorDag Salvador Nena Salvador

Maria das Graças Salvador Nonoi Ana Rita Ferraz Lúcia Ferraz

Karina Suzart Renata StauferMaria Th ereza Feitosa

Tania Maria RibeiroMaritânia Feitosa Conceição Suzart

Marinalva Kerner Telma KonigMaurísia Paixão de Melo

Lia Kerner Rosa Castro KernerAna Paula Castro

Kasuelinda Nakashima Lucinha Vieira Monalisa Chambela Cida Vieira

Tamara Porto Liu Ferraz Lívia Cabral Nelsira Brunoro Adriana Montenegro

Alba Cristina Soares Rita Santana Marlowe Quadros Natividade Ribeiro

Neide Ribeiro Tica SimõesJanete Badaró Jane Hilda Mourão

Maria Shaun Marise Kerner Eliane Sabóia Ângela Ziviani Aidil Brito Jamile Cabral

Gabrieli Montenegro Denise Salvador Lucilene Vieira Gracinha SantosVera Heringer Josimeire Oliveira

Mary Cobi Annelise DiasLucimar Toledo Jovani Gil Andrade

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Inês Kerner Fernanda DispostiRosângela Torres Ângela Daher

Angelamaria da ConceiçãoHiorrana Conte Rita Neves

Violeta Vargas Ana Elisa Scampini Leidi Peres Fátima Lima Vera Salvador

Aline Andrade Luciene GomesMaria de Guia Granados Rosa

Mari Kerner Anieli Rupf Penha Colusse Sarah Bastos Flávia Resende

Ana Virgínia SantiagoMariana Kerner Milene Sarquissiano

Marilce Gomes Carmem Molina Isa Ishwari Baiocchi Janaki Sita Cida Ananda

Vânia Lessa Mariana BaiocchiMaria Nunes Leila Andrade Neuci

Vazzoler Márcia Ely Maria Emilia Stumpf Suzana Tatagiba Janemeyre Conte

Ana Paula Saches Ludmila Ferreira Ninfa Costa Cristina Voigt Maria Amélia

Lemos Ana Amélia MarbackRúbia Bento dos Santos Elzi Ferreira

Jaci Ferraz Peixoto Bárbara Kerner Margarete Sena Andrea Cosenza

Clecilda Oneda Lurdinha Kerner Kátia Paiva Carla Patrícia Denise Salvador Maria

do Carmo Shneider Penha Lins Simone Bourguignon Dilza Lima

Rosane Pagotto Lucia Santana

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Vania Bastos Vanilza Marina Colasanti, A Moça Tecelã, Rachell Ricardo

Amâncio Lia Luft Tatinha KernerTh ais Goodwin Kerner Lucila Ferraz

Ademildes Mimiu Zizo Lita PassosVanda Machado Ângela Nespoli Branca

Salvador Alessandra Baiocchi Bárbara Campos Fernandes Maria Vitória Sá Barreto

Franziska Huber Gerosina Lemos Neuman Rocha Fernanda Arpini

Priscila Bueker Marita Ocké de FreitasAna Paula Diaz Spina Ângela Buaiz

Rowena Tovar Marisa Fausto de Oliveira Guiga Moura Ferreira Marilce Gomes

Clarissa Avelar Renata Camello Layla Porto Gabriele Montenegro da Silva Rita Seixas

Letícia Pizzato BarrosDalva Nora

Milena Nora de AndradePatrícia Nora de Pretto

Siomara Castro Nery Leda Barros Patrícia Lavigne AndradeCláudia Albagli Nogueira

Lynne Marilyn Nelson Alícia Ikuta Priscila Pithon Peggy Petelsen

Soraya Landuette FioridoRose Bendinelli Carla Partrícia

Laura Gomes Margarida FaelIlze Secomandi Ângela Salvador

Lucilene Klein Benita PrietoMaria de Luzia

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UMA POETA NO ABISMO

Em comparação com a lost generation de que foi musa Gertrude Stein, esta nossa geração parece que tão cedo não sairá do mato em que se meteu sem cachorro. Na-quele tempo de Hemingway e outros, ainda havia guerras que atraíam jovens, por seu aspecto romântico ou idealista. Hoje, nem isso. Já não se travam guerras; decretam-se extermínios a distância.

Também não há mais animais a caçar em África ou alhures. Os sobreviventes fo-ram recolhidos a reservas, para serem obser-vados de binóculos, em safári de jipes.

De modo que aos poetas, tão atraí-dos pela Guerra Civil Espanhola, restam as guerras pessoais, as guerras dos implacáveis

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mistérios e incertezas do ser. Morre-se de tédio, em cavernas que cada um descobriu como refúgio. Mas a imaginação continua acesa. É um mundo sem grandeza, em que o indivíduo aparece reduzido a frangalhos. Quer participar; seus gestos se esvaem na solidão.

Sei que a Neuzamaria Kerner não agradaria o papel de vivandeira. Por seu ímpeto sul baiano, por sua apetência para a vida, que é uma virtude muito grapiúna, ela mereceria um lugar num dos regimen-tos napoleônicos. Não para escravizar po-vos, decerto — senão para gastar um pouco do ardor que a consome. Nasceu inquieta, a moça, e está mais inquieta, agora que lhe tolhem os movimentos e a vontade, num mundo que ela não fez, como disse o poeta Housman. O que fazer, então?

Ora, ela faz o que todos nós, criadores, fazemos: desabafar sobre uma folha de papel. Eis alguns dos seus gritos, que são quase jere-miadas de Evas acorrentadas: o livre-arbítrio é substituído pelo livro-arbítrio, e este não lhe podem calar, por ser matéria de sonho, território imune a intervenções malignas. A arte literária talvez não mais enseje a glória e a honra a que se referiu Machado de Assis, mas consola. É linimento e bálsamo.

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Os poemas de Neuzamaria Kerner são em geral curtos. Sua poesia tende ao monólogo, que a faz interrogar e interro-gar-se. O eu é um microcosmo em que se refl etem os mistérios e incertezas do mun-do, da vida, da personalidade. O poeta trabalha à beira do precipício. Às vezes, já tombou nele e se agarra a uma ponta de pedra. Artes e equilibrista. Dali, condena-do sempre a indagar — porque a Prome-teu acorrentaram o corpo, mas destrava-ram a mente e a língua —, o poeta tenta sumarizar seus lampejos em discursos con-ceituais, quase aforísticos.

A autora de O Livro-Arbítrio das Evas é dada a jogos vocabulares que ex-primem a ânsia de imprimir nota nova à dicção poética. Ela está em busca de uma expressão, que, a essa altura, já traz toque pessoal. “A Morte de Cinderela” é uma re-fl exão sobre os desencantos. Um poema como “Barqueiro do Rio Pardo” mostra a poeta em duas viagens: a factual, que é menos signifi cativa, e a outra, interior, que é, de fato, signifi cante, em que Neuzama-ria está vindo de si, de dentro de si — e traz certamente algo colhido num desses relâmpagos em que parecemos captar uma verdade existencial.

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Nessas transmigrações, em que recor-re a neologismos como forma de exprimir com mais exatidão o que está prestes a di-zer, mas ainda não foi formulado, a poeta re-inventa. E é bom que assim faça, sinal de que há na sua poética um compromisso mais fundo que atesta uma entrega tota-lizante — passaporte indispensável à des-coberta da identidade que parece perdida no vozerio do mundo, e convém encontrar para a ancoragem. Poemas como “Raquel”, “Considerações sobre o diabo” e “Desem-barga a dor”, em que vergasta a morosidade ou apatia das consciências, nos sinalizam a poeta-plural, caixa de tormentos, caixa igualmente de ressonâncias.

Em “A ilha escolhida”, sobre Ilhéus, em que passou um período de sua vida, Neuzamaria Kerner aponta o rumo árduo da expressão por ela adotada:

Quando me bate à portaum sentimento de orfandadepenso no meu mundo conhecidoe no meu mundo imaginado.(...)

No poema “Aprender” ela confi rma sobre o rumo árduo que segue:

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(...) A letra bruta e vaziaPara o exercício do polimentoE o preenchimento do verso diamante.

As Evas tecem. Tiraram-lhes, como a nós todos, quase tudo, neste mundo que tanto nos assombra, mas restou pequena reserva secreta de livro-arbítrio.

Hélio Pólvora*

* Cronista, contista, romancista, tradutor e crítico literário. É jornalista militante e escreve sema-nalmente para o Jornal A Tarde (Salvador – BA). Dentre suas obras estão, Os Galos da Aurora (1958), Noites Vivas (1971), Mar de Azov (1986) e Xerazade (1990), Inúteis Luas Obscenas ( ) e Dom Solidon ( ).

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Sumário

PREFÁCIO / 23

LILITH / 29EVA / 31

RAQUEL / 33DALILA / 35

IRIT / 36MARIA / 38AGAR / 39

A MULHER DE PUTIFAR / 40REBECA / 42

MADALENA / 44SERPENTE / 46BETSABÁ / 48JEZABEL / 50

LIA / 51ANA / 52

MARIA (NAZA)JOSÉ / 53TEREZA D’ÁVILA / 54

MOVIMENTOS / 56MEDO DA FELICIDADE / 57A CORAGEM NA MÃO / 58TIPOS DE TRABALHO / 59

A MORTE DA CINDERELA / 60

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A RASTEIRA / 61CONTENDA / 62

A ILHA ESCONDIDA / 63MATANDO SAUDADES / 64

VISÃO / 65TRIBO GRAPIÚNA / 66

ANJO NO ESPELHO / 68AMA! E FAZE TUDO

O QUE QUISERES / 70APRENDER / 71

APRENDIZADO EMQUATRO SEGUNDOS / 72

AS PARTES NA MATEMÁTICADAS EMOÇÕES / 73

FINALIDADE / 74NO HANGAR / 75

AVÓS / 76EPIFANIA / 78

AVOZIDADE / 80(DES)EDUCANDO OUFAZENDO FELIZ? / 81

BARQUEIRO DORIO PARDO / 84BRINCADEIRA

ENTRE POETAS / 86CANTO DE PARTIDA / 89

CINCO CANTOSÀ PRIMEIRA LUA / 91CARTA-ORAÇÃO / 92

CHANCE / 94

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COISAS DA SOLIDÃO / 95NO SÍTIO / 97

COMO TANTOS / 101CONSCIÊNCIA / 102CONSIDERAÇÕES

SOBRE O DIABO / 103CONVERSA COM “DÉDALO”

DE MARVILLA / 104CONVIVÊNCIA PACÍFICA / 106

CRENDO, AINDA / 107CORAÇÃO MOLE / 108DANDO SEQUÊNCIA

AO QUE ME BASTA / 110É O QUE ME BASTA / 112

DAS MÃES / 113AS FLORES DO 31 / 114

DORMINDO A VIDA / 115CREIO EM DEUS / 116

ONDE / 119POETAR / 120

DORMIR E ACORDAR / 121DUAS EPÍGRAFES PARA

UM SÓ POEMA / 122“EPPUR SI MUOVE!” / 124

ESPADA DA PAZ / 126EM 2000 E TANTO / 128

ESTRANHEZAS / 129ESCULTOR NA IMAGINAÇÃO / 132

EULINA / 133

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PRESENÇA / 135 ERA ASSIM AQUELE

PSIQUIATRA / 136FUGACIDADE / 137

IMAGENS NUM POLÍGONO / 138INCOINCIDÊNCIAS DOMODO DE AMAR / 139INTERMITÊNCIA / 140

JOGO / 141JUNHO AZUL-NEON / 142

LEMBRANÇAS / 144LEVEZA / 145

LUGAR (IN)SEGURO / 146RETORNO / 148

MANJAR DOS DEUSES / 149DISTÂNCIAS / 150MODISMOS / 151O PRÍNCIPE / 152

O QUE SE SABE DO QUEO JORNAL FALA / 154

O AVESSO DA SABEDORIA / 156O BANZO / 157O FINAL / 158

O LADO BOM DO PASSADO / 159O LADO OBSCURO DO BRILHO / 160

OBSERVANDO / 162ONDE ANDARÁ DEUS? / 164

OPERAÇÃO BISTURI / 166OS OLHOS PEDEM / 170

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OUVINDO / 171PERDAS NECESSÁRIAS / 172

POEMA DA FERA / 173PENSANDO EM NARCISO / 174

QUEBRADORES DE PEDRAEM VILA NOVA ESPERANÇA / 175

QUEM É QUEM? / 176QUESTÃO DE TAMANHO / 178

REAIS NECESSIDADES / 179RETECENDO ÍTACA / 180

UIVOS NA LUA VAZIA / 182ESCORRENDO POR

QUALQUER LUGAR / 183VÍCIO DE LUA / 184

TRANSCENDÊNCIA / 185VITÓRIA / 186

ALGUMAS (IR)RELEVANTES DESCOBERTAS NO

AZUL DA AZUL / 188RETORNO À ALDEIA / 193

E A CARAVELA PARTIUSEM MIM... / 194

AURORA BOREAL / 195CANTIGA DE NINAR A LUZ / 196BUSCADOR DE AURORAS / 197

COMUNICADO AMOROSO / 198ESTE OLHAR DE JÚLIA / 199

ESSA COISA / 200FRANCISCO E A CARIDADE / 201

PASSAGEIRO (NAS CATEDRAIS) / 202

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MOTIVO PARA ESCREVER / 204O MAR E O POEMA / 205

PROMESSA DE PALAVRA / 206SEMENTE DO FRUTO / 207

SURDEZ / 208O LIVRO-ARBÍTRIO / 209

A CASA DA LUZ / 211A QUE VENDIA RECORDAÇÕES / 213

MÃE NO DIA A DIANO MEIO DE MAIO / 216ÓCULOS DE GRIFE / 219

DAS ÂNSIAS DO TEMPO... / 222

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PREFÁCIO

EXPLICANDO AS EVAS

Sempre pensei em escrever sobre as mu-lheres da Bíblia, embora nunca tenha pensado nisso sob o ponto de vista religioso. Mas eu as pensava como as educadoras, as sábias, as le-gisladoras, as médicas, as sacerdotisas, as guer-reiras, as cuidadoras que foram relegadas pelo afã, de algumas sociedades e religiões, de adotar o poder masculino como único e inquestioná-vel, quase que apenas pela questão biológica, levando em conta o hormônio masculino – a testosterona – principal responsável pela agres-sividade num sentido mais amplo.

Claro que não é meu objetivo neste livro entrar pela ciência porque não me de-brucei nas teorias para me meter a escre-ver sobre a progesterona das Evas, mesmo

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sabendo que esse hormônio feminino as torna mais sentimentais, mais contempo-rizadoras, mais macias, mais Elas.Também não é meu objetivo polemizar com segmen-tos religiosos ou propor rasgar sutians nas praças.

O que eu imaginava mesmo era dar voz a quem foi tirada a vez de falar, de de-fender-se num universo onde o masculino imperava e não reconhecia o poder do femi-nino. Sabemos que em algumas poucas cul-turas antigas as mulheres eram respeitadas e consideradas seres indispensáveis para que a organização dos grupos sociais pudesse ser mantida. Então, quando me percebi como ser pensante, algo me cutucava a observar mais como as mulheres eram tratadas, não só nos textos gerais sagrados, mas em parti-cular nos textos bíblicos que justifi cavam a subordinação das mulheres aos homens. As culpadas por isto ou aquilo, as pecadoras etc. É só dar uma lidinha sobre as mulhe-res celtas para ver como elas foram derrota-das pelo cristianismo. É só prestar atenção como ainda, nestes ditos novos tempos, o tratamento a elas dado funciona.

Desde sempre, portanto, motivos foram criados para justifi car a opressão das Evas, embora elas sejam permanentemente fontes

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de inspiração, porém obrigadas a permanecer guardadas em seus silêncios. Eu fi cava indig-nada quando lia sobre as histórias femininas apresentadas. Elas silenciavam porque assim deveria ser. No entanto, dentro de mim, elas se explicavam, muitas vezes gritando por so-corro. Então, escolhi as que mais me chama-ram atenção e resolvi ouvi-las e emprestar-lhes a minha voz de mulher de século XXI: as Evas que, no meu modo de sentir, sempre deram um jeito de trilhar, dentro e fora dos jardins, corajosamente. Daí nunca terem perdido o famoso lugar de donas do Éden.

Vejam: A mulher de Lot teve nome? O que fez mesmo a mulher de Putifar? Lilith foi banida; Eva tornou-se maldita; Maria, a serva submissa do Senhor; Madalena, aque-la que dava a todo mundo; Betsabá, a que nos deu os Cânticos de Salomão, Jezabel... Por aí vai!

De alguma forma, portanto, em todos os poemas, estamos nós. Evas! Essas mulhe-res maravilhosas que alguns – equivocada-mente – pensam que as direcionam, mas, em verdade, o livro e o livre-arbítrio sem-pre serão delas porque na medida em que as liberto é provável me liberte também ao expor corajosamente alegrias, tristezas, do-res, dúvidas, esperanças, refl exões e, acima

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de tudo, amando mais do que desamando.Sugiro que leiam com seus “Adãos”, afi -

nal preconceito em poesia não existe.Boa viagem e boa leitura!

Neuzamaria

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OLIVRO-ARBÍTRIO

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LILITH

Mostro-me para sair do exílioonde me colocarame tiraram minha voz:eu feria os princípios do recato,assim foi o relato dos escribasque me condenarama ser poeira no livro ofi cial.

Fui tida feiticeirade energia visceralque consumia a paz do meu companheiro.

Queixoso, dizia-se prisioneirodos meus afagos.É certo que o envolvia, não nego,mas o que ele não admitiaera estar sob o meu comandoou ter-me como par.Rebelei-me, afi nal fui feita livree queria iguais direitos.

Vingou-se e cobriu-me de defeitosdiante do Pai.

Excluídafui mandada para a treva do mar profundo.p

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Vingou-se e cobriuiante do Pai.

xcluídamandada para a trfundo.

dos meusÉ certo qumas o quera estarou

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303030

De lá, gerei desejose os enviei para queimaro corpo de Adão.Sua carne reclamava e desesperadogritava por clemência.

O Criador cientistarápido como a urgência de um raiotrabalhou à luz de vela:da criatura tirou uma costelae fez o primeiro teste de clonagem.

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EVA

“Não é bom que o homem esteja só;far-lhe-ei uma auxiliar igual a ele.”

Genesis 2, 18. 22 – 24

Disse a Ti um dia o sim.Disseste a mim: tu és mulher!Bênçãos me destee em todo o teste a mim impostosaí vitoriosa.Até reinei num paraíso...Pueril, a todo tempo mostrei risoe nesse riso me fi z rosa.Explorei o chão que me foi dadovi tudo o que ali haviaprovei até do que não podia– não me fora permitido provar. Tutemendo o desabrochar que me possuíadisseste: “pecadora, vai embora,não serás mais a senhorado jardim que preparei!”

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323232

Aquele momento de quedaeu nomino salvação para as minhas descendentes, insubmissas, conscientes,sacerdotisas guardiãs da fábrica da vida– presente sem medida para o mundo do amor.

Tua cria – Te louvei Tua alma habitando em mim.Me deste o conhecimento da bondade, da malícia, da perícia em parir.

Não carrego culpa ou dordentro ou fora do jardim,posto que oniscienteme soubeste pura e sã, e eu Te sei meu coniventeno episódio da maçã.

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RAQUEL

No poço onde os amores se veemencontrei os olhos do meu amadoe meu nome virou mel em seus lábios.Fui por ele escolhida,mas meu donoignorando as urgências do meu coraçãosufocou o meu clamor lírico.

Inventei a espera para sobreviver.

Sete anossete forças duplicadassete vezes limitadano desejo faminto de sua presença.

O amorvulcão derramante que me invadiadeitou-me com ele na primavera.Repartiu-se em mimtantas vezes o seu desejo imploroue eu amava seu jeito de me amar.

Eu era fl or e queria frutosmas as estranhezas da vidanão deixavam um fruto vingar.

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Neuzamaria Kerner

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Então, numa noiteenquanto a lua espalhavaclaridade pela terraderramei mandrágoras sobre o meu ventree fui fértil como as tentações das noitespor duas vezes...

Quando nossos sonhosatingiram força máximapartimos para onde mora o futuro.Mas os ventos fortes vierame com eles, gritos de lamento e despedida:fui arrastada para o desconhecidodeixando o amado,minha metade restante,meu Jacó de Canaan,pisando o pó do deserto sem mim.

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DALILA

Entre os Danitas foste abençoadocom óleo de jacinto.Entre meus braços foste amadocomo o vento que voa e não cansae o teu leão rugia em mim!

Tua juba não me dava sossegotuas vontades não me deixavam dormir...

E ria a tua mãe por me teres dominado,mais se ria de orgulhodo teu cabelo trançado...Bufavam os homens do desertopelas mulheres que havias desvirginadopelos campos que havias incendiado.

Sansão,tuas vontades tantasteu poder despóticotua força inconsequente...Alguém tinha que acabar com isso!

A navalha afi adao teu fogo impotentee cabelo sacrifi cado.

Se foi missãoa fi z cumprida.

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IRIT

Alguns viviam na esbórniae curtiam esse viverrepudiavam a tristezae qualquer tipo de sofrer.Em lugar de água, vinho,o Éden perfeito era ali;os corpos faziam foliaas bocas diziam “bebi”.Foi lá do alto o destinodos sodomitas traçadoe Gomorra impenitenteteria destino igualado.Enviados foram uns anjosavisar da destruição:enxofre e fogo seriamferramentas da imolação.Quando chegasse o momentouns poucos iriam partircom olhos postos à frente.Que mal houve no meu gesto

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qual meu crime, meu pecado?Fui salgada, fui punidaapenas por ter olhado?Olhei talvez por saudadedos filhos que quis rever;não foi ceticismo ou bravatatampouco por ser voyeur.Provoquei do comando a ira,foi duro comigo o juiz,mas pergunto a quem me sentequal mãe não faria o que fiz?Disseram “sois seres livres”– maldita contradição! –quando o somos, de fato, nos castigam por transgressão.Coluna de sal hoje soue permaneço apesar dos ventosque passam por mim e prosseguemlevando salgados lamentos.

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MARIA

Pouco do nada que sabem sobre mimmuito do tanto da voz que silencieidas maledicências que eu tanto suporteido outonal mundo-macho de onde vim.

Magnifi cat! – serva dita por alguns –me anunciaram mãe antes de eu sabere se não fosse O Filho que eu ia terdefenestrada seria pelos tabus.

Assumi o que em mim grande gerava,só fui serva do coração que falavasem importar com o que fosse acontecer.

Marquei ponto no partoe vim caminhando,virgem ou não, vim revolucionando:sempre sou Eva e acontecendo em você!

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AGAR

Por ser minha senhora infecundacom seu marido deitei,era escrava, não tinha escolha,muito menos o abrigo da lei.

Precisavam de um herdeiroe esse fi lho meu ventre hospedou;era meu – e não era – esse fruto,mas da senhora e do senhor.

Não sei por que Deus, de repente,mudou uma história já pronta:pôs no ventre ancião de Sarao motivo da minha afronta.

Fui banida para o desertolevando um odre com água e o pãomais meu fi lho, fi lho primeiro,injustiçado por Abraão.

Sob a tenda que me cabiateci grande e novo destinoe fi z do meu fi lho bastardoarauto de um sonho divino.

Toda amargura do passadotroquei por força e valentia;intuição que traçou rumose me deu relativa alforria.

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A MULHER DE PUTIFAR

Não sei o meu nome.Não há registros dele para mim...eram assim, as usanças naquele lugar.Fosse boa ou ruimpreferiram a infi el, a mulher de Putifar.Entrei para a históriapor causa daquele hebreuque havia sido vendidoe com honras acolhidono espaço que era meu.Fiquei sem defesa algumaquando enlaçada em seu manto,minha voz não foi ouvidamuito menos o meu pranto.Por pura comodidade,traiu-me aquela grei;covardes, me humilharam,disseram que adulterei.

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Quiseram me ver bebendodas águas da amarguracomo se isso provasseque a alguém assediei.Desafi o as testemunhasdos tempos de lá para cáa abrirem agora a bocaque enfi arei suas línguasbem no olho daquele lugar.Era homem, José, o mancebo,tinha nome, teve glórias– eu, mulher inominada –ele, então, o que fez?Me deixou escura no abismoe tive que entrar no exílio,mas hoje retorno com vozpara sair do ostracismo.

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REBECA

Atravesse a cortina da fi na areiaque os ventos levantam no desertoe entre na minha vida.

Esqueça o tempo: o ontem e o hoje são igualmente bons.

Esqueça o espaço: tudo cabe dentro da imaginação.

Busque outra forma de olhar: quantas falas cabem numa verdade?

(Veja, há outra dimensão).

Havia dois irmãose com um deles me casaram: Isaac.

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Não sei se o amava porque não se amatão de repente assim...ainda mais a um homematormentado por pesadelos,horrores de sua infância:faca garganta lenha fogo carneiro morte-vida...Ou teria eu que fabricar o amorpara alimentar o que estava escritosobre nossa união?

Havia dois irmãos... (e eu como mãe do meu marido).Não! Não levaria a pecha de estéril.Pari gêmeos e arrumei a primogenituraem favor do preferido.

Eu, Rebeca: a que une ou armadilha –(raciocine nessa linha – porque hoje a escolha é mais sua do que minha).

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MADALENA

Do poço de Jacóno meu cântaro-corpoem vez de bálsamo trago a líquida imagemdos quereres do mundo.Na sexta hora do diahora ausente das sombrashavidas em Samariapressinto tuas pisadas caminhantessobre os meus desejos.

Do meu vaso de alabastrodeixo verter lágrimas de cheirodeixo verter águas de água para alívio das minhas sedesdesapaziguadasna espera do teu olhar.

Passas.Tu queres ir, mas tuas vestes se grudam na primeira pedrae o teu manto senta sobre mim.

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Dou-te de bebermolho teus pése seco-os com cabelos-véus.Toco-te...sentes minhas mãos sábias e generosas...

Estremecese sinto que transbordas comigo.Mais veloz, porém, que um raio do céume afastas prevendo o perigo impresso no momento.Dá-me de beber, pregador!– suplico –e derramas a eternidade na minha boca.

Seguimos juntosatemporalmente e as pedras vão fi cando para trásleves e desarremessadaspara todo o sempre.

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SERPENTE

Serpenteio evamentee me ponho desnuda para os julgamentos devidos.

Não que me importe com elesmas me presenteio nos gozosdos que me julgam.

Por que não serei eu Eva também?Por que não serei todas Elasdentro e fora do jardim?

Das manias todasque todos têma que menos gosto é vê-losnas vestes das vestais.Mas que fazer se curtem o viciomaniade a tudo julgar?

Minha veste é a pele curtidaque suporta a aridez do chãopantanoso – ou não.Minha veste é o medo que têm de mim:

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Isso me diverte.Não me desveste do trajeque no meu livre arbítrioassumi.

Não me respeitam– debocho. Pensam que o ostracismo me devorou– se enganam, pois que não me esquecem.Condenam-memas soberbamente fi njo que rastejo(para o desespero dos que se deixaram enganar sobre o que disseram de mim).

No Livro que fala do começomereço o destaquepara o bem ou para o mal...

Sou história – queiram ou não –com vocês.Queiram ou nãosou coluna que não desmanchaa contradição de ser quem sou:Eu... evamente!...

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BETSABÁ

Teu olhar visitou os meus seiosquando inocentes eram banhados por frescas águas

Tua cobiça visitou o meu corpoquando inocente desejou o corpo teu

Teu pecado acarinhou minha almaquando me fi z tua harpae a música soou em mim

Quanto amor escorreu de tua bocaencharcando minha língua de melungindo mil poros meuse fazendo do meu umbigoa taça do vinho de Deus!

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Nossas almas tão sagradascom perdões e aleluiasminhas entranhas emprestadaspara encarnar Salomãocom seus cânticos aquidentro e fora do jardim...Por isso hei de dizerque não houve transgressãofoi com a santa permissãodo amor vindo de Eli.

Oh, Davi, rei meu!Oh, Davi!

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JEZABEL

Fui princesa feníciafui esposa estrangeira– a rainha israelita –num casamento arranjadome obrigando guerreira.Presa em patriarcadonuma estrutura hostilmesmo tendo identidademe bati com um gentio: – Elias, o tesbita, de um lugar que a areia escondeu.

Elias pensou sua fé e a minha despensou; mandou seca, fome e sumiu, e meu povo padeceu;

escorracei os profetas seus, ele mandou matar os meus.

Fizeram de mim objetoenfeite sem voz ou açãoporém lutei por justiçacom o sagrado no meu coração.Ele – profecia glorifi cada,Eu – infi el defenestradaEle – num céu inventado jogando com seus afi nsEu – uma Eva escolhida sempre dentro dos jardins.

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LIA

Não há desesperançaMesmo não sendo tão belaMesmo não sendo mais jovemPari os fi lhos pra ela.

Jacó, enquanto a esperas,Olha tu quem cuida de tiLembra de meu desveloNa noite que te pertenci.

Sei que foste enganadoPor Labão, pai zelador,Concordei, isso é verdade,Mas o fi z por puro amor.

Não viste plena belezaNas univitelinasMas as gêmeas, suas esposas,Fomos também concubinas.

Não te queixes, meu Jacó,Nem nunca te sintas traídoPorque vivestes amadoNesse fato pré-escrito.

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ANA

Não rodopiei a cabeçae me acreditaram tomada de vinho;

Movi os lábios na sinagogae descreram da minha dimensão espiritual;

Não ofereci sacrifíciose debocharam do meu gesto;

Não ofendi as ouças do meu Senhore não entenderam o meu silêncio;

Ignorei as convenções litúrgicase os sacerdotes desdenharam de mim;

Tripudiando do meu ventrePenina paria em pencas;

Numa urgência sagradaminhas lágrimas falaram maismeu coração se ampliouaprendi a telepatia divinacriei a prece interior.

Sabe qual o melhor do silêncio?Fui ouvida pela primeira vez!

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MARIA (NAZA) JOSÉ

Conheci uma alva Evainda mal formatada fl orque não teve a liberdadede escolher o próprio amor.

Privada de seus jardinsviveu onde nunca aceitoumas havia dentro de sium Éden que me ocultou.

Seus olhos só eram orvalhosmolhando seus dias inteirosimpermitindo brotarsimples fl ores nos seus canteiros.

Confi nada em sua dorpois que fora do jardim...arbitrou seu jogo – vidaabraçando da vida o fi m.

Foi uma Eva silenteque se foi sem um balidomas as águas dos seus olhosinda gritam em meu ouvido.

(27/02/13)

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TEREZA D’ÁVILA

No quadradinho de tua celavi teu êxtase tanto pedidotambém a seta partidado peito do anjo divino.Da minha própria cela, Tereza,volto os olhos para tie digo com toda certeza: também fui alvo, Tereza,também fui alvo, Tereza!...pois que tenho a seta inda presapreenchendo meus dentros vazios.De ti– não sei bem o que querias –mas meu coração, Tereza,não pode ser só de Jesuse nem quero por alegriaas dores da Santa Cruz.Sei que me sabes, Tereza,pois que me viste mergulharem olhos de mar nascidosnos claros da luz solar.

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De um outro anjo lanceiro– qual teu poeta João –recebi o que poucos entendem:o prazer de fi car na prisão.Tu que estiveste comigo, Tereza,quando a espada do destinopendeu para a minha cabeçaa tua estendida palmadesviou-a suavementepara o centro da minha alma.O teu destino, Tereza,no teu dia foi consumado,mas o meu ainda não sei...só sei que me foi ofertadanum copo do anjo a bebidadaquela água, Tereza,que mata todas as sedese dá vida a quem quer vida.Tim-tim!

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MOVIMENTOS

Minhas tempestadesnão são cerebrais– são na alma...Chego a sentiro meu corpo estremecertodos os diasa cada disparo do céu!

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MEDO DA FELICIDADE

No sábadotocou-a na testajusto onde brilhava uma pedra.

No domingotocou-a no corpojusto onde ardia uma brasa.

Na segundamatou-a com sete tirosjusto na hora de ser feliz.

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A CORAGEM NA MÃO

O “mão-de-obra”não pensanão senteé sujoé pobreé anônimoé menos que ninguém.

É o incompatívelo incompetenteo sobressalenteo descartávelo substituível.

O “mão-de-obra”é o relógioo padrãoo insalubreo repeti(dor)o apáticoo covardeo infelizque com sua mão valentelimpa o podredo seu patrão.

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TIPOS DE TRABALHO

As mãos de Cora Coralinafaziam doces e poemas.Diferenças entre esses trabalhosnão há.

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A MORTE DA CINDERELA

Descobri três coisas: diploma não dá dinheirocasamento não é pra semprepríncipe encantado não existe.

Se houver mais descobertasque encobertas possam estarme descubro das cobertasponho a boca no mundo:

todo o resto é brincadeira!

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A RASTEIRA

Um diacomi brasas, às colheradas,servidas pela mão do cão.

Eu, silenciosa,engolia.Ele, escandaloso,ria.

Um diarebelei-me contra o algoz da minha dor:um rabo de arraiauma rasteiraberimbau e capoeira.

Bebi no graal um laxantesanto libertador.Expeli cinzase fênix, voei.

Quanto a ele, nunca mais me encontrou.

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CONTENDA

Eu remo.Em algum canto hei de chegar.Meu remo chicote que espanca o mar.

Remo e navio navegamSobre um mar que é sem fi m.Remo e navio disputam quem navega mais em mim.

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A ILHA ESCOLHIDA

Quando me bate à portaum sentimento de orfandadepenso no mundo conhecidoe no mundo imaginado.

Em meu socorrocresce o Morro do Pernambuco em luaa derramar seu pólen luzente e santifi cadosobre mim.

Um silêncio religiosome envolve:ajoelho-me, cerro os olhose os versos viram prece na boca-poeta.

Entãoum dilúvio de pólen-prata vindo dos céusfaz-se correnteza... e conduz minha arca de volta a Ilhéus.

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MATANDO SAUDADES

Um diaapeei do dragão que vive na bola de prata.Com a coragem dos ousados e loucostomei uma espada e cortei as amarrasque me atavam à lua de São Jorge dos Ilhéus.

Não disse adeus:saí enquanto o silêncio vigiava o sono do céu.

Quando a saudade grita o meu nomeno frio das madrugadasvisto as asas de Ícaroe voo a visitar o “búfalo bifronte”de Sosígenes Costa.

Volto saciada das sedesporque o Santo Espírito me põe na boca-almao bento impulso dos recomeços.

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VISÃO

Dizem que só vemos Deusatravés do amor...Pois bem,eu vi Deus! Eu vi Deus!Foi numa tarde azul de amorquando seus olhosestavam presos nos meus.

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TRIBO GRAPIÚNA

Na saudade – meu sustentono sonho – meu reencontronaquele torrão sidério – entrada do meu recanto.

Em minhas noites insonesbusco olhos com os quais vivie outros olhos que nunca mais vique hoje cantam no mundo dos bonse mesmo assim inda estão aqui.

Ilhéus, meu milagre,minha pílula pra dormir!

Lá é assimonde acampam os Santos todosque me embalam na redes do Sítio de Ruy – farol que me foca em futuros.

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Me enjanelo frente pro mare a brisa me salga de vidae Baísa me salva de mim.

Tem palmeiras esta terra – mais que a terra própria minha –onde canta o sabiá;as aves que cantam como as de Ilhéusnão cantam em nenhum lugar.

Que saudade, minha tribo,saudade do seu cantar!...

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ANJO NO ESPELHO

Escapuliu do seio cósmicoe de repente se instalouno espelho que era mudoe apenas espelho.

Não houve turbulênciana sua passagem para a minha dimensão.Eu sei que não houvepois que silenciosoapenas apareceu com seu perfi l de prata...e nenhum vento anunciou sua chegada, sua presença.

Houve turbulência, sim,no meu âmago desabridoe no meu coração que era incertoe apenas coração.

Incluiu-me no banquete de sua luze despiu-me da opacidadeque me fazia sombra.

Diante de sua luminescênciaapodera-se de mim a clareza das trilhas,que me apontavam um dia e eu por vezes indocilmente segui.

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Eu que era bruta forma e apenas eu.Olho você no meu espelho transmudado em janela que mostra mundos para frente e para trás, perto e longe... e me faço elastizada em consciência.

Dentro da vastidão da minha ignorânciaintuo que tenho estado no ventre do Universoque me criou e me faz parte de todos os espaços:

Como criança,estou grávida de muitos futuros.

Como poeta,me atrevo ao desrigor da razãoe não busco o enigma inominanteque exubera nesse espelho frente a mim...apenas me alimento dessa fonte de inspiração.

Como Alma,recebo o seu refl exo que me resgatará para a imortalidadee me lançará dentro da luzde onde provêm todas as luzes.

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“AMA! E FAZE TUDO O QUE QUISERES”

Santo Agostinho

Por mal dos meus pecadostalvez seja castigadamas por boa a minha sortepor amor fui redimidapor amar fui perdoada...

E caminhando com esse amormais alegre do que tristedescobri na caminhadaque em caminhos de amoro pecado não existe!

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APRENDER

É tão difícil lidar com gente!Bem menosé a lida solitáriano acalanto das palavras – lentes da poesia.

Ensina-me, ó vida,a árida trilha da montanhaonde fi ca a letra bruta e vaziapara o exercício do polimentoe o preenchimento do verso diamante.

Gentes tão desiguaise tão ímpares como palavras soltas.

Ensina-me, ó vida,a tara precisa na balançada gente que me ampliada palavra que me completa.

Ensina-me a colheitada palavra adivinhada...

Matura-me no tratocom gentes e palavrasque fulgem nas combinações misteriosasancorando tudo fi rmementeno espaço consteladoda estrofe.

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APRENDIZADO EM QUATRO SEGUNDOS

(Ruy Póvoas, amigo)

No primeiro segundoentrou como uma imprevista tempestade:foi o mais difícil.

No segundo segundo,extensão do primeiro,assumiu a dor das dores do mundo.

No segundo terceiro,vizinho do quarto derradeiro,confi rmou o provisório da vida,sentença, até então, inaceitável.

No quarto, pontual como a morte,mero transporte de um passageiro,ensinou sobre toda a inutilidade– num equívoco de sacralidade –de se dar por inteiropara quem o recebesomente pela metade.

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AS PARTES NA MATEMÁTICA DAS EMOÇÕES

(Maria Angélica, amiga)

Além das metadesterços e quartospedaços pequenoscom os quais lidamos nos dias.

Metades terços quartose os mais e os menosdos nossos e dos outros.

Pedaços matemáticosdas emoções todasque na “média ponderada”se impõe à razão.

No resultado fi nala palavra Soluçãoveste a roupa da Esperançae a vida vai se depurando...inteiramentegovernadamentematematicamente.

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FINALIDADE

Se foi missão,a fi z cumprida.

Se escravidão,estou alforriada.

Se karma,liberada.

Se foi por amor à vida,consumato est.

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NO HANGAR

Um chamadouma pressauma ave correnteum voo rasanteuma asa abatidano chão.

Uma dor de penas insistentespendidas à direita do corposem poder o abraço de plumasgeme...

No hangarum pássaro desastradoaguarda liberação para decolarum novo plano de voo.Ao longeum Cordeiro observa...Põe a ave no lomboe numa intervenção a mágica a âncora a cura.E a ave parte para voar estrelas douradasatravés de janelas que se insinuame sussurram: vem!...

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Neuzamaria Kerner

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AVÓS

Avó S(x)ióVovó BaTia Boa(aonde andará?)Vovó Isa(quando será?)Vovó Eulina(tão ponderada!)Vó Paulina(tão dourada!)Vó Lucila(luz risonha, já se foi)Vó LiliVó NecyVó Acy(ainda estão aqui)Bisa (Naza) Maria(quem diria!...)Vó Ercília(tão risonha!)

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Vó Inês(preta-boa grande-bunda alvos-dentes)Vó LáVó LucinhaVó GeninhaVó CarminhaVó Dalvinha...Vó Vanda(como andacomo pintacomo voa!...)Vó Velise(alto astralnunca em crise)Tantas outrasTodas essasVós de DeusElas todasElas tantasTodas eus!!!

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EPIFANIA

(para Henrique Kerner Vieira Mendonça)

De repente o céu abriu-se em relâmpagos!Relâmpagos, para os desavisados, eram luzes de poesia que alumiavam o caminho de Henrique.Ele descia do céu para os meus abraços,para meu coração-manjedoura.Descia para provar-me a imortalidade da vida: fazer-me ver nele a continuidade de mim, fazer-me redescobrir Gaspar,

Melquior e Baltazarcom seu incensos, mirras e ourosno semiaberto do seu olharno instante da revelaçãode um amor novo.

Ensina-me, meu neto, este amor diferente que trouxeste; a paciência tua à espera do leitemel que jorra do seio de tua mãe; a crença de que o Eterno voltou a sorrir para a terra através do aconchego do teu pai;

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a reacender a estrela da esperançaque aclara nossas sendas.Ensina-me mais: a desinvenção das bombas das injustiças das diferenças dos preconceitos das fomes todas. A reinvenção da pureza da partilha da paz do pão.

Juntos seremos parceiros,aprendizes de trocas.Te farei conhecer personagensque habitam meus mundosensinando-te a entrarnas histórias que aprendidesde que era como tu.Beberemos juntos o orvalhoque as fl ores guardam das madrugadaspara os que creem nesse néctar de amorque amplia e transforma tudona incomensurável Luz da Epifania.

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AVOZIDADE

De repentea azulidade do céuabriu-se em mim.

De repentecobriu-me a continuidadedo Universo.

Mesmo quando eu me forcontinuarei vendo o mundopelos seus olhinhos, espelhos meus.

Mas enquanto for havidaa minha permanêncianesse espaço-mundo-nossobeberei as gotas dos risos seus...me embriagarei na crescênciade sua sabedoria.Me verei pele-e-gota em vocêe sentirei o que se dizdo que é felicidade.

De repentedesde jáme percebo abobalhadaapaixonadamentepressentindo seu caminhome expandindo no prazer da avozidade.

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(DES)EDUCANDO OU FAZENDO FELIZ?

– Mãe, eu te suplico, eu te imploro,não deixa ele fazer o que quer.

Como não deixar?Como resistir àqueles olhos jaboticabadosrodeados de angelicais matas ciliares?...

O controle da TV: bate muda busca...Nada viu de bom (que sabido!)

Toma o telefone, te ensino a me ligar... aperta tecla fi nge ouvir joga pra lá!

Não, isso nãoooooo! Fizemos Bem em Resistir, não! Vira página sacode babou a foto do poeta.Como resistir a olhinhos pidões?!– Deixa!!!...– Tá bem, mas não rasga.

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– Meu Deus, Contos de Amor Rasgado, não! (oh, rasgou a folha, comeu justo A Moça Tecelã...)

Ele vai ter uma indigestão.A mãe vai me matar.Bem, pelo menos o intestino aprende a ler.

Toma aqui: o gatinho a tartaruga um brinquedinho (cansou).Peraí, A Dança das Descobertas,do Elias José?Não, acabei de receber!Veja aqui o Marcelo Xavier olha as massinhas as fi gurinhas as historinhas...

Veja mais, olhe os seus livrinhosEntre neles... Alice entroue conversou até com o gato. Olhe, o gato sorriu o gato falou...Oh, a Emília tão falante colorida irreverente

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relevante curiosa inventante...(tome tapa tome beijo tome babatome dente – a coitada nem reagiu).

A mão rápida parte em direçãoao copo de vidro;– Não deixa ele pegaaaarrrr– Coitadinho, deixa ele sentir o desconhecido

(tem gosto diferente).

Vem cá, meu nenemVocê quer o meu carinho?Vem, vem pro colinho,vamos andar de rede...A mãozinha plumosatoca meu rostonossos olhos se olhamnossas almas se fazem ouvira - rede - vai - a - rede - vem...canta, vó,canta pra eu dormir.

Henrique é bonitinho Bonitinho e meu encanto Pra ele poder dormir Eu o nino com acalanto.

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BARQUEIRO DO RIO PARDO

Quando a doçura da infância vivia em mimaprendi uma canção: Barqueiros do Volga.

Ficava imaginando...como seriam esses barqueirospara onde remariamcomo seria o Volgaonde fi caria esse rioque nunca eu conseguialocalizar no mapa nas aulas de geografi a?

Hoje, tão distante a infância,ao andar pela vidaencontro Seu Galego*, o barqueirodo rio Pardo, que me leva noite a dentropara a segurança de outras margens.Me atravessa a lembrança daquele Volga,rio que nunca conheci.

* Apelido do Sr. Otoniel, presidente da AUTA - Associação Unida dos Trabalhadores na Agricultura. Ex-sem terra, fazedor da História do Brasil, na luta pela Reforma Agrária. Fazenda Nancy - Mascote/BA.

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Os braços valentes do barqueiro comandam,o remo trabalhador obedece.As estrelas desenham partituras no céue indicam o certo navegar.Me entrego à travessia quase ausente de mim mesma...

Devo estar no Volga:o vento me abraçae solfeja serenatamente só para mima antiga melodia:dó... lá... ré... lá...

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BRINCADEIRA ENTRE POETAS

Pãomandei para vós pelas asas das aves, que irão semear o que ajuntareis de mimno vosso celeiro. (@@@)

Ânsias e alegriasesperam vossos mantimentos,– meus alimentos, tuas poesias.

(nmk)

Aguardai-me, pois que contarei históriasnos vossos ouvidos sherazades. (@@@)

Vinde, ó poeta,trazei na vossa pessoao canto da nossa história.Mas vinde logoantes que expire o meu prazo de aguardos,antes que a morte me guardeenquanto a vida me agradanos agrados da vossa vinda...

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Avieis que se esvai nosso tempono campo dos lírios vestidosde mais belezaque nosso pai Salomão.

(nmk)

Ainda um poucoe estareis comigo no paraísojá dizia outro de paixão crucifi cado.

(@@@)

Pai,aproximai de mim este cálice de amorpara alívio das minhas urgênciase estarei no paraísobebendo o leitemel do meu poeta.

(nmk)

Assim seja,e será... (@@@)

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Tomarei a harpa de Davitocarei e dançarei para vósrolando, descuidada, na brancura dos líriosmas pensando no depois:o que será de nós?

(nmk)

Não vos preocupeisamada de minh’alma!Eis que a trombeta anunciao fi m das esperas.Prepareis os tapetesna tenda nossa de cada diaque já estou na estrada.

(@@@)

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CANTO DE PARTIDA

(A Euclides Neto, amigo do coração)

Havia um rumor na praça do sonhode que o canto da rasga-mortalhase avizinhava.

Veio lentamente até que instalou-sesob a lua que ora mínguaenquanto o marcado lutava (na quase quaresma)com a espada da penae a ironia na ponta-da-língua.De luto estão os cacaueiros,órfãos, Os Magros,buscantes de terra para o assento.As cabras de Ipiaú berram em lamento;pranteando, as palmas furadas pelos próprios espinhosmolham a terra do seco-sertão.

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As casas da Fazenda do Povo fecham suas portase abrem os olhos coalhados de prantono canto da despedida.A rapadura hoje está amarga,o cavalo bravo de repente amansou,o vento silenciou,a terra estremeceu , abriu-see cama eterna virou para acolher o sonodo Menino Traquino, sonhador...

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CINCO CANTOS À PRIMEIRA LUA

Quando estiver o mundo em desandoe imperar a dor do só na multidãolevanta os olhos cativos do chãoe olha a Primeira-Lua-de-Maio.

E quando se esvair do dia a luze nos disser o dia, “eu saio”,olha o céu e canta contenteà Primeira-Lua-de-Maio.

A noite ao mostrar da lua o lumee soltar o suave perfume,o último crescente de abril é o ensaiopara a Primeira-Lua-de-Maio.

Qual uma fl or no botão apresadaa noite se vai libertando em desmaiopara acolher o brilho crescenteda Primeira-Lua-de-Maio.

Eis que afi nal se instala inteirabola de brilho, divino raio:faz-se um poema, divina oferendaà Primeira-Lua-de-Maio.

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CARTA-ORAÇÃO

Pai,desde o inícioeu O procuro.

Andei por tantas trilhas,algumas por mim inventadas– mas andei!

Você viu as brasas que pisei?Você viu as fl ores que planteibuscando seu rosto?Você lá,no seu posto de vigiame via e eu nem sabia.

A cortina de areia do desertoem que eu viviame cegava e O escondia.

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Na escuridão tocava fogoem qualquer matopara ver se a sarça em mim ardiae paria algum clarão.

Depois de tantos tropeçoscansada, pele queimadaalma feridaguerreira abatidafui no sono me esconder...

Quando me abriram os olhosvi que o fogo que lá fora se expandiaera ilusório, estridência de um clarim.

Em verdadedescobri que o que ardiaera Você, a sarça, dentro de mim.

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CHANCE

Dou chancesao mundo inteiroe parto.

Dou amor ao próximo e me dou junto.

Vou me parindome fi candoe me indo de mim.

E euque me sou o mais próximo dos próximosde mim sempre estou a partir.

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COISAS DA SOLIDÃO

I

As crias passarinharam:eu ninhonada-e-fi co.

II

Nascicrescicaseicumpri sinaparicrieisolideinão me vieu menina.

III

A solidão derramouseu copo de água ardentena alma inquietaque vive em mim...quebrou-se o copoquedou-se o corpoardeu-me o fi m!...

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IV

Pássaro-fl echame voou:para tráspenas soltasque aparoescorregam entrededosamarelos.

V

Desgarrado do rebanhoum pensamentoteimosofoi te ver.bateu com a cara na portavoltou rabo entrepernasdormiu no meu regaçosonhou vida boêmiae embriagado de doro rebelde virouPoema.

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NO SÍTIO( Eliana Salvador, amiga)

I

A água que cantana pedra que escalao caminho cristalinopara o palco na mata.

O verde que abrangea folha que falade folha em folhao canto sem falha.

O sopro do ventono cheiro se espalhavirando semente de vidaque cria vidaa cada segundo.

Eu, nada, parte de tudo me duplico para sentiro sítio irmanado – cada vez mais amplo –dentro de mimplenifi cada.

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II

Enfi leiradosnos fi ospousam passarinhosque eletrizamnotas musicaisnas partiturasda mata.

III

Uma concertinaconcerta na matae se expande em verdeo som.Dançam sagradamenteas fl oresvivem segredamenteos seresreverenciando o cosmosque pela concertinao homemse concentrase consertaenfi m.

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IV(Lorenzo, Luigi e Juninho)

No lagosapos pulam peixesrebolam minhocasna boca dos anzóis.As crianças brincam bolasmolham águasbatem pés.Um beija-fl or, beija mel,com suas asas ligeiras aplaudemde longeas crianças que riemfelicidade.

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V

Na feroz cidadeo homem é ferao homem é feioo homem é frioo homem é brinquedo fatalo homem já-era!

No mato a cruznão mata a paz– soleira verdeportal de luz...

E o que era bicho no concretono abstrato do matofi nalmente se humaniza.

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COMO TANTOS...

Como tantosluto para aceitar a carneque recobre o meu espírito.

Como tantoscanto mantras para a Luaque de longe, silente, me escuta.

Como tantosvivo entre eus e eu...e como dói vivernum mundo que não considero meu!...

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CONSCIÊNCIA

Por que somente vimtomar consciência de mimdepois que a corcovame pesa tanto?

Por que tão tarde?Será tão tarde?

Tudo é tão forte.A consciência é tão grande...temo que seu crescimento,incontrolável,vire bicho e me engula.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIABO

No Gênese pelo avessosucedeu que a malévola criaçãocriou o diabo os infernos:a terra de Evaa terra de Adão.

Criou também soberbaluxuriamentea preguiçavarezaa iragulosaa invejinvejosae viu que tudo isso era bom.

O Senhor do Mal se deu bemporque bem-aceitono conceito da pressa humana.

– E o Senhor do Bem?– Ainda está empacotando a encomenda dos pedintes de vida.

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CONVERSA COM O “DÉDALO” DE MARVILLA

(Miguel)

Tu mesmo criaste o labirinto perdedeiroonde preso em silêncios fi caste sóquando tudo parecia perdido.

Não queiras morrer, Dédalo,sem lembrares a palavra esquecida(peça faltante para asas voadoras).

Queres fugir para o futuromesmo sabendo que teu instanteé agora e aqui.

Colhe o vínculo, sem medo,que a vida te oferece no hojee te manterás nelaem lembramentos de amorque te farão presente e eterno...

Assimnão te sentirás atadoem teias frágeispor teres o fi o condutor(dado a ti para voares solar).Não te dês por vencidoporque em teu destino és tu o vencedor.

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Se queres render-tefaze somente ao Amorlivradeiro dos teus precipícios interioresdos teus inventos que sempre trouxeramdissabores, perseguições,fantasmas mal-criados...

Dédalosou o Fiocaminho certeiroasa que não derrete(nem se acovarda diante do sol).

Vem, confi a, desvicia e fi capor fi mporque sem ti, peregrino,fi carei também sem mim.

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CONVIVÊNCIA PACÍFICA

Somos o presentesomos o passado.

Anexos,fazemos história.

Estamos no presentemas como escrever poemas– pedaços de nós –se fôssemos “despassados”?

Como viver o presentesem ter estado lá atrás?

Passado, meu anjo,não se joga no lixo: se recicla deslixa desamargura despesa desdanifi cae fi ca com ele-sem-nele, leve,sem chorar pitangaspara que se possaem pazconviver com ele.

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CRENDO, AINDA!Justiçanobrasil

Desembarga a dor,ó gente!Vá em frente que amanhecee a trama que a vida tececontinua...

Desembaraça a barafunda do noveloonde o justo fi cou presomas crê na impermanênciados nós.

Crê, ainda...

Vá em frente,ó gente,pois que o hálito ardente da justiçaainda bafeja esperançana boca aberta dos sedentosna alma serena dos crentes.

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CORAÇÃO MOLE

Os pés pisam forte ao caminhar;as mãos, segurando o tripalium,fabricam a fortalezanecessária para sobreviver;a boca profere palavrasque têm força de rachar cabeças;o umbigo, por causa de um simples cordão, absorve a violência das tempestades;os olhos, valentemente,suportam o peso da luz;antropofagicamente engole-se a amplitude generosa das coisassem o devido saciar.

Tudo é forte (ou quase tudo).Nos portais do tempo imperaa hegemonia do efêmerocomo um meteoro queimante que risca o céue se esbagaça onde não se pode ver.

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Somente a dor demoraaté que seja cumpridasua tarefa de doer.

O corpo, na aparência, tudo suportaporque a mente se mantém na vigília: tece fora do corpo a alma-suportena imensidãopor saber que em coisas de dor e de amoronde se tem menos forçaé bem no meio do coração.

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DANDO SEQUÊNCIA AO QUE ME BASTA

Não foi teu grito que me acordou,foi teu sussurroquando cruzaste a seda que se fazia portaem minha tendadurante o meu sono escondedor.

Nada fi zeste.Eu é que inventei sentidospara teus gestos.

Toquei fl autacomo os que celebram a vinda do majestoso.Dancei como luzpara os que vêm para fi car.

Sabendo da solidão de viventes como eu,das quenturas dos pés paradossobre areias desérticas e fi nas,olhaste-me e aceitaste– não sei o porquê, talvez nem tu –a música que te ofereci,o oásis dos necessitados.

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Logo soubeste que te havia escolhidopara transformar minhas areias em fl ores,preencher minhas fontes com água e amor.

Teus olhos estavam longe.Percebi que buscavam estrelas em galáxias que só os tuareguessabem existir.Rejeitei o que vi dos teus desejos,mas insisti em crer nos presentesque caem do céuem forma de equívocos.

Com o cair de uma noitecaiu junto a tua partida. Vi.Então assumi a pedra de Sísifoe até hoje a rolo ladeira acimanum inferno de monte que construíe que não está em nenhum mundomuito menos em ti.

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É O QUE ME BASTA...

Dá-me um tempo.Volta pro teu desertoe deixa-me fi carcom meu esquecimento.

Some!Destatua teus sonsdos meus ouvidos;deixa-me sem teus gritosa incomodar os meus silêncios.

Leva,leva tudo o que trouxeste!Deixa-me nua de lembrançasde um passado que é só meu.Deixa apenas o presente do esquecimento.

É o que me basta!

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DAS MÃES...(Carol, sempre Sweet)

São todos os diasporque o canto feminino nunca cessaporque a semente canta enquanto germinana bolsa d’água que acolhe amorosamenteo fruto da perenização da vida..Para ouvir esse cantodemanda tempo e silêncio...mas o mundo está tão barulhentoque poucos conseguem ouvir.

A germinação impõe seu próprio cantoe aos poucostodas as bocas viram ouvidos.Silenciam, por fi m,para ouvir o concerto divinoque nasce nas entranhas maternase se espalha no vazio do mundo...tudo fi ca pleno com o som que vem do amorde cada fi lhode cada mundode cada mãe.

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AS FLORES DO 31

No meu aniversáriodou fl ores às braçadas.

Solto rosas em mãos desconhecidas.

Pode ser bondade,gratidão à vida...talvez me divirta com as expressões interrogativasdos recebentes ou recusantes.

Que será que pensam?

Rio do susto:– em vez da arma costumeira, a fl or!Rio do espanto:– estão distribuindo amor?

Bestamente vou passandodistribuindo certezas e sorrisos pontuais.

Defendo-me do mundodivido velhice, esta entidade impegável,apenas sentida no gosto de quem se bebeno gesto de quem se tocano tempo de quem se sabe.

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DORMINDO A VIDA

Durmo.

Com voracidade o sono me engole.

Durmo.

A vigília, cansada, se entrega ao não existir ao não pensar.

Durmo.

Dormente escondida nos braços de Morfeupara manter-me viva dentro da vida.

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CREIO EM DEUS

Creio em Deus, essa luz divinaque me alumia as sendas...Deus que está em tudo e por issonunca me deixa ver o mal;

Deus que me faz plantar e ver as fl ores abrindo para a devida louvaçãoE no pensamento de Deus louvar a tudoé que é natural;

Deus que me dá sonhos bonitose me abraça enquanto durmoDeus que me faz abraçardesde a hora que acordoQue me permite sorrir quando me dá o ar, alimento que respiro;

Deus que me deixa brincardentro da luz que Ele é;

Deus que me disse que liberdadeé estar n’Ele, com Ele, por Ele;

Deus que canta pra mimpela voz dos passarinhos;Deus que se azula em céusmesmo quando cinzentos;Que me faz una com todos e com tudo;

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Que não me pede sacrifícios,mas apenas me diz: faz comigo!

Que me deixa debochar até d’Ele;

Que me ensina a cantar e tocarpara todos os fi lhos SeusNo silêncio do Seu abrigoque me deu por morada;

Que ainda me deixa escrever cartaspara Papai Noel;

Que ri do meu medo de bichos papõese me diz: fecha os olhos, bicho não é nadasomente é bicho nas ilusões;

Que me dá alfazema e me diz:vai e reparte de graçaO que de graça te dou;

Que me tirou posses e poderespara que fosse mais leve;Esse Deus que me diz: olha pelo outroque olho por tie juntos olhamos por todos;

Esse Deus que me deixa dançarnos abraços dos meus amores;

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Esse Deus que me deixa solta,mas não deixa de me segurar;

Esse Deus que joga comigoe se deixa manipularE, complacente, conserta minhas trapaças;

Esse Deus que me sabe inteiramas que me remenda a aparência;

Que me sabe louca, louca, louca,mas que põe o sabor de vidana minha boca;

Que me diz todos os dias: esquece o juízo, esquece a razãoE quando resvalo, ele lembra:Esqueceste teu coração?

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ONDE?

Não é aqui o meu lar.Rindo, erro pela terrapara aplacar a saudadede não-sei-onde.

Perscruto o céuvisito estrelasfabrico descobertascircunscrevo espirais em torno de mim.

Existo, isso sei,mas sujeito desendereçadoque se toca e se dói.

Onde será o meu lugar?– Talvez num geodo lilás acristaladoque nunca será encontradoem planeta conhecido nenhum.

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POETAR

O poeta não fala: poeta na palavra e a palavra se poeta por ele...

Mas enquanto se poemizao poema escorrelíquido vivopelo papel incauto.

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DORMIR E ACORDAR

Dorminoite passadaum sono pesado.

Num sonho leveme vi.

Casa na mata e som de cascata: sem contas a pagar sem leis a cumprir sem confl itos de encontros sem laços falsos sem balas na agulha sem nada nem nada.

Nas entrefolhasanjos me enleandonas entrelinhas da grande porta...

Acordeime solteime subime senti:estava morta!

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DUAS EPÍGRAFES PARA UM SÓ POEMA

“Elementar, meu caro Watson.Quem fez o grampo não é Tucano.

O PSDB não escuta ninguém.”

(Charge da Veja – 16/11/98)

“Falar no meio do tiroteiosem perder o fi o da meada

exige perícia.”

(Aff onso R. de Sant’Anna - O Globo – 17/11/98)

As bocas da miséria alimentam-seda violência e expelem balasnas privadas da desorganização social.

As bocas famintas afi am seus dentesque estraçalham a esperança dos pacífi cose em seguida vomitam sanguena cara dos assombrados.

Enquanto isso...

há um certo silêncio nos ouvidos do paláciohá cataratas inoperáveis nos olhos do paláciohá grossas correntes impedindo a alvorada libertar-se da noite.

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Há uma paz aparenteno lago que circunda o poder:uma relação esquisita entre os afogadosque se debatem nas águas,aguados por dentro,e o nadador que desliza e circula,só circula...

Uma boca há, porém, com suas típicas secreções de vaidadeque baba sobre as mãos dos que constroemque baba sobre os olhos dos que desejama inclusividadeque baba sobre o clamor dos miseráveisque baba na boca dos famintos!

Que boca é essa expelidora de cricrilantes diabéticos que têm por cetro, tridentes fabricados nos mi(ni)stérios das intenções?

Cri-cri... Cri-cri... Cri-cri...É a voz insistente e inútil do griloincapaz de despertar a consciênciae arrombar, por fi m, as ouçasde quem não sabe ouvir.

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“EPPUR SI MUOVE!”

De nada adianta chorar pelos julgamentos.De nada adianta a minha percepção da paz...

A vida não dá trégua para que se possa refutarporque nos ouvidos dos julgantesjá há o vereditopara o réu penalizadosó com direito a calar.

Todos moram no palácioeu também, embora como copeiro dos reis.Sirvo aos imorais,aos vaidosos, aos apressados,aos lerdos,aos juízes,aos irracionais,aos violentos,aos justos...

Assim me mandaram fazere faço;e falo com surdos,invejo os retrucantes,cato queixas alheias, além das minhas,

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levo-as aos tribunais,mas não há saída.

Enquanto penso como sumir,penso no que pensam de mime sinto que fui abortada por algoque não consigo compreender.Concluo que não sou legítima,apenas uma cópiadaqueles a quem sirvo, mas nem por isso a terra deixa de se mover,a história de acontecer.

Enquanto escrevo, penso:poderia haver graça na repartição da paz,mas sinto o fogo consumindo minha mãoe terei que deixar que invada o papelporque não há esperança de paz.Só fogo, não mais!

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ESPADA DA PAZ

Vós, cavaleiro,que atravessastes reinospara ouvir minha história,sede benevolente com esta vossa serva.Lembrai dos cascos do vosso cavaloque sem querer feriram a duna,pele-mãe de todos os desertos:não ouvistes, por acaso, gemidosquando inocente sobre ela cavalgastes?Assim geme este papela cada risco do meu lápis,desatento no ferir.Mas quando as feridas forem curadaslereis nas cicatrizestraços do meu existir.Quando a cor do meu olharestiver a conversarcom a cor dos olhos vossosouvireis as fantasias,histórias inventadas,inverdades bem contadas,verdades que eu vivia;

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sentireis no meu sentiro espanto da lonjuraque a brincadeira se fazia.Vós que sois o guerreiro da justezaao saberdes da inteireza do meu serouvireis o meu dizersegurando o silêncio do instante.Então manso e desprovido de orgulhosvê-lo-ei depositar vossa espadasobre a paz da minha fala.

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EM 2000 E TANTO...

Não leiam meus versos,são radioativos:

eu me lie saí amargamente contaminada.

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ESTRANHEZAS

Os fi lhos dizemque sou louca, preciso de gardenal dobradomas que por uma estranha razãoeles são equilibrados.

Os irmãos dizemque sou retardadae que por uma estranha razãonão saí da infância.

A mãe diz quesou easygoing persone que por uma estranha razãonão brigo com ninguém.

O único genro diz quepor uma estranha e inexplicável razão eu sou a melhor sogra que ele tem(e veja que ele é adepto da monogamia).

O pai dizia queeu seria poetaporque por uma estranha razão nasci alada e falava com a lua.O médico dizque eu preciso de “haldol”

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que por uma estranha razãotenho a carne trêmulao coração frágile um cérebro que gira ao contrário.

Os amigos dizemque sou leve e divertidae que por uma estranha razãonão peso para eles o quanto realmente peso.

O companheiro dizque por uma estranha razão(talvez aquela que nem coração conhece)ele mora longe e continua casado comigo.

O professor de música dizque por uma estranha razãonão confi o nas partiturasmas que meus dedos são extensõesdos meus ouvidos.

Por uma estranha razão não ouço os meus desafetostalvez por serem mudosou ser eu surdaou por não tê-losou não sabê-los.

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O Eterno diz todos os diasque apesar dos meus pecadosele me “despeca” pelo meu jeitode pedir perdão.

Eu digo que sou felizporque por uma estranha razãosei que os passarinhos são anjos disfarçadosque os deuses enviampara me manterem estranhamentefelizamante da vida.

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ESCULTOR NA IMAGINAÇÃO

Moldo com argila um rosto, um corpo,uma forma perfeita. Dou vida com o sopro do meu pensamento. Das almas perfeitas arranco pedaços. Fabrico nova alma mais que perfeita e a insiro naquele corpo através do umbigo, cálice onde beberei o vinho fazedor de onipotências. Ritualisticamente em redoma ponho a criatura que penso acabada e a contemplo conformada com o toque impermitido, pois que o construído, de repente, pode ser o insonhado.

Forneci matéria-prima a um artesão solitário: palavras,constâncias, disponibilidades. Ele me esculpia. Eu tecia versos. Ele me sonhava. Eu me deixava nascer das suas carências. Ele me guardava nos seus desejos. Eu lhe transferia minhas auroras. Nessa relação entre escultor e esculpido nossos olhos puderam se ver. Agora da redoma onde estou eu o busco, ele me adia certamente por temer que a criatura sonhada não seja o que deveria ser.

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EULINA

Hoje é 2.000 e ela não está aquipara ver a explosão da passagem.A coluna dórica que sustentavaheroicamente suas doresdeveria ter resistidoao terremoto da anginaque lhe apossava o peito.

Do meu jeito deixo que lágrimasconfundam-se com a fi na chuvada meia noite etérea.

Explodem champanhe!Gritam “feliz ano novo!”

... e mais lágrimas descem encachoeiradascomo a cascata pirotécnicado Twin Towerpreenchendo o céu de belezaremexendo minhas lembranças.Meus olhos entre deslumbrados e tristesveem você moldada nas centelhasde cada gota de fogos a escorrer do céu.Vejo você como pólen de presençae ressurreiçãocomo asas de implumes pássaros amanhecidos.

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O mar sensório e imponente sussurra em meus ouvidos:Eulina está aqui!...

Eulina, quanta saudade me traz a vozdesse mar noturno!...Essa voz continua soprando seu nome ao ventofundindo-se com o piar dos pássaros semiadormecidos fundindo-se mansamente com a sonolência da quase madrugadaque nina crianças insonescom velhas canções de dormir.

Viro-me de repente e vejo seus alvos cabelos– fl ocos de algodão.Não estou sonhando dentro da multidãocom aquela que partiu silentementeentre nuvens num jardim.Olho para o alto e vejo-a planar serenamente entre as estrelasno céu sem fi msem mimsem-fi m...

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PRESENÇA

O passado é a históriaque insiste em ser presente– a dádiva do agora.

O passado é a insistênciaresidente nas lembranças– substância da aurora que um coração mesmo lotadoresiste em jogar fora.

O passado é a vida que permanececom rimas ricas e pobresporque é tudo isso que temospara abrir futuros.

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ERA ASSIM AQUELE PSIQUIATRA

Uma falaUma escutaUm bocejoUma prescrição.

Um curto diálogoUm dedo de explicaçãoUm deixa-pra-lá conformadoUm tanto de frustração.

Mais uma fala esquecidaMais uma escuta enfadadaMais uma linha enfi adaNuma agulha enferrujada.

A alma sai destecidaContinua esfrangalhadaSem saber por que razão.Mais uma despedida:Até a próxima sessão.

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FUGACIDADE

Uma noite não é nada:é fugaz como um olhar-de-fl erte. Um dia é poucopara o gozo explosivo e o esperado desabrochar. Um ano é jovem para entendero que nos consome.

O tempo desconhece – nem sente – a força do incêndio que nos come cariciosa e fogosamente.

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IMAGENS NUM POLÍGONO

Polígonos,infi nitos pontos de contato.

Cada pontopossibilita um novo experimento.

O zelo é obrigatóriono toque em cada ponta.

Em cada faceum leque de possibilidades.

Em cada ângulonovos olhos para ver o inusitado.

Em cada espaçoimagens que se contemplame projetam no outro sua identidade.

Em cada movimentoa percepção de que voarnão é só para os pássaros.

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INCOINCIDÊNCIAS DO MODO DE AMAR

A única coisaque limita nosso desejoé o desejo do outro:disso não se pode fugir.

É preciso respeitar.

Desejos incoincidentessão cachoeiras transvazandono sem-limite do chorar:desejar ter quem se ama,e aceitar no outroa sua forma transversa de se deixar amar.

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INTERMITÊNCIA

Você é um rio intermitente:vezes seca e somevezes transborda em mimtão caudalosamenteque encharca minhas margensamolece minha carnearrasta meus pedaços,barrancos marginais...Depoisparte tão inocentementee fi co eu partidatempos a fi o tentando remendaro que em mim sobrou transvertido.

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JOGO

Jogo com palavrase elas comigono eterno dos espaços.

Opção:jogar xadrezno tabuleiro dos textos.

Quando sonolentas e frágeiseu nelas – xeque-mate!

Quando tomam vestes guerreirasme aprisionamme checam e matam!

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JUNHO AZUL-NEON

Eis que junho se aproxima:eis que já entrando no campo borealse aproxima, lento,passo a passo com os segundos, como se fossem eternos.Junho já está aqui:entrou pela porta da madrugada,plantou-se diante de mimentoando os cânticos das lembranças.

Junho.Gêmeo.Duplo no zodíaco.Eis que junho se distancia:tão quânticotão eutão fácil de explicartão difícil de entendertão difícil de aceitarvendo-oindo-seindo-seindo-seindo-se...

Ainda ouço os fogos,os clarões do arraialbem lá longe.

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É noite:desmaia a minha vistaamoleçoquase adormeçopara sonhar que o junho que se vaiainda é o mesmo que um dia veio.

Do canto de um olho semiabertovejo-o aproximar-sevejo-o distanciar-se...emerge e submergeno lacrimoso mar dos meus olhoso meu junho-morada azul-neon,o meu junho-morada azul-neonque está dentro de mimmas ao mesmo tempovai-se vai-se vai-seno tempo...

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LEMBRANÇAS

Nenhum tempotem força bastantepara ocupar o espaço de um Amor.

Nenhuma estrada paraquando o adiante parece quebradoporque há sempre um atalhopara poder continuar.

Por todo o tempo, portanto,qualquer estrada em qualquer canto,mesmo um Amor fora do tempoque o destino amarra em trançastem seu espaço garantidono para-sempre das lembranças.

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LEVEZA

Leve égota de orvalhoa banhar as pálpebras semiabertasda manhã

É a luasustentando a ilusão dos amantesentre almofadas de nuvensno claro das noites

É Pégasoque espalha ao bater de asassonhos virgens por todos os céus

É pluma caçulaque se desprende de suspiros de passarinhoe se instala silenciosamenteno coração do poema

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LUGAR (IN)SEGURO

De vez em quandome embregueçome embriagome esqueçode ser quem soude quem me fez.

Serei eu um projeto breve de nuveminda devês?

De vez em quandome embeveçome embraveçodesobedeçoe me instalo na antessalade um lugar que não é meu.

Será meu um deslembrado pradoorbitante no Universo?

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De vez em quando me revelome rebelome relevo no relembrode que estou em terra e passoindependente do que souesperante do que faço.

De vez em sempresou de vez em quando– isso é certo – e aprumo o peitoarrumo o passona vontade de no cosmoeu, noiva nuvem, já madura,ser escolhida pelo espaço.

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RETORNO

Saímeprocurandopelomundo...

quandome acheimevifi lhopródigotralhanosombrostornando à casa dos meus pais.

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MANJAR DOS DEUSES

É cada luão tão lindo!

Meus pés já não se fi xam ao chão.Levito incontrolavelmentetentando alcançar a noitee tocar naquela bolahipnóticamagnéticaatraente.

Talvez eu vire uma girafapor causa dessas luas.Lembram-se de Lamarckcom a lei do uso e desusoe a adaptação das espécies?Daqui a pouco estarei pescoçudade tanto elevar a minha boca ao céuà cata dessa lua, alimento etéreo.

Talvez no meu afã de sorvê-lapise em falso numa estrelaescorreguee em vez de comê-laseja comida por ela.

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DISTÂNCIAS...

Estou numa terra tão distante...tão distante que o tanto e o sempresão irmãos...tão distanteque minhas mãos nem se dãoque meus pés nem tocam o chão... Aqui tem sido tudo tantoaqui tem sido tanto sempreque minha vontade fi cou fi cânciaque minha vida varreu vontadeque meu momento fi cou distância.

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MODISMOS

Moda vai, moda vem.

Um dia pariram Deus– metáfora de escudo.

Um dia lhe construíram casa– metáfora de pedra.

Um dia detonaram tudo,mataram e morreram pelo inventoe Deus entrou em desuso.

Dos escombros sobrantescataram destroços e sucatase os artesãos da palavrateceram nova história.

Mil casas deram significados às vestes,produziram padrões de crenças– em série.Criaram robôs vulneráveis,ungidos com óleo da (in)certeza...

Surtados imprimiram o dígito nas promissórias.

Pobres máquinas seduzidas pelo marketingda fé no incognoscível!...

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O PRÍNCIPE(A Isadora)

Veio como nunca o havia pensado,mas era um príncipe.E veio do céu!Trazia na bocao sorriso dos contos de fadae uma fala diferente.Seus olhos traziam o refl exo de espelho ao sole meus olhos viam o que nelesdesejavam ver.Na alma doce eu via a certezado seu poder sobre o mundo.Seu minuto de toquetinha o eterno gosto de ille fl otant– que sobremesa!!!Tão leves os seus gestosque no mover das mãosparecia ter a lua nascentenaquelas palmas macias.Do meu canto olhava... olhavasem bem saber como e por queaquilo acontecia.

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Não sei se ele me viamas eu me sabia atingidapelos dardos velozesque do seu peito partiampara todos os lados.Aí... o novo diante de mim se impôse me tomou de assombrojogando-me nos ombros, tão meninos,o peso do que me era desconhecido.

Mal tive tempo de entenderos propósitos do destinoe ele já havia partido.

Hoje, olhando para o ponto do infi nitoonde as aves dialogam com o céurevejo aquele príncipeque chegou num começo de tardee no quase-noite de um diavoou!

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O QUE SE SABE DO QUE O JORNAL FALA

Fui lá na Folhae li coisas tremendas: – Oito por cento de prejuízos após a queda da bolsa de Xangai.Aí vi o derramamento de meus batonspapeizinhoscanetinhasbloquinhosespelhinhosrecadinhos...Xangai caiu mesmo na confusão da bolsae alguma coisa desaqueceu na economia do meu coração.

Li mais: – Analistas descartam alta de um tal de PIB brasileiro.De quem será que estão falando, meu Deus?

E mais:me mandam conferiruma foto de leão com um nome estranho... – IR, era esse!Para falar a verdadeestou envolvida com um Leão

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que falaque amaque beijame vem e me deixa irlendo-o pela vida afora

E o jornal continua... – Banqueiros blindam um sujeito aí que tem algo a ver com o PAC (?!).Talvez estejam brindandopor alguma coisa...É... deve ser isso!Devem ter errado o verbo.

Gente, só o amor vale nesse vale.Prefi ra crer em mim. É sério!Estão nos enganando dizendo coisaseufêmicas e efêmeras queem verdadenão têm importância nenhuma.

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O AVESSO DA SABEDORIA

As pessoasvão fi cando velhase mais sábias.

Eu,desrespeitante do curso da vida,cada vez maisinsolentedesastradaimpertinenteintempestivairreverente.

As pessoas vão fi cando mais velhas– fugintes de contra-mãos –e eu me consentindocada vez mais no hábitoda extravagância!

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O BANZO

Quando em criançaainda sem consciênciasobre dor e doresli o Navio Negreiro.

Hojechegadinha na idadee longe dos meus paresapalpo dores misteriosasnum corpo machucadonuma alma doente.

Ouçoentãoa chibata cortando o aro urro tremendo dos escravoso pingar do sangue nos olhossuplicando pelo apagamentopara matar, bem morta, a saudade.

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O FINAL

No começo fez-se o privilégioque imperou sobre mim.

Não houve entremeio.

Só a morte que veiono sétimo diapara o descanso do peito enfraquecido.

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O LADO BOM DO PASSADO

As cachoeiras tombavamriam do nosso risozombavam dos nossos tombose tudo era festa.

Não se sabia o que éramos...talvez crianças na adultidade

(não importa, agora).

Efervescíamos!...

Como adolescentes traquinoséramos o que críamose tudo era real:pilotos-passageiros dos instantesonde felizes nos permanecemospresentes na vida.

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O LADO OBSCURO DO BRILHO

Desce o sangueem fi lete da veia partidada televisão:vídeo-bocacego-vídeosurdo-surdosó boca!

Do outro ladopassivos olhos em dilúvioe ouvidos que banalizam o mal:I B O P E!!!Ratos, leões, camundongos e bichos outrospasseiam de mãos dadasnas poças púrpuras da miséria alheia.

Voyeurs insaciáveiscontam com o gozodos distantes hipnotizados, mas cúmplices!

No brightness da tela azulícones fabricadosexpõem falsos cabelos de milhoembonecados nos camposférteis da futilidade.

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As consciências obnubiladassão a expressão dos Luteros rendidosporque vendidos continuamsendo os lotes no paraíso.

(Vem, Lutero,pagar teu dízimo atrasado!).

O tiroa bombao chuteo gritosão o ganha-pão do sádico replay.Tudo vale!...E vence o escárnio dos poderososdiante da desinvenção da coragem,e do adormecimento com o silênciodos impotentes!

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OBSERVANDO

Invadem seu quintale despencam ordenspara ordenar vidas alheias.

– Que presunção!

Sob a mira de um cano caolhoos donos do espaço com seus haveressão explodidose chamados rebeldes.

– Quem entende a dinâmica de tão monstruosa operação?

Intrigante esta invectiva visceralde cães que ladramatacamestraçalham sonhose riem democracia.

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Cá, no meu distante,vejo o universo preparandoa pauladao baqueo rebotea revanche.

– Fato irreversívelfato inadiável ato indiscutível.

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ONDE ANDARÁ DEUS?

Deus desertouapós um jogo de dadosquando perdeu a batalhapara os descrentes na Sua divindade.

Deus exilou-se num paraísodesconhecido por nóse fi camos aqui perdidossem a certeza de sua volta.A prova está na formacomo o mundo anda em nóse nós capengando dentro do mundo.

Deustambém adepto da tecnologia telefônicanos deixou no arao desconectar seu celular ultramodernoe nem na sua caixa de mensagempodemos textuar.

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Provavelmente não nos aguentou esem nos dar satisfaçãofi cou repentinamentefora de área.

(Blasfêmias à parte: mas o que havemos de pensar quando vemos nossos companheiros embestados galopando sobre o mal?!).

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OPERAÇÃO BISTURI – BOM DIA BRASIL – 04/12/03– O QUE SE IMAGINA DEPOIS DA NOTÍCIA –

Vendo um rim(sobra o parceiro fi ltrador);

Um pulmão(solidão para o fi cante – e daí?);

O fígado(ele sabe se recompor);

Um pedaço do estômago(economizo no comer);

Como não tenho testículos,os conhecidos colhões,vai um ovário(de quebra);

O útero armazenador, em mim, já era!(Não mais guardará vidas);

Um olho (o direito, de preferência)porque o esquerdo, astigmático,vai vendo do jeito que vê; a bexiga (chorarei pelo olho sobrante);uma perna (ser mais um saci não faz

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diferença alguma para o mundo);um braço (não faz mal ser cotó:pode-se abraçar com um braço só);uma banda (não confundam);um orifício qualquer ( não é difícil escolher);

para uns, será cristão compartir,para outros, prostituir.

Dirão alhures: mercenarismo;alguns dirão: experiência para marceneiros de hospitais;alguém há de sair ganhando, ou perdendo, depende do ângulo pelo qual se olha.

Quanto à cabeça, já nem sei por onde anda;

o coração (um caso à parte); está problemático; não vale a pena pro comprador (honestamente!). Dias bate, dias não, dias duro, dias mole, dias duplo, uno, ambíguo, destemperado, dias nada... (deve estar com esclerose galopante e insiste em viver por conta própria); quando tropeça, não se levanta sozinho; recusa nutrientes; teimoso, não aceita um marcapasso. Quem haveria de comprar um troço assim?

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Sangue (O -), mais raro, mais caro. Vendo todo o que resta. Limpinho. É promoção (estoque quase zerado). Resta pouco porque em meio século o conta-gotas quebrou o lacre e muitos pingos fi caram pelo caminho.

Falta algo para vender: a alma. Quanto custa? Esta não aceitou ser negociada. Desprendeu-se antes que o dia desabrochasse, deixando claroque seu destino não era a gaiolade um corpo besta.

Nada de burocracias. Sem papéis.Sem cartórios. Sem rubricas. Basta deixar o dinheiro no chapéu ao lado...

Pobres dos que precisam vendersuas únicas posses.

A pobreza faz do dinheiro, beleza, (triste ironia!)ou por causa da misériaou por conta da ganância...

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A feia necessidade decide por quemvende dorcompra dorrecepta doronde tudo despenca e desaparecenos bastidores de hospitais assépticose tudo vira vazioe todos fazem silêncio...mas quem especta a dorpelo menos compactua: fecha a cortinae trata de esquecerque o humano serpode se dividire também está pronto a se vender.

E nesse comércio infernalde agonia desmedidao globo alisa a açãoo globo obriga a açãonuma globarbarização da vida.

É a lei da selva e c’est fi ni.

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OS OLHOS PEDEM

Dentro de um corponão cabe uma ideiahá muitos limitesespaços poucos.

Numa ideia, várias outrasse entrelaçamse ampliampor vezes se imprescindem...e na impressãoque cada uma me concedefi ca à mostra o que antecede: um sinal que se anuncia se insinua no interstício dessa ideia.

Entre o que se sabee o que se criahá um desejo a projetar-seum corpo a limitarum olhar que pede retorno!...

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OUVINDO...

Ouço a chegadade quem nunca chega.Ouço a voz de quemcomigo não fala.Ouço o passado se afastandoe me deixando sócada vez mais.

Eu na beira dos olhos – águoEu na beira da boca – engasgoEu na beira da terra – brotoEu na beira do Eu...silencio.

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PERDAS NECESSÁRIAS

De empregadaa freelancer

De corporal avantajadoquase Tweegy

De desabridaà gênese da gentileza

Das prendas do laràs prendas do ler

Do sangue pontualà libertação mensal

Da Atlântida perdidaà mulher reencontrada

Da lagarta comumàquela que tece a seda

Das perdas da lisa peleo revigor dos ganhos...e nem sinto que envelheço– ao contrário –sequoiamente a cada segundoadolesço.

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POEMA DA FERA

A fera não caçaa presa que atravessa-lheinocente o caminho. Simplesmenteataca a presa que passae devora os nacos que interessam.

Jiboia num tempodepois sai vagando indiferenteaté a próxima fome.

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PENSANDO EM NARCISO

Embevecido com a própria belezaNarciso entra no espelho d’águavira fl or.

Possuída de tristezanum lago planaltinonarcizei-me em minha dor.

Ele, embora morto,ainda é fl or. Numa ironia corrosivaeu, embora viva, morta estou:sou corpo afogado sem nomeno lago nem boiou.

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QUEBRADORES DE PEDRA EM VILA ESPERANÇA

PedreirasPedrasPedregulhos

Mãos grossas, martelo em punhono claro dia em escura função.Calos estouradosescandalosas chagas expostas.Sangue mabaço da dor. As estrelas da noite – pílulas de luz –alentam o corpo moído.O sangue que jorra dá um minuto de sossegoe a dor da fome se escondeno ventre desabitadona hora do Angelus.

Escola – mágica mutação:martelolápissanguetintapedrapapelpedregulholetra que saltam da pedreirapara deixar o aprendizescrever sua história.

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QUEM É QUEM?

De que substância é feitaessa semente que deitana almofada do meu coração?

Tenho de tudo tentadono tempo que tenho tidopara enlaçar o sentidode vigorosa germinação.

Talvez viva mil vidase nem consiga ver sua cor:alguns o nominam Paixão,outros o chamam de Amor.

De que substância, meu Deus,fi zeste esta agoniaque em mim cresce a cada dia,não para cima, no chão?

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E eu que só sei que sinto formigamento, torpor,esse laço apertadoesse homem tão amado,minha semente da dor.

Talvez o grande mistérioem meu coração plantadotenha o Teu dedo brincador...

De repente penso, até,– quase herege que estou –que Tu não sejas Tu,mas meu amado, Senhor!

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QUESTÃO DE TAMANHO

Quando minha almase desaparta do meu corpovai para a curva da Luae de ládebruçadame vê três-por-quatrono espaço três-por-quatro que me guardaconfi nada.

Quando volta minha almaetérea em densidadecámas toda amassadatenta a porta de entrada em mim.

Inconformadafi ca de forafi co de dentroe nos olhamos tristementeapenas.

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REAIS NECESSIDADES

A cadelinhaas traçasas saiasas poucas posses que se insinuam indispensavelmente.

Em verdadesomente são necessidades:

as madeixas de Evapara cobrir meus gêmeos picos lácteos;a folha da parreira que protege do ventoa fl or que insisto em cultivarno meu monte de Vênusa sarça em estado permanente de ardênciapara alumiar o livro do poeta prediletoque deleita meus olhosnas noites que vigiam a insônia.

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RETECENDO ÍTACA

Tecem as Penélopeslutam os Ulisses:dia-a-dia, mesmos fi osnoite-dia, lutas mesmasnoite-a-noite, monótono destecerhora-a-hora vã esperatoda hora só viver.

Duas almas condenadas,dentro da outra, uma:uma com pernas que andamoutra com dedos que fi am.

Amarradas almas duaspor motivo ou por querer?

Uma no ritual do fi caroutra incontrolável a partir...nesse selo de alternânciaspreservado em suas ausênciasUlisses é movimentogarante o próprio existir.

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Ela em suas fi cânciase a seu modo soldadatece e destece carênciasalimenta-se das esperasfeliz por ele ser idofeliz por ver-se fi cada.

No espelho faces fundidas– narcisos pactuados –porém juntos por desejoe por vontade separados.

Na distância toda dos temposdessa história que nos fi cou...para uns, permanência de mitopara outros, simbiose de amor.

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UIVOS NA LUA VAZIA

O lobo uiva e nem é Lua cheia.

Ouço-o no escuroe temo por nós todos,amantes de corpo ausente.

Por que uiva o lobo fora da Lua? Pedirá amparo? Pedirá abrigo? Enlouqueceu?

Seu uivo é a música da dorpelo que foi, pelo que teve e perdeu.

Que lamento! Chamamento à rendição...

De corpo presenteescrevo seu uivo para emudecê-lono papel,mas ainda assimo lobo uiva de longee não há no céu Lua cheiae nem Lua cheia em mim.

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ESCORRENDO POR QUALQUER LUGAR

Bateu à minha porta – e eu predestinada.Abri, entrou, ligeirinho, saiu... – e eu predestinada.

Tranquei a entrada do meu paláciopus barras de ferroalém de chaves – e eu enchaveada.

Batem à minha porta – silencio.Batem mais, mais e mais – e eu me rio.

Diante do espelhoela e eu,cúmplices corpo a corpo,olho a olho, peito decidido,entramos no brilho que nos refl etee nos dissolvemos nos mercúrios prateadosque por onde, não sabemos,serão espalhadosquando o espelho espelhaçar-se.

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VÍCIO DE LUA

Há coisas que nos deixam viciados.No meu caso é a Lua:com ela nunca acostumoé sempre novidade ímparé sempre um céu diferentee um sempre sem-fi m.

Ela me menstruaenche minhas maréslava minhas areiasme pira aluadamenteme ajuíza precisamenteme inspirame depurame apertame expande na loucurame abrandame abundame absurda em parições...

Logo eu que nasci às 3 da tardenum solar dia de Domingo.

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TRANSCENDÊNCIA(Aff onso)

Quando a embriaguês do sonoobriga-me o fechar dos olhosnão resistosó me rendo...mas antessobre os teus versosponho os meus óculospara nos meus sonhoscontinuar te lendo.

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VITÓRIA

Chamava-se Guanaanie as gentes que viviam por aquinão barganhavam moedas com suas “vergonhas”.Das miríades de pedras-colmeias emergentes das águas de saljorrava o mel mais doce que o doce mel de Salomão.Quando o desejo gritava por alimentoas mulheres lambiam o manjar abundante que escorria das pedras – favos fálicos –e as abelhas complacentesnão interrompiam o permanenteestado de orgasmo na fábrica do prazer na Ilha do Mel.Tudo era doçura e paz.Quando os homens queriam maisdeixavam seus corpos boiar nas águase as gotas de prazerconheciam o caminho das bocas esperantes e abertas.Assim viviam essas gentescontentes e livres.

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Até que num entardecerquando o sol buscava o mantodo recolhimentouma vela branca ao longeas tomou de assombro:as abelhas e os zangões, em polvorosa,cobriram de cera os corpos dos homense das mulherespara a inevitável batalhacom o desconhecido.Línguas de fogo e cruz invadiramos labirínticos caminhos das colmeiase destruíram o segredoda doce produção do prazer.

Então, os deuses penalizadoscom tanta dorenviaram uma branca pombae a instalaram para imperar soberanana Pedra da Penha.

Assim ouvi do eco dessa pedraos ecos da história que vos narrei.Creio nela assim como creio neste poemaE nesta Vitória onde me instalei.

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ALGUMAS (IR)RELEVANTES DESCOBERTAS NO AZUL DA AZUL

Quando pensei que encontrariaquem apagasse os meus incêndios,descobri que continuava,eu própria,apagando os alheios.

Descobri que as pessoasque eu considerava as mais perfeitas,continuaram perfeitas,embora tivessem mais dores ocultasdo que as minhas.

Os meus heróis possuem tantos medosquanto eu:medos diferentesporém medos apenas.

Os mestres que digo serem meus continuarão sendo,mas agora tenho um outro olharsobre eles.Então descobri que sou mestrade mim mesma.

Descobri que acima das nuvenso arrebol também é belo,

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vermelho e alaranjado e indefi nívele curvono horizonteque me entra nos olhos de veratravés da janela da Azuladejando sobre nuvens me levantopara o infi nito dos sonhos...e sonho mais e além.

Homens – muito mais do que imaginava –mesmo os grandes e musculosos,tremem dentro das turbulências dos voos.Isso me obrigou o exercícioda calma e da coragempara podersegurar-lhes as mãos.

Os exercícios físicos me estressam ou cansam;os da alma me ensinam o inensinável:humildade.

Pedir perdão, verbalizando,só para agradar e deixar o outro felizporque ganhou uma batalhamesmo aparentenão me interessa mais.As minhas descobertas são novas para mim,mas é provávelque o homem ou a mulher da cavernajá as tinham feito também.

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Muitos pensam que sabem muito o que sabem assim como eu,mas a sabedoria que dá o saber de si mesmoé a que amplia por dentro.

Foi duro ver que muitos dãoo que não têm para si: amor companhia paz!

Descobri que sou tão fracaquanto os que bradam que não o são...mas num canto escondido roem as unhasse roem na solidão.

Descobri que a cada dia sou outraporque cada diaem suas particularidadesé um divisor de ciclos.

Todos gostam de mágica. Os que dizem não gostara querem tanto que mentemsó pra manter os pés no chão.Quanto a mim, quanto mais levitomais a mágica aconteceporque existede verdade:a minha!

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Descobri que qualquer dependênciaé dependênciadesde a dependência do outroaté o creme dentalou, quiçá,a marca do papel higiênico.Sou valente, a coragem me possui – nos possuímos –quando posso admitir que também dependo dependo!

Descobri que somos todos muito ocupados– quando queremos –ou quando precisamos dizer que somos– mesmo sem sermos.

Todos tocamos qualquer instrumento, mesmo quando,em verdade, nada tocamos...e tudo é músicaa que nominamosporque é nossa.

Descobri que detesto meus grossos braçosmas os uso a todo instante porque abraço abraço abraço porque sou feita de mais do que braços,

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por isso linda e linda...e há gente que aindanem descobriu que tem braços.

Neuzamaria Kerner

Voo Azul: Ave Cristo-Birigui-Araçatuba-Campinas-Vitória

23/06/2012

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RETORNO À ALDEIA(fi lhos de Itapebi)

Perto do rio com suas distânciasfi lhos foram nascidosfi lhos foram criadosfi lhos se foram, mudados.

Longe do rio em permanênciasolhos singravam barcos– quase navios –bocas lembravam robalosna língua das lembranças...

Presos aos sargaços da saudadefi lhos que foram nascidose um dia se fi zeram idosretornamao rio sem rioaos barcos sem remosao cheiro do mais nadaao talhe suave do morroe veem nas ruas vaziasa aldeiae a gata que ainda espera os fi lhos idoscom o rabo balançando alegrias.

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Neuzamaria Kerner

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E A CARAVELA PARTIU SEM MIM...

Pensei que era e não souPensei saber, mas ignoravaPensei ser presença quando em tudo era nada Mas no nada não me vi

Fui sem estar e sendo não fuiPensei clareza e estava caos

Pensei que era e não souPorque sem ego passou um ventoE me evaporou Pensei que iria morro acima

E a meio caminho agora sei que não vou Do meio do morro vi mar e velaE a caravela que me levaria 

Foi-se grande em mil saberesCoração sem mil haveresFoi-se...Porém ausente de mim.

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AURORA BOREAL

A aurora boreal é Deus.As auroras outrasao jeito das cores outrasdançam, cantam (e riem provavelmente)e louvam a aurora boreal azul que é Deus.

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CANTIGA DE NINAR A LUZ

Na paz da Luz que sabeMe faz olhos de verEntão a vejo serenaE manifesta em você.Sonha, sonha... luz de anjoPois lhe vela a Luz maiorQue o silêncio desta noiteFaz o sonho virar Sol.Nada tema neste abrigo– luz que brilha vacilante –Pois a grande Luz que ninaTambém cura a alma andante.Durma o sono curadorDeixe dia novo nascerQue o Universo gestaráPaz e luz no amanhecer.

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BUSCADOR DE AURORAS

No sem-tempo começadaUma luz forma de fl orQue se abre aclaradaPelas mãos do BuscadorVem varando toda estradaPela cor que vem de DeusNesta alegre alvoradaNos sorrisos todos seus...

Céus inteiros se deleitamLuzes brilham infi ndas horasNossos olhos se enfeitamVendo o Buscador de Auroras.

Flores soltam seu perfumeLuzes voam passarinhasO Universo todo é o lumeNas estrelas pastorinhasSó o perene vem de outroraNesta vida intermitenteBuscador é a própria AuroraQue em nós é permanente.

Céus inteiros se deleitamLuzes brilham infi ndas horasNossos olhos se enfeitamVendo o Buscador de Auroras...

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Neuzamaria Kerner

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COMUNICADO AMOROSOJúlia

Ela veio saudável e sorridentetrazendo na sua bagagemum tanto a prata da Luao brilho das estrelaso calor afetuoso do Sola convicção de que temos naturezae substância divinamente eternasa inspiração dos poetas que reinstaurama esperança no mundoo colorido e o perfume suave das fl oresa lembrança de que somos aprendentesna arte de amara certeza de que o amor é a única possibilidade para vivermos em plenitude

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ESTE OLHAR DE JÚLIA

que avista os longes... Este olhar que vê, mas não diz... Este olharque sabe e reconhece... Este olharcapturante dos reais váriosque desliza e paira entrenuvens entreterras entregentes entrevidas entrefatos entretantos entretudo entrecílios alongados...

Estes olhos entrepostosnas asas vazadas da luz.Esta meninaque me entra pelo cristal da retinaé a menina dos meus olhos.Este olhar... Este olhar... cor da sabedoria!

O olhar desta meninatem os olhos da poesia.

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ESSA COISA...

Coisa incertaCoisa grandeCoisa maior do que o sentidorCoisa coisada que expõe víscerasCoisa que sangra por dentroCoisa que desgravitaCoisa que estronda como trovão pereneCoisa vulcão que derrama lavaCoisa coisa coisa... que veste e deixa nu!

Há os que sentem essa coisaHá os que despertam essa coisaHá os que provocam essa coisaHá os que – por medo – evitam essa coisaHá os eternos famintos pela coisa alheia(como os vampiros – dizemcujo alimento é o sangue – do outro e des-espera o possuidor da coisa

que não tem em si e tem nos olhos o gozo de ver

quem possui-a-dor).

Dizem que essa coisa tem nome, sobrenome, certidão de nascimento e óbito: Abismo da Paixão Encarnação da Boa Morte.

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FRANCISCO E A CARIDADE (?!)*

Rua é vícioTem gente viciada em darTem gente viciada em receberAssim é a sopa:Nunca me perguntaram se eu gosto de sopaMas eu bebia porque me davamEles davam porque só sabiam dare não perguntar...

O acordo tava cumprido...– O que gosta?Não sabe.– Afeto? Comida?Não sabem os dois ladosNinguém sabe...A carência de cada ladoCumprida

* Poema baseado num caso contado por Ana Rita Q. Ferraz sobre o morador de rua – Francisco.

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PASSAGEIRO (NAS CATEDRAIS)

Tenho viajado de catedral em catedralvezes silenciosooutras barulhando sinospara dizer da minha presença;vezes pagando dívidasoutras contraindo-asmas sempre honrando palavraspara dever menos.

Tenho viajado de catedral em catedrale quando estou no centro de suas navesvejo como funcionam engrenagens humanasque mesmo solitárias não funcionam sós:

peças por peças movem-se dependentese independentesdas minhas próprias.

Quando iluminadas as catedraisuno fi osreparo molase tiro seus rangeres com óleo das lamparinasque mesmo quando sem chamasé o bálsamo que encontro– somente nas catedrais –para os consertos precisos.Os talentos para o sustento de cada hora

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são extraídos das catedrais invisíveismas vistas apenas em presenças sentidas no interior: tão poucos talentos!... tão tantos haveres!...

Sou viajeiropassageiro nas catedraisque permanecerão nas lembrançasnas ruínas nas reformasdos tempos que me levampara a próxima catedralaté quando for mudadoo meu estado de matéria

não sei quandoporque velhoporque mancoporque falhoquase cegocanso fácil...

Mas sei que a distância entre as catedraise meu destinose encurta e me alonga por igual...afi nal é para isso que tenho viajadode catedral em catedral.

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MOTIVO PARA ESCREVER

Escrevo para não me perder nos caminhose para que os pedaços do corpoperdidos na caminhadasejam recompostosquando eu precisar retornar;para rever o tamanho de cada passadaque possa me apontarna lucidez da rosa dos ventoso sentido da palavra trilhada...Escrevo para me manter na caminhadamesmo onde não haja caminhoporque a escrita sempre será meu mapaque conhece atalhos protetores da insânia.

Escrevo para não me esquecerna ida e na volta de cada estrada.

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O MAR E O POEMA

Não sei para onde vousó sei que vou, vou, vou...

Das chegadas desconheçonas partidas adormeçoe entre este céu e este mar me navego e me esqueço.

O navio singra lentoe eu sangro de saudade...nada sei do que aguardosó espero, sonho e ardo.

Já não sei por quanto tempoestou parada neste espaçonuma espera de dar penaneste tempo que é tão largotão diverso, tão poema.

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PROMESSA DE PALAVRA

Que a minha palavranão seja mais espada cortante.Que seja ela a agulha e a linhaque tecem o bem em cada tecidode cada pétala de fl ore que remendam o que foi esgarçadopelos tempos.Que seja a minha palavra, doravante,a mão que aponte o horizonte da boa fortunaa cola que una fortementetodo ser a cada ser;que prove que todo amanheceré uma fl or que se abree sabe, como qualquer rosa,ser generosa em alegrias;que seja semente em festaquando emancipa a fl or do botão;que seja cantiga de fl autafi el som de toda canção;que seja ela apaziguada e efl orescentepela força da nova sementea brotar fl ores nos canteiros da fala.Que seja a promessa desabrochada.Que seja a ponte ligante ao verbo amar.Que seja sempre a fl or anunciada: em cada palavra dita em cada palavra escrita em cada palavra dada.

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SEMENTE DO FRUTO(Daniel)

Primeiro perder-se no nadaDepois achar-se no absolutoBuscar a simplicidade Que é a semente do fruto.A verdade reveladaNos leva à transcendênciaQue está nos olhos do céuE além de qualquer ciência.Viaje pra dentro de siEncontre o que esperouNos olhos do infi nitoMergulhe nos olhos do amor...Nos olhos de céu nos olhamEstá a semente do amor.

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SURDEZ

Eu precisava que me dissessesque estavas de partida.

Nunca desejei que fossesmas nunca me dissestesse estavas fi cando ou partindo.

Um dia amanheci sem uma parte:e descobri que sempre havias me ditoque nunca, de fato, estivestes aqui...

Em verdade, eu é que nunca quis ouvir.

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O LIVRO-ARBÍTRIO

E eu que vim de tão longe para vê-lo...E eu que atravessei tantas nuvens para vê-lo. Sabe quantas eternidades furei para chegar no lugar exato onde você estaria para me encontrar? Pareço em atrasos. Pereço nos prazos, só pareço. Aqui estou diante da boca dos favos de beijos que nos tempos passados você prometeu. Vim pegá-los. Vim colocá-los neste corpo almado que ainda é seu. Cheguei! Vim com livro e com liberdade. O livro-arbítrio meu. E agora me paro na frente do homem que sei pelo faro, o homem que é meu. Fale, respire, se vire, me tome em você. Estou tão cansada do tanto que andei. Asas dormentes do quanto voei. Venha, pegue a moringa com água fresca e dê-me de beber... Vamos, o que há com você? Por que seu silêncio me olha assim? Minha aparência está tão ruim? Desculpe, na pressa esqueci de pentear os cabelos. Estou em frangalhos? Desculpe, é que tropecei nas mil bolas do Universo, me feri e nem vi... a cada pancada eu fazia um verso... Está me ouvindo? Não olhe o céu agora, não veja o sangue que mora

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no entardecer deste momento. Eu sei, esqueci de passar batom. Deve ser isso o assombro nos seus olhos. Desculpe, foram os deslocamentos das ventanias nas minhas passagens que me deixaram de mãos vazias. Lá é assim. Venta. Cadê o bálsamo para minhas olheiras? Venha, faça o descanso dos meus olhos. Feche-os devagar porque doem. Não o vejo! Meus ouvidos se aguçam. Ouço a música, mas está tão longe e eu vim de tão longe para ouvi-la outra vez. Sabe, eu vim de tão longe... Sabe, o ar... ponha sopro em minhas narinas... seu hálito ainda é o mesmo.Segure em mim. Estou Pégaso indócil. Não, não precisa de cangalha. Vamos, coragem. Não tem falha, não há tralha que nos valha por lá. Vamos, monte devagar. É que eu vim de tão longe, pensei que pudesse fi car... Pronto? Que bom! Voemos antes de o dia acordar.

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A CASA DA LUZ

Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto.

Magia é uma palavra já muito comum para dizer daquele domingo. Que palavra, então, usar? Não sei. Só sei que o Sábado já havia escrito o que estaria por vir. Os Sábados-profetas tocam na testa dos abertos para o desconhecido encontro com a morte e o renascimento num mesmo instante... e meu coração desapercebido rendeu-se à profecia. Não havia mais como lutar. Não me foi dada a escolha. Ou eu assim o quis? Mil quilômetros mais tarde estava eu trilhando caminhos feitos de auroras, onde paisagens de luz eram tecidas para o deleite da minha alma. Onde o cheiro de mandrágoras era carícia para o meu sentir. Onde menestréis sob tendas do passado preenchiam o espaço-tempo com poemas em forma de canções. Onde em cada segundo do dia meu sangue era substituído por doses generosas de Amor, de Paz, de Luz...Entro na Casa da Luz. Permaneço onde vive o Anjo manifesto a me provar que o

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escuro inexiste onde habita a luz, mesmo quando o Universo tece a cor noturna do céu.O Anjo me mostra como semear estrelas e com elas fazer um jardim perene. Aprendo a buscá-las com os olhos. Colho uma estrela-fl or, a intrometida do Cruzeiro do Sul, e enfeito o agora colorido, perfumado e triunfante coração. Meu troféu, essa fl or acristalada e brilhante, não me deixará esquecer que o amor não cabe no físico. Meu troféu não me permitirá sofrer se minhas mãos nunca mais alcançarem fl ores brotantes dos astros. Sobreviverei. Não importa o futuro do verbo viver porque esse viver será sempre o presente retido no templo do meu corpo transmutante, mesmo quando a morte tentar apagar o vivido. O Anjo, Ghon, não deixará, pela graça do Senhor dos magos Domingos.

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A QUE VENDIA RECORDAÇÕES

Agora deu de vender as coisas. Os pertences... e a casa amanhecia cada vez mais silenciosa como que consentindo no esvaziamento. À noite maquinava o que partiria no próximo lote de amanhecer. Não sei por que vendia. Na verdade, parecia planejar algo pelo bem de alguma coisa mais importante, mas não tenho certeza do que digo.

Um dia era uma peça de madeira, talhada à mão, que por mais de 50 anos guardara pratos copos tigelas taças. Assim me informou quase sussurrando. No outro a vítima poderia ser o sofá, companheiro de duas gordas poltronas que a vida inteira acomodaram bundas e até pés. Se tivesse apostado, teria ganhado. Carreguei o grupo da sala de visitas deixando o espaço crescido.

É... agora deu mesmo de vender as coisas impulsivamente. Ou já seria uma compulsão se avizinhando na mente de quem queria esquecer? Vendia. Só sei. Todos os dias o telefone chamava a minha caminhonete que já estava sabendo o caminho. Sobre preço discutíamos pouco: ela dizia um, eu dizia

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meio e tudo fi cava pelo meio. Até que ainda era aprumada e algumas vezes arrisquei um olho. A cintura fi na entre as coxas e os peitos. A cada dia que ela imaginava o que me venderia no dia seguinte, eu imaginava o que olharia nela. Percebeu a danada e numa das vezes segurou o meu olhar de tal forma que esquentei por dentro e minha pele cuspiu fogo. Temi.

Não, não venderia o corpo e pela cara já me deu a saber do preservamento decidido. Não sou letrado nas psicologias, mas ali tinha coisa. Ah, se tinha! Entrou no meu pensamento e me mandou acabar com as curiosidades, disse assim de supetão me deixando abestado: penas muitas guardam meu corpo... quando eu levantar os braços, meu voo para o futuro será consumado. Dizer que entendi direito é mentir e quando ia abrir a boca, me cortou antes do movimento e mostrou na saia formando concha montes de copinhos de vidro trabalhados por um vidraceiro. Foram potinhos de papinhas da Nestlé. Os meninos gostavam. Cresci os olhos e ela fechou a saia. Falou baixo, mas escutei: estes ainda não têm tempo contado.

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Por que dera de vender as coisas? Perguntei um dia tentando parecer indiferente. Sua resposta foi pegar uma foto p & b duma criança com olhos grandes e brilhantes, sentada no chão assoalhado, vestindo apenas calçola. Sou eu há mais de meio século. Por que dera de vender coisas? Insisti.

Me olhou de cima pra baixo, superior. Eu me apequenei. A danada falava forte e direito: ignorante! Quem disse que vendo coisas? Me desembaraço de recordações. Se você acha que eu vendo alguma coisa, então é isso.

Chamei o ajudante, tiramos o freezer da cozinha, amarramos na caminhonete. Entreguei a ela dez notas de dez e nunca mais atendi a seus chamados. Vou lá eu querer continuar olhando alguém oco de lembranças?

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MÃE NO DIA A DIA NO MEIO DE MAIO

É maio. O que tem a mais no meio deste maio? Pode ter um monte de coisas: mês mais feminino porque fértil, mês das deusas, mês da primeira lua bonita, mês das noivas, mês do dia 13 de maio na Cova da Iria, mês de outono, morno – já instalado desde março, esperando que o inverno assuma o comando –, mês de se fazer tudo o que se faz todos os dias em todos os meses e em todas as estações, mês das mães...

Das mães... Sim, elas mesmas. Aquelas que amam incondicionalmente - há controvérsias! – mas muitas amam desse jeito incondicional.

– Oi, meu amor! Estou com saudade!– Ei, mãe, eu... agora não posso falar. Muito trabalho.– Eu só queria mesmo ouvir sua voz.– Então, já ouviu, né?

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E ela ri da brincadeirinha do fi lho ou da fi lha, tanto faz.

– Você é uma gracinha quando fala assim, me lembra quando...– Lá vem você com suas velhas lembranças!– São boas, meu amor... você era tão...– Eu já cresci, esqueceu?– Não esqueci, mas para mim...– Já sei o que você vai dizer. – Oi, você ainda está aí? ?... ?... ?...– Claro que estou! E no meu trabalho.

E ela dá um suspiro feliz porque o fi lho ou a fi lha, tanto faz, está trabalhando. Como é responsável essa minha cria!

– Alô? Alô?... ?...?...?...?...?...?...?...?...?...?...?...?...?...?...?...– Quem é?– Sou eu...– Ainda?– É que eu queria te dizer que...– Só pode ser agora? Não dá pra esperar pra outro dia?– É que é importante... bip-bip-bip-bip-bip-bip-bip ad

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eternun...

E ela dá um suspiro – o último. O fi lho ou a fi lha, tanto faz, tem seus afazeres-de-cada-dia. Já não está mais aqui, nem ali, nem acolá. Sem maio, sem estações do ano nenhuma, sem não-sei-o-quê-mais. O que ela queria mesmo dizer? Nunca saberemos. Levou o dizer consigo.

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ÓCULOS DE GRIFE

“A verdade gera dor e eu não sabia o quanto eu poderia suportar da verdade que estava diante dos meus olhos” . Foram essas palavras que ouvi de Lurdi – Lurdi que vem de Lurdinha. Fiquei curiosa com aquela frase intrigante que eu já havia lido em algum lugar, não sei quando... Incentivei a continuação do papo. Ela lagrimou e continuou: pois é, menina, a gente pra andar na moda paga um preço alto. Foi assim que caí na real quando vi o meu bem precioso sendo misturado com a terra. Sabe, prima, eu gosto de enterros. Tanto de pobre quanto de rico. O de rico não tem muita graça. Tem não! O de pobre é divertido, mas às vezes traz desgraça. A começar pelo nome enterro, que é de pobre, daquele que mora em unidade habitacional abaixo do padrão. Pra não dizer barraco. Pra não dizer que a gente ta ofendendo. Se fosse de rico, seria inumar, sepultar, depositar o corpo num jazigo. Cê já foi em enterro de rico? É assim: todo mundo bem vestido, os saltos dos sapatos tocando levemente nas alamedas dos jardins das saudades todas. Tudo silencioso, educado, sem ataques. Soltar as frangas da dor é proibido. É...

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mostrar a dor é coisa de gente sem classe, sem fi nesse. Virou lei não dar ataques, não fazer a exposição daquela dor infeliz. A lágrima tem que ser discreta e ocultada por um par de óculos escuros bem bacanas comprados em loja. Lágrima que sai pelo nariz, que nem ousa fungar alto porque o lencinho branco e delicado não deixa. Impressionante! Pra falar a verdade eu gosto mesmo e mais de enterro de pobre. O jeito de ver o sofrimento honesto é ali. Com direito a tudo que se tem direito: café no quente-frio, bolacha poca-zóio, ir de sandália de borracha daquelas que se enfi a pelo dedão, alpercata domingueira, todo mundo vestido de preto pra mostrar bem o pretume que é uma dor decente. A roupa pode até ser foveira, emprestada, remendada, mas é toda limpinha. Até a roupa do defunto não faz vergonha a ninguém. Ali se pode chorar sem pejo. E também dar ataque em cima do caixão. Por falar em enterro, cê sabia que nosso tio morreu? Aquele da barraca que vendia farinha na feira de São Joaquim!? Pois é, menina. A criatura morreu assim... sem-quê-nem-mais... Foi até no dia em que comprei aqueles óculos. Uma fortuna. Aproveitei pra inaugurar. Fui lá como pedia

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a ocasião. Tiraram no palitinho quem pegava nas alças do caixão de tanto que ele era gostado. Pois é, menina... Um chororô, um abraça-abraça, um cai prum lado, outro jura se matar, outro consola. Tava lá o buraco aberto, um calor retado, as viúvas disputando espaço no nada que já era o tio. Se deu que a ofi cial, bem na hora de o coveiro jogar a primeira pazada de terra, antes mesmo do descimento do caixão, deu o ataque. Abriu os braços, levou as mãos à cabeça gritando valhei-me-Jesus-o-que-vai-ser-de-mim, acudiram, mais outro ataque, mãos na minha cara, só deu tempo ver de raspão os meus óculos dando um voo rasante, outra pá de terra, outra... e eu contando as prestações restantes. Foi o azar, foi a inveja dos parentes. Pois é, menina... eu que só tinha óculos de camelô. Meus primeiros óculos de grife, da boa... pensei em mergulhar na terra ainda fofa, pensei em mandar parar tudo, pular dentro da cova, mas começou uma chuva de água forte, misturada com chuva de galhos de Angélica, misturada com água de lágrima, até da minha própria... e eu contando vinte e uma, vinte e duas... pagar sem ter... Se fosse num funeral meus óculos estariam aqui... mas foi num enterro. Fazer o quê, né?

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DAS ÂNSIAS DO TEMPO...

Da tua boca escaparam falasque atravessaram meus ouvidos;

Do teu peito para o meuzarabatanas azuis;

Dos teus olhos para os meusinventei faíscas solares;

Para abrandar meus secumeste fi z abundância dos mares.

O tempo-espaço– senhor que me domina –arregalou meus olhos meninae me fez vero espanto da lua matutinaa me dizer:acorda, luz peregrina,que a noite-tempo já passou...

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IMPRENSA UNIVERSITÁRIA

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