O livro negro da psicopatologia Contemporânea_Izaguirre

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© Via Lettera Editora e Livraria Ltda. 1* edigào: maio de 2011 CIP-BRASIL. CATALOGACÁO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L762 O livro negro da psicopatologia contemporànea / Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.). - Sào Paulo : Via Lettera, 2011. 280p. Apéndice Inclui bibliografia ISBN 978-85-7636-103-9 1. Psicopatologia. 2. Psicanàlise. 3. Psiquiatría. I. Jerusalinsky, Alfredo. II. Fendrik, Silvia. 11-2406. CDD: 616.89 CDU: 616.89 03.05.11 04.05.11 026094 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou utilizada sob nenhuma forma ou finalidade, eletrónica ou mecánicamente, incluindo, fotocopias, gravado ou escaneamento, sem a permissáo escrita, exceto em caso de reimpressáo. Viola?ao dos direitos autorais, conforme artigo 184 do Código Penal Brasileiro. Equipe de Realizado Capa e diagrama?áo_ Juliana Carvalho Prepara^ao Mário César Tradu5áo_Ediara Rios Editor Assistente_Roberto Gobatto Editora_ Monica Seincman Via Lettera Editora e Livraria Ltda. Rúa Iperoig, 337 I CEP 05016-000 I Sao Paulo - SP Telefax 11 3862 0760 13675 4785 [email protected] i [email protected] 2011

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© Via Lettera Editora e Livraria Ltda. 1* edigào: maio de 2011

CIP-BRASIL. CATALOGACÁO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L762

O livro negro da psicopatologia contemporànea / Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.). - Sào Paulo : Via Lettera, 2011.

280p.

Apéndice

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7636-103-9

1. Psicopatologia. 2. Psicanàlise. 3. Psiquiatría. I. Jerusalinsky, Alfredo. II. Fendrik, Silvia.

11-2406. CDD: 616.89CDU: 616.89

03.05.11 04.05.11 026094

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou utilizada sob nenhuma forma ou finalidade, eletrónica ou mecánicamente, incluindo, fotocopias, g rav ad o ou escaneamento, sem a perm issáo escrita, exceto em caso de reimpressáo. Viola?ao dos direitos autorais, conforme artigo 184 do Código Penal Brasileiro.

Equipe de R ealizad o

Capa e diagram a?áo_ Juliana Carvalho Prepara^ao Mário César Tradu5áo_Ediara Rios Editor Assistente_Roberto Gobatto Editora_ Monica Seincman

Via Lettera Editora e Livraria Ltda.Rúa Iperoig, 337 I CEP 05016-000 I Sao Paulo - SP Telefax 11 3862 0760 13675 [email protected] i [email protected] 2011

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I n t r o d u <j á o

i i mu mu u n í i i i i i i i i i i tu ni k i i i i ii i i i m u i iit i i i i i t i i i k i i i i i ii t ii i ii ii mii t i i un j imi i i ii i t i i i i i i iii i t i i i i ii iim iit i

Silvia. Fendrik e Alfredo Jérusalinsky

O Livro Negro da Psicopatologia obedece ao efeito de perplexidade ante os furiosos ata­ques á psicanálise, cada vez mais coléricos e cada vez mais infundados, cuja expressao mais recente se encam a em um compendio de mais de oitocentas páginas também intitulado O

Livro Negro. Referimo-nos, claro, ao Livro N egro da Psicanálise.N o entanto, contra o que seu título possa sugerir, este nosso Livro Negro nao foi conce­

bido como um contra-ataque em espelho a essas denúncias frenéticas feitas á psicanálise em nóme do positivismo científico ou cientificista. Responder contra-atacando foi urna enorme

tentagao - á qual tivemos de resistir - , já que muitos dos argumentos utilizados para refu­tar a psicanálise - duragao extensa- dos tratamentos, nao resolugáo ¡mediata dos síntomas, volta ao passado, intelectualizagao, puro palavreado, submissao cega aos mitos fundantes e sobretudo muito cara - tém desde sempre sido objeto de colocagoes e questionamentos

valiosos e lúcidos, por parte de psicanalistas de distintas correntes, comegando pelo pró- prio Freud. Nenhum psicanalista que tenha seguido - e entendido - Freud e Lacan defende

hoje a psicanálise como se se tratasse de tuna seita, urna religiao, urna prática inefável e/ou

um discurso de certezas irrefutáveis contra a racionalidade do espirito científico. Ninguém pode acusar a psicanálise de falta de reflexáo "autocrítica". Aqueles que contribuíram para fazer com que este livro existisse concordam que o ponto crucial nao está na denuncia da

impunidade com que se a acusa de mentirosa, muito cara, sugestionadora, inoperante etc. E

interessante recordar aqui o ensaio de Oscar Wilde - Em Defesa da M entira - no qual se poe em evidencia o bom servigo que a fantasía presta á verdade e o engano que comete quando apenas se considera verdadeira a "pura realidade".

Considerando o fato de que toda ideología necessita de um inimigo para se afirmar em "novos principios", e em "novas prom essas" - os ataques á psicanálise nao sao urna excegao a esta regrá da política selvagem - , temos levado em conta a possibilidade de res­

ponder indignadamente as acusagSes, mostrando suas virtudes ou boa fé... m as a descar- . tamos. Acreditam os que os leitores merecem outra coisa, que se chama, em primeiro lugar, uma rigorosa crítica epistemológica. E por isso que nao optamos por urna informagao en- cobridora com o fim de propagandear as "bondades" da psicanálise contra as "m aldades" das neurociéncias ou das terapias cómportamentais a servigo da massifkagao do sujeito. Lamentavelmente, aqueles que defendem a medicalizagao para suprimir os conflitos, ou que propiciam os exertícios comportamentais de reeducagáo, langaram-se em um a série de

ataques inconsistentes na avidez de conquistar um público desejoso de respostas para os problemas cotidianos no casal, na familia, no trabalho, na escola ou em seu próprio mundo interno. Um a guerra marketeira que busca destruir um inimigo ao qual atribuí, com o cor­

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responde à lógica das guerras fundamentalistas, lodo tipo de atrocidades, mas que desco- rihece, no fundo, a lógica de seus fundamentos.

Em nosso Livro Negro, nao optamos pelo caminho da difamagào. Por isso, pareceu-nos crucial analisar e oferecer os resultados de urna análise crítica e rigorosa do DSM-1V, a última co n trib u ito da psiquiatría contemporánea. E nessa diregao que mostramos os erros e as co n trad ices que se revelam por detrás de suas inumeráveis classificagoes. Elas abordaram o ámbito da psiquiatría para se tornar moeda de uso corrente ñas escolas, nos hospitais, nos tribunais, ñas familias, receitas com as quais se pretendem resolver nossas vidas, salvando- as dos charlatòes e modernos curandeiros chamados psicanalistas, ao quais continua expos­to um público de supostos consum idores ignorantes e submissos.

Quem hoje nao conhece um TDA, um TGD, um TOC? Quem está isento de sofrer um transtorno alimentar, de sono, urna adigáo, um transtorno de comportamento sexual? A ligeireza (e imprecisáo) com que as pessoas sao transformadas em anormais é diretamente proporcional á velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatría contemporánea ex- pandiram seu m ercado. Nao deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avango na capacidade de curar tenha levado a ampliar em urna progressáo geométrica a quantidade de "doentes mentáis".

No entanto, este livro nao foi concebido como urna somatória de denuncias à ideologia disfarcada de ciencia que psicologizou e medicalizou a vida cotidiana. Tampouco é urna de­clarad o de guerra. Nossa meta é mais ambiciosa. O que exigimos sao fu n dam entales - nao ataques nem defesas nem contra-ataques - dos profissionais ou leigos que utilizam cada vez mais as siglas numeradas para classificar como desviados das normas nossos comportamen- tos "inesperados". Será que nao se transformaram as siglas em urna verdadeira adigáo?

O curioso é que, contrariamente a essa, suposigào de ignorancia em um público do qual de um m odo mal-intencionado a psicanálise se aproveitaria, esta Continua se empe- nhando em levar o sujeito a reconhecer seu pròprio saber inconsciente acerca do que o atinge. O inconsciente nao é o nao-consciente, nao é urna característica negativa, sao pensa- mentos que estáo estruturados com o urna linguagem que deve ser decifrada. É por isso que esse saber náo se cunha em categorías nosográficas. E é também por isso que na pràtica psi­canalitica nào se trata de impor um determinado vocabulário psicopatológico para orientar a demanda ou a diregao da cura.

Inversamente, a psiquiatría contem poránea se autoconferiu a missáo de divulgar "novas nom enclaturas" - as quais os meios • e difusáo aderem fervorosam ente - , gerando um panóptico de títulos diagnósticos que quase sem pre reportam ao caráter neuroquím i- co da afeegáo.

Por exemplo, temos o M anual M erck de lnformagüo M édica para o Lar, um manual que vem sendo editado há 103 anos. Em sua Segáo 7, dedicada aos "Transtomos M entáis", ' considera que a similitude entre as categorías diagnósticas do DSM-IV (1994) e o C1D-10 (C la ssifica lo Internacional de Doenga, décima revisáo, m odificado clínica) implica que "o diagnóstico das doengas mentáis específicas está sendo feito de urna forma mais consistente e padronizada em todo o m undo". Isso somado aos avangos nos métodos (especialmente as novas técnicas por imagem) "levaram a urna maior precisao no diagnóstico" (refere-se ao diagnóstico psiquiátrico). A pesar de p od ern os celebrar a precisao com que as novas

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7 • Introdugiìo

técnicas por imagens (ecografías, TC, RM, PET etc.) e os novos estudos genéticos permitem

diferenciar a incidencia de determinados transtornos neurológicos e constitucionais em al- gum as afeegóes mentáis, nào é obvio que todas estas respondam ao mesmo modelo de

determinagao. Em outras palavras, se, por exemplo, na Sindrome de Rett a determinagào da

desintegragào evolutiva do psiquismo obedece a urna primazia da ordem genètica, isso nào autoriza per se urna generalizado das causas genéticas para todas as afeegóes mentáis. No

entanto, é necessàrio assinalar que ñas novas categorías diagnósticas do DSM-IV, tais como

Depressáo (TD), Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), Transtorno de Déficit de Atengao e Hiperatividade (TDAH), Transtorno Bipolar (TB), Transtorno de Ansiedade, nao há esta

correspondencia com anomalías registradas em estudos de imagens ou genéticos. Por sua

vez, no que se refere aos Transtomos Globais do Desenvolvimento (TGD) e aos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID) - entre eles, o Espectro Autista e a Síndrome de Asper­

ger - , devemos observar pelo menos tres questoes decisivas.A primeira é a estranhamente grande quantidade e variedade de criangas que, sob a

enorme heterogeneidade dos indicadores atualmente propostos, é incluida em tais afeegóes.

Urna recente publicagáo da revista Época (Sao Paulo, Brasil), em seu artigo de capa dedicado

ao autismo, afirma que há dois milhóes de criangas autistas no Brasil, o que equivalerla aproximadamente a um autista para cada vinte e cinco criangas. Sob todos os aspectos,

trata-se de um absurdo clínico e social.A segunda questao é que em urna grande proporgao dessas afeegóes nao há registro

genético nem de imagem que revelem indicadores patognomonicos do transforno.A terceira questao é que na maioria desses casos está claram ente demonstrada a de­

cisiva incidencia do tratamento específico do psiquismo no grau de recuperagáo e/ou na

velocidade de deterioragáo nos quadros evolutivos.Em todas as categorías diagnósticas utilizadas no M anual M erck (que de um modo

geral coincidem com as do DSM-IV), há um a separata destinada ao tratamento (em algu- m as "diagnóstico e tratamento", em outras "prognòstico e tratam ento", e em outras apenas

"tratam ento"). Encontramos ai com regularidade que se prescrevem tratamentos farm aco­lógicos mais alguma intervèngào psicoterapèutica geralmente especificada como "terapia

do comportamento'e/ou cognitiva". O curioso é que também se recom endam terapias tais

como hipnoterapia, narcoanálise, ervas, assessoramento (?), relaxam ento, terapia de expo- sigao, terapia cognitiva, de apoio, conversar com um médico no qual se tenha confianga e

um a variedade de "solugóes alternativas". A o mesm o tempo, adverte-nos sobre o risco de

recorrer a " terapias prolongadas e custosas que podem ser perigosas". Teríamos direito de supor que se refere a psicanálise, considerando que é a única terapia que nào se recomenda

e que se apresenta em suas páginas introdutórias como um a "psicoterapia antiga"?Com efeito, em seu Capítulo 104 intitulado "Sexualidade", no qual o manual inclui as

categorías: Homossexualidade, Atividade Sexual frequente com diversos parceiros, Identi-

dade de gènero (aqui se fala de "transtom o" por identidade de gènero e transexualismo). Parafilías (Fetichismo, Fetichismo travestido, Pedofilia, Exibicionismo, Voyeurismo, Maso­quismo e Sadismo), nao figura o item "tratam ento". Esta omissáo, que também com etem na

Sindrome de Miinchausen, seria devida a nào existirem registros de imagem nem genéticos,

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nem eficácia das terapias cognitivas ou comportamentais, nem tampouco psicofármacosaplicáveis a esses qua d ros?

Esta é a co n trib u id o dos M erck Research Laboratories à aproxim agào entre o lar e o DSM-IV.

Como costuma acontecer, a literatura se adiantou um par de décadas ao DSM-IV sem considerar o singular fenómeno - bastante anterior - de Júlio Verne com suas novelas "cien- tífico-preditivas". Nao é casual que as primeiras preocupagòes da ficgao científica girem em torno de dramas protagonizados por robos humanoides, que nao se satisfazem simples- mente com um pensamento que apenas consiste num coquetel de memoria e selegao de res- postas, que exigem a devolugao de algo que na verdade nunca tiveram: sentimientos, prazer, sexualidade, dúvidas, curiosidade, re la d o com os outros, desejos, expectativas, desejando inclusive a morte. Robos indignados-entristecidos-raivosos reclamam aquilo que nao lhes foi dado: a co n d id o hum ana. Os primeiros cinquenta anos da ficgao científica foram as- sim:ios robos nos invejavam porque se viam limitados a sempre dar as mesmas respostas estereotipadas. O paradigm a da época, o conto O homem bicentenàrio de Isaac Asimov, nos mostra que o ideal dos robos éram os nós, os humanos. Eram eles que queriam se parecer conosco. No entanto, ñas últimas décadas, produziu-se urna curiosa inversao: caímos n a tentaxáailíUM5-paje££mi xQgLele^

Efetivamente a tecnociéncia contem porànea difundiu a ideia de que é possívél aceder à felicidade por urna via simplificada: m em oria abreviada e selegao simples de respos­tas rápidas. Oferecem -se entao diversos artificios para o ensaio desta finalidade: livros de autoajuda para situagoes específicas (para encontrar as devidas respostas é necessàrio, certamente, formular as perguntas específicas de modo a que correspondam a esse deter­minado livro), cirurgias plásticas para manter contentes os espelhos virtuais, listas de com ­portamientos adequados para assegurar a qualidade ótima de qualquer conduta e, acima de tudo, urna boa batería farm acológica para empurrar nossa subjetividade em urna diregao prc-programada. A cibernética neuroquím ica terá assim reduzido nossa vida psíquica a respostas "adequadas", que curiosamente coincidem com as que oferecem os livros de au­toajuda, ou qualquer lista de com portam entos positivos, ás quais se somam as indicagoes - sempre atualizadas - de qualquer terapia comportamental.

Os robos nao precisam se preocupar, já que hoje em dia parecem ser eles os que encar­nara o ideal: sem desejos, sem envelhecimento, sem falhas, com automatismos garantidos para cada situagao específica, sem vacilagáo, tudo positivado em um pensamento "positi­vo". No entanto, devemos sublinhar que, enquanto aqueles robos dos anos 1930 representa- vam em sua rebeliáo os ideáis de um modernismo romàntico, os atuais "transtom os" - sob suas formas toxicomaníacas, bulímicas, anoréxicas, de padroes sociais de sucesso ou de quimiopsiquiatria - representam a obediencia recoberta por um falso manto de liberdade, pròpria de urna pós-m odernidade cínica, porqué nela o verdadeiro deriva do sucesso e nao o contràrio.

Enquanto a cibernética eletrónica procura engenhosamente capacitar seus robos para responder a questoes cada vez mais aleatorias, e até para formular perguntas, nós humanos somos levados a urna "padronizagáo" do controle da "m ente". Amparados em padroes diagnósticos cada vez mais ampios - depressào, TOC, Asperger etc. - , incluem-se os mais

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9 • Introdugao

heterogéneos conjuntos de síntomas justificando deste modo a u tiliz a lo dos mesmos psi- cofármacos. Nào obstante, o ideal de um pensam ento simplificado (memòria reduzida +

selegào de respostas corretas) provocou efeitos de resistencia radical: os toxicòmanos, em vez de aceitar respostas-padrào, criam seu pròprio mundo alucinatório, os anoréxicos se ne- gam a engolir os fast-food, os hackers atacam as máquinas tentando demonstrar que sao mais

inteligentes do que elas. Todos aqueles que aparentemente recusam qüaiquer relagao com o outro, paradoxalmente, formam grupos que mantém um a surpreendente solidariedade

interna, enquanto, na tentativa de os devolver à Ordem (padrao), as terapias cognitivas continuam elaborando listas de desordens e de selegào de respostas corretas para condicio-

narmos um a obediencia exitosa.Em um mundo em que o sujeito se desvanece ao redor da promessa de ter respos­

tas para tudo, curiosam ente surgem e proliferam as "patologías" que consistem em ser "n ada", um ou um a "n ad a" que lhes devolva a possibilidade de desejar "algo". Acontece

que o modelo proposto atualm ente substituí o saber pela informagao, a falta pela comple-

tude, a busca pela resposta "já", a singularidade da diferenga pela repetigào do idèntico, o enigma do passado e do futuro pela pretensa certeza garantida do presente. O ideal seria que adaptássem os nossa experiencia àquilo que com toda a propriedade poderia se

cham ar: H om o A u tom aticu slA pesar das tantas vezes que se quis estender-lhe um certificado de disfungào, a psica­

nálise é um m orto que goza de boa saúde. E, como o trabalho do psicanalista nào é apenas atender pacientes, mas também tratar de entender e questionar os efeitos dos discursos sobre nossas vidas, surgem a necessidade e o interesse - nào somente profissionai - de um livro como este, feito com as contribuigoes de quem aceitou o desafio de um a "análise do

discurso" do DSM, evitando respostas "em espelho" desde a soberba ou a ignorancia. H á entre eles psicanalistas e psiquiatras de reconhecida e extensa trajetória, assim como pes- quisadores de carreiras brilhantes que, sem serem psicanalistas, apostam e se com prom c- tem a resistir ao pesadelo dos transtom os generalizados de comportamento.

A insistente referencia ao sujeito que se destaca na maioria dos artigos deste livro nào

pretende reivindicar sua substancia, sua "transcendencia" ou sua imanència ao m odo de um humanismo filosófico que roga pela alma e pelo espirito, denunciando a ciencia que o

opera, o fragmenta e o classifica, reduzindo-o a siglas ou cifras estatísticas. O risco de falar de singularidade do sujeito em oposigào à massificagáo é cair em urna idolatria do sujeito, e seu corolário, o desfiar de pregagòes queixosas para reivindicar em um jargáo psicanalitico a alma (do sujeito) que a tecnologia pretende eliminar. O risco existe, quando se ataca o

DSM como se fosse um a empresa satánica - ou um saco de gatos - e nao um discurso efi­caz. Dai a difícil tarefa de analisar este discurso para encontrar, a partir de sua eficácia, as falhas e falácias de seus argumentos e os ideáis - padroes - nos quais se sustentam. Por isso é que o apelo ao sujeito - "contra sua destruigáo" - nao deve ser mal-entendido como um

arrazoado humano. O sujeito nào é o individuo frente ao hom em ou, mais recentemente, à mulher-massa. O sujeito nao ocupa o centro do universo, simplesmente porque nao há um universo nem um centro, m as um a abertura central a partir da qual as palavras e as coisas se determinam para cada um de um m odo diferente. Essa é a singularidade do "sujeito".

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Depois de Freud, a equipe psicanalitica faz sua propaganda em um estilo quea palavra charlatanismo explica muito bem..... os psicanalistas em conjunto queremque se saiba que estâo ai para o bem de todos/ mesmo que saibam que devem estar atentos a nào se dirigir demasiadamente rápidos para o bem da singularidade, para o bem desse de quem tratam , porque sabem perfeitamente que nâo é querendo o bem das pessoas que se o alcança, e que a maior parte do tempo é exatamente o contràrio. (Lacan, "M eu ensino")

E a necessària impossibilidade de dizer que é justamente o efeito da psicanálise como discurso e de m edir seus efeitos terapéuticos, o que cai muito bem a seus detratores, que desse modo se arrogam a pensar que, apesar das críticas ferozes, é o que faz que a psicaná­lise continue existindo, inclusive como "charlatanice". "... em suas explicaçôes ad usum do público se reconhece a charlatanice. A o se olhar bem para a historia, nenhuma charlatanice resistiu tanto, o que deve responder a algo que a psicanálise reserva para si, que constituí justamente sua dignidade" (Ibidem).

Fala-se "m al" da psicanálise - quando se diz o que nâo "é" e se denunciam suas men­tiras ou mitos. N âo é simples para ninguém - muitas vezes nem sequer para um psicanalis­ta expedente - entender que a verdade de um sujeito p0.d£-SË£iahuJacâ.0-nu mentira para outro, inclusive para o pròprio "e u "! Em seus esforços por transmitir o real, o indizível, o impossível, os próprios psicanalistas nâo deixam de falar "m al" da psicanálise - charlata­nice. Delà nâo se pode falar "bem ", já que nâo constituí estritamente "um saber" em que a verdade se op5e à mentiraxorno acontece nos outros campos do conhecimento científico ou lógico-filosófico. N o entanto, responde ao espirito científico da psicanálise haver descoberto que a verdade só pode ser dita como um a ficçâo, mas isto nâo é o que entendem os detrato­res, já que ignoram a diferença entre a ficçâo-verdade, a verdade-ficçâo e o "puro conto".

A consigna que reuniu neste livro diversas trajetórias clínicas é analisar as conse- quéncias de urna pràtica que considera os sinais "objetivos" como dados inequívocos em contraste com a decifracâo e a escuta cuja chave e código se encontram no pròprio paciente e nâo ñas siglas ou ñas listas de indicadores de um manual. Resta apenas esperar que a for­ça da inercia da destruiçâo do sujeito que se pratica na vida contemporánea se detenha ao menos ante quem ainda se permite formular dúvidas e sustentar perguntas.

In TempoEm 28 de julho de 2010, a agencia de noticias Reuter deu a conhecer a resposta que

o Royal London College of Psychiatrics endereçara ao grupo de psiquiatras que, nos EUA, está encarregado de revisar e corrigir o DSM-IV para a ediçâo do DSM-V (prevista para 2013, embora provavelmente seja antecipada para 2012). Esta resposta foi originada por uma consulta na quai o grupo norte-americano solicita de seus colegas británicos opiniôes e rectnnendaçôes surgidas da aplicaçâo do DSM-IV desde 1992 (ano de sua publicaçâo) até a atualidade. Nela, os psiquiatras ingleses manifestam que a aplicaçâo do DSM-IV tem produ- zido ao m eno^três epidemias falsas? 1) o Transtorno Bipolar; 2) o Transtorno de Déficit de Atençâo e Hiperatividade; e 3) o Autismo InfantiL,

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Q u e s t ó e s E p i s t e m o l ó g i c a s

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E l o g i o a o d s m - I V

hi ih iim il mi ninnili uhi timi Minimi ii ih munii ii imi ii ii h i ninni imm illili ih ii ii ih imi hi il imi li imi

G u illerm o Iz a g u irr e

O DSM-IV e a pràtica psiquiátricaA ùltima versào do D iagnostic and Statistical M anual o f M ental Disorders (DSM-IV) cons­

tituí urna ferramenta eficaz para os psiquiatras de cuja utilidade ninguém pode duvidar. A partir desta afirmagáo, é possível se perguntar em que consiste, para que e para quem?

Em primeiro lugar serve para poder estabelecer claramente, quando um psiquiatra re­cebe em tratamento um paciente, onde este pode ser situado no m apa classificatòrio. E isto fica simples mesmo quando a decisào é tom ada segundo o critèrio com que nesse momento o psiquiatra vai classificar, mesmo quando, e com frequència ocorre, outro psiquiatra ou mesmo em outro momento, seja possível escolher outra divisào do M anual para esse pa­ciente. O que é praticamente certo é que vai encontrar um lugar no mapa, quando nào tiver a possibilidade de propor outra alternativa para ser acrescentada à lista.1

Em segundo lugar, é um excelente auxiliar p ara a tarefa estatistica. Sua utilidade é indubitàvel.

Em terceiro, sua tarefa terapèutica é simplificada porque, ao saber a que divisáo corres­ponde o paciente, poder-se-á deduzir com bastante precisao o tratamento correspondente, seja psicoterapèutico, farmacológico ou misto, que certamente terá de escolher recorrendo a séus conhecimentos, à bibliografia correspondente, ao vade-mecum e à sua experiència. Mas a divisáo, submarino fundido ou fragata avariada, facilita seu trabalho.

Em quarto, sua posigáo de médico possuidor de um conhecimento e de elementos para a agào fica resguardada.

Os paradigm as da psiquiatría e suas crisesA partir destas observagòes, algumas dúvidas sao necessariamente introduzidas no

cam po mesmo do fazer psiquiátrico que nào podem ser separadas da historia do sistema classificatòrio. O DSM assume plena vigencia a partir de 1980.2 Até entáo como se viravam os psiquiatras?

1. É o caso, como veremos adiante, da proposta da felicidade como um transtomo afetivo maior por parte de Richard E Bentall.

2. Na realidade, o DSM-I surgiu em 1952, mas nao foi aceito como nomenclatura oficial dos E U A , em 1968 foi publicado o DSM-II, adotado pela Associagáo de Psiquiatria Americana, mas logo

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Parece-m e proveitoso rem eter-me a um texto cuja apariçâo em castelhano data do ano 2000: Ensaio sobre os Paradigm as da Psiquiatría M oderna de Georges Lantéri-Laura. Nele se estabelece, partindo do conceito de paradigm a na historia das ciencias de T. S. Kuhn e permilindo-se, com as ressalvas pertinentes, transportá-lo para a historia da psiquiatría, o ordenam ento desta em très períodos dom inados por sua vez por très paradigmas diferen­tes. E importante destacar o que considera com o paradigm a e a noçâo de "crise" do mesmo. O paradigm a seria "o conjunto de conhecimentos transmitidos que constituí a ciencia nor­mal enquanto desempenha bem seu papel e que serve de referencia fundamental e eficaz para todos os saberes e para todas as questôes que se colocam em seu seio" e acrescenta quanto às "crises" "que o paradigm a desaparece e a crise nâo se resolve até que um novo paradigm a venha a ocupar o lugar do antigo e prestar novos serviços, que seu predecessor nào conseguiu assegurar" (Lantéri-Laura, 2000, p. 47).

Com este instrumento, o autor data o começo da psiquiatría em 1792. Para isso, situa o que considera um aspecto importante da origem da patología mental, pressupondo um a "representaçâo social da loucura" e "a adequaçâo à medicina de um a parte desta represen- taçâo" (idem, p. 17) e tende a duas questôes: em primeiro lugar suplantar outras explicaçôes (religiosas, sobrenaturais, míticas etc.) e, em segundo, tratar de dar conta da totalidade da loucura. A parte da loucura que é cooptada pela medicina vai se definir de acordo com o paradigm a que, em cada época e lugar, domine sua descriçâo, organizaçâo e classificaçâo. O que implica a suposiçào de que a concepçâo social da loucura a preceda. H á culturas sem medicina da mente, m as quase todas as culturas contêm sua representaçâo da loucura,

Lantéri-Laura refere-se à psiquiatría, tal com o fica definida e organizada na cultura ocidental. Com a noçâo de "crise" , podem os desfazer qualquer ideia de continuidade ou substituiçâo natural de um paradigma por outro e revela que nâo se trata de que um paradig­ma seja refutado nem que o seguinte tenha sido demonstrado, mas que se deixou de usar de fato, e o seguinte, sem que se saiba como nem por que foi entronizado,3 estabeleceu-se de fato. O paradigma está destinado necessariamente, na m edida em que à disciplina em questáo sejam colocadas a complexidade de seus assuntos e a apariçâo de novos problemas, a entrar em crise e desaparecer.

Como a psiquiatría nâo é um a ciencia, e se pretende sé-lo está longe de conseguir, é possível compreendé-la ligada ao desenvolvimento de outras disciplinas heterogéneas en­tre si nas quais vai se basear, mas por sua vez vai lhe trazer mais interrogaçôes do que solu- çôes. Provavelmente estas contribuiçôes da cultura vâo produzir as müdanças que levam às crises e a um novo paradigma. Por ser uma concepçâo histórica, vamos nos encontrar com continuidade junto a esta descontinuidade.

O primeiro paradigm a da psiquiatría vai dom inar desde fins do século XVIII até a me- tade do XIX com a ideia, arraigada nas tradiçôes francesas, alemas, italianas e inglesas, de que seu cam po está organizado por um a afecçâo única que fundamentalmente Pinel, mas

em 1980, com a publicado do DSM-1II, tomou-se um suplemento da ClD-9 - Classificagao Internacional de Doengas em sua versáo anterior à que vigora na atualidade.

3. Certamente, poder-se-ia saber, mas apenas retroativamente.

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também outros autores, champú "alienagáo m ental". Este período, ao qual o autor restringe seu tempo de dominio, estende-se entre 1793 e 1854, quando se finda com o surgimento do artigo de J.-P. Falret (1864), intitulado "D a nao-existencia da m onomanía".

O sepm do, denominado por T.antéri-Laura de "as doengas mentáis", rompendo com a ideia de doenga ou afecgao única e renunciando a constituir um a extralcrritorialidade com relagao á medicina, passa a se inscrevcr de fato e de direito dentro déla. E o tempo em que se desenvolvem a extravagante describa o das doengas mentáis feitas pelos alienistas e a organizagáo dos grandes quadros classificatórios. Considera seu termo no ano 1926, momento em que, no Congresso realizado em Genebra c em Lausane, Bleuler expóe seu conceito sobre o grupo das esquizofrenias.

O terceiro, chamado de grandes "estruturas psicopatológicas", surge pela influen­cia de várias disciplinas próprias dessa época como a Gestallíheorie de Koelher e Koofka, a neurobiologia de Goldstein, a fenomenologia, os formalistas russos, o estudo dos mitos na antropología do século XX, a semiología e a lingüística, as matem áticas e a psicanáli­se. Recupera-se certa unidade perdida pela dispersao das descrigóes das variadas doengas mentáis em um número restrito de estruturas. Termo que pouco depois deveria assumir um lugar destacado no que se chamou ciencias humanas, especialmente com a lingüística e a an­tropología. PropSe como data de encerramento o momento da morte de Henri Ey em 1977.

Lantéri-Laura sustenta que, ao haver term inado este terceiro paradigma, ou seja, com a entrada em um a nova crise, aínda nao se pode definir um novo que o substitua.

Nos últimos anos do terceiro paradigm a, desenvolveram-se novos psicofármacos, fato que passou a ter progressivamente maior importancia, e imediatamente comegaram a ter um predominio notável os estudos sobre as neurociéncias e a genética. A psiquiatría nos últimos anos foi-se apoiaxtdo cada vez mais neste tripé: psicofarmacologia, neurociéncias e genética, podéndo-se questionar se estes desenvolvimentos permitiriam definir um novo paradigm a psiquiátrico dominante desta época. Considero que é um a presungáo que nao deve ser descartada.

N o terceiro paradigma, a influencia da psicanálise foi enorme, a ponto de a aproxima- gao entre ambas as disciplinas poder ser m arcada claramente. Inclusive, forjou-se, sem pa­recer forgada, a expressáo "psiquiatría psicanalítica",4 suposta síntese, ou melhor dizendo, sincretismo, que pode se sustentar sobre a base de conseguir um a coincidencia ñas nogoes de estrutura e de estruturas psicopatológicas. Junto á crise do paradigm a psiquiátrico e da própria psicanálise, pos-se em evidencia que aquele sintagma era um oxímoro.

Há um a correlagáo entre paradigm a e tratamento. Para a doenga única corresponde / um "tratam ento moral da loucura" e formas jurídicas específicas de se ocupar do alienado. Para as doengas mentáis, ao implicar a entrada de pleno direito da psiquiatría na medicina, <L tom a desta a ideia de doenga que se define como um a unidade independente pela primazia lógica e cronológica da semiología e da clínica. Em consequéncia, perde-se a ideia de um tratamento único para dar lugar á diversidade de tratamentos, havendo um, específico, para cada doenga ou para um grupo de doengas. Com o predominio das estruturas psico-

4. Foram inclusive escritos livros com este título.

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patológicas, vai si* ihir uma invorsíiona relagao entre psicopatologia e psiquiatría, passando a |>riiriL*ira a prevalecer sobre a secunda da mesma forma que a medicina é organizada pela í¡siopalolo¡;¡a. Isso leva a cel ias formas particulares do tratamento que pareciam con- li’atli/.i*r a singularidade tía psicanálise e, ao mesmo tempo, tornar a tragar o tratamento moral, aiv ira sob a denominagáo de psicoterapias. Com o surgimento das primeiras drogas dem uní nadas "anlipsicóticas" nao entra em crise o paradigm a, mas com o aparecimento de múltiplos tipos de psicofármacos a questao muda.5 O tratamento neste paradigm a poderia ser considerado psicopatológico como se isso implicasse ocupar-se das causas e dos m eca­nismos di' adoecer. Nao deixemos de lado que, para isso, a psicanálise Ihe deu a letra. Essa contundente diferenga de "estruturas" também teve consequéncias jurídicas.

A crise deste terceiro paradigm a arrasta a psiquiatría, mas também a sua sócia, a psi- canálise. Crise que leva, entre outras questóes, a separar ou a vpltar a separar os trilhos da psiquiatría dos da psicanálise, cujo paradigma entrará simultáneamente em crise com os últimos seminários de Lacan e os posteriores trabalhos de alguns de seus discípulos.

Lantéri-Laura assinala os elementos dispares que intervieram ñas crises dos tres pri- meiros paradigm as que, ainda que muitos, quero destacar uns poucos. No final do primeiro e no inicio do segundo, influenciam tanto elementos intrínsecos que tém a ver com a com- plexidade que se colocava no campo, quanto extrínsecos, tais como o dominio do prestigio social da medicina. Na passagem do segundo para o terceiro, podem-se tom ar ambos os critérios, as dificuldades intrínsecas e o aparecimento além da psiquiatría da influencia, por seu próprio prestigio social, de outras disciplinas.

Enquanto ao final do terceiro, além dos elementos que já foram citados, é possível considerar-se a recuperagao do term o loucura como um elemento importante na crise do paradigma. Quando Lacan introduz a polaridade "loucura ou deficiencia mental") nos últi­mos seminários, já estamos em um dominio que questiona a supremacía da ideia de estru­turas psicopatológicas.6

Considero, entáo, que, a partir da crise do terceiro paradigma e pelos desenvolvi- mentos de m uitas questoes e questionamentos produzidos por movimentos culturáis do último quarto do século passado e do comego deste, encontramo-nos com uma separagao importante entre a psiquiatría e a psicanálise, que liberadas um a da outra, abrem possibi- lidades de conformar cada um a suas novas orientagóes. A psiquiatría talvez possa entrar mais plenamente na medicina e abandonar certa posigao limite. Poderao as neurociéncias, os psicofármacos e a genética dar base para a constituigao de um novo paradigma?

Aqui nos encontram os com vários problemas. Se estes novos desenvolvimentos cien- tíficos trazem as bases para um novo paradigm a da psiquiatría, seria o DSM-IV sua expres-

5. O primeiro antipsicótico que se introduz no mercado, a clorpromazina, é de 1952. Nesse mes­mo ano surge o D SM -I. É um a coincidènda, mas h a alguma rela?ao entre a importància crescente dos tratamentos psicofarmacológicos e o sistema classificatòrio dos sucessivos DSMs.

6. Em 1977, ano da morte de Henri Ey, evento a partir do qual Lantéri-Laura data o final deste terceiro paradigma, Lacan apresenta seu ùltimo seminàrio intitulado "L'insu que sait de l'une bévue que s'aile a m ourre", onde formula està polaridade.

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sâo classificatòria? A pràtica da clínica psiquiátrica atual, fundamentalmente centrada nas psicoterapias e na administraçâo de psicofármacos é congruente com este;; desenvolvimen- tos e responde à classificaçâo do DSM-IV?

Para trabalhar estas perguntas seria necessàrio verm os de perto tanto o que aconte­ce nas práticas clínicas com o nas concepçôes que engendraram o sistema classificatòrio norte-americano que se tornou universal.7

A psicofarmacologia moderna permitiu à psiquiatría contar com um a gama bastante ampia de recursos para o exercícío de sua pràtica, caso se entenda por ísto o controle de sín­tomas dos transtomos mentais. Ao contar com uni sistema classificatòrio suficiente como o DSM, o arsenal farmacológico tem bastante especificidade e permite um uso congruente com os supostos utilizados para esta classificaçâo. Como a grande maioria dos síntomas é conside­rada _trartótomos_de_co^ o efeito dos fármacos sobre a mesma e certa apreciaçâo bastante desenvolvida de seus modos de atuar permitem um a lógica de sua utilizaçâô.

Como os transtom os estáo descritos de tal m odo que nâo seguem um a sequéncia clàssica da descriçâo de doenças nem se agrupam pela causalidade, o tratam ento é sobre as condutas descritas e nâo sobre as causas das doenças. N a realidade, nâo há doenças, mas transtom os de comportamento.

Criterios para o estabelecim ento do DSM-IVQuais sâo os critérios classificatórios do DSM-ÍV? U m a classificaçâo é um processo que

permite agrupar e definir critérios para a inclusáo ou exclusáo de um grupo. H á diversos critérios para este processo. Um a classificaçâo se faz a partir da eleiçâo de algum ou alguns critérios e, se for útil, mantém um a hom ogeneidade entre aqueles e os elementos classifica­tórios que a compoe. N a psiquiatría, cada paradigm a estabeleceu suas próprias classifica- çôes. Ao se tratar da ideia de doença única, um criterio classificatòrio nâo possui demasiado sentido apesar de existirem alguns esboços quando se incluem diversas formas de mono­manías. No dominio do segundo paradigm a que determinou a entrada de pieno direito da psiquiatría na medicina, desenvolveram-se muitas classificaçôes, sendo as mais importan­tes as diversas ediçôes da classificaçâo de Kraepelin. Sua intençâo foi seguir os critérios da medicina do século XIX. e começo do XX. Como se tratava de doenças, podiam basear-se na etiología, no desvio da norm a fisiològica ou cultural ou na apresentaçâo de síntomas. No caso do terceiro paradigma, o fundamental foi considerar a psicopatologia estrutural que permitiu estabelecer os très grandes grupos: neuroses, perversóes e psicoses.

Em contrapartida, o DSM-IV nào considera a existencia de doenças, mas de transtor- nos e nào utiliza um critèrio causal. É uma classificaçâo empírica tanto categòrica quanto dimensional.8 Esta última é tom ada inicialmente para dar conta de transtom os em que a

dimensao do desenvolvimento desempenha um papel fundamental. Por sua vez, ao consi­

7. Universal significa para o ámbito de influencia dos EUA como nos induz a pensar a globalizagao.f 8 ? " C - a t e n ca jk ¡p lica que as entidades nosológicas sao qualitativamente diferentes. Em con­

trapartida, as "dimensionais" consideram uma linha continua entre doenjas ou síntomas. Aínda que, como assínala María Magdalena Confieras, para Pearlman as doengas se dáo em um continuo e as categorías sao construyes do observador.

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derar a dimensao categórica, o DSM-IV é politético, sendo as categorías heterogéneas e seus

limites pouco claros.Com outros parám etros para a classificaçâo, por exemplo ao considerar cinco eixos

sobre os quais se organiza, seu sistema é multiaxial.Mas o que me parece importante considerar para esta observaçâo é que ele constituí

u in manual classificatòrio, como afirma M. M. Contreras (2004), que deixa de lado todo cri­tèrio nosológico em favor do estatístico, cujo objetivo é conseguir a maior flexibilidade sem

considerar as diferenças das orientaçôes teóricas dos profissionais.Vejamos de perto o que coloca o pròprio DSM-1V. Ele diz que seus objetivos sao clínicos,

de investigaçâo e educacionais. Para quem? Para os clínicos e pesquisadores de diferentes orientaçôes e passa a nom ear a quem se dirige: pesquisadores biológicos, psicodinámicos, cognitivos, comportamentais, interpessoais e familiares. E os usuários sao os psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, de reabilitaçâo, conse- lheiros e outros muitos profissionais da saúde.

A psicanálise e o DSM-IVComo psicanalistas, isto nos produz um grande alivio, já que ficamos excluidos da-

queles a quem se dirige este manual. N ada temos a ver com ele. Neste sentido, a psiquiatría

oficial se separa explícitamente da psicanálise. Já nâo aparece essa aproximaçâo que havía- m os assinalado em relaçâo ao terceiro paradigm a da psiquiatría, fica distante da época em

que se podia falar de um a "psiquiatría psicanalitica" ou de noçôes semelhantes. Parece-me que nesse sentido é que o terceiro paradigm a caiu ou, pelo menos, está em crise. Definiti­

vamente o m anual de classificaçâo psiquiátrico nada tem a ver com os psicanalistas. Nós psicanalistas podemos nos desprender tranquilamente da psiquiatría. Nossos propósitos

sáo outros, nossos objetivos diferem.Por outro lado, considera-se como um instrumento necessàrio para esfiidos estatísti-

cos sobre Saúde Pública. O que é um objetivo importante do manual e, por sua forma de

orgam zaçao, com os critérios utilizados para organizá-lo, é um instrumento eficaz que se

tornou além de tudo necessàrio. Deste m odo, passou a ser imprescindível para a pràtica estatística em Saúde Pública, elemento que o distancia ainda mais da psicanálise.9

Diz também que sua construçâo está baseada na observaçâo empírica. Ou seja, su- postamente, nenhuma teoria é posta em jogo. N âo é nosológico, é estatístico e empírico e para que nâo restem dúvidas expressa que nâo tem a pretensao de explicar as patologías ou

delimitar urna teoria ou corrente.Seu surgimento é a necessidade de confeccionar um a classificaçâo consensual. Entre

quem? Para quem? N âo importa quem sejam, ficam excluidos os psicanalistas. A psicanálise

nâo tem nenhuma necessidade de ser consensual para nenhuma classificaçâo. Seus pressu-

postos, suas necessidades sâo de outra natureza.

9. Considero que, a partir da psicanálise, é possível dizer muito sobre a Saúde Pública, mas de forma alguma no terreno no qual o DSM-IV é importante: a servido das estatísticas.

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O m anual é ferramenta de diagnóstico, segundo diz, m as também de estati'stica, per-

mitindo descrever o paciente em cinco eixos para "contar com um panoram a geral de di­ferentes ámbitos de funciona m ento".10 E urna frase importante, define muito bem o que o manual pretende, especialmente em tres palavras: "geral", "ám bitos" e "funcionamento". E o mais distante que se pode pensar com relagao à psicanálise, já que nela nao há nada da ordem "geral", é um discurso do singular. Muito menos pode-se falar de "ám bitos" e o "funcionam ento" nada mais c que um termo para indicar a conduta, ou seja, o behavio­rismo sobre o qual a psicanálise nada m ais tem a dizer. Em suma, tres palavras alheias à psicanálise que a excluem do DSM.

É interessante o m odo como o manual maneja certos termos. Na Internet, encontra-se um glossàrio. Ai podemos 1er, por exemplo, a palavra "psicose" e, portanto, em que sentido é tom ada. H averia urna definigao estrita segundo a qual o que define a psicose "sao ideias delirantes ou alucinantes preem inentes", "na ausencia de consciencia sobre sua natureza patológica". N o manual nao existe a neurose nem a perversao e nao se coloca nenhum term o que se oponha ou se diferencie da psicose. No final, fiel a seus objetivos, a psicose se define por certos aspectos de comportam ento. Manifesta que há, além disso, urna definigao menos restritiva que incluiría "a lu c in a re s significativas que o individuo aceita como expe­riencias alucinatórias" e urna tèrceira mais ampia que aceita outros sintomas positivos de esquizofrenia tais como "fala desorganizada", "com portam ento desorganizado ou catatò­nico" e afirma que há perda dos limites do égo ou alteradlo da verificagáo da realidade.

Como se ve apela para um criterio de psicose com base em certos observáveis ou aín­da na fala do paciente sem passar seu limite explícito e o que ocorre com a consciencia, como ego oü com a realidade.

Nào podemos dizer entáo que o manual se afasta de seus objetivos e de seus criterios "em píricos", "objetivos", "com portam entais" para aderir ao que pretende deixar de lado, ou seja, certas concepgoes, ideologías e mesmo teorías? Mas, de alguma forma, o manual escapa disso; já que afirma que no DSM-IV se assinalam diferentes aspectos da definigao de psicose. Deveria dizé-lo em termos do manual e, entao, seria assim: assinalam-se diferentes "aspectos gerais dos ámbitos de funcionamento". É certo que se podem inscrever diversos individuos como um número a mais neste compartimento, mas o que se quer dizer com isso?

Podemos vé-lo em "funcionam ento". Por exem plo, para diagnosticar um paciente com o esquizofrénico sao necessários dois ou m ais dos seguintes sintomas característi­cos: 1) ideias delirantes; 2) alucinagoes; 3) linguagem desorganizada; 4) comportamentos catatonicos ou gravemente desorganizados; 5) sintomas negativos: empobrecimiento afeti- vo, alogia, abulia. A estes sintomas característicos se som am outras condigSes que nào sào características, m as que ajudam o diagnóstico ou seu descarte. Ve-se perfeitamente que o propósito do manual se mantém imperturbável: nenhum a referencia a urna hipótese, a um a concepgao da psicose, a urna teoria.

10. DSM-IV. Capítulo sobre os objetivos. Pode-se encontrar na Internet ou em qualquer das ediçoes estabelecidas.

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( ) liimi neyjv da psicopatologia contemporànea • 20

N<> l'ni.ililo, di' lorinii ,il¡;iim;i, é possivcl se considerar nào haver teoria. Ao se tratar ili* empírico n.iii ln'i lugar |>;iia ilùviilas di' que haja uma teoria que se chama empirismo. I i > iim.i foni v| ><;.ni, si' proferir urna filosofia, e certamente é necessàrio teorizar para sus- In il .ir .ilj-i > .si il n i1 o i'in pirico (.■ ali'in di,sso estabelecer urna escala de valores. Sem teoria nem cst.il.i ilr Vii lores imo é possivcl a construçâo de tal corpo. A pròpria ideia de construir um...... hi.il ili.ij mió,siici) implica necessariamente um a teoria ou um grupo délas e um a escalai Ir v;ili n'es, inclusivi: alguns preconceitos, mesmo cjue se pretenda com a melhor disposiçâol l l ' S | l l ' l ' l l l l l ' l ' SI ' l I l ' I l ' S .

Isti) é digno de nota na classificaçâo dos transtornos sexuais. Diz-se que se definem os trnnstornos da identidade sexual pela identificaçâo com o sexo oposto e outros critérios menores e nâo por escolha de objeto. Mas ai já está implícito que há um sexo definido, perlence-se a um e há o outro e deve-se identificar com um e nao com outro, caso contràrio se trata de um "transtom o". Nâo temos nada a objetar quanto á isso, a partir do empirismo, da anatomia ou da genética, mas a psicanálise fica excluida, nada permite decidir, a partir da psicanálise, que alguém pertença a determinado sexo antes de sua declaraçâo de sexo. Como a psicanálise poderia considerar isso um transtorno? De forma alguma. .

A ironia do Dr. BentallDe um modo que poderia ser considerado irónico, um psiquiatra de lingua inglesa,

Richard P. Bentall (1992, 18, p. 94-98), da Universidade de Liverpool, lançou urna proposta muito interessante que, a meu parecer, questiona toda estrutura classificatòria deste m a­nual. Publicado em 1992, no Journal o f M edical Ethics, sob o título "A proposai to classify happiness as a psychiatric disorder", esta curiosa proposta lançaria, ao ser tom ada com seriedade (e nâo há porque nao ser assim), um polémico debate sobre o manual. Diz no abstract que o propósito é que a felicidade seja classificada como um transtom o psiquiátrico e incluida ñas próximas ediçôes do manual diagnóstico e classificatòrio sob um novo nome:

é estatisticamente anormal, consiste em um discreto conjunto de síntomas, está associa- da com um nivel de anormalidades cognitivas e provavelmente reflita um funcionamento anormal do sistema nervoso central. U m a possível objeçâo é que nâo se considera um valor negativo, mas constituí um a objeçâo científicamente irrelevante. A felicidade seria um es­tado neurofisiológico de desinibiçâo. Afirm a que há certa relaçâo entre felicidade e mania. É provável que se encontre certo disturbio do sistema nervoso central. E indubitável que se possa induzir a felicidade estimulando centros subcorticais. Encontraram-se com certa frequêneia relaçôes entre a felicidade, a obesidade e a ingestao de àlcool. Conféré alguma desvantagem biológica. Implica um a m á adaptaçâo à realidade. P5e em jogo determinados centros nervosos que afetam o sistema nervoso central. Apresenta síntomas específicos e se relaciona com anormalidades cognitivas. O autor assinala um a consequéncia ao ser aceita a sua proposta: que os psiquiatras tentem algum tratamento para a felicidade. As referencias bibliográficas consultadas pelo autor sao relevantes e numerosas, cita 32 trabalhos, todos em lingua inglesa e de importantes revistas científicas.

O artigo segue estritamente padróes científicos com um impecável raciocinio que vai desfiando os argumentos para afirmar a pertinencia e a necessidade de incluir este transtor­no afetivo maior na classificaçâo psiquiátrica, no DSM.

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Mas a ironia que contém a existencia mesma do trabalho, especialmente pela forma de

organizar sua argumentaçâo que considero impecável, é que discute a pertinência mesma das classificaçôes psiquiátricas ou, pelo menos, coloca dificuldades muito sérias para esta

tarefa realizada desta forma, supostamente sem considerar nenhuma teoria e baseada ex­clusivamente na observaçâo empírica. Richard Bentall coloca ao discutir a provâvel objeçâo

de que a felicidade ou, como propôe nom eá-la, major affective disorder, pleasant type, nâo é um

valor negativo. Mas, a partir das concepçôes que con íu íram o DSM, nâo se pode, sem se contradizer, contrapor seus valores se supostamente nâo se considerou nenhum valor. Em

contrapartida, a psicanálise nâo pode deixar de considerar os valores que, ao menos, sejam tratados no que se considera o Ideal do ego, os ideáis da pessoa, inclusive o superego sem

os quais nâo se pode pleitear nenhum trabalho de anâlisë.

Conclusâo. O DSM-IV como expressâo da crise do terceiro paradigm aComo conclusâo, é possível afirmar que o DSM-IV responde nào a um novo paradig­

ma instaurado em psiquiatría depois do firn do das esta tu ra s psicopatológicas, m as a um momento de crise dele. A psiquiatría de hoje parece tender a se ligar em très niveis do desen- volvimento científico atual: as neurociências como tronco fundamental, a genética e a conse- quència tecnològica de ambas> a psicofarmacologia. Mas, mesmo que se tivesse estabelecido

um novo paradigma, nào se construíram elementos diagnósticos e classificatórios cùerentes com essas disciplinas. Quero dizer que, ao se construirán de acordo com esse suposto novo

paradigma, deveríamos nos deparar com a consideraçâo dos mecanismos neuronais, neu- rotransmissores e genéticos, assim como com os efeitos psicofarmacológicos no comporta­mento e com os elementos do sistema nervoso centrai para fundar uma nova nosologia com intençôes de ser científica ou de se inscrever nas cièncias biológicas. Nâo é o caso do DSM-IV

que corresponde, entâo, a meu critèrio, a um momento de crise do terceiro paradigma. Prova- velmente seja por isso que nâo se arvora a se apoiar aparentemente em nenhuma teoria, mas termina submetendo-se ante um empirismo radical. E também, como dizem os propósitos e

fundamentos sobre os quais se apoia, está construido a serviço da estatistica.A s consequências disso deveriam ser avahadas. O que pode acontecer em popu-

laçôes em que um a porcentagem alta de seus habitantes sofre destes ou daqueles trans­tornos que, por sua vez, por se codificarem no m anual precisam ser m edicados? E, como

sabemos, os efeitos colaterais sáo num erosos e bastante prejudiciais para a vida cotidiana dessas pessoas, e os conhecimentos sobre esses medicamentos, por mais avançados que

estejam, acarretam um a gam a desconhecida de mecanismos cujas consequências sâo in- calculáveis. Mas é esta questáo dos efeitos colaterais o que mais pode nos preocupar, já

que sabemos sobre os efeitos ou sobre os chamados "danos colaterais" de certas medidas governamentais, das guerras, dos totalitarismos, das invasóes preventivas, das leis de exce-

çâo e, por que nâo acrescentar, das classificaçôes, dos diagnósticos médicos, especialmente psiquiátricos, que permitem discriminar e se convertem inevitavelmente em instrumentos para destacar defeitos, inclusive utilizarem-se como injúrias.

Aos psicanalistas, interessa-nos e nos confrontamos com os aparelhos da chamada saúde pública, das estatísticas, dos diagnósticos e das classificaçôes, porque acabamos

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sendo testem unhas das consequéncias subjetivas, porque somos parte dessas p o p u la re s , porque nada do que acontece no m undo pode nos ser alheio pela especificidade de nossa

pràtica e por participar de urna com unidade.Esta crise do terceiro paradigm a que descreve Lantéri-Laura na qual estamos imersos

levou a psiquiatría e a psicanálise a tom arem caminhos divergentes. Separarlo necessària depois de um período em que a convivencia táo próxim a entre ambas as disciplinas teve consequéncias infelizes. A psicanálise está agora mais livre para escolher seus caminhos, seus conceitos, sua pràtica, sua existencia independente das práticas "psi" (psicologia, psi­quiatría, psicodinamica etc.). Por sua vez, a psiquiatría, liberada da influencia psicanalitica, pode ser plenamente urna especialidade da medicina, construir seus fundamentos biológi­cos e se nutrir de elementos sociológicos, cognitivos, psicológicos etc.

Esta s e p a r a lo pode ser cotidianamente percebida ao se lerem os interesses, os m odos de tratamento, os conceitos com que urna e outra disciplina trabalham. Por sua vez, essa se­p ararlo permite urna colaborad o m ùtua m uito melhor, já que se abre a possibilidade para haver alguma, sem a necessidade de se confundir, se misturar, se imiscuir urna na outra.

Isto permite efetuar um elogio ao DSM-IV. E suficiente que nào se considere a si m es­m o como a verdade ou possuidor da verdade, nem tam pouco pode sé-lo a psicanálise, e que se situé claramente neste lugar de ser um instrumento da época da crise do terceiro paradigma. Ao nào se fazer urna apología da falta de teoria, ao nào tom ar consciencia de que basear-se no empirismo, no com portam ento, no observável, nos dados da sociologia, de que colocar-se a servido da estatística é tom ar partido, entao o DSM-IV é um instrumento

sumamente valioso para os fins para os quais foi construido.O que facilitará para que nós psicanalistas nos ocupemos de nossa pràtica ética do

inconsciente sem estabelecer nenhum sincretismo com a psiquiatría.

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