O MAL-ESTAR NA GLOBALIZAÇÃO

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Luciano  M arti ns  Costa 0 l r I n a  lo b li z çã o

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Luciano Martins Costa

I

0 m le t r a- sa n globalizao a

H pessoas que tm a capacidade de pensar em termos de diviso, separao e quantificao quando isso necessrio. Mas tambm so capazes de pensar em termos de relaes entre as partes isoladas sem perder de vista o todo. Passam naturalmente do operacional ao estratgico e vice-versa, a depender da necessidade e das circunstncias. So pessoas integradoras. Na teoria e na prtica, exercitam o pensamento complexo. Luciano Martins Costa uma dessas pessoas. Seu livro O mal-estar na globalizao uma expressiva manifestao dessa habilidade. Em suas pginas, o leitor encontrar uma ampla discusso de um problema atualssimo e da maior importncia: em nossas sociedades, os valores fundamentais so quase que exclusivamente tecno-econmicos. Eis por que as grandes empresas adquiriram uma importncia em muitos casos at mesmo superior do Estado. A viso de mundo tecnocrtica se baseia no modo de pensar que John M.Coetzee, Prmio Nobel de Literatura, chama de "razo mecnica" e ao qual estamos profundamente condicionados. As conseqncias disso so evidentes: ao lado dos inegveis progressos obtidos com a cincia e a tecnologia, surgiram as chamadas comunalidades. Eis algumas delas: o desemprego e a excluso social; o trfico de drogas; as alteraes climticas; o aparecimento de pandemias como a AIDS; a poluio; o caos na economia. So situaes complexas que, portanto, no podem ser resolvidas por um modo de pensar simplificador como a razo mecnica. Em suma: a mente tecnocrtica no capaz de lidar de modo adequado com a incerteza e a imprevisibilidade, isto ,

Luciano Martins Costa

0 mal-estar na globalizao

Copyright 2005 A Girafa Editora Ltda. Copyright 2005 Luciano Martins Costa No permitida a reproduo desta obra, parcial ou integralmente, sem a autorizao expressa da editora e dos autores.

Coordenao editorial Cristina Zauhy Preparao Hfen Texto e Imagem Reviso Irma Mariotti

Capa e Progeto grfico Daniel Rampazzo/Casa de IdiasDiagramao Sheila Fahl/Casa de Idias

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Costa, Luciano Martins O mal-estar na globalizao / Luciano Martins Costa. So Paulo : A Girafa Editora, 2005. Bibliografia. ISBN 85-89876-74-8 1. Cultura organizacional 2. Globalizao 3. Economia - Histria I. Ttulo. 05-5212 ndices para catlogo sistemtico: 1. Globalizao : Economia mundial 337 CDD-337

A GIRAFA EDITORA LTDA. Av. Anglica, 2503, cj. 125 01227-200 - So Paulo - SP Tel: [55 11] 3258.8878 Fax: [55 11] 3255.1192 www.agirafa.com.br

Para Thais, Filipe e

Carolina.

Sumrio

Introduo I. U m a nova (des)ordem mundial II. A iluso do controle III. Os funerais do rei IV. Sociedade sem rodas V. A linguagem de Babel V I . Os herdeiros do silcio VII. A tecnologia da libertao VIII. A cultura transformista I X . O inimigo dentro de casa X . A resposta inaceitvel X I . A reserva moral dos conservadores XII. O capital conhecimento XIII. A terceira cultura X I V . A filosofia na carne

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X V . O que falta conhecer X V I . A dor da modernidade X V I I . A qualidade que protege XVIII. As capacitaes evolutivas Notas Vale a pena consultar

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Introduo

O mercado mundial de divisas negocia diariamente u m volume de quase US$ 2 trilhes. O nmero de subnutridos crnicos em todo o planeta alcana a cifra de 852 milhes de indivduos, segundo a F A O Organizao das Naes Unidas para Agricultura e A l i mentao. M a i s de 2 bilhes de indivduos esto excludos dos benefcios bsicos da modernidade, como habitao, saneamento e garantia de nutrio, segundo relatrio divulgado na 11a. reunio da U N C T A D Conferncia das Naes Unidas para C o mrcio e Desenvolvimento. O secretrio-geral da O N U , K o f i Annan, anuncia resultado de pesquisa, na qual se constata que dois

teros dos cidados do planeta includos habitantes das democracias que liderara a economia mundial no se sentem representados por seus governantes. Estudiosos das principais universidades do mundo apontam o rpido desmanche de quase todos os paradigmas que sustentaram at aqui o modelo de desenvolvimento nascido com a Revoluo Industrial. Nas grandes cidades de todo o mundo, os cidados mais bem aquinhoados no conseguem viver seu bem-estar e muitas pesquisas revelam que mesmo os bem-aventurados esto infelizes. Responda rpido: como voc classificaria a soma dessas realidades? A me de todas as crises? O triunfo perverso do capitalismo? Apocalipse? O fim do Estado democrtico? O u oportunidade? Educado para tomar decises com base em contextos muito claros, demonstrados em relatrios e planilhas produzidos sob padres confiveis e certificados internacionalmente, o gestor contemporneo est colocado diante de uma situao nova, na qual boa parte do que aprendeu no faz muito sentido. Por exemplo: os nmeros no incio do pargrafo acima indicam o mais elevado patamar que o comrcio de moedas jamais alcanou, indcio inequvoco de um dinamismo nunca antes registrado nos negcios globais. Os nmeros seguintes demonstram o altssimo grau de vulnerabilidade em que se encontra o sistema econmico internacional. O resultado da equao a falta de sustentabilidade do sistema social, que afeta com igual impacto as grandes corporaes de negcios, os fundos previdencirios pblicos, a estabilidade dos governos e, em ltima instncia, o bem-estar dos indivduos. Uma monstruosa contradio se apresenta diante da razo: quando o ser humano alcana nveis de conhecimento

jamais sonhados sobre si mesmo e sobre o Universo; quando a tecnologia permite tangibilizar pela primeira vez o sentido de humanidade, pela criao de uma rede de comunicao realmente global; quando se vislumbra a possibilidade de superao dos limites naturais da vida por conta de uma cincia capaz de recriar organismos, somos apresentados sensao diria de que a humanidade recuou alguns sculos e se encontra novamente lanada s disputas tribais, ao combate corpo-a-corpo por alimento, como nos primrdios da civilizao. fato inconteste, comprovado em sucessivos estudos que informam os fruns sobre o estado do mundo h mais de uma dcada, que o planeta no tem como suportar o ingresso, no rol dos indivduos com direito a uma vida digna, daquele tero da populao mundial atualmente excludo. A s fontes de alimentos, as formas de produo e a necessidade de preservar o que resta da diversidade biolgica do planeta no completam uma conta razovel para a capacidade dos setores produtivos de atender as necessidades mnimas dos que esto fora do sistema, se os programas de incluso continuarem a dar resultado. Por outro lado, a hiptese de se retardar a melhoria da distribuio de oportunidades, presente implicitamente em algumas decises protecionistas de governos de pases desenvolvidos, se revela desastrosa: no existe estratgia de segurana capaz de conter a presso dos excludos contra os muros dos bem-aventurados. Por ltimo, se possvel falar friamente sobre a questo, a prpria sobrevivncia do sistema mundial de negcios depende da expanso dos mercados, o que exige, segundo o Banco M u n d i a l , que se con-

sidere as possibilidades de consumo da base da pirmide. Preservar a diversidade biolgica do planeta e produzir para os pobres. Eis o desafio completo, sem o qual parece no haver futuro. Quem, em s conscincia, pode se considerar seguro nessa circunstncia? Quem, em pleno uso da razo e do conhecimento, pode afirmar seu completo bem-estar diante das contradies do sistema econmico mundial do qual protagonista? E m muitas organizaes de negcios, aqueles que procuram agir em favor de mudanas so ridicularizados. No so raras as ocasies em que os mais crticos so deslocados para as chamadas aes de responsabilidade social, como um exlio que o afasta das decises de negcio. toda a parte perceptvel a sensao de mal-estar. "Quando, com toda justia, consideramos falho o presente estado de nossa civilizao, por atender de forma to inadequada s nossas exigncias de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existncia de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crtica impiedosa, tentamos pr mostra as razes de sua imperfeio, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e no nos mostrando inimigos da civilizao". Esse raciocnio foi exposto por Sigmund Freud em 1929, em sua obra O mal-estar na civilizao, mas cabe perfeitamente no estado de esprito que se percebe neste comeo do sculo X X I . VAIDADE DAS VAIDADES Durante duas dcadas, pude conviver com executivos de diversos setores empresariais, gestores pblicos e polticos. Entrevistei cientistas, militantes de organizaes humanitpor

rias entre os quais o diretor do Programa de Desenvolvimento H u m a n o da O N U e o diretor do Programa de M e lhores Prticas em Desenvolvimento Sustentvel , alm de empresrios, gerentes e alguns chefes de organizaes criminosas. Acredite: encontrei nestes ltimos uma viso muito mais clara sobre a natureza de seus "negcios" do que entre algumas celebridades do mundo acadmico e empresarial. Estudei as origens de algumas expresses culturais que so sacralizadas no ambiente cultural dos gestores, de cujos fundamentos so recheadas muitas teses sobre liderana, estratgia e produtividade. Participei, como jornalista e gestor, dos primeiros passos da Internet e tive a oportunidade de criar e dirigir um produto bem sucedido no setor de contedos online. E m 1998 e 1999, convidado pelo escritor prmio Nob el Gabriel Garcia Mrquez, tive o privilgio de me juntar a uma dezena de jornalistas de vrias partes do mundo, que se dedicaram a estudar a linguagem da mdia no ambiente da globalizao. Isso ocorreu num projeto chamado O Jornal Ideal, quando ento discutimos intensamente as novas formas de comunicao e percepo da realidade. A partir de 1999, pude conviver com gestores de variadas formaes, desde prefeitos de pequenos municpios e gerentes de postos do Instituto Nacional de Previdncia Social (INSS) a presidentes de grandes corporaes com atuao mundial. Entrevistei centenas desses protagonistas da histria recente, utilizando o mtodo jornalstico que objetiva desenhar perfis pelo levantamento de premissas e modelos mentais. Constatei muitas evidncias de que o capital conhecimento est sendo subvalorizado no ambiente dos ges-

tores e que, alm disso, um conhecimento capital pode estar sendo ignorado nas organizaes. Esse equvoco estratgico pode estar na origem de muitos conflitos que assombram o mundo. Como resultado, temos uma elite poderosa como poucas antes na histria da humanidade, mas com baixo nvel de conscincia sobre seu papel e uma pobre noo do legado que est deixando. Esses so os construtores da globalizao: pessoas que passam boa parte de suas vidas trafegando pelo mundo ou participando de teleconferncias, nas quais se consolida o grande sistema econmico e social sem horizonte de sada. A maioria deles se tornou refm de um sistema de poder que emascula o homem e masculiniza a mulher. A executiva adormece na lista das mulheres mais poderosas do mundo. quando desperta, seu nome foi apagado das agendas de eventos. Ainda assim, sofrem quase todos da sndrome do Super-homem (ou da Mulher-maravilha) que faz a delcia dos psicanalistas. U m desses personagens, presidente regional de uma multinacional muito bem posicionada em seu setor, se negava reiteradamente a posar para fotografias em revistas e jornais. Oficialmente, havia uma razo plausvel para isso: um colega de diretoria havia sido seqestrado por criminosos alguns anos antes. M a s ele no resistia tentao de aparecer na televiso, num desses talk-shows nos quais empresrios e executivos tm a oportunidade de falar de suas idias e de sua responsabilidade social. O apresentador do programa tambm o esperto empreendedor de um concorrido encontro anual de presidentes de empresas, que rene numa ilha paradisaca do litoral brasileiro a nata da economia nacional.

Vaidade e vulnerabilidade andam juntas. U m desses convidados especiais "investiu", num desses encontros, cerca de 120 m i l dlares para fazer boa figura entre seus pares. Teve a oportunidade de apresentar seus projetos sociais durante o evento. Contratou consultores, uma empresa especializada, mobilizou diretores e gerentes. U m reprter cuidadoso constatou que suas aes de responsabilidade social valiam exatamente 120 m i l dlares. A assessoria de imprensa a servio da empresa conseguiu contornar a situao com silogismos e bom relacionamento, convencendo o jornalista de que o executivo agira de boa-f e que, afinal, o balano social da empresa acabaria esclarecendo as coisas. So pessoas educadas. As mais bem educadas de seu meio. Por essa razo, pagam um alto preo emocional por sua presena num jogo em que h poucas chances de uma mente bem educada se sentir vontade. A globalizao levou o capital e suas regras a todos os rinces do planeta. Colhe de l um retrato sobre o estado do mundo que choca as pessoas conscientes. O agente do desenvolvimento, investidor, administrador, estudioso, cidado em sua plenitude, sofre da angstia que, segundo Freud, acompanha a civilizao: no v o esforo de sua disciplina resultar em um mundo melhor. o sonho da plenitude no mundo globalizado se torna fonte de mal-estar.

IUma nova IdesJordem mundial

Os espantosos ataques terroristas aos Estados Unidos, em 11 setembro de 2001, foram a expresso assustadoramente clara de um mundo no qual as contradies da sociedade que construmos ao longo dos dois ltimos sculos se revelam devastadoras. Pela primeira vez, se torna tangvel para toda a humanidade a hiptese de termos entrado em um processo que pode conduzir ao fim da civilizao que construmos no Ocidente. India e Paquisto disputam o privilgio de potncias emergentes na nova economia. A o mesmo tempo, se confrontam como belige-

rantes capazes de dar incio a uma guerra nuclear de propores inimaginveis. Terrvel e inominvel, o ato de terror de um indivduo no Oriente Mdio tambm a metfora a partir da qual podemos lidar com uma resposta para a questo de termos ou no um processo civilizatrio ainda pela frente. O rei est nu. O sistema que se impunha triunfante no processo de globalizao, insensvel s denncias do terror econmico que impunha a bilhes de seres humanos excludos, revelase extremamente vulnervel. O inimigo que abriu as fissuras do sistema em 11 de setembro de 2001 pode ter sado de uma caverna localizada num pas isolado da modernidade, mas foi alimentado, educado e treinado no interior do sistema que iria vitimar. Valeu-se dos pressupostos de democracia e tolerncia que pretendia destruir, aprendeu caprichosamente a lngua, os costumes, a geografia e todos os detalhes tcnicos necessrios perpetrao do ato. Contou, e certamente vai contar por muito tempo, com adeptos no mundo que pretendeu atingir, a julgar pelas evidncias de que a ao terrorista foi possibilitada por estratgias equivocadas, nascidas no corao do prprio sistema que estaria no papel de vtima. Junto com as torres que simbolizavam o poder desse sistema, desaba a inocncia que ainda se permitiam seus agentes individuais, os gestores de todos os tipos de negcios. Assim como a queda do muro de Berlim, em 1989, simbolizou o fim de uma viso simplista e bilateral de mundo, os eventos de setembro de 2001 so o marco de uma nova era, na qual a responsabilidade do indivduo pelo bem-estar coletivo no pode mais ser negligenciada.

Voc j pensou nisso? Quando l os textos de analistas, voc toma conscincia de que tudo isso afeta suas decises, ou espera que o mercado se posicione para depois pensar no que fazer? O inimigo agora se dilui num cenrio muito mais sutil e poderia estar sentado bem ao lado, na classe executiva de u m vo internacional. Voc o imagina como algum de longas barbas, cabea coberta por um turbante, expressando o fantico religioso que rejeita o futuro e considera que a idade de ouro da humanidade j ficou para trs. M a s ele tambm pode ser exatamente como voc, vestido em roupa de grife qualificada, senhor ou senhora de hbitos aceitveis no mundo civilizado neste caso, representando o indivduo que se considera superior a seus contemporneos, posterior Histria e, portanto, isento da responsabilidade de contribuir para um processo civilizatrio. O u seja, as exploses no World Trade Center e no Pentgono desnudam a qualidade mais perversa do capitalismo: a vocao para gerar em si o ovo da serpente, onde germinam o brbaro que se exclui e o brbaro que se considera nico portador do direito incluso. , portanto, destruidor do sentido essencial do modelo pluralista de organizao social. Essa realidade escancara as vulnerabilidades da sociedade moderna, que no faz sentido sem amplas liberdades. Estas, por sua vez, incluem movimentos macios de pessoas, mercadorias e valores e grandes concentraes e diversidade de indivduos de origens, credos e desejos variados nos seus complexos urbanos. E m novembro de 2001, uma pesquisa realizada pela Universidade da Califrnia indicava que 4 4 % dos cidados americanos sofriam de algum sintoma de estresse aps os atentados. N o s primeiros meses aps os atentados, as res-

postas colhidas em milhares de consultas realizadas nas grandes cidades de todo o mundo davam conta do estabelecimento de um temor generalizado e difuso em relao ao futuro da humanidade. Diante das idias apocalpticas que se formaram no imaginrio coletivo a partir das cenas de horror, cabe reverter o raciocnio e procurar nos escaninhos do dia-a-dia, onde se encontram as respostas para esse medo. Afinal, fomos colocados diante da perspectiva de um novo conceito de guerra prolongada e capilarizada, durante a qual os mais bsicos direitos do ser humano estariam constantemente sob risco. Assim, precisaramos incluir em nossas reflexes estratgicas a possibilidade de as organizaes de negcios serem envolvidas no conflito. Ficou evidente que alguns militantes do complexo religioso-militar identificado como autor dos atentados vinham atuando a partir de empresas com destacada presena internacional. D a mesma forma, uma outra catstrofe da modernidade, o crime organizado, vem utilizando empresas legais como suporte para suas atividades. Tambm conhecido que os financiadores do terror e os grupos mafiosos de todas as nacionalidades vinham, por mais de uma dcada, operando suas prprias organizaes e utilizando instituies financeiras com presena global para movimentar os recursos que produziram a destruio. O que isso tem a ver com as pequenas falcatruas que se cometem todos os dias em quase todas as instituies de negcios, privadas ou pblicas? C o m as pequenas artimanhas e malandragens que nos habituamos a considerar normais, at que implodem um complexo do tamanho da Enron, da W o r l d C o m , da Parmalat ou da Adelphi Communications?

Investigaes de profissionais independentes, como os jornalistas que participam da organizao IR E Investigative Reporters and Editors , e especialistas de organismos como a Fundao Giovanni Falcone, do conta da lenincia com que os organismos internacionais tm tratado a liberdade de movimentos das fortunas produzidas pelo crime organizado e pela corrupo. Pelos mesmos canais que lavam o dinheiro das drogas trafegaram os recursos que tornaram possveis as cenas que chocaram o mundo. Esses so igualmente os canais que serviram, na dcada de 1980, ao financiamento dos mesmos combatentes que lutavam no Afeganisto contra a dominao sovitica. Pelos mesmos canais se esvai a poupana de pases pobres, a partir dos movimentos de autoridades corruptas. Uma lgica perversa se oferece como pano de fundo de todo esse horror. U m a lgica comum s crises que se sucedem na economia mundial desde o incio dos anos 1990, quando capitais de imenso poder passaram a se deslocar dos grandes centros para a periferia do mundo ps-Guerra Fria. C o m os negcios sendo realizados sem fundamento em valores humanitrios e universais, as oportunidades se oferecem mais atraentes no curto prazo quanto mais perifrico o mercado em relao aos centros tradicionais de negcios. M a s a segurana ainda est nos velhos centros. Faz-se mais capital com menos capital na periferia, mas rio centro que ele se consolida e se realiza como forma de poder. ele se recolhe nos momentos de crise. Essa lgica tem agravado o fenmeno do crescimento excludente que grita nas ruas e em todas as estatsticas sem, no entanto, sensibilizar aqueles a quem a circunstncia mais beneficia imediatamente e a quem mais ameaa a longo pral que

zo. Quando a excluso se configura em ideologia e adquire a tecnologia para produzir agresso em larga escala, no centro que a violncia se manifesta. Se globalizao corresponde o fenmeno inversamente proporcional da tribalizao, no seria difcil prever a volta das lutas tribais, desta vez no corao do mundo civilizado, na forma j ensaiada pelas gangues da dcada de 1980 em muitas cidades de todo o planeta. No custa lembrar o alerta feito h mais de vinte anos por Willis Harman: o ltimo recurso dos excludos poder ser a "guerra de redistribuio de riquezas". Produz-se hoje 4 0 % mais riqueza que h duas dcadas. Utiliza-se um grau de tecnologia que h cinqenta anos era tema de fico cientfica, mas a um custo insuportvel para as reservas naturais e inadmissvel para a conscincia humana. C omo se fossem incapazes de aprender com suas prprias aes, os gestores dos capitais esto destruindo as possibilidades de permanncia do poder que constroem. Nenhuma sociedade poder emergir dessa prtica, pela simples razo de que esse capital no produz o conhecimento necessrio criao de uma cultura prpria que consolide em torno dos negcios uma sociedade aceitvel. N e m mesmo o executivo mais bem-sucedido pode evitar a sensao de mal-estar que essa circunstncia provoca. O mal-estar na globalizao nasce das impossibilidades que ela gera. N a ltima volta dessa espiral de contradies, elas tornam a prpria globalizao uma improbabilidade, por se revelar insustentvel. Q u a l , ento, a lgica dessa prtica que a longo prazo se manifesta auto-destrutiva? Rapidamente, com a reduo de barreiras nacionais e culturais ainda existentes, o poder gerado por esse movimento de capitais se impe inexor-

vel e progressivamente como centro de um sistema social e poltico global. M a s em pouco tempo a sociedade poder estar saturada da incompetncia do capital em produzir o bem-estar geral e, como j se anuncia nos encontros para discusso do estado do mundo, a irracionalidade pode estar triunfando. Nunca antes, em toda a histria da humanidade, a cincia ofereceu tantos recursos para que os empreendimentos humanos produzam resultados. N o entanto, sabe-se que os direitos ao uso desses recursos se concentram de tal maneira, que se estabelece uma verso ainda mais perversa do colonialismo de h 300 anos. Bem pouco das conquistas cientficas agregado ao dia-a-dia das pessoas comuns. U m a tese provvel, para explicar a incapacidade do capital de se revestir de um significado que o faa autor de uma sociedade humana mais habilitada a durar e evoluir, pode ter suas premissas na forma como esse poder gera e se apropria do conhecimento. O capital faz apenas parte do seu trabalho, movendo recursos na direo da obra desejada, mas no presta ateno aos subprodutos e recursos que gera sob a forma de conhecimento. como se os gestores de capital no notassem as transformaes que seus movimentos produzem nem se dessem conta da sociedade que deixam para trs. C o m o se o capital s tivesse conscincia do seu poder na realidade unidimensional do balano de resultados. justamente nesse fator predominante, seno nico, em que se concentra a inteligncia aplicada gesto, que est a questo essencial: a rigor, s existem gestores de capital. Diante da ditadura do demonstrativo de resultados, tudo se torna urgente, a estratgia vira uma colcha de retalhos e todas as variadas especialidades que formam a organizao

se dobram como fiis na direo de Meca: s o resultado interessa. Como o capital no cria o conhecimento adequado para romper o curso da espiral, o nico resultado que interessa justamente o financeiro. Assim como, desde o incio da Revoluo Industrial, os modos de produo vm constantemente destruindo as reservas naturais do planeta, o atual estgio do capitalismo produz a devastao cultural em muitos ambientes sociais onde o capital atua, sem o cuidado de estabelecer uma relao "ecolgica" com o meio social. N a cultura comum das organizaes de negcios, a diferena bsica entre elas ou entre os setores em que se dividem, diante da questo do resultado, a noo de prazo, no a noo dessa qualidade essencial de produzir sem depredar material ou culturalmente. Para uns, curto prazo um ano; para outros, um ms; mas poucos correm riscos reais tendo em conta outros resultados que seriam tangveis se houvesse a percepo de um valor no conhecimento produzido pelo capital em ao. Por no enxergar essa riqueza, a organizao transforma todos os gestores, mesmo aqueles dedicados s chamadas responsabilidades sociais, em gestores de capital. Uma das mais claras conseqncias dessa distoro a "sndrome de Alphaville". N a comunidade dos iguais, todos se vestem da mesma forma, todos pensam igual, tm os mesmos desejos, usam a mesma linguagem e se distanciam cada vez mais da realidade multidimensional, multicultural que o mundo vai revelando. Erros grosseiros nas escolhas pessoais de executivos e, por conseqncia, nas escolhas estratgicas de empresas, nascem da incapacidade dos indivduos de enxergar a diversidade como patrimnio. N o entanto, voc sabe, desde o curso primrio, que a diversidade a razo de ser da vida.

O SO NH O LIBERAL

O horror produzido em todos os coraes e mentes naquela manh de 11 de setembro de 2001 no se alivia com o passar do tempo. A o contrrio, ele se torna mais denso e pesado medida em que as pessoas tomam conscincia de que aquele foi o episdio inicial do que pode ser uma sucesso de guerras sem fim, travadas nas ruas das grandes cidades. A humanidade, afinal, se defronta com a impossibilidade de seguir produzindo riqueza sem atentar para a urgncia de u m novo sistema, cujos ensaios ainda so tmidos demais nas salas de alguns poucos gestores. Noes de responsabilidade social, desenvolvimento humano sustentado e conscincia ecolgica ainda so pregadas com o estilo dos primeiros evangelizadores, e o indivduo consciente apresentado ao retrato finalizado de sua impotncia. O sistema falhou e o sonho das grandes mudanas coletivas se esvaiu. preciso criar um novo conhecimento capaz de conduzir revoluo individual da qual possa brotar a reinveno do sistema. Nas organizaes de negcios privadas ou estatais se encontram as pessoas que podem fazer essa diferena. M a s esses indivduos sabem disso? Quem so essas pessoas? Basta observar os sagues de aeroportos antes dos vos preferenciais dos executivos e empreendedores, para constatar que a comunidade que toma as decises fundamentais para o futuro da humanidade, cuja ateno e opinies so disputadas segundo a segundo pela mdia, no tem idia de sua importncia diante da Histria. O que falta aos processos de educao de gestores para que eles entendam seu papel mais nobre, talvez sua verdadeira funo social?

Faltam ao capital privado ou pblico a motivao e os valores essenciais para que ele seja capaz de gerar o conhecimento necessrio sua consolidao como modelo propulsor de um desenvolvimento real e criador de bem-estar generalizado. Modelo, mais do que instrumento. Porque, nos dois sculos e meio em que movimenta as economias do mundo, o capital evoluiu da condio de recurso para fim em si mesmo, condicionando toda a cultura em que toca. N e m mesmo a reduo da capacidade do Estado de financiar o bem-estar geral sensibiliza os gestores para essa necessidade. Os movimentos em favor de maior responsabilidade social das empresas so o nico recurso de amplos setores excludos do bem-estar geral. Mas ainda so vistos como extraordinrios, e sua linguagem de catequese revela como ainda esto distantes de uma verdadeira conscincia de humanidade. Os processos de inovao em andamento nas empresas comeam a internalizar a cultura da responsabilidade social. M a s , enquanto o universo cultural dos gestores no se deslocar do eixo ao-resultado, toda estratgia ser v, toda inovao nascer envelhecida. As teses sobre gesto de conhecimento nas organizaes no passam de retrica, se no se discute a qualidade do conhecimento gerado constantemente e no mesmo sentido nas ltimas dcadas. Todas as melhorias, toda sofisticao gerada pela revoluo tecnolgica e pela criatividade dos gestores s fazem ampliar um poder perverso que, ao agir contra os interesses da humanidade, age contra si mesmo. O horror dos atos de terrorismo e a brutalidade do crime organizado no se justificam sob nenhum ngulo de anlise, mas entre os componentes de sua origem est com certeza a incapacidade do poder econmico de se revestir de u m signi-

ficado aceitvel para todo o mundo, a partir de cada unidade de negcio. M a s haver de fato u m tipo de conhecimento que possa ser produzido e enriquecido nas organizaes de negcios privados ou estatais, que opere como embrio de um novo processo social? Ser que as novas tecnologias, nas quais as empresas investem volumes respeitveis de recursos financeiros, no teriam algo mais a oferecer alm de ganhos de produtividade e reduo de custos? Se essas organizaes se tornam progressivamente as maiores comunidades de indivduos bem educados e treinados para confrontar diariamente as teorias com a realidade por que esses i n divduos no so capazes de oferecer sociedade, com seus produtos e servios, um sistema que realmente funcione como uma cultura de bem-estar geral e no apenas para eles prprios, seus acionistas e seus parceiros? No lhes falta conhecimento bsico sobre o comportamento geral dos indivduos e dos sistemas sociais. Milhares de publicaes e estudos acadmicos informam sobre a histria dos negcios e de como os processos se desenvolvem e se desfazem. D o seu posto de trabalho, voc tem acesso ao que existe de mais avanado em qualquer ramo de conhecimento. Seu valor para a empresa pode ser medido pelas oportunidades de aprendizado que ela lhe oferece, de modo que voc e seus pares podem ser considerados a vanguarda da evoluo humana, certo? M a s voc j parou para pensar como seria estar excludo dessa comunidade de poderosos? Se voc no pode estar confortvel dentro do sistema, e tambm no pode se imaginar fora dele, qual o seu lugar? Afinal, qual o seu real valor para a organizao que o inclui no sistema? Quais so seus recursos reais para a per-

cepo do mundo, e o que garante que voc constri todos os dias uma percepo prxima da realidade objetiva? Sua identidade pessoal coerente com sua identidade profissional e sua identidade corporativa? A carreira que voc constri honra sua identidade pessoal? Ainda no so definitivas as informaes sobre o funcionamento da nossa mente e de como realizamos o aprendizado, mas as muitas hipteses j consolidadas apontam caminhos bastante seguros para a definio de novos paradigmas em gesto de talentos e vocaes. A globalizao cada vez mais acelerada acrescenta ainda mais informaes que, contextualizadas estrategicamente, oferecem grandes oportunidades para as organizaes e para o profissional. Mas no se observa nas aes dos gestores a valorizao real do conhecimento, como um capital to ou mais importante que o capital financeiro ou outros ativos tangveis. Por exemplo: voc realmente sabe 1er? C o m base em quais premissas voc constri seu modelo mental? E m plena era do conhecimento, ainda lidamos com dados como se fossem informaes e consideramos sabedoria a manifestao da esperteza. Somos uma elite que se envergonha de sua posio. E m todos os fruns sociais de que participamos, com as melhores intenes, podemos observar o grande nmero de indivduos fragmentados entre o desejo de felicidade e o peso do conformismo. Estamos completamente conscientes de que o processo de expanso global dos negcios irreversvel e fazemos nosso papel, no melhor das nossas qualificaes, para defender nossas bandeiras. mal conseguimos identificar em nossas angstias o mal-estar da globalizao, aquele conjunto de sentimentos contraditrios de que falava Freud no comeo do sculo passado.

Essa elite, qual pertencemos todos ns, profissionais em fazer funcionar u m empreendimento privado ou uma instituio pblica, ainda imagina o mundo ideal como u m relgio e no tem conscincia de que, pela lgica de todo organismo vivo, em algum momento se tornar impossvel a gesto de muitas organizaes, porque a perversidade do sistema o torna muito vulnervel. E m todos os momentos de ruptura do tecido social que pudemos constatar na Histria, o retrocesso produzido atingiu o todo da sociedade e as elites sofreram processos de reciclagem, sua revelia. De to primrias, algumas de nossas aes, baseadas numa iluso de controle ainda remanescente da noo mecanicista da vida, beiram o ridculo. Durante o processo eleitoral de 2002, no Brasil, uma grande empresa da regio sul resolveu dar sua contribuio a u m candidato de sua preferncia, utilizando u m artifcio que revela de forma muito esclarecedora o estilo de seus gestores: 280 pessoas foram contratadas e demitidas 22 dias depois. A cada uma delas foi dito que, se determinado candidato no fosse eleito presidente da Repblica, todos eles voltariam a ser empregados. Entrevistei alguns desses trabalhadores. Estavam revoltados porque sabiam que haviam sido manipulados. Seus sentimentos, as esperanas de suas famlias, sua autoestima, foram objeto de abuso. Que espcie de futuro esses gestores pensam que esto criando para suas empresas? Essa mesma companhia contava com os servios de uma renomada empresa de assessoria de comunicao. Seu relatrio de responsabilidade social, distribudo no incio de 2003, era um primor de edio. A interpretao que procurava oferecer sobre a realidade daquela empresa no com-

binava com a prtica real exercitada durante as eleies daquele mesmo ano. Menos de dois anos depois, essa empresa enfrentava uma grave crise, com seus resultados desabando e seus gestores assombrados com a ineficcia de todas as medidas que experimentavam. Ser que algum deles percebeu a relao entre a tentativa de manipulao que haviam praticado e a inverso imediata da curva de desempenho da organizao? Qual o grau de conscincia desses gestores sobre a percepo, no ambiente corporativo e no ambiente vizinho empresa, de decises como essa, aparentemente to distantes das decises de negcio? Que milagre esperavam de um belo mas fantasioso relatrio de responsabilidade social, e de todas as outras operaes de comunicao corporativa, diante da atitude condenvel de manipular a angstia de trabalhadores desempregados? Algum acredita que esse tipo de mentalidade pode produzir bons resultados em longo prazo?

Para refletir:1. VOC? T E M CONSCINCIA DO ALCANCE DAS DECISES QUE TOMA NO SEU DIA-A-DIA? 2. Q U A L A RELAO ENTRE O FENMENO DO TERRORISMO E M ESCALA MUNDIAL 3. A GLOBALIZAO DOS NEGCIOS?

Q U A L ERA O SEU MAIOR MEDO ANTES DO 1 1 DE SETEMBRO? AGORA?

IIA iluso do controle

Quando publicou seu livro Ciberntica ou con-

trole e comunicao

no animal e na mquina,

em 1948, o matemtico Norbert Wiener deu incio a um dos maiores processos de desconstruo de significados culturais, polticos e econmicos que o mundo j produziu. Tomando a metfora inspirada por Plato em seus Dilogos riu a Kybernos, em que o filsofo se refea arte de pilotar , Wiener

props uma srie de equaes. Estas abriram caminho para a construo de computadores realmente funcionais, e escancararam as portas para a grande revoluo nas telecomunicaes, no lazer, na pesquisa espacial e no desenvolvimento da inteligncia artificial.

Seu trabalho se tornou to popular quanto mal compreendido. Gerado no ventre da Guerra Fria, com os Estados Unidos apressando seus trmites para tomar posse de metade do mundo em runas aps a Segunda Guerra Mundial, o livro embalou iluses de poder e controle. foi o ponto de partida e base "cientfica" para muitas e desastradas aes polticas, que acabaram marcando toda a histria recente. A rigor, o que Norbert Wiener demonstrou que existe uma unidade estrutural em processos to diversos quanto os sistemas de direcionamento de um mssil, a tendncia de crescimento do ramo de um arbusto ou a regulao da taxa de gs carbnico no sangue. M a s , assim como Plato havia alertado para a convenincia de levar em considerao as variveis na arte de governar barcos ou pessoas, a obra de Wiener trata de quantificar e qualificar o maior nmero possvel de variveis C o m isso, visa a estabelecer um grau razovel de previsibilidade nos processos. Trata essencialmente da metodglogia e oferece argumentos matemticos aos problemas do anti-acaso. O que no significa que suas equaes possam sustentar a transferncia direta de conhecimento sobre mecanismos materiais para os sistemas vivos ou vice-versa. Porm, tanto o poder poltico-militar como o capital se apropriaram de parte desse conhecimento para justificar suas premissas de controle e previsibilidade. So desse perodo quase todos os processos e sistemas utilizados ainda hoje na gesto de organizaes de negcios ou governos. A ordem justificada na possibilidade matemtica do controle, inspirada nas equaes de Wiener, formou e consolidou todos os sistemas econmicos, sociais e polticos que domina-

ram as dcadas seguintes do sculo X X . U m sistema educacional baseado nas mesmas premissas vem formando empreendedores, gestores, educadores, pais de famlia, operrios e novos mestres de uma iluso recorrente: a iluso do controle. Voc se lembra muito bem de brinquedos, jogos, histrias em quadrinhos, filmes e outros produtos derivados dessa iluso segundo a qual seria possvel controlar com perfeio os eventos por meio de sistemas mecnicos ou eletrnicos. Pense no que tem sido a realidade neste perodo. O mundo nunca teve, desde ento, u m perodo de estabilidade que durasse mais de duas dcadas. M a s em nenhum momento os debates chegaram ao fundo da questo, talvez porque tenha imperado durante quase todo esse tempo o contraditrio superficial entre modernidade e atraso, esquerda e direita, que simboliza o contraditrio visceral expanso-consolidao, progressoestabilidade, caos-ordem, criatividade-segurana. Quando, finalmente, o amadurecimento dos produtos gestados nos raciocnios de Norbert Wiener produziu a revoluo digital, na ltima dcada do sculo X X , o paradoxo se manifestou em plena celebrao do chamado triunfo liberal: a nova ordem qual fomos apresentados tinha como caracterstica mais notvel exatamente a ausncia de uma ordem aparente. Kybernos, a arte de pilotar, se revelava mais rica em variveis, ou melhor, o ambiente humano se tornara muito mais complexo. Por meio de uma rede de computadores interligados no emaranhado das conexes telefnicas, os indivduos foram quase repentinamente colocados diante da materializao do sentido de humanidade. De fato, entre todas as possibilidades abertas pela Internet, a mais instigante e certamente a que mais profundas conse-

qncias ir produzir nas relaes de todos os tipos, a concretizao do sentido de humanidade, at ento uma expresso intangvel e apenas suspeitada. Quando um cidado, a partir de uma ligao extremamente precria, comeou a espalhar por computadores do mundo inteiro, notcias sobre a guerra nos Blcs, uma gigantesca massa crtica se formou instantaneamente em todos os cantos do mundo, forando e apressando as aes diplomticas e militares que interromperam os massacres de milhares de seres humanos em Kosovo. Isso humanidade tangvel. Mas quanto dessa percepo, aparentemente vlida na sociedade, ocorre nos centros do poder real? Os gestores de capital no parecem ter notado esse fenmeno. O u , numa verso mais maliciosa, talvez o tenham notado e corram a produzir volumes cada vez maiores de capital antes que seus movimentos sejam restringidos. H uma enorme carncia de capital na maior parte dos pases e uma contrapartida de liquidez e desperdcio em alguns poucos l u gares. A velocidade com que as informaes economicamente teis passam de um lado a outro do planeta a mesma que tem acelerado tambm a formao de opinies e de conhecimento sobre o estado do mundo. Qual seria a estratgia ideal para os gestores de capital? Acelerar o acmulo dessa forma de poder e reforar suas cidadelas, espera de conflitos inevitveis, ou buscar um novo significado e apostar na criao de uma sociedade menos propensa aos conflitos? Os atentados de setembro nos Estados Unidos e a falta de perspectivas da vida moderna merecem uma reflexo nesse sentido. A metfora da cidadela talvez seja ainda mais rica para entendermos o fenmeno, se lembrarmos que os sistemas de proteo das redes de computadores so uma repetio das

fortificaes medievais. No por acaso, o cinturo protetor se chama firewall (parede ou muro de fogo), o que chega a soar ridculo, sabendo-se que 7 0 % dos atentados contra a integridade de bancos de dados digitais ocorrem nas redes internas, dentro das muralhas. a maioria absoluta desses atentados praticada por funcionrios insatisfeitos. Pesquisas realizadas desde 1999 revelam que h u m hiato na compreenso desse fenmeno, uma vez que aparentemente no h grandes motivos para insatisfao na maioria das empresas pesquisadas. A no ser que falte a elas um significado, ou um esprito, que faa sentido para seus funcionrios. Pense nisso ao planejar sua prxima ao de comunicao interna e esquea a iluso do controle. D a mesma forma, os sistemas de securitizao de capitais lembram as cidadelas da mais remota Idade Mdia. Nelas, um crculo de bosques protegia os campos agriculturveis, que por sua vez guardavam em seu interior uma rea protegida por muros baixos de pedra. Dentro destes havia outro crculo com as primeiras casas mais humildes, depois uma muralha e dentro dela a fortificao que abrigava as construes mais importantes, como a igreja, a casa do senhor e os depsitos de alimentos. Confiana, mais uma vez, a chave para entender a diferena entre empresas com sistemas de segurana muito simples, que funcionam satisfatoriamente e aquelas que gastam pores cada vez maiores de seus oramentos em sistemas que se revelam sempre vulnerveis.

O INIMIGO NTIMO

Agora reflita por um momento: no segundo semestre do ano 2002, na mesma ocasio em que o governo dos Estados

Unidos anunciava novas ofensivas contra pases considerados aliados ou comprometidos com o terrorismo, o prprio presidente americano, George W. Bush, era acusado de haver omitido a venda de participao na empresa Harken Energy, que havia realizado dois meses antes do valor das aes da companhia desabar em 20%. N a mesma semana, seu vicepresidente e mentor poltico, Richard Cheney, tambm era acusado de haver cometido crimes contbeis em sua empresa petrolfera, a Halliburton. N o rastro dessas notcias, surgia ainda a revelao de que funcionrios de representao diplomtica americana haviam facilitado, em troca de propina, a concesso de vistos a pessoas suspeitas de terrorismo. Alguma relao entre esses fatos, o cavalo de Tria dos gregos e a cepa de vrus com o mesmo nome que contamina os sistemas de informtica de poderosas organizaes? Por que as organizaes no conseguem o comprometimento necessrio de seus colaboradores, fornecedores, parceiros e clientes, o que tornaria desnecessrias suas muralhas? Porque falta uma tica essencial ao sistema, e essa fratura est exposta no principal ncleo de poder do capitalismo. possvel que os capitais em giro vertiginoso ao longo dos fusos horrios estejam operando num mundo que j no existe, ou que estejam tentando segurar uma realidade que muda mais rpido que a capacidade dos seus gestores de compreend-la. Praticamente todas as manifestaes de gestores de capital disponveis na mdia especializada expressam a convico de uma habilidade absolutamente impossvel: a de conhecer um nmero suficiente de variveis capaz de manter os riscos num padro aceitvel e, ao mesmo tempo, capaz de proporcionar uma viso ampla e acurada de tendncias promissoras de bons

resultados. As tecnologias tm a caracterstica de oferecer progressivamente mais possibilidades de controle, mas as cincias das quais elas derivam tendem a revelar constantemente novas variveis, o que mantm elevado o fator aleatrio. Pense, por exemplo, em quantas empresas operacionalmente saudveis se tornaram refns do sistema financeiro, por conta de aes aparentemente sob controle. A aparente capacidade de produzir benefcios no crculo mais prximo (acionistas, empregados, comunidade imediata), quando realmente se realiza, apenas refora a iluso de que alguma coisa significativa est sendo construda. A espiral da iluso comea com a iluso do controle e se estende a tal ponto que, muitas vezes, mesmo quando o gestor de uma organizao assume a louvvel atitude da responsabilidade social, seu empreendimento pode estar na mais absoluta contramo da Histria. No so poucos os casos em que um aparente sucesso, politicamente e moralmente inatacvel, acaba resultando num desastre no longo prazo, se consultados os interesses e necessidades de um crculo mais amplo de influncia. No faltam informaes, os dados esto disponveis em grande volume e em todas as partes, os fornecedores de suporte renovam quase diariamente os sofisticados recursos a preos cada vez mais razoveis. Pode-se conhecer na maior intimidade os hbitos dos consumidores. Pode-se garantir confiana e proximidade dos fornecedores. Pode-se dispor de uma ampla variedade de meios para dar-se a conhecer ao pblico. M a s os gestores nunca sabem que mundo iro encontrar no caf da manh. O que eles no parecem entender que o mundo no qual atuam no atende da mesma forma aos estmulos das mais diversas naturezas, como faz supor a cultura do controle.

Est mais do que claro, para muitos analistas, que parte da economia se assenta sobre uma roleta, enquanto outra parte joga numa mesa de pquer com cartas marcadas. Os gestores em geral olham para esse cenrio e manifestam seu descontentamento. Quanto tem custado, s organizaes polticas e econmicas, a manuteno desse jogo? Ningum, nenhuma instituio bancria ou governo, pode calcular o valor dos subsdios que sustentam essa perigosa iluso. As ondas de expanso e recolhimento de capitais no refletem mais as relaes causais que garantiam o sono dos gestores h algumas dcadas. Hoje, a morte de uma vaca na ndia pode derrubar o touro em Wall Street. Os gestores se assombram com os boatos matinais, passam boa parte do seu tempo esgrimindo com fantasmas e no se do conta de que tudo comea em suas prprias mesas. Quanto ainda custar periferia do sistema e humanidade a extenso desse quadro de esquizofrenia? Nos ltimos dez anos, tenho tido a oportunidade de conviver com centenas de gestores intermedirios e executivos de alto escalo de organizaes dos mais variados tipos, desde abnegados gerentes do sistema pblico de previdncia do Brasil at o presidente de uma das gigantescas empresas de telecomunicaes que se tornaram o paradigma na balana das bolsas em todo o mundo, passando por um jovem herdeiro de uma indstria de produtos cermicos. Entre as perguntas que pude fazer a muitos deles, uma em especial os deixava atnitos: "Se voc acredita que ainda est em curso no mundo um processo civiliza trio, qual o seu papel nele?" Era como se o peso da Histria se abatesse sobre o indivduo. No bastasse toda a responsabilidade pelos resultados das organizaes que dirigiam, mais a necessidade de

entender a avalanche de mudanas que a virada do sculo estava derrubando sobre suas cabeas, era como se aquela pergunta pretensiosa colocasse em cheque sua prpria existncia como seres humanos. A maioria gaguejava, vestia seu discurso com roupa de domingo e se estendia em anlises retricas sobre os limites do seu papel de gestores, as dificuldades criadas pelo governo e a falta de educao da populao em geral, culminando quase sempre com a irresponsabilidade da imprensa. Lembro-me bem do jovem herdeiro, rapaz recm-sado dos trinta anos. Ele me confessou que at poucos meses antes tivera problemas com lcool e cocana e que fora freqentador de uma luxuosa casa de prostituio em So Paulo, durante o perodo imediatamente anterior nossa conversa, quando sua famlia pensava que comparecia a um evento de marketing na cidade. " H trs meses", disse, "se voc me fizesse essa pergunta eu consideraria uma provocao ou uma besteira. Hoje ela faz sentido e est no centro de tudo que pretendo aprender e praticar daqui para a frente". O que havia provocado mudana to radical no seu comportamento, fazendo com que se transformasse, em relativamente poucas semanas, de playboy irresponsvel em um dos mais aplicados alunos de u m exigente curso de gesto? Ele me contou: " M e u pai me convocou a uma reunio e me apresentou a um cara da minha idade. Disse que era o executivo de um banco, encarregado de preparar a incorporao da nossa empresa por uma indstria de cimento. Estou saindo dos negcios, ele me disse. Perguntei: e eu? Ele respondeu: voc nunca esteve. C o m o dinheiro que vai receber, pode comprar um bordel s pra voc, montar uma destilaria exclusiva

e otras cositas ms. Pedi licena para falar reservadamente e samos da sala de reunies. N o seu escritrio, ele me abraou e chorou. Disse que havia cansado de esperar que eu me interessasse por continuar seu trabalho. Eu lhe pedi uma chance. Chorei com ele e naquele instante toda a minha vida passou rapidamente pela minha frente. Eu tinha entendido que era hora de crescer. Tenho doze meses para provar que posso assumir a direo da empresa, mas ainda vou disputar um cargo de gerente. A venda da empresa foi suspensa, ou na verdade nunca vou saber se algum dia foi realmente cogitada..." Houve ainda uma ironia naquela conversa. Ele me contou que havia lido um de meus artigos sobre comunicao meses antes desse episdio e que havia comentado com o control-

ler da empresa o alto grau de "lirismo" do autor, e que estehavia aproveitado a ocasio para obter seu apoio para um projeto de restries severas ao uso de e-mails na empresa. O projeto inclua, entre outras punies radicais, demisses por justa causa e publicao na imprensa local dos nomes dos demitidos. "Agora percebo o nvel das manipulaes a que eu estava submetido, simplesmente por me negar a perceber a diversidade do mundo", observou. "Quanto sua pergunta, posso dizer que acredito na ocorrncia de um processo civilizatrio e acho que o capital tem o papel de produzir a riqueza geral, mas precisa criar o conhecimento necessrio formao de uma sociedade cada vez melhor". Foi ele quem me deu a idia de registrar as reflexes produzidas por centenas de conversas como aquela. Sua definio de um possvel papel social do capital, e sua referncia possibilidade da gerao de um conhecimento capaz de sustentar uma cultura evolucionista da sociedade, me con-

duziram pesquisa especfica sobre o efeito dos variados paradoxos do nosso tempo no ambiente corporativo. Sei que esse rapaz se tornou o brao direito do seu pai e no apenas assumiu u m cargo de direo, como estava indicado para o conselho da federao das indstrias do seu Estado. Alm disso, convencera seu pai a liderar na regio um movimento de empresas socialmente responsveis.* Infelizmente, so poucos os casos como esse. Mesmo que, sob critrios mais exigentes, suas definies de papel social e de responsabilidade social sejam discutveis, a realidade entre os gestores em geral de u m nvel de conscincia muito pobre. So poucos os donos desse poder de mover economias que sequer chegam a perceber a possibilidade de produzir algo mais do que lucro e vantagens para sua prpria organizao. Embora pesquisas realizadas em novembro de 2001, dois meses aps os atentados nos Estados Unidos, tenham revelado o que muita gente vinha percebendo na vida real: cresceu significativamente de 60% para 7 9 % o total de consumidores que declararam preferir produtos e servios de empresas que tenham algum significado social. Pesquisas posteriores realizadas por variadas instituies s fazem reafirmar essa tendncia. A realidade feita de gestores e acionistas assombrados com crises que eles prprios alimentam, em seu duplo papel de empreendedores e especuladores. como se eles prprios, deuses e heris dessa nebulosa que a mdia chama de neo-liberalismo, no acreditassem nos postulados que apregoam. Estaria a a origem dos sintomas de esquizofrenia que se revelam, por exemplo, na obsesso por ordem e controle em plena reinveno da economia, e na busca por protocolos rgidos em plena era digital?

ONDE MORA O CONHECIMENTO? Gary Hamel, conceituado estrategista e autor de uma abordagem criativa ao problema da viso de futuro das organizaes, alerta para o senso comum de que a inteligncia reconhecida pelas organizaes est sempre restrita mais alta esfera do poder. O conhecimento prtico, de como as coisas so feitas, fica para baixo na pirmide do poder. tambm na base que se encontra o maior potencial de mudana, pelo simples fato de que na base da pirmide est a maior percepo de fatos que levam ao inconformismo. N o entanto, muito raramente a cabea das organizaes percebe a tempo as descontinuidades que a base capaz de enxergar. Por outro lado, o fato de poder perceber sinais de problemas antes de eles virem a se tornar graves no d base da organizao a capacidade de pensar em medidas preventivas, porque ela no se sente parte da inteligncia reconhecida pela direo. Finalmente, Hamel observa que nem sempre o senso comum est certo. E m muitas ocasies, a melhor inteligncia da empresa pode estar no cho de fbrica ou na gerncia intermediria. E m alguns casos, a direo est alinhada com a base, mas desalinhada com relao aos gerentes. E m outros casos, a cabea estratgica est completamente desalinhada em relao ao todo da organizao. Quem pode dizer onde est a verdade? Por que a organizao normalmente no acredita nessa reserva de inteligncia colocada abaixo do corpo diretivo principal? Porque parte da premissa de que, como no libera para esse setor informao que no seja funcional ou operacional, no pode esperar que ele seja capaz de gerar conhecimento e pensar estrategicamente. o reverso perverso da iluso de

controle. Acredita-se, como nos tempos anteriores ao capitalismo, que apenas uns poucos possuem o D N A do pensamento estratgico, e que aos demais estaro reservadas para sempre as tarefas do fazer, no a misso de pensar. N o entanto, bastam alguns minutos de conversa nos bastidores da diretoria de qualquer organizao, ou no vestirio dos clubes mais exclusivos de qualquer grande cidade, para se observar o perfil medocre, de pensamentos tacanhos e mentalidade retrgrada que muitas vezes predomina nessa nova aristocracia.

Para refletir:1. Q U A N TO VALOR PERDE A ORGANIZAO POR INSISTIR E M ESQUEMAS DE CONTROLE ANTERIORES ERA DIGITAL, BASEADOS EM PREMISSAS MECANICISTAS MANIPULADORES? 2. Q U A N T O VOC PERDE, PESSOALMENTE C O M O PROFISSIONAL, E M SISTEMAS DE COMUNICAO

POR NO ENTENDER C O M O FUNCIONA U M A SOCIEDADE HIPERMEDIADA E, E M CONSEQNCIA, POR SE ILUDIR C O M PROJEES FANTASIOSAS DA MDIA AIS 3. OBJETIVAS? POSSIBILIDANO PERCEBER AS OPORTUNIDADES RE-

Q U A N T O PERDEM VOC, E M CONHECIMENTO

DES DE COMPREENDER A FUNDO O FUNCIONAMENTO DA ORGANIZAO E A EMPRESA, POR JULGAR PRECONCEITUOSAMENTE QUE A INTELIGNCIA CORPORATIVA SE ENCONTRA APENAS DA GERNCIA PARA CIMA?

IllOs funerais do rei

A tragdia

do homem, u m dos clssicos da

literatura mundial, atualmente esquecido, foi escrito em 1860 pelo hngaro Imre M a dch e traduzido para praticamente todos os idiomas modernos. Tem u m enredo singelo, mas em versos magnficos, sob a forma de teatro, que trata de um simples e repetitivo episdio: Deus cria o homem e a mulher, eles caem em tentao e so expulsos do Paraso. Ento, sucessivamente, ato aps ato, eles voltam vida e so guiados atravs dos tempos, tendo como cicerone aquele que os convencera a provar da rvore do conhecimento. Conduzidos por Satans, eles tm a oportunidade de revisitar fatos e persona-

gens fundamentais da Historia, questionam grandes sbios e pensadores e retornam ao princpio de tudo com a mesma pergunta no respondida: qual o destino da humanidade? Absortos na literatura pragmtica de processos e mtodos, mergulhados nos debates sobre a melhor tecnologia para invadir a intimidade dos clientes ou impressionados com algum livro de auto-ajuda, os gestores s dedicam algum tempo a essa questo durante as viagens de negcios, quando uma turbulncia ou uma pane no avio os faz suspeitar de que h assuntos mais importantes do que o contrato que levam na pasta. Mesmo que considere a filosofia uma perda de tempo, todo empreendedor e todo gestor deveria levar em conta que s alcana excelncia em seu negcio quem consegue filosofar a respeito da natureza e da razo desse negcio. Portanto, preocupar-se com os fins extremos de sua estratgia no menos do que buscar o extremo de qualidade possvel em todos os seus pensamentos e aes. Por que ser que os profissionais que movimentam o mundo e definem quais pases iro se desenvolver, que famlias vo alimentar esperanas de um futuro para seus filhos, geralmente se negam a pensar com a mnima profundidade no significado de suas prprias vidas? Por que razo os gestores do poder mais impactante do mundo sobremoderno preferem uma vida mentalmente pobre se podem ser os autores de uma realidade muito mais gratificante? O sucesso que fazem os livros de auto-ajuda e as receitas de maravilhas dos gurus renovados semanalmente, que vendem aos milhes nas livrarias de aeroportos em todo o mundo, indica que esses homens em ternos elegantes e essas mulheres poderosas em seus tailleurs de executivas no so to bem

resolvidos como procuram aparentar. O alto investimento das empresas em oficinas de criatividade, cursos de liderana e sesses de psicodinmica faz suspeitar que nem tudo vai bem nos mais seletos crculos do poder econmico. Conheo o caso de uma executiva que engravidou inadvertidamente num momento que, para ela, pareceu absolutamente inoportuno: promovida em meio a uma carreira brilhante, estava sendo transferida para a sede da empresa em outro pas. Era a oportunidade pela qual lutara durante toda sua carreira. Era ainda jovem, solteira, e no havia possibilidade de se casar com o pai daquela criana. H a v i a ainda o trabalho, redobrado naquela circunstncia em que precisava concluir uma montanha de projetos e ainda preparar a mudana. S se deu conta da gravidez quando ela estava bastante avanada. No teve tempo de decidir sobre um aborto at que essa medida se revelou totalmente desaconselhvel do ponto de vista mdico. Ela decidiu ter o filho, mas no quis ficar com ele. No podia ficar com ele. Tinha que escolher entre a maternidade e a carreira, exatamente como as personagens da obra de Imre Madch. Ento ela o deu para adoo logo aps o parto. N e m olhou para o beb. Mulher decidida. C o m o as centenas que encontramos nos aeroportos de todo o mundo, cumprindo seu papel de gestora de capitais. Olhe para os lados. Quantas pessoas capazes de decises questionveis como essa, do ponto de vista essencialmente humano, esto frente das empresas? Gente assim decide para onde vo os recursos e a energia de que o mundo carece. Gente comum, sujeita a toda espcie de conflito emocional, fato real inevitvel em qualquer to-

mada de deciso. N o entanto, essas pessoas fazem de conta que as decises so tomadas friamente, seja a respeito de u m pacote de investimentos, a reforma ou fechamento de uma fbrica, um plano de carreira, o corte de postos de trabalho ou o destino de uma criana. U m poder extremo brota de cada deciso, um poder com o qual nunca sonharam os antigos oligarcas que sucessivamente retalharam e costuraram as etnias europias entre a segunda metade do sculo X V I I I e o comeo do sculo X X . A diferena entre um e outro poder que os poderosos de ento tinham conscincia de que representavam um processo a que chamavam civilizatrio. Nossos novos oligarcas, que com um toque em seus computadores portteis podem alterar o rumo da Histria, no parecem ter noo da Histria. Onde se perdeu o imaginrio do capital desde o debate de Andr Morellet e Denis Diderot sobre a melhor maneira de combater a pobreza na Frana? Isso aconteceu entre 1770 e 1771. Morellet queria atrair capitais e empreendedores para a agricultura do pas, Diderot dizia que o capital iria transformar os agricultores em comerciantes. Esse debate um dos marcos da definio do novo sentido de "capitalista" e "empreendedor" na Europa. O ambiente era propcio a mudanas: desde 1758, circulavam na Frana cpias das Mximas

gerais, nas quais

Franois Quesnay dizia que o mundo s evoluiria se houvesse muitos empreendedores. Ainda em 1771, Giuseppe Gorani defendia na Itlia a educao de jovens herdeiros da nobreza para o empreendedorismo, como a nica forma de garantir a sobrevivncia da velha oligarquia nos novos tempos. Havia, por trs dessa agitao intelectual, a compreen-

so de que o crescimento das cidades europias exigia uma nova organizao dos sistemas de produo e a criao de um conhecimento especfico como base para a consolidao daquele novo modelo de sociedade. Era a mesma poca em que a imprensa se tornava uma instituio relevante. Quase dois sculos e meio depois, muitos empreendedores e gestores de capitais ignoram o conselho de Gorani. Todos os meses, o noticirio sobre negcios d conta do desaparecimento ou venda de empreendimentos tidos como muito slidos, e na maioria dos casos o diagnstico a falta de viso e a incapacidade de adaptar processos e trocar tecnologias. Raramente algum se refere ao fato de que os capitais h muito abdicaram de gerar u m conceito de sociedade aceitvel, de renovar esse conceito e torn-lo dinmico, fazendo-o transitar horizontalmente na organizao e, verticalmente, entre as geraes de gestores. No estaria por trs desses fracassos uma renitente iluso de que o direito ao poder vai sempre se renovar hereditariamente, por determinao divina? A Amrica do Sul assiste, neste incio de sculo, a uma i n tensa troca de cadeiras, com empreendimentos mudando de mos como cartas de baralho ou simplesmente desaparecendo nesse cenrio de transformaes radicais. Uma das mais tradicionais empresas do ramo de comunicaes e servios passa por uma crise que o mercado considera grave. N o entanto, os antigos gestores dessa organizao se celebrizaram por representar inequivocamente o conhecimento e os valores mais avanados da sociedade do seu tempo. M a s aconteceu que eles negligenciaram a tarefa de criar uma cultura interna baseada nos valores que defendiam.

Hoje, muitos analistas duvidam da capacidade de recuperao da empresa diante de um cenrio de grande competio, porque ela no tem no quadro de gestores pessoas que demonstrem ter aprendido as lies de seus fundadores. Os herdeiros parecem ter ficado apenas com a postura de poder. As oportunidades surgem e se perdem por causa da sua incapacidade de gerar parcerias e aprender fora do crculo familiar. Tambm resistem a deixar a gesto da organizao para no passarem para a histria como integrantes de uma gerao perdedora. o caso tpico em que o conhecimento gerado pelo capital acaba se transformando numa armadilha que inexoravelmente abrevia a vida da organizao. Essa e outras organizaes e milhares de gestores, i n dividualmente, parecem ter apreendido apenas parte das idias que brotaram na Europa e que foram compiladas em 1776 por A d a m Smith. O fato de essas idias terem surgido sobre o pano de fundo do Iluminismo considerado por muitos como uma possvel origem da resistente tese de um suposto "direito divino" do capital, que perceptvel no comportamento arrogante e socialmente irresponsvel que parece a face mais evidente de grande parte dos gestores. Parece haver sobrevivido a convico quase religiosa de que o gestor de capital tem uma ascendncia divina sobre o indivduo que aplica seu talento e sua energia no empreendimento, o que justificaria as diferenas abissais de valor entre suas remuneraes. Por trs desse conceito, tornado quase em dogma religioso a partir da Revoluo Industrial, na,Inglaterra, subsistem prticas tpicas do sculo X V I I I , como as guerras com motivao econmica e a escravido.

Quando os estudiosos da histria da civilizao forem contar como surgiu e se desenvolveu a economia " d i g i t a l " no incio do sculo X X I , certamente vai causar estranheza a incapacidade dos gestores deste nosso tempo de aprender com o passado. A despeito da infinidade de informaes disponveis e da total facilidade de acesso a documentos e anlises, a incapacidade de processar esses dados dentro de um contexto de significao torna inteis todos os dados. Entre as causas dessa cegueira est certamente o carter monoltico do pensamento de gesto. U m exemplo: na maioria das empresas chamadas pontocom listadas entre as mais vulnerveis no ano 2002, os analistas apontavam falta de criatividade e excesso de especialistas no conselho de administrao como causas principais da incapacidade da organizao de se consolidar. Muitas dessas organizaes, nascidas de idias criativas, no fazem sentido para o pblico e antigas lies parecem esquecidas ou ignoradas por seus gestores. Joseph Schumpeter (1883-1950) descreveu o empresrio em sua imagem mais recorrente, diferenciando o empreendedor do capitalista, e advertiu que a confuso entre um e outro dos papis poderia fazer o capitalismo "perecer do seu prprio sucesso". O triunfo do capital no mundo globalizado, a acelerao dos movimentos financeiros, facilitada pela abertura de mercados e a disponibilidade de tecnologias de comunicao e protocolos mais eficientes, esto produzindo exatamente a cena que ele temia: j no se pode diferenciar o empreendedor do capitalista e ambos do gestor profissional. O poder do capital exercido com extrema homogeneidade, no importando quem o exera, se o acionista em pessoa ou seu preposto.

As advertncias de Schumpeter tm sido lembradas eventualmente em anlises da crise gerada por investimentos perdidos na chamada economia digital. Quando h carncia de diversidade, a estratgia tende a ser menos abrangente. A "sndrome de Alphaville", caracterizada pela falta de controvrsia no ambiente dos empreendimentos, foi uma das principais causas de perdas e fracassos na segunda fase de expanso dos negcios na Internet. Interesses variados e vises diversificadas, ou at mesmo contraditrias, tm aparentemente o poder mgico de ampliar a abrangncia do conhecimento desenvolvido no processo de empreender. Isso se torna mais claro na economia digital. O impacto dos atentados em N o v a York, Washington e M a d r i cria uma oportunidade preciosa para a reflexo nessas ilhas de iguais. A espiral perversa que vinha assombrando muitos analistas sofreu uma ruptura e o centro dos debates deixou repentinamente de ser a verdadeira natureza dos negcios digitais e o tamanho da quebradeira que se anunciava. Agora, trata-se de repensar o sistema. Enquanto no Pentgono se redefinia o conceito de guerra, em Wall Street e redondezas o nauseante cheiro desprendido das r u nas do World Trade Center dava o tom mrbido da nova realidade: o contrafluxo da globalizao chegou ao centro do sistema e fica clara a necessidade de buscar um novo significado para ele. Os movimentos de capital, tecnologia, cultura, energia e confiana so tidos como motores dos empreendimentos, embora o objetivo nem sempre seja o mesmo que motivou os debates de Morellet e Diderot no sculo X V I I I e os esforos de Gorani para levar a aristocracia a adotar o capitalis-

mo. Quando apenas um desses fatores define a natureza do empreendimento, ou quando seu poder se sobrepe de tal forma a estabelecer u m pensamento monoltico, os riscos podem se acumular perigosamente. N o auge da euforia com os negcios na Internet, uma conhecida empresa de consultoria recebeu para anlise um projeto de empreendimento para a Amrica Latina que anunciava investimentos de US$ 100 milhes at o lanamento pblico de aes, previsto para trs anos aps o incio das operaes. O plano de negcio encantou analistas financeiros, gestores de marketing e outros especialistas, at que algum, alheio euforia de seus parceiros, resolveu se informar sobre a origem do capital envolvido no empreendimento. Suas pesquisas se dissiparam em obscuros escritrios de Bogot e M i a m i e em nomes tambm encontrados no noticirio policial. Quantos gestores se importam realmente com a origem do dinheiro ou com a biografia do investidor? N o s dias que se seguiram aos atentados nos Estados Unidos, uma sucesso de revelaes deu conta do envolvimento de grandes bancos com a movimentao do dinheiro que financiou os terroristas. Mais de uma dcada antes desses eventos, o juiz italiano Giovanni Falcone e seu sucessor, Pino Arlacchi, alertavam para o risco de associaes entre o crime organizado e grupos terroristas, sob o beneplcito de respeitveis instituies financeiras. N o Brasil ou na Colmbia, fato comprovado que as redes de terroristas e os cartis do narcotrfico se apoiam mutuamente na proteo ao comrcio mundial de drogas e no contrabando de armas poderosas que nem as polcias tm condies de adquirir.

Schumpeter previu que o empresrio jogaria um papel fundamental no desenvolvimento do mundo, ao observar que a qualidade do desempenho dos empreendedores determinaria a rapidez e a segurana do desenvolvimento. Ele previu tambm que esse processo iria significar inovao e mudana, se determinasse o surgimento de novos produtos e novas tcnicas de produo. Ainda segundo Schumpeter, dependeriam tambm da qualidade do empresariado as diferenas nas taxas de crescimento dos pases e entre perodos histricos do mesmo pas. Valores culturais e histricos dos empresrios seriam fundamentais nos resultados econmicos. Essa lio tambm parece esquecida. Qual foi a ltima vez que voc ouviu, na sua empresa, referncia a "valores histricos e culturais", como paradigma para escolhas ou decises importantes? Tudo isso, afinal, pode ser resumido na capacidade de criar a longo prazo um conhecimento que resulte em relaes mais vantajosas para todos os envolvidos ou alcanados pelo empreendimento, no apenas para o capital e seus gestores. Essa amplitude de benefcios deve se estender inclusive ao ambiente com que a organizao se relaciona, de um ponto de vista imediato e tambm futurista, ou seja, preciso que o pensamento de gesto que energiza o capital seja amplo e profundo o suficiente no apenas para melhorar continuamente o ambiente humano e fsico, mas para possibilitar um futuro melhor em todos os sentidos. Por alguma razo, as advertncias de Schumpeter no so muito populares entre os gestores de capital envolvidos na atual roda-viva financeira. N o carrossel perde-ganha das bolsas, a metfora mais recorrente remete fatalidade do destino

humano: vamos ganhar o mximo porque a vida curta. Como na obra potica de Imre Madch.

QUEM MANDA? A cena lembra um episdio histrico cuja verso, transformada em lenda na regio onde hoje fica o Sudo, deu origem ao conto das Mil e uma noites. A lenda, registrada em 1912 por pesquisadores alemes, relata o fim do reino de Napata, no Alto N i l o , onde, at por volta de 200 a . C , o poder principal pertencia a uma casta de sacerdotes astrlogos, que definiam a ordem, o valor e a natureza de todos os empreendimentos, porque se acreditava que s eles podiam interpretar a escritura das estrelas. Portanto, s eles podiam dizer quais iniciativas tinham chance de ser bem sucedidas. O N a p , ou rei de Napata, era o dono de toda a riqueza da regio, conhecida por suas jazidas de ouro e cobre. Vivia uma vida luxuosa, mas a durao do seu reinado e da sua prpria vida era decidida pelos sacerdotes, que passavam as noites observando o cu: em determinada noite, a configurao das estrelas diria que o rei devia ser sacrificado e outro escolhido em seu lugar. O rei podia escolher os que o acompanhariam na morte e at planejar seu funeral, para manter na morte o mesmo luxo que tivera em vida. A prtica foi extinta quando o N a p Ergamenes, que havia sido educado na cultura helnica, invadiu o templo com seus soldados e executou os sacerdotes. A transcendncia de determinados "sacerdotes" do chamado mundo liberal lembra muito a autoridade dos astrlogos de Napata: as bolsas oscilam em funo de seus humores, sem que os indivduos afetados por suas mgicas

sejam informados do real fundamento de suas autoridades. A mdia elege seus gurus e, no importando a obra de cada um deles, publica como lei suas teses, seus "cenrios", seus exerccios de futurologia. N o meio de um dia qualquer, pores significativas de riqueza desaparecem no rastro de r u mores cuja origem se perde na profuso de sites dedicados "anlise" de questes to variadas quanto a liquidez de investidores japoneses e uma greve no porto. Agncias de anlise de risco so acusadas de fraude em uma pgina do jornal e na pgina seguinte tm suas anlises publicadas e levadas a srio, sem qualquer restrio. Observe os nomes de instituies apontadas como coniventes nos escndalos da Enron e da WorldC om. So co-irms de instituies acreditadas como avaliadoras dos negcios alheios. H pouco tempo, atuando como consultor de estratgia para Internet junto a um banco que pretendia abrir um site de orientao para investidores, perguntei ao diretor da instituio qual era seu propsito. "Influenciar", ele respondeu. Lembrei-me, ento, de que um dos primeiros produtos desse tipo lanados na Amrica do Sul, ainda nos primrdios da Internet, era chamado, em alguns crculos, de "boato com grife", tal a sua fragilidade manipulao. N o entanto, em pouco tempo esse informativo e muitos outros, cujos centros de deciso e interesse so completamente obscuros, se transformam em fonte segura para decises estratgicas de milhares de gestores. Qual o valor real desse tipo de informao? Que conseqncias isso pode produzir alm dos muros da empresa? O que que pode defender o gestor do risco representado por essas fontes? Certamente, um gestor consciente de seu papel, que enxerga muito alm da anatomia de resultados, est ade-

quadamente vacinado contra os palpiteiros online. M a s a organizao toda e, por extenso, a sociedade em que se encontra e a partir da qual se lana para todo o sistema, precisam desenvolver como vacina u m estado de no-ambio por ganhos desleais. Essa ser provavelmente a melhor defesa contra tentaes que invariavelmente se revelam como processos de perdas, mais cedo ou mais tarde. As pessoas que caem no conhecidssimo conto do bilhete premiado, u m clssico da malandragem em praticamente todos os cantos do mundo, no so apenas pessoas simplrias: so sempre indivduos vulnerveis tentao de ganhar um dinheirinho fcil. Os polticos apanhados em situaes de escndalo so sempre indivduos vulnerveis bajulao. Os gestores que, por incapacidade de avaliar os riscos reais, incorrem em erros estratgicos s vezes fatais para a organizao so geralmente aqueles que desejam levar vantagem em tudo que fazem. importante estar sempre bem informado, mas o essencial mesmo ter conscincia de que s o conhecimento bem fundamentado permite tirar valor das informaes. o conhecimento no brota das telas de computador, no est disponvel em sites de dicas ou no noticirio em tempo real sobre o movimento das bolsas ou a oscilao do cmbio. Isso so dados, ferramentas, instrumentos para aes de curto prazo. Os movimentos mais importantes so informados por uma tela anterior, um pano de fundo formado por valores e significado, sobre a qual as informaes precisam ser projetadas. Voc conhece a origem das informaes que seleciona para tomar suas decises? Voc tem conscincia dos objetivos e conseqncias de cada deciso que toma?

Para refletir:1. QUANTO TEMPO VOC DESTINA POR SEMANA PARA SIMPLESMENTE FILOSOFAR SOBRE O "NEGCIO AO QUAL SE DEDICA? 2. QUANTAS SOLUES PARA PROBLEMAS ROTINEIROS OU CHOQUES DE DESCONTINUIDADES VOC TERIA SE HOUVESSE MEDITADO MAIS SOBRE SI 3. SEU PAPEL N O MUNDO?

Q U A L VAI SER O SEU LEGADO? C O M O VOC ACHA QUE AS PESSOAS VO LEMBRAR DE VOC?

IVSociedade sem rodas

Lembre-se: o ser humano cria conhecimento como uma forma de estabelecer uma ordem nas coisas, de modo que possa entender o mundo em torno. Desde antes da Histria, os primeiros grupamentos humanos estipulavam valores para tudo que podiam perceber, procurando imitar a natureza nos processos que criavam, de modo que os ciclos de sua existncia no contrariassem os ciclos csmicos. Inmeras lendas, mitos e rituais permitem ainda hoje reproduzir o modo como os primeiros habitantes conscientes deste planeta interpretavam a si prprios e o Universo. A lembrana de histrias antigas como a do N a p de Napata pode nos proporcionar

reflexes interessantes sobre o momento que vivemos, de mudanas radicais e instantneas em tecnologia e conhecimento cientfico sobre um painel de sistemas conservadores e morosos nas relaes de poder: quanto das recentes descobertas cientficas usado como base para novas ferramentas ou at mesmo novas estratgias de gesto? Que estratgias envelhecidas, baseadas em pressupostos de controle e poder superados, ainda atrapalham a evoluo das instituies humanas? O que vale para a Histria vale para as cincias em geral. pode nos ajudar a entender por que os gestores neste incio de sculo insistem em se apropriar apenas para fins de curto prazo dos conhecimentos cientficos ou histricos amplamente disponveis, recusando-se a aprender as lies mais profundas que as mudanas oferecem. J no incio do sculo X X , quando o mundo se admirava com as i n venes expostas na Feira de 1900, em Paris, o escritor e jornalista Len Daudet fez circular u m panfleto intitulado

L 'automobile c ' est la guerre.Nesse texto, analisado por Walter Benjamin num artigo intitulado "Teorias do fascismo alemo", Daudet alertava para o impacto que o automvel exerceria no mundo do seu tempo, marcado por disputas territoriais, grandes mudanas na economia e recrudescimento dos sonhos imperialistas na Europa. Para ele o automvel significava a guerra, porque uma nova e impactante tecnologia, no encontrando no meio social u m espao que justifique sua necessidade, acabar forando sua consolidao fora e revelia do bem-estar social. Se a realidade social no est madura para o avano tecnolgico que se apresenta, pior para a realidade, porque ela ser devastada como em tempo de guerra..

Inevitvel a comparao com o nosso tempo: a tecnologia que permitiu a criao da Internet j dividiu o mundo entre internautas e os outros, criando para os primeiros u m horizonte muito mais amplo de desenvolvimento pessoal e relegando os sem-computador a uma perspectiva mais limitada. U m sistema de gesto voltado exclusivamente para os resultados financeiros no tem como alterar essa tendncia, que em ltima instncia restringe o prprio mercado. Gestores insensveis s conseqncias sociais de suas decises simplesmente procuram tirar proveito da circunstncia, exatamente como os chefes de Estado e senhores da guerra que, entre 1914 e 1918, foram promotores do massacre de 8 milhes de jovens na Europa. O potencial das armas atualmente disponveis, e a possibilidade do contrabando de pequenos artefatos nucleares e bombas qumicas para grandes cidades do Ocidente, do uma medida de onde essa escalada pode acabar. A falta dessa viso de futuro deixou cicatrizes em praticamente todas as civilizaes, em todos os tempos e por toda a face do planeta, mas certamente nenhum dos imperadores que reinaram at o sculo passado teve tanto poder quanto os gestores das grandes corporaes do nosso tempo. O mundo rabe, por exemplo, ainda hoje refratrio a valores aceitos universalmente como "civilizados" em funo de algumas decises aparentemente locais e temporais. U m a dessas decises foi tomada na colnia romana de Palmyra, na Sria, tambm chamada Tadmur, por volta do ano 500 da nossa era. Palmyra, construda num osis a cerca de meio caminho entre o Mediterrneo e o rio Eufrates, era o posto principal da Strata Diocletiana, que ligava o mundo

romano Mesopotmia e ao Oriente. Trafegavam igualmente, pela estrada pavimentada, carros de boi e caravanas de camelos. Segundo o historiador Richard Bulliet, especialista em civilizao rabe antiga, Palmyra cobrava impostos de todas as mercadorias que cruzavam a cidade e viveu um largo perodo de prosperidade. At que um dia comeou a decadncia. Aps longa pesquisa, Bulliet encontrou a origem dos problemas de Palmyra numa deciso sobre a poltica tarifria: a cidade ficava no maior osis em todo o trajeto da Strata Diocletiana; todos os mercadores tinham de pagar um pedgio e, em determinada poca, os gestores decidiram que um carro de boi pagaria o mesmo que quatro camelos. Bulliet calculou as cargas teis dos dois sistemas de transporte e concluiu que um camelo podia carregar em mdia 272 quilos em trajetos no muito longos, enquanto um carro de bois levava 545 quilos, ou seja, um carro de bois levava o mesmo que dois camelos, mas teria que pagar por quatro. Essa poltica tarifria, somada ao maior custo de manuteno do carro e de duas ou mais juntas de bois, fez com que, progressivamente, o camelo fosse predominando na Strata Diocletiana, levando ao desaparecimento do carro de bois. C omo os camelos podiam trafegar em praticamente qualquer terreno, a manuteno da estrada deixou de ser necessria para a maioria dos mercadores e a prpria via desapareceu rapidamente. E m pouco tempo, tambm deixaram de existir os artesos especializados na manuteno de rodas e eixos, o que cortou a possibilidade de aperfeioamento daquela tecnologia de transporte.

inevitvel que a cultura rabe tenha sofrido influncias profundas at hoje em funo daquela deciso dos gestores do sistema tributrio de Palmyra. N o ano 634, a cidade foi tomada pelos muulmanos, que impuseram restries atividade dos "infiis", a influncia romana foi suprimida e a decadncia econmica se seguiu ao isolamento. Durante os m i l anos seguintes, at mesmo a palavra para designar um veculo sobre rodas desapareceu da lngua rabe, s vindo a fazer parte do conhecimento daquele povo na alvorada da modernidade, quando os europeus comearam a construir ferrovias na regio.

ESCOLHAS Pare um pouco e olhe em volta: que conseqncias os atuais gestores estaro produzindo para o futuro com as escolhas que fazem? Que definies j esto consolidadas pelas escolhas feitas nos ltimos anos? H uma sociedade melhor, h u m processo de continuidade frente, como conseqncia das escolhas dos atuais gestores, ou pode-se esperar mais crise e rupturas a mdio prazo? Para ter uma idia da responsabilidade sobre as decises que tomamos, pense na possibilidade de viver numa sociedade sem rodas, ou reflita um pouco sobre quo profundamente pode mudar toda uma cultura, quando suprimimos dela a possibilidade de evoluir num aspecto fundamental como a rapidez dos deslocamentos. As decises estratgicas que envolvem tecnologia comeam muitas vezes viciadas, pela simples razo de que os responsveis pela definio da estratgia no conhecem suficientemente as alternativas tecnolgicas. O u fazem a esco-

lha com base em premissas equivocadas. Embora estejam em questo produtos altamente sofisticados e quase sempre altas somas de investimento, o jogo que antecede as decises mais importantes imita artimanhas como espionagem, dissimulao e outras prticas de guerra e poltica anteriores Idade Mdia. As cortes de especialistas que se transformam em gestores so muito visveis em todos os congressos de tecnologia, que se repetem anualmente pelas principais cidades do mundo e formam um universo muito fechado em si mesmo. Eles se tornam um poder paralelo nas organizaes, determinando o que deve ou pode ser comprado e de quais fornecedores, muitas vezes amarrando todos os processos e definindo o rumo que a organizao vai tomar no futuro prximo. Empresas altamente competitivas conseguem antecipar os passos dos concorrentes simplesmente monitorando as viagens de executivos, usando at mesmo fornecedores comuns, financiados para oferecer propostas atraentes, com o nico objetivo de obter informaes relevantes. Gestores com perfil tcnico, principalmente quando muito jovens, so presas fceis por causa da carncia de reconhecimento dentro da organizao e sua pressa natural por consolidar a carreira. Velhas raposas dos negcios se especializam na prospeco de piano-bar, onde os executivos se renem aps as sesses de trabalho e conferncias, explorando a vulnerabilidade de gestores vaidosos e o natural relaxamento dos fins de tarde. Jogos como esses formam a base de muitas decises que ao longo do tempo se revelam grandes desastres . para o empreendimento, pois, em vez de procurar conhecer sua prpria organizao e fortalecer sua prpria cultura

pela criao de conhecimento adequado, os gestores preferem atuar em tabela com supostos concorrentes. A atitude comum em todo tipo de relacionamento, desde os lobbies junto ao governo at a comunicao com o cliente. Quando falta empresa uma coluna vertebral de valores, que deveriam orientar a formao de uma cultura apropriada criao e compartilhamento de conhecimento, proliferam os malabarismos de marketing, as promoes novidadeiras que na verdade pouco ou nada inovam no relacionamento. U m exemplo: a mania dos brindes que se tornou comum na imprensa durante a dcada de 1990 foi uma das causas da desvalorizao da mdia jornal. O leitor compra um jornal que custa cinqenta centavos de dlar e recebe um brinde que supostamente vale cem vezes mais. Inevitvel que passe a julgar que o jornal vale exatamente nada. Uma relao nascida numa slida e clara escala de valores, ao contrrio, flui naturalmente e produz rapidamente uma profunda fidelidade, no apenas entre a organizao e seus clientes, mas tambm com fornecedores e funcionrios. A questo se torna mais importante quando se revela que 74% das empresas em todo o mundo destinaram em 2001 entre 3 0 % e 5 0 % mais recursos do que no ano anterior para as tecnologias de gerenciamento de relaes com o cliente ( C R M ) . Segundo a A M R Research, empresa americana de pesquisa de TI, em 2004 esse volume alcanou a cifra de US$ 10,8 bilhes. Quanto dessa tecnologia gerenciada de modo a produzir u m conhecimento relevante sobre as necessidades e desejos do cliente como indivduo e no como mero consumidor? Que inteligncia aplicada ao uso dessa tecnologia?

A resposta: uma pesquisa realizada no segundo semestre de 2001 pelo grupo americano Giga Information revelou que nada menos do que 70% das aplicaes dessa soluo estavam destinadas ao fracasso, e que no havia perspectiva de melhorar esse resultado nos doze ou 18 meses seguintes. Por duas razes fundamentais: a maioria das empresas no tinha objetivos claros ao implantar a tecnologia e, portanto, no fora capaz de elaborar uma estratgia para sua aplicao. tambm no havia nas empresas uma cultura voltada para a valorizao do relacionamento com clientes, parceiros e outras interfaces. A maior parte das empresas se havia apropriado da tecnologia sem antes entender qual era o resultado possvel. Somente em 2005, ou seja, mais de dez anos depois de consolidada a rede mundial de computadores, um nmero significativo de empresas parecia entender, segundo analistas europeus, que antes de adquirir a tecnologia era preciso desenvolver capacitaes em marketing de relacionamento. Segundo esses analistas, as organizaes tentam se apropriar das tecnologias emergentes. M a s ao mesmo tempo evitam encarar seus problemas reais, muitas vezes arraigados em costumes to nocivos ao relacionamento interno e externo que no podem sequer ser abordados espontaneamente pelos executivos. Uma cultura que produz comportamentos arrogantes, conservadores, excludentes, no favorece o entendimento de um recurso como o C R M de "maneira globalizada", mas como um departamento de interface com o cliente, segundo observam analistas da -Consulting Corp. C R M no atendimento ao cliente com qualidade, nem simplesmente relacionamento ou segmentao de mercado,

comunicao dirigida ou estratgia de fidelizao. tudo isso e algo mais que a organizao pode descobrir a partir do entendimento de que precisa com essa tecnologia ou qualquer outra que venha a surgir desenvolver a filosofia da integrao com seu ambiente social e econmico. Tratase de um recurso "ecolgico", em ltima instncia.

DESENGENHARIA A falta dessa cultura tem causado muitos estragos no ambiente dos negcios e, por conseqncia, na sociedade. A mania de "quebrar m u r o s " , inaugurada com a onda da reengenharia nos anos 1990, produziu aps uma dcada pouco mais do que mo-de-obra para demolidores. O que se observou, na maioria dos casos, foi a criao de uma casta de gestores mais prximos alta direo das organizaes e o isolamento de gestores intermedirios junto base da pirmide. A s paredes foram rompidas na vertical, mas as muralhas foram reforadas na horizontal, isolando os executivos no alto de suas torres. Pura desengenharia. Por conseqncia, os gestores intermedirios, que tradicionalmente traduzem para a base os propsitos da alta d i reo, foram sendo progressivamente afastados dos ncleos de deciso. C o m o conseqncia, a confiana se reduziu e os problemas de comunicao se agravaram, com o fortalecimento da chamada rdio-peo, que representa a ausncia de controle por excelncia. Uma das empresas lderes na veiculao de propaganda na Internet tem revelado seguidamente que metade dos acessos ao seu site direcionada por informaes boca-a-boca entre os internautas, o que garante a chegada de novos clien-

tes, mas no assegura sua fidelidade. Tambm no ambiente interno das organizaes, quando no existe o compromisso com a criao de um conhecimento que seja mutuamente benfico, a fora de trabalho acaba dando mais crdito s comunicaes informais do que aos memorandos eletrnicos via Intranet. D a mesma forma, a comunicao oficial da empresa dirigida aos clientes externos se torna menos acreditada quando no h, na base dela, a confiana que se forma quando existe a percepo de que a relao est produzindo conhecimento valioso para todas as partes. Para aumentar a interatividade com os clientes, muitas vezes as empresas criam comits formais ou informais entre suas unidades, comp