O Manejo dos Sonhos na Psicoterapia Psicanalítica

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Revista Científica Eletrônica de Psicologia Publicação Científica da Associação Cultural e Educacional de Garça 1 Ano III, Número 04, maio de 2005 - Semestral - ISSN 1806-0625 O MANEJO DOS SONHOS NA PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA BISSOLI, Sidney da Silva Pereira Faculdade de Ciências da Saúde – FASU / ACEG Prefeitura Municipal de Garça – SP Mestrando em Filosofia da Psicanálise – UFSCar RESUMO Este trabalho inicia com uma breve revisão bibliográfica sobre a concepção dos sonhos no interior da obra freudiana, a partir de dois eixos: teórico e prático. Em seguida, é apresentada uma vinheta clínica, no intuito de estabelecer relações entre a teoria e a prática da interpretação de sonhos, de um ponto de vista psicanalítico. Palavras-chave: sonhos; Psicanálise; psicoterapia psicanalítica; Freud. Tema Central: Psicologia. ABSTRACT This issue begins with a brief bibliography revision about dream’s con- ception in Freudian’s work, through two directions: theoretic and prac- tical. Continuing, it is presented a clinic relate, to establish relations between theory and practice of dream’s interpretation, through a psychoanalytical point of view. Key-words: dreams; Psychoanalysis; psychoanalytic psychotherapy; Freud. 1. INTRODUÇÃO Apesar de ter escrito aproximadamente 27 trabalhos que trataram sobre a questão dos sonhos, o principal deles continua sendo “A Interpretação dos sonhos” (1900). Um ano após a publicação deste trabalho, Freud escreveu um resumo do mesmo, “Sobre os sonhos” (1901), e é este que será brevemente comentado aqui. Neste momento da elaboração freudiana, as bases da teoria dos sonhos foram praticamente todas lançadas: a diferença entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos latentes; a tese dos sonhos como realizações de desejos recalcados (em sua

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Este trabalho inicia com uma breve revisão bibliográfica sobre aconcepção dos sonhos no interior da obra freudiana, a partir de doiseixos: teórico e prático. Em seguida, é apresentada uma vinhetaclínica, no intuito de estabelecer relações entre a teoria e a prática dainterpretação de sonhos, de um ponto de vista psicanalítico.

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    Educacionalde Gara

    1Ano III, Nmero 04, maio de 2005 - Semestral - ISSN 1806-0625

    O MANEJO DOS SONHOS NA PSICOTERAPIAPSICANALTICA

    BISSOLI, Sidney da Silva PereiraFaculdade de Cincias da Sade FASU / ACEG

    Prefeitura Municipal de Gara SPMestrando em Filosofia da Psicanlise UFSCar

    RESUMO

    Este trabalho inicia com uma breve reviso bibliogrfica sobre aconcepo dos sonhos no interior da obra freudiana, a partir de doiseixos: terico e prtico. Em seguida, apresentada uma vinhetaclnica, no intuito de estabelecer relaes entre a teoria e a prtica dainterpretao de sonhos, de um ponto de vista psicanaltico.

    Palavras-chave: sonhos; Psicanlise; psicoterapia psicanaltica; Freud.

    Tema Central: Psicologia.

    ABSTRACT

    This issue begins with a brief bibliography revision about dreams con-ception in Freudians work, through two directions: theoretic and prac-tical. Continuing, it is presented a clinic relate, to establish relationsbetween theory and practice of dreams interpretation, through apsychoanalytical point of view.

    Key-words: dreams; Psychoanalysis; psychoanalytic psychotherapy;Freud.

    1. INTRODUO

    Apesar de ter escrito aproximadamente 27 trabalhos quetrataram sobre a questo dos sonhos, o principal deles continua sendoA Interpretao dos sonhos (1900). Um ano aps a publicaodeste trabalho, Freud escreveu um resumo do mesmo, Sobre ossonhos (1901), e este que ser brevemente comentado aqui.

    Neste momento da elaborao freudiana, as bases da teoriados sonhos foram praticamente todas lanadas: a diferena entre ocontedo manifesto do sonho e os pensamentos onricos latentes; atese dos sonhos como realizaes de desejos recalcados (em sua

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    maior parte, erticos); os sonhos como formao de compromissoentre duas instncias psquicas (consciente e inconsciente); osmecanismos de deslocamento e condensao como parte do trabalhodo sonho; a livre associao como mtodo de desvendar os sonhos;etc..

    Em 1911, no trabalho O manejo da interpretao de sonhosna Psicanlise, Freud alerta os psicanalistas que a arte da interpretaode sonhos no deve ser o objetivo maior do psicanalista. Acima disso,encontra-se a regra da livre associao de idias. Assim, a anlisedos sonhos apenas um dentre os instrumentos que o psicanalistatem sua disposio. Alguns preceitos tcnicos so apontados: osonho no precisa ser interpretado completamente em uma sesso,caso no haja tempo, e tampouco a anlise do sonho deve serretomada na sesso seguinte, em caso de interpretaes no-acabadas. Outro recado importante que a apresentao abusivade sonhos pelo paciente, ao analista, longe de ser um sinal decolaborao, pode ser uma forma de resistncia. Diante de tantossonhos, o analista pode se ver perdido, sem saber o que fazer comtodo o material.

    Em Observaes sobre a teoria e a prtica da interpretao desonhos (1923 [1922]), Freud apresenta quatro procedimentosdistintos para se analisar os sonhos dos pacientes: a) solicitarassociaes aos elementos do sonho na ordem em que eles aparecemno relato; b) iniciar o trabalho de interpretao a partir de algumelemento especfico do sonho, apanhado de seu meio; c) desprezaro contedo manifesto e perguntar ao sonhador a respeito dosacontecimentos do dia anterior associados em sua mente com osonho que descreveu; d) se o sonhador j estiver familiarizado coma tcnica de interpretao, deix-lo decidir com que associaes osonho ir comear.

    Aps essa breve reviso bibliogrfica, ser apresentado um sonhode uma paciente, relatado em uma sesso analtica, de modo aestabelecer relaes entre a teoria e a prtica da interpretao desonhos.

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    2. MATERIAL E MTODOS

    O material a ser apresentado foi colhido de uma sesso depsicoterapia psicanaltica. As sesses ocorriam duas vezes por semana,e tinham durao de 50 minutos cada. O registro do material no foifeito durante sua ocorrncia, para no interromper o processo deateno flutuante do psicoterapeuta. Assim, o material foi registradologo aps o trmino da sesso. Para a compreenso deste material,e para os propsitos deste artigo, dispensvel qualquer identificaodo paciente em questo.

    3. RESULTADOS E DISCUSSO

    A paciente inicia a sesso contando-me um sonho:

    Paciente (P): Eu sonhei com voc. Sonhei que voc estavapelado, meio de lado, e que voc estava chorando, com o rostotodo vermelho.

    Terapeuta (T): O que aconteceu ontem contigo, que se relacionacom o que voc sonhou?

    Abramos um pequeno parntese. Retomando as consideraesda Introduo deste trabalho, Freud (1922 [1923]) estabeleceuquatro formas, j descritas, de se abordar, na prtica, a anlise deum sonho. O psicoterapeuta, aqui, optou pela abordagem descritano item c.

    Retornando sesso, em um primeiro momento, a pacienteno associa o sonho a nada que tivesse acontecido, chocada com oque havia me contado. Esta reao psquica fruto do trabalho daresistncia. Como foi afirmado, o sonho uma formao decompromisso. Enquanto uma instncia psquica esfora-se porexpressar os desejos no-satisfeitos, a outra esfora por bani-los daconscincia. Mas, em seguida, vem uma idia mente dela:

    P: Bom, ontem, quem estava muito deprimida era eu.

    T: Voc pode estar me contando que gostaria de se abrir maispara mim. Talvez no esteja conseguindo se abrir como gostaria.

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    interessante reparar que, no contedo manifesto do sonho, opsiclogo simbolizava a prpria paciente. Continuando,surpreendentemente, a sesso se reveste de sentido, e um dilogovivo se inicia entre paciente e psicoterapeuta:

    P: Tem a ver mesmo isso o que voc est falando. Tem coisasque eu contava para o meu psiclogo anterior, e que eu no consigocontar para voc. Eu tenho vergonha.

    Reparemos que o sentimento de vergonha expressoalusivamente no contedo manifesto do sonho, atravs do rostoque estava vermelho. Poderamos ter chegado ao sentimento devergonha, a partir das associaes da paciente em relao aoelemento rosto vermelho. No entanto, alcanamos este aspectoda vida emocional da paciente a partir um caminho diferente.

    A paciente continua:

    P: O meu psiclogo anterior mais velho, eu conseguia falaralgumas coisas para ele... voc, parece que mais jovem at do queeu! Eu fico com medo de voc no levar a srio o que eu falo, devoc rir de mim, no acreditar em mim...

    Aqui, aparece outro mecanismo da elaborao onrica, que interessante que nos detenhamos por um instante. No trabalho AInterpretao de Sonhos (1900), Freud nos comunica acerca datransformao no contrrio. Atravs deste mecanismo, a afirmao,por exemplo, pode ser expressa pela negao. No caso aqui relatado,no contedo manifesto do sonho, o psiclogo aparece chorando. Noentanto, o medo que a paciente sentia do psiclogo rir da caradela, no a levando a srio. Em outras palavras, o riso irnico dopsiclogo foi substitudo pelo choro desesperado. E,surpreendentemente, somos obrigados a aceitar o fato de que opersonagem que est pelado neste sonho, no apenas simboliza aprpria paciente, como tambm o psicoterapeuta. Atravs domecanismo da condensao, dois personagens passam a serrepresentados em um s. devido a este mecanismo que ospensamentos onricos latentes so bem mais extensos do que ocontedo manifesto do sonho.

    A sesso continua, a paciente pode falar, ento, de sua prpriame, que no a levava a srio, chamava-a de burra, fazia com que

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    ela passasse por humilhaes. A paciente demonstra, com suasprprias palavras, a clssica tese psicanaltica de que a relaotransferencial com o psicoterapeuta reproduz padres derelacionamento arcaicos vividos com as figuras parentais e,principalmente, com a me.

    Psiclogo e paciente tambm podem conversar sobre no que adiferena de idade entre o seu psiclogo atual e o seu psiclogoanterior, e entre o seu psiclogo atual e ela prpria, interferem notrabalho, at que a interpretao mais bvia para o sonho em questotambm pode ser trabalhada: no apenas a paciente pretende seabrir mais para o psiclogo, como ela tambm deseja conhecer maisessa pessoa que vem trabalhando com ela h algum tempo. Nessesentido, queixa-se de que ela o conhece muito pouco, que ela nosabe onde o psiclogo mora, quantos anos ele tem, o que ele fazaos finais de semana que ela nunca o encontra, e assim por diante.

    Atravs desta apresentao, podemos perceber que algunselementos do sonho no foram interpretados, como, por exemplo,o fato de o personagem do sonho ser visualizado meio de lado.Isto no se configura em transgresso tcnica, pois, tal comoapontado por Freud (1911), mais importante do que a interpretaocompleta do sonho, a livre associao de idias.

    4. CONCLUSES

    Atravs da anlise deste material, creio ter demonstrado comoos sonhos podem ser manejados na prtica psicanaltica, e,principalmente, apresentado algumas relaes entre a teoria e a prticada interpretao de sonhos, principalmente no que concerne aconceitos, como: condensao; transformao no contrrio;contedo manifesto; contedo latente; resistncia e formao decompromisso.

    5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    FREUD, S . (1900). A interpretao de sonhos. In: Obras psicolgicas

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    completas de Sigmund Freud: edio standard brasileira. Rio deJaneiro: Imago, v. 4, 1996.

    _____. (1900). A interpretao de sonhos. In: Obras psicolgicascompletas de Sigmund Freud: edio standard brasileira. Rio deJaneiro: Imago, v. 5, 1996.

    _____. (1901). Sobre os sonhos. In: Obras psicolgicas completasde Sigmund Freud: edio standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago,v. 5, 1996.

    _____. (1911). O manejo da interpretao de sonhos na psicanlise.In: Obras psicolgicas completas de Sigmund Freud: edio stan-dard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v. 12, 1996.

    _____. (1923 [1922]). Observaes sobre a teoria e a prtica dainterpretao de sonhos. In: Obras psicolgicas completas deSigmund Freud: edio standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago,v. 19, 1996.