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1 O RELATO MARAVILHOSO NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DO AUTO DA ALMA, DE GIL VICENTE BORGES, Maria do Carmo Faustino (UEM) 1 Introdução A literatura ao representar o homem dentro de sua cultura, dentro de uma determinada contemporaneidade, utiliza elementos próprios e adequados na construção das obras. Dessa forma, a partir da escolha do auto a ser analisado, percebemos aqueles que favorecem a melhor abordagem. Uma das formas mais antigas de representação das coisas não apreensíveis no plano real é o maravilhoso, que desempenha a função de tornar natural o mundo fantástico dentro da narrativa, e aceito pelo leitor/espectador. Nessa perspectiva, este estudo tem por objetivo observar o maravilhoso, na obra Auto da Alma (1965), escrita por Gil Vicente em torno de 1518, como gênero literário e como elemento da cultura, que desenvolve a temática desse texto acerca do mundo religioso e da crença cristã, assunto relevante na Idade Média. A nossa opção pelo estudo do referido auto justifica-se pela presença de elementos do gênero em questão, na elaboração do discurso didático-literário de todo o texto, na personificação do Anjo, da Alma, da Igreja, do Diabo e outros, que constituem um corpus adequado à análise proposta. A problematização dessa pesquisa ocupa-se em mostrar que, embora os teóricos modernos afirmem ser o maravilhoso um gênero da modernidade, é possível encontrar esse artifício literário no desenvolvimento da narrativa deste texto de Gil Vicente, para ensinar uma crença, uma moral ou impor uma ideologia. Para fundamentar a discussão sobre tais questionamentos, foi feita uma pesquisa bibliográfica a partir da teoria sobre o fantástico e o maravilhoso na literatura, como em Todorov, Le Goff, Rodrigues, assim como a obra de Gil Vicente, e observados os tópicos que têm relação com o material literário previamente identificado na referida obra. Gil Vicente (1465(?) – 1536) foi o dramaturgo mais destacado da Idade Média em Portugal, embora escrevendo para a corte. É considerado o verdadeiro criador do teatro português: tudo que se produziu em Portugal dentro desse gênero remete ao teatro vicentino.

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  • O MARAVILHOSO NA LITERATURA DO GRAAL

    Vanessa Oliveira Nogueira de SantAna Graduanda em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

    E-mail: [email protected]

    Palavras-chave: Identidade. Literatura do Graal. Maravilhoso. Sociedade Medieval.

    A noo de imaginrio implica em sistemas valorativos e abarcam os

    sentimentos, as heranas, os sonhos, os medos; enfim, expressam a maneira como os

    homens, em determinadas pocas, se relacionam dentro dos seus prprios grupos de

    referncia e com os outros e como entendem o mundo que os cerca.

    Embora ainda haja, entre os leigos, uma propenso a se considerar os mil anos

    da Idade Mdia como uma Idade das Trevas, pode-se afirmar que este foi um perodo

    complexo, controvertido e fecundo em todos os campos do saber. Especialmente nos

    sculos XII e XIII, houve um grande desenvolvimento no campo da economia, da

    demografia, das artes e das cincias. Estes sculos, de consolidao da Igreja Crist e

    expanso dos seus tentculos em diversos campos da vida temporal, assistem

    diversificao da vida social e ao desenvolvimentos de novas formas de expresso

    cultural, a exemplo da cultura de cavalaria.

    Segundo Flori (1990, p. 198), do sculo XI ao XIV a cavalaria fabricou uma

    ideologia muito mais complexa, multiforme, cambiante e fascinante. Neste complexo

    cultural identificado com a noo de cultura cavaleiresca, as formas de expresso do

    maravilhoso ganham magnitude e especificidade em relao cultura dos clrigos.

    O presente trabalho pretende identificar, na literatura de cavalaria, mais

    especificamente na obra A Demanda do Santo Graal, traduo do sculo XIII, para o

    galego-portugus, da Queste Del Saint Graal francesa, as diferentes formas de

    expresso do maravilhoso e refletir sobre a sua importncia na sociedade europeia dos

    sculos XII e XIII.

    Frente a uma realidade muito dura, marcada pela fome, pelas guerras e pela

    presena angustiante da morte, os homens da Idade Mdia se refugiavam dentro de um

  • mundo fantstico, cheio de aventuras, comumente marcado pela presena do

    maravilhoso. Como salienta Pastoreau (1989):

    Quer sejam clrigos, cavaleiros ou camponeses, os homens do sculo

    XII raramente esto satisfeitos com sua existncia. As realidades

    cotidianas so tristes, vs, ingratas e enganosas. O mundo que os cerca

    ilusrio. Todos tm sede de um outro universo; de um novo reino em

    que o homem no tenha que se submeter aos caprichos da natureza

    nem aos imperativos de sua condio social; [...]; de um mundo idlico

    e longnquo (PASTOREAU, 1989, p. 155).

    Segundo Pesavento (1995), toda sociedade produz suas representaes da

    realidade. Representao sobre o que se passou, o imaginrio aparece enquanto resposta

    s dvidas ofertadas pela realidade. Tendo como documentos privilegiados as obras

    literrias e artsticas, o imaginrio, enquanto imagem do real, tambm influencia essa

    mesma realidade. O imaginrio , na opinio de Mors (2001),

    o conjunto composto de toda e qualquer construo mentalmente

    estruturada que se efetiva a nvel das relaes sociais e/ou da viso de

    mundo de forma a permitir uma apropriao do real. Todas as

    sociedades humanas so, de certo modo, socialmente imaginadas,

    porque dependem de criaes fictcias para justificar os aspectos

    ontolgicos e normativos de sua constituio (MORS, 2001, p. 21).

    A partir desta perspectiva que se deve considerar o maravilhoso que existiu no

    Medievo, assim como suas diversas significaes, heranas e influncias.

    Segundo Le Goff (2002, p. 105) a civilizao medieval era profundamente

    fascinada pelo sobrenatural e pelo extraordinrio. O maravilhoso medieval adentrava as

    fronteiras do natural e do sobrenatural, alm de por em questo as relaes do homem

    com Deus, com a natureza e com o Diabo.

    H uma irrupo do maravilhoso nos sculos XII e XIII, que o faz adentrar todos

    os espaos da sociedade. Caracterizado pelo excepcional, produzido por foras e/ou

    seres sobrenaturais, o maravilhoso no somente encerra um mundo de objetos, um

    mundo de aes diversas, como por trs dele h uma multiplicidade de foras (LE

    GOFF, 1994, p. 50). Alm disso, imprevisvel e pode ser percebido como um

    contrapeso da realidade vivenciada. Insere-se, pois, num mundo contrrio ao do

    cotidiano.

  • O maravilhoso no Medievo est assentado sobre vrias heranas pr-crists,

    bblicas e da Antiguidade greco-romana, mas tambm das culturas orientais e clticas.

    Le Goff (1994) compreende o maravilhoso como estruturado em trs domnios

    distintos: o do maravilhoso propriamente dito, o do miraculosus e o do magicus. O

    maravilhoso propriamente dito diz respeito s formas pr-crists de expresso do

    sobrenatural; o miraculosus identificado enquanto maravilhoso cristo, os milagres

    sendo sua mais perfeita materializao; e o magicus o maravilhoso pertencente ao

    domnio do diablico. Entretanto, ao longo da Idade Mdia, a Igreja crist acabou por

    subordinar as vrias formas de expresso do maravilhoso aos seus preceitos. Ocorre

    uma certa racionalizao do maravilhoso, que perde muito do que possua de

    extraordinrio e mesmo de imprevisvel. Ganham legitimidade as forma do maravilho

    que tem em Deus o nico autor embora possa contar com a interferncia de um santo

    ou um anjo - e um fim j esperado: o milagre. Como salienta Le Goff (1994),

    Quando o santo se encontra numa situao qualquer, sabe-se que ele

    realizar uma multiplicao dos pes, que ressuscitar um morto, que

    exorcizar um demnio. Dada situao, sabe-se o que vai acontecer.

    H todo um processo de esvaziamento do maravilhoso (LE GOFF,

    1994, p. 50).

    Complementarmente, ao magicus, domnio do diablico, busca-se atribuir

    sempre uma finalidade malfica e ilcita; e a sua consecuo, afirma-se, depender da

    interferncia dos demnios.

    O maravilhoso chega aos homens de variadas maneiras, todas elas significativas

    como os sonhos, as aparies e a viso, em narrativas de viagens, reais ou no, ou

    mesmo em relatos de metamorfoses. Os lugares mais propcios manifestao do

    maravilhoso so espaos desconhecidos ou longnquos, reais ou imaginrios.

    Montanhas, ilhas, cidades florestas, rochedos, rios, fontes, nascentes, rvores, castelos,

    torres e tmulos, todos so lugares em que se encontra mais facilmente o maravilhoso:

    O espao da floresta, dos campos, dos jardins, do senhorio e da vila

    a moldura, simultaneamente geogrfica e imaginria, em que se

    enquadra a vida dos homens e das mulheres da Idade Mdia. Esses

    espaos, lugares de trabalho e prticas sociais, so altamente

    simblicos, recheados de medos, desejos, sonhos e lendas (LE GOFF,

    1994, p. 25).

  • Gigantes, anes, fadas, homens e mulheres com alguma deformidade; seres

    meio-humanos, meio-animais, como as sereias e os lobisomens; animais naturais ou

    imaginrios, como o leo, o unicrnio, o drago, so os seres que povoam esse

    maravilhoso. Alm disso, alguns homens e mulheres comuns, mas que possuem objetos

    maravilhosos, dotados de algum poder, que acabam auxiliando o seu possuidor em

    alguma situao.

    O maravilhoso afirma-se como elementos pertencentes a um mundo ao

    contrrio, no sentido de compensar um mundo cheio de penrias e restries. Na

    expresso de Mabille (apud LE GOFF, 1994),

    Para l do agrado, da curiosidade, de todas as emoes que as

    narrativas, os contos e as lendas nos do, para l da necessidade de

    distrair-se, de esquecer, de procurar sensaes agradveis e

    aterradoras, a real finalidade da viagem maravilhosa ... a explorao

    mais total da realidade universal (MABILLE apud LE GOFF, 1994, p.

    61).

    Projeta-se ainda como a realizao dos sonhos mais distantes. O homem dos

    sculos XII e XIII vivia sob o domnio da religio crist, seus dogmas e prticas;

    entendia que o mundo era complexo e o homem constitudo por corpo e alma, alm de

    ser cheio de simbolismos, que muitas vezes se tornavam contraditrios. Enfim, todas

    as concepes medievais do homem o intrigavam, de uma maneira ou de outra, na

    sociedade (LE GOFF, 1990, p. 14).

    Segundo os idelogos da Igreja, a sociedade se organizava em um modelo

    trifuncional. Segundo essa concepo, os oratores, os bellatores e os laboratores eram

    os tipos humanos que se complementavam em um modelo ideal de ordem universal.

    Dos trs componentes do modelo trifuncional, aquele que se tornou o smbolo

    deste perodo, aquele sobre o qual mais se escreveu e especulou, foi o grupo dos

    bellatores. O relato das aventuras de cavalaria acabou por se constituir um importante

    fator de desenvolvimento da literatura medieval e possibilitou a preservao e difuso

    de uma matria de fundo mtico.

    Especialmente nas obras subordinadas ao que se convencionou chamar de

    Matria da Bretanha, a literatura de cavalaria se apropriou do acervo de histrias orais e

    escritas, pertencente ao fundo patrimonial de cultura. Personagens mticos, como o Rei

    Artur e os cavaleiros da tvola redonda, reelaborados e cristalizados em literatura

  • escrita, sob o patrocnio e para a audincia das cortes europeias, tornara-se a expresso

    do que se pensava, sonhava e acreditava no seio da nobreza-cavalaria.

    Os romances e novelas de cavalaria com o circulo do rei Artur, as histrias de

    Merlin e a lenda de Tristo (BENEDETTI; BOVO, 2002, p. 6), foram amplamente

    divulgados na Europa Ocidental, principalmente na Frana e na Gr-Bretanha. Por

    intermdio da literatura, a nobreza fez difundir um conjunto tico-teolgico que

    sacralizava a pratica militar. Criou-se uma tica cavaleiresca que difundia todos os

    preceitos necessrios a um bom cavaleiro como coragem, fidelidade, sagacidade, bons

    costumes, ser amado e temido pelas gentes e, acima de tudo, estar a servio da f

    crist. Segundo Raimundo Llull (apud NUNES; COSTA, 2005) as virtudes que

    deveriam acompanhar um cavaleiro seriam: a f, a esperana, a caridade, a justia, a

    prudncia, a fortaleza e a temperana. Mas o modelo de corte apresentado pelos

    romances e novelas de cavalaria, estava absolutamente intricado com o sobrenatural e o

    mstico.

    No foi por acaso que o maravilhoso desempenhou to grande papel

    nos romances corteses. O maravilhoso estava profundamente

    integrado na busca de identidade, individual e coletiva, do cavaleiro

    idealizado. As provas do cavaleiro passam por toda uma srie de

    maravilhas (LE GOFF, 1994, p. 48).

    O aparecimento da matria da Bretanha pode ser datado de 1135, data do

    aparecimento na Inglaterra da crnica intitulada Historia Regum Brittanniae (Histria

    dos Reis da Bretanha), de autoria de Geoffrey de Monmouth. Monmouth, que

    pretendeu, com a sua crnica, fazer um registro histrico do reinado do rei Artur,

    publicou tambm um poema sobre o mago Merlin, Vita Merlini, j em 1148.

    Aps as obras Monomouth muitas foram s obras literrias que abordavam as

    aventuras dos cavaleiros do Rei Artur e, at o final do sculo XII, o mundo arturiano

    acabou por se tornar expresso do mundo cavaleiresco e corts. Em 1155, Wace

    escreveu o seu Roman de Brut, livre traduo da Historia Regum Brittanniae, e cujos

    personagens e as histrias tornaram-se a base de todos os romances posteriores que

    tratam sobre o universo do Rei Artur.

    Dos autores arturianos, o autor mais conhecido, seno o grande autor do sculo

    XII, dos romances dedicados ao material breto, foi Chrtien de Troyes. Seus romances

    so: Erec et Enide, Cligs, Yvain ou Le Chevalier au Lion, Lancelot ou Le Chevalier

  • la Charrette e, por fim, Perceval ou Le Conte du Graal; este ltimo interrompido por

    causa da morte do autor. Tendo Wace como maior de suas fontes, Chrtien de Troyes,

    impe uma mudana decisiva matria arturiana, fazendo ultrapassar o seu carter

    histrico e valorizando os aspectos mticos da matria.

    Esta mesma tendncia, embora mais claramente influenciado pelo discurso

    cristo, segue-a Robert de Boron com a escrita de dois romances em verso: Joseph ou

    Le Roman de lEstoire du Graal e uma Estoire de Merlin.

    Data do sculo XIII a elaborao de dois ciclos em prosa que visavam a

    aglutinao das diferentes histrias pertencentes matria do Graal, mas como em

    Boron, que tomavam as aventuras do Graal como ciclo condutor da narrativa: o Ciclo da

    Vulgata e a PostVulgata da matria da Bretanha. da Post-Vulgata que advm o

    texto da Demanda do Santo Graal, traduo para o galego portugus da parte do ciclo

    destinado s aventuras dos cavaleiros do Rei Artur em busca da soluo dos mistrios

    do Graal. A Demanda do Santo Graal , pois, um manuscrito portugus do sculo XIII,

    uma adaptao das novelas francesas sobre o mundo encantado do rei Artur e dos

    cavaleiros da Tvola Redonda, que pode ser encontrado no cdice 2594 da Biblioteca

    nacional de Viena. Todavia, como salienta Mello (1992),

    mister no encarar esses trabalhos como meias tradues literais do

    francs, porquanto todos revelam tantos enxertos de material haurido

    em tradies diversas, como imprimem sentido e interpretaes

    prprias aos episdios dos enredos arturianos (MELLO, 1992, p. 26).

    A primeira edio da Demanda foi feita, de forma parcial, pelo lusfilo alemo

    Karl Von Reinhardstottner, em 1887. Posteriormente, em 1900, dois fragmentos

    inditos da obra foram publicados por Otto Klob. De 1892 at 1929, muitas foram s

    tentativas malgradas de publicao dos manuscritos, principalmente por parte da

    Imprensa da Universidade de Coimbra, assim como de anlise dos mesmos, Somente

    em 1944, foi publicada a primeira edio completa do texto de A Demanda do Santo

    Graal pelo INL, sob os cuidados de Augusto Magne. Segundo Heitor Megale (A

    DEMANDA DO SANTO GRAAL, 1989, p. 13), a edio de 1944 provocou interesse

    traduzido em elogios, crticas e anotaes, tendo-se tornado igualmente objeto de

    pesquisas e estudos.

  • Para a elaborao do presente trabalho tomamos como fonte a verso

    modernizada de A Demanda do Santo Graal, uma publicao da editora T. A. Queiroz,

    com a colaborao da Editora da Universidade de So Paulo, elaborada no ano de 1989,

    sob os cuidados do professor Heitor Megale.

    A Demanda do Santo Graal trata das aventuras do Rei Artur e dos cavaleiros da

    Tvola Redonda que se lanam em busca de solucionar as aventuras do Santo Graal. A

    narrativa se inicia nas vsperas de Pentecostes em Camalote, no reino de Logres, onde

    os melhores cavaleiros do mundo se renem tvola redonda. Na narrativa e

    julgamento das aventuras dos cavaleiros, a perspectiva moralizadora de orientao crist

    se apresenta de forma corrente. A novela tem como ponto alto a conquista do Santo

    Graal por Galaaz, o bom cavaleiro espiritual e se encerra com o relato da decadncia e

    fim do reino arturiano.

    O cavaleiro na sociedade feudal, para ser respeitado, sai da tutela de seu rei para

    encontrar algo que o dignifique, pois a sua vida somente tem sentido de ele for em

    busca de alguma aventura. Na realidade, essas aventuras se resumiam a torneios,

    guerras ou caadas. Nos romances, para vivenciar suas aventuras, muitas vezes os

    cavaleiros necessitavam da inferncia de algum ente sobrenatural. Nas suas viagens

    tinham como destinos muitas vezes lugares nunca dantes percorridos e os seus objetivos

    muitas vezes estavam norteados por demandas da ordem do sobrenatural.

    Na Demanda do Santo Graal, a busca do vaso sagrado move os cavaleiros de

    Artur e o sucesso, nesta aventura, levaria ao reconhecimento dos melhores entre os

    cavaleiros. No caminho, donzelas, ermites, castelos encantados, florestas, mesmo

    tmulos, todos situados no domnio do maravilhoso, permeavam as aventuras dos

    cavaleiros.

    A aventura da espada sobre a pedra, objeto encantado que auxiliaria na

    identificao do melhor dentre os melhores, serviria para identificar, logo no incio da

    novela, Galaaz como o melhor cavaleiro do mundo, aquele a quem estava destinado

    solucionar as aventuras do Graal. Pertencente ao domnio do maravilhoso propriamente

    dito, o objeto encantado tem aqui uma finalidade nobre e, embora no associado ao

    conceito de milagre, valorado positivamente pelo autor da narrativa. Do mesmo modo,

    por interferncia do sobrenatural, Galaaz recebe as suas demais armas: por exemplo,

    com o auxlio de um ermito, recebe um escudo com poderes miraculosos. Com o

  • corao cheio de virtudes crists, Galaaz agrega valores positivos s aventuras

    maravilhosas que o faro consagrar-se como melhor cavaleiro do mundo.

    tambm do domnio do maravilhoso, mas pautado sobre uma simbologia

    crist, a aventura do cervo branco, com a qual se depara Galaaz durante a Demanda:

    E quando o clrigo chegou secreta, viram uma coisa de que se

    maravilharam mais que de coisa que nunca tivessem visto, porque

    viram e assim lhes pareceu, que o cervo se tornou um homem e

    sentou-se sobre um altar numa cadeira muito formosa e rica. Depois

    viram outra coisa maravilhosa: os quatros lees se transformaram em

    figuras descomunais, um em figura de anjo, o outro em forma de leo

    mil vezes mais formoso do que antes era, o outro em figura de guia e

    o outro em figura de boi. E tinha cada um deles quatro asas grandes a

    maravilha pelas quais lhes semelhava que podiam bem voar, se

    quisessem (A DEMANDA DO SANTO GRAAL, 1989, LXI, 432, p.

    332).

    Prximo, por suas virtudes e aes, ao conceito de santidade, Galaaz no s

    combate com os cavaleiros, como tambm com os mortos, como na passagem em que

    soluciona as maravilhas de um tmulo de um pago que muito mal fez aos que ali

    passavam:

    Depois disto no esperou mais Galaaz, mas foi logo ao tmulo; e

    assim que chegou l, ouviu logo uma voz de to grande dor que

    maravilha era, e dizia assim:

    - Ai, Galaaz, servo de Jesus Cristo, no te chegues a mim, porque me

    fars deixar este lugar em que at agora fiquei (A DEMANDA DO

    SANTO GRAAL, 1989, IX, 57, p. 65).

    Mais prximas do conceito do miraculoso so as curas efetuadas por Galaaz por

    interferncia do prprio Deus. Por exemplo, ao chegar a um castelo, Galaaz informado

    de que uma mulher de alta posio se encontrava enferma h dois anos; em seguida,

    somente ao v-lo a dama se apresenta curada:

    As novas foram pelo castelo que sua senhora estava curada, e cada um

    foi l como podia primeiro para ver se era verdade, e quando viram

    que era, bendisseram o Rei dos reis e a hora em que o cavaleiro fora

    nascido e iam pequenos e grandes maravilha (A DEMANDA DO

    SANTO GRAAL, 1989, LV, 398, p. 310).

  • Dentre as muitas aventuras, a mais importante, entretanto, apenas reservada a

    uns poucos cavaleiros, e aquela da ceia do Graal, anunciada por Merlin, por eremitas e

    homens bons, no decorrer da Demanda, como o destino final dos bons cavaleiros:

    - Da demanda do santo Graal vos digo bem que tereis prazer e muita

    boa aventura e muito esforo e muita aflio e chegareis casa do rei

    Pescador para terdes o santo manjar do santo Graal, e sereis l doze

    companheiros dos bons a Deus e ao mundo, e l tereis to grande

    alegria e to grande prazer que nunca tivestes (A DEMANDA DO

    SANTO GRAAL, 1989, XXV, 191, p. 161).

    De natureza diferente o encantamento lanado por uma donzela contra um

    cavaleiro para que este dormisse com ela:

    E saibam todos que este conto ouvirem que aquele Elaim, o branco,

    foi filho de Boorz de Gaunes e o fez numa filha do rei da GrBretanha. Mas antes que isto acontecesse, prometera Boorz a Nosso

    Senhor lhe guardar sua virgindade. Mas to logo ela o viu, gostou dele

    desde ento e amouo; e depois enganouo por encantamento, e dormiu com ela e fez ali aquela noite aquele que foi depois imperador

    de Constantinopla (A DEMANDA DO SANTO GRAAL, 1989, II, 14,

    p. 34).

    Situado no domnio do mgico, este encantamento apresentado como algo

    negativo, seja pela natureza do propsito que levou ao, seja porque levou um

    cavaleiro a romper com o seu voto de castidade. So da mesma natureza as aes

    encetadas pelo prprio demnio quando ele aparece metamorfoseado para ludibriar os

    cavaleiros da demanda.

    Do domnio do maravilhoso propriamente dito aparecem, na novela, inmeras

    donzelas e, de um modo especial, as fadas. A floresta o local privilegiado de

    manifestao do maravilhoso, assim como torres gigantes, fontes, naves e castelos

    encantados, e a soluo de suas maravilhas impe-se como tarefa aos bons cavaleiros,

    como no caso do Castelo Felo, sobre o qual adverte uma donzela:

    - Senhores cavaleiros, voltai, porque ides muito loucamente, pois no

    podeis sair sem a perda dos corpos, se mais adiante fordes porque este

    o castelo Felo, de onde nenhum cavaleiro e nenhuma donzela, que

    entre, sai, antes ficam l todos em priso (A DEMANDA DO SANTO

    GRAAL, 1989, LXVIII, 496, p. 380).

  • Assim, apresentado sob a forma do maravilhoso propriamente dito, do magicus e

    do miraculoso, em A Demanda do Santo Graal o maravilhoso no se restringe a um

    sentido compensatrio ou contestador. Como afirma Le Goff (1994):

    O conto maravilhoso tem uma grande riqueza de significaes.

    Inscreve-se na historicidade e as transformaes dessas verses esto

    relacionadas com as grandes mutaes de civilizao, especialmente

    no tocante vida cotidiana ao assdio do mundo natural por um

    mundo sobrenatural (LE GOFF, 1994, p. 64).

    Se, por um lado aparece como realizao e confirmao dos feitos dos homens

    bons, identificados pela sua proximidade em relao aos preceitos cristos, servem,

    tambm, para mostrar um mundo bem mais diverso e surpreendente do que aquilo que

    comumente se identifica como o real.

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