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1 O RELATO MARAVILHOSO NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DO AUTO DA ALMA, DE GIL VICENTE BORGES, Maria do Carmo Faustino (UEM) 1 Introdução A literatura ao representar o homem dentro de sua cultura, dentro de uma determinada contemporaneidade, utiliza elementos próprios e adequados na construção das obras. Dessa forma, a partir da escolha do auto a ser analisado, percebemos aqueles que favorecem a melhor abordagem. Uma das formas mais antigas de representação das coisas não apreensíveis no plano real é o maravilhoso, que desempenha a função de tornar natural o mundo fantástico dentro da narrativa, e aceito pelo leitor/espectador. Nessa perspectiva, este estudo tem por objetivo observar o maravilhoso, na obra Auto da Alma (1965), escrita por Gil Vicente em torno de 1518, como gênero literário e como elemento da cultura, que desenvolve a temática desse texto acerca do mundo religioso e da crença cristã, assunto relevante na Idade Média. A nossa opção pelo estudo do referido auto justifica-se pela presença de elementos do gênero em questão, na elaboração do discurso didático-literário de todo o texto, na personificação do Anjo, da Alma, da Igreja, do Diabo e outros, que constituem um corpus adequado à análise proposta. A problematização dessa pesquisa ocupa-se em mostrar que, embora os teóricos modernos afirmem ser o maravilhoso um gênero da modernidade, é possível encontrar esse artifício literário no desenvolvimento da narrativa deste texto de Gil Vicente, para ensinar uma crença, uma moral ou impor uma ideologia. Para fundamentar a discussão sobre tais questionamentos, foi feita uma pesquisa bibliográfica a partir da teoria sobre o fantástico e o maravilhoso na literatura, como em Todorov, Le Goff, Rodrigues, assim como a obra de Gil Vicente, e observados os tópicos que têm relação com o material literário previamente identificado na referida obra. Gil Vicente (1465(?) – 1536) foi o dramaturgo mais destacado da Idade Média em Portugal, embora escrevendo para a corte. É considerado o verdadeiro criador do teatro português: tudo que se produziu em Portugal dentro desse gênero remete ao teatro vicentino.

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O RELATO MARAVILHOSO NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DO

AUTO DA ALMA, DE GIL VICENTE

BORGES, Maria do Carmo Faustino (UEM)

1 Introdução

A literatura ao representar o homem dentro de sua cultura, dentro de uma determinada

contemporaneidade, utiliza elementos próprios e adequados na construção das obras. Dessa

forma, a partir da escolha do auto a ser analisado, percebemos aqueles que favorecem a

melhor abordagem. Uma das formas mais antigas de representação das coisas não

apreensíveis no plano real é o maravilhoso, que desempenha a função de tornar natural o

mundo fantástico dentro da narrativa, e aceito pelo leitor/espectador.

Nessa perspectiva, este estudo tem por objetivo observar o maravilhoso, na obra Auto

da Alma (1965), escrita por Gil Vicente em torno de 1518, como gênero literário e como

elemento da cultura, que desenvolve a temática desse texto acerca do mundo religioso e da

crença cristã, assunto relevante na Idade Média.

A nossa opção pelo estudo do referido auto justifica-se pela presença de elementos do

gênero em questão, na elaboração do discurso didático-literário de todo o texto, na

personificação do Anjo, da Alma, da Igreja, do Diabo e outros, que constituem um corpus

adequado à análise proposta. A problematização dessa pesquisa ocupa-se em mostrar que,

embora os teóricos modernos afirmem ser o maravilhoso um gênero da modernidade, é

possível encontrar esse artifício literário no desenvolvimento da narrativa deste texto de Gil

Vicente, para ensinar uma crença, uma moral ou impor uma ideologia.

Para fundamentar a discussão sobre tais questionamentos, foi feita uma pesquisa

bibliográfica a partir da teoria sobre o fantástico e o maravilhoso na literatura, como em

Todorov, Le Goff, Rodrigues, assim como a obra de Gil Vicente, e observados os tópicos que

têm relação com o material literário previamente identificado na referida obra.

Gil Vicente (1465(?) – 1536) foi o dramaturgo mais destacado da Idade Média em

Portugal, embora escrevendo para a corte. É considerado o verdadeiro criador do teatro

português: tudo que se produziu em Portugal dentro desse gênero remete ao teatro vicentino.

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Ele tentou fundir em suas peças o pensamento medieval ao moderno – humanismo – que

começava a demarcar o universo ideológico de sua época. Ficou conhecido por seus autos,

como Auto da Barca do Inferno, O Auto da Barca do Purgatório, Auto da Alma, Auto da

Visitação, bem como por suas farsas e comédias, a exemplo de Farsa de Inês Pereira, Quem

tem Farelos, Comédia de Rubena.

2 O teatro na Idade Média.

A Idade Média tem no teocentrismo a sua maior fonte de referências, dentro das

acepções da doutrina cristã. Esta via de pensamento e de ideologia é utilizada no

direcionamento do comportamento político e social daquele período. Historicamente sabemos

que, nesse contexto, a Igreja permeia todas as camadas sociais e detém o poder. Assim, ela

exerce influência, também, sobre toda a criação, no âmbito intelectual da época, inclusive nas

artes e na literatura.

Por essa perspectiva, observamos que os textos literários ficaram imbuídos de uma

pedagogia catequética, de modo a conduzir uma política voltada aos interesses dessa

instituição religiosa. Os poetas que não obedeciam ao padrão estabelecido tinham seus livros

confiscados e vetados por vias inquisitoriais muito severas, como no caso muito acentuado de

Portugal, segundo Lopes e Saraiva (s/d). A liberdade poética, assim como a dramaticidade

ficavam limitadas e, assim, o teatro tinha sua criatividade restringida, muitas vezes com

tendência à função de ensinar os preceitos da doutrina da Igreja, em detrimento do mundo

pagão da Antiguidade, o que, obviamente, era repudiado.

Desde o período carolíngio a cultura clerical prevaleceu completamente sobre a cultura

laica, mas, com a Reação Folclórica na Idade Média Central, ocorre uma inversão: a

folclorização dos elementos cristãos e dos eventos tidos como cristãos. Isso procede,

principalmente, da classe dos cavaleiros contra as linhagens mais antigas, e da Arte Gótica

que, por meio das transformações estéticas, segundo (FRANCO JR., 1990), facilitou a prática

de manifestações culturais populares, as quais expressavam um modo diferenciado de pensar.

Há uma espécie de harmonização entre as duas culturas em vista da necessidade de uma

continuidade social.

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O teatro vincentino, século XVI, tem destaque por sua popularidade e por versar sobre

temas ainda influenciados pela religiosidade cristã, tendo, porém, sinais de uma visão

humanista, própria de sua época, da transição para o Renascimento. Suas peças retratam as

contradições vividas naquele momento, ainda voltadas ao teocentrismo, mas cedendo a uma

nova concepção de mundo, o antropocentrismo. Esse contexto leva Gil Vicente, muitas vezes,

a ironizar a Igreja e a situação do homem nesse conflito, como entendemos em “Graças a

certos elementos doutrinários e estéticos, o teatro vicentino participa (...) que as condições

históricas mal deixaram sobreviver à carreira do dramaturgo” (LOPES E SARAIVA, s/d,

p.189). A Igreja rejeitava a manipulação da doutrina cristã em suas obras, devido também à

utilização do maravilhoso, elemento de herança do mundo pagão, já utilizado por Aristóteles

na Poética, a exemplo dos gregos e romanos na Antiguidade.

2.1 O auto

Auto é uma das modalidades do teatro, de cunho popular na Idade Média. Naquele

período servia para designar tanto peças cômicas, quanto de instrução, as morais e de

mistério. A forma textual não obedecia às leis da tradição clássica, de ação, tempo e espaço, e

eram textos de curta extensão. Compunha-se de uma multiplicidade quase estática de quadros

e cenas, estruturada em versos. Gil Vicente cultivou esse modelo textual em inúmeras obras.

Entre os vários estilos de auto, há o de moralidade, subdividido em bíblico e em

alegórico, como o Auto da Alma, analisado no presente estudo. Os autos de moralidade são

fundamentados em temas religiosos, para edificar e moralizar, com clara intenção didática.

3 A teoria do maravilhoso

A criatividade artistíco-literária tem no elemento maravilhoso a função de criar e

relativizar as idéias cogitadas no plano real e transferi-las para o plano artístico. O que torna a

obra literária a partir do maravilhoso é o jogo que este proporciona na construção da narrativa,

para diferenciá-la de um simples relato, já que a ficção inventiva é o que habilita um texto a

constituir-se literário. Se um texto só descreve a realidade, não há como ser ele considerado

Literatura. Nas variadas identificações do maravilhoso que observamos, no percurso da

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História Literária, sua relevância é indiscutível, posto que sua utilização é presente e

progressiva desde as primeiras obras e até nossos dias.

Tzevetan Todorov aborda a teoria da literatura fantástica em sua obra Introdução à

literatura fantástica, cujas observações são discutidas a partir de Northrop Frye sobre o

sistema de gêneros. Para Todorov (1975), o fantástico se imbrica com o maravilhoso e o

estranho, localizando-se no limite desses dois subgêneros. O primeiro “caracteriza-se pela

existência exclusiva de fatos sobrenaturais, sem implicar a reação que provoquem nas

personagens” (ibidem, p.53), o segundo, por “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao

longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional” (ibidem, p.51). Assim, o

crítico chama, também, de maravilhoso o gênero que inclui as obras que apresentam

fenômenos sobrenaturais, sem uma possível explicação racional, mas que são aceitos pelo

leitor implícito com naturalidade (sem surpresa), “se o leitor decide que se devem admitir

novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do

maravilhoso” (ibidem, p.48).

Na Alta Idade Média, segundo Le Goff (1983), há uma repressão ao maravilhoso, por

preocupação da Igreja, que, ao qualificá-lo como elemento pagão, oriundo do mundo

politeísta, oferecia perigo para a cultura tradicional contemporânea, monoteísta “o

maravilhoso, que exercia sobre os espíritos uma evidente sedução, que constitui uma das suas

funções na cultura e na sociedade” (ibidem, p.22). Ainda neste autor, apreendemos que uma

das propriedades do maravilhoso, no período medieval, é aquele produzido por meio do

sobrenatural, seja ele teológico ou fantasioso. Isso se faz entender que por trás dessas criações

podem estar implícitas determinadas ideologias, crenças e até cultura. O sobrenatural e o

miraculoso, princípios do cristianismo, são, por natureza e função, diferentes do maravilhoso,

mas também uma parte dele. São, pois, uma herança social cristã, “Ora, no maravilhoso

cristão e no milagre há um autor, e um só, que é Deus” (ibidem, p.25). Isso é, portanto, visto

como um problema, pois ocorre uma previsão dos acontecimentos a partir do arbítrio divino,

e, dessa forma, um esgotamento do maravilhoso.

Percebemos nesses autores uma visão moderna do maravilhoso, enquanto que em

Aristóteles (1979), na Antiguidade Clássica, encontramos o termo já relacionado à literatura

da época: “O maravilhoso tem lugar primacial na tragédia; mas na epopéia, porque ante

nossos olhos não agem atores, chega a ser admissível o irracional, de que muito especialmente

deriva o maravilhoso” (ibidem, p.265). A leitura que temos sobre esse assunto é de que, o

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maravilhoso abordado por Aristóteles se distingue da definição dos modernos, pois em sua

versão tudo que não pertencia ao plano real era considerado maravilhoso, como deuses,

milagres, fenômenos sobrenaturais e etc. Esta proposta se aproxima do maravilhoso medieval

cristão, embora Le Goff (1983) postule e acrescente outras idéias sobre o maravilhoso no

ocidente medieval.

Diante das visões expostas, precisamos observar a questão da verossimilhança, um dos

principais fatores de distinção do chamado maravilhoso na literatura anterior ao Romantismo

e a posterior ao mesmo. Desde Aristóteles (1979), quando refletiu sobre a necessidade da obra

ser verossímil, ou seja, passível de existência no mundo real, criou-se uma convenção que

perdurou por séculos. Segundo Rodrigues (1988), o fantástico e o maravilhoso estavam

atrelados a essa convenção, exigindo coerência “ainda que seja um personagem absurdo, fora

do comum em relação ao dado externo” (ibidem, p.20). O que não correspondia ao verossímil

era rejeitado. Essa racionalização literária impediu a liberdade criativa em relação ao

maravilhoso, o qual ficou muito atrelado à religião e a ensinamentos comportamentais, de

modo a criar vínculo com o mundo externo.

Essa busca pela realidade externa permaneceu até os tempos modernos, mais

propriamente, até ao advento do Romantismo, que, ao romper com ideologias clássicas,

“libera o gênio criador” (ibidem, p.23), dando espaço para o maravilhoso se fazer de fato

presente e original, desenvolvendo-se tal gênero. Isso não significa que a coerência se anula,

pelo contrário, ela continua necessária, mas diferentemente, o maravilhoso, a partir de então, é

admissível como coerente unicamente com o próprio texto literário ao qual pertence e não ao

mundo real, dado que a realidade não é material literário.

A literatura tem correspondência consigo mesma e não com o real, como lembra

Todorov (1975, p.66): “A literatura não é representativa [...] a nada que lhe seja exterior. Os

acontecimentos narrados por um texto literário são ‘acontecimentos’ literários, e do mesmo

modo que as personagens, interiores ao texto”. Além disso, de acordo com Rodrigues (1988),

na contemporaneidade, o conceito de verossímil se perde ante ao fato de a perspectiva do que

é real mudar. Este não depende mais de convenções, mas do ponto de vista pelo qual é

observado, o real é relativizado pela subjetividade e o aspecto cultural: “Temos de reconhecer

que o real é mutável, historicamente relativo, inconscientemente resvaladiço, difícil de ser

apreendido pelo discurso humano” (ibidem, p.25).

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Há um consenso entre os críticos de que o maravilhoso não existe no estado puro, mas

em diversas categorias, podendo estar na constituição de outros gêneros, pelo fato de não

existir uma estrutura textual própria do maravilhoso. Entre esses autores, Todorov (1975)

afirma que um gênero apenas coloca o leitor defronte a uma estrutura, uma soma de

características literárias possíveis sobre as quais tentamos nos aproximar de uma obra para

julgá-la. Essa sua opinião crítica origina-se na sabedoria de que os gêneros não têm uma

fórmula para cada obra.

4 O Maravilhoso na construção do discurso no Auto da Alma

O teatro português, especificamente em Gil Vicente, monta de um período de transição

entre o Teocentrismo e o Humanismo, sendo que o Renascimento foi tardio naquele país. O

teatro vicentino, em particular, vincula-se de maneira arraigada ao pensamento medieval

enquanto religião, porém as marcas do Humanismo já são evidentes. Tais afirmações são

possíveis ao apreendermos em suas obras uma concepção do homem que aspira aos prazeres

da vida terrena, em contrapartida àquela convencionada na busca da vida eterna.

No contexto monoteísta, já de sua contemporaneidade, o Bem é concebido como fonte

absoluta de amor, de bondade, Deus. Outro, o Mal encarna o lado oposto na figura do Diabo,

que propõe os prazeres terrenos, projetando-se, assim, um ideal de homem que vive em

conflito com a imagem de Deus. Diferente do mundo politeísta, a vida do homem não é mais

prevista pelo destino, mas calcada no livre-arbítrio, regendo suas ações. Essa ideologia

religiosa serve de base ao desenvolvimento temático do auto estudado.

O Auto da Alma narra a experiência de uma Alma que tem de decidir entre dar crédito

às investidas do Diabo para encaminhá-la para o lado do Mal, representado pelos prazeres do

mundo como jóias, poder e riquezas, aguçando a sua vaidade e, de outro, o Anjo mostrando o

caminho do Bem, feito de boas obras e do distanciamento das vaidades. Como alma pecadora

ela se inclina para o lado do Diabo, porém o Anjo, insistente, convence-a e ela passa a ouvi-

lo. O Anjo leva a Alma até a Santa Madre Igreja, quando quatro grandes teólogos a recebem

com um banquete: Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e São Tomás. Nesse

banquete, que representa a Paixão de Cristo, a Alma arrepende-se, converte-se e alcança a

salvação.

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Prevalece a concepção medieval do Bem sobre o Mal, representado na peça pelas

entidades alegóricas do Anjo Custódio e do Diabo, respectivamente. A Alma é uma

personagem feminina que incorpora a vaidade humana e entra em conflito a partir dos

aconselhamentos do Anjo e as tentações do Diabo. Temos, portanto, na personificação das

três personagens o sobrenatural teológico, caracterizando o elemento maravilhoso que

possibilita transcender o mundo real. Trata-se de um fenômeno sem explicação racional e,

nesse caso, instaura-se o maravilhoso, porque, embora sejam colocadas entidades abstratas

como personagens, elas e as suas ações são aceitas pelo leitor, sem contestação, de maneira

natural, visto que essa contextualização era fundamentada na doutrina cristã, ainda muito forte

e praticada naquela cultura.

Embora esse pensamento medievo cristão predomine nesta obra literária, podemos

notar pressupostos do Humanismo no Diabo e na Alma. O primeiro valoriza os bens materiais

e os prazeres do homem renascentista. A Alma, por sua vez, apesar de aconselhada pelo Anjo,

é quem decide seu destino e resolve afastar-se das vaidades. Observamos, então, que a Alma,

representa o discurso do livre-arbítrio, idéia difundida a partir do pensamento humanista,

momento em que o homem faz suas próprias escolhas.

Em um primeiro momento o diálogo acontece entre o Anjo e a Alma, quando ele fala

sobre o reino de Deus, simbolizado pelas boas obras em “planta neste vale posta / pera dar

celestes flores / olorosas / e pera serdes tresposta / em a alta costa” (VICENTE, 1965, p.54). A

Alma aceita a proposta: “Anjo que sois minha guarda / olhai por minha fraqueza / terreal / [...]

Ó precioso defensor / meu favor / vossa espada lumiosa / me defenda!” (ibidem, p.55). Há

ainda por parte do Anjo um aconselhamento para que ela não se deixe influenciar pelas

ambições, pelas vaidades. Observamos que tanto o discurso do Anjo, quanto o da Alma,

constituem-se numa linguagem simbólica e acentuam o aspecto fantástico às falas; a espada

do Anjo tem poderes sobrenaturais e protege. Neste caso, a espada é um objeto fortalecedor

do inventário medieval, que se relaciona com o maravilhoso, segundo Le Goff (1983).

Na sequência, o Diabo tenta seduzir a Alma: “Quem vos engana / e vos leva tão

cansada / por estrada / que somente não sentis / se sois humana? [...] Vivei à vossa vontade / e

havei prazer / Gozai, gozai dos bens da terra...” (VICENTE, 1965, p.58). Se a alma é abstrata,

como poderia estar cansada, gozar dos bens da terra, ser matéria, ser humana? É o

maravilhoso que justifica esse jogo da criação textual, o que estimula a personificação da

alma em um processo natural dentro do discurso literário.

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O Diabo insiste e a Alma recai. “Ainda é cedo para a morte / [...] Viva vosso parecer /

[...] O ouro pera que é / e as pedras preciosas / e brocados? / E as sedas pêra quê? / [...] Vedes

aqui um colar / d’ouro mui esmaltado / e dez anéis” (ibidem, p. 64). O leitor acolhe com

naturalidade a idéia de uma alma vestida e adornada com jóias, nada choca sua interpretação

ante as novas leis dessa narrativa. O ambiente onde as personagens transitam, os objetos que

se misturam formam um mundo sobrenatural, próprio do maravilhoso. A concepção religiosa

do coopera e possibilita para que os acontecimentos ou o fenômeno sejam aceitos, e não

provoquem qualquer surpresa.

O Anjo ganha a Alma, convencendo-a de procurar a Santa Madre Igreja. “Vedes aqui

a pousada / verdadeira e mui segura / a quem quer Vida.” (ibidem, p. 69). Nessa cena, a Alma

já se encontra com a Igreja e, arrependida, confessa seus pecados “Conheço-me por culpada /

e digo diante de vós / minha culpa / Senhora quero pousada” (ibidem, p.72). Ocorre

novamente a personificação: a Santa Madre Igreja assume a voz da instituição religiosa e

acolhe a Alma “Vinde-vos aqui assentar / mui de vagar / que os manjares são guisados / por

Deos Padre” (ibidem, p.72). Como não estranhar uma alma que se confessa? Uma Igreja que

dá conselhos e oferece manjares preparados por Deus? Aqui o maravilhoso reside na

sequência e na colocação dos acontecimentos, os quais não comportam uma explicação

racional, mas se acomodam dentro da visão do quotidiano, pois não há questionamento

quanto à sua inserção na estruturação do texto, como entendemos em Le Goff (1983).

Mais tarde a Igreja pede ao Santos Agostinho, Jerônimo, Ambrósio e Tomás que

sirvam a Alma “servi aqui por meu amor / a qual milhor.” (VICENTE, 1965, p.72). Como

celebração um banquete é servido, no qual as iguarias se constituem de objetos e insígnias que

simbolizam a Paixão de Cristo: a Verônica, os açoites, a coroa de espinhos, os cravos, o

Crucifixo. A Ceia é mística e os objetos personificados. Os ‘manjares’ servidos são metáforas

alusivas ao sofrimento de Cristo com o intuito de comover a Alma a alcançar a sua salvação:

“é iguaria/ que haveis de mastigar/ em contemplar/ a dor que o Senhor do mundo/ padecia”

(ibidem, p. 82).

Esse banquete, conforme explica Todorov (1975), constitui-se numa alegoria, por ser

uma metáfora contínua. Compreendemos aqui o ponto de vista do autor em afirmar que a

alegoria não é o fantástico exclusivamente, mas é parte dele e, os elementos contidos na peça

são, de maneira geral, alegóricos ao buscarem referência na doutrina cristã. Por outro lado as

personagens e os eventos personificados a partir do imaginário medieval passam a criar um

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modelo do fantástico na obra, o gênero maravilhoso: “O amplo alcance do maravilhoso

medieval depende exatamente de seu desenvolvimento interno, pelo qual o maravilhoso se

estimula, se alarga e assume proporções ambiciosas e por vezes extravagantes” (LE GOFF,

p.27, 1983).

Podemos dessa maneira, argumentar que, apesar de a maioria dos teóricos

considerarem a existência do maravilhoso somente a partir do advento do Romantismo, esse

estudo apresenta aspectos do gênero, dentro do o Auto da Alma. As ponderações feitas,

baseadas nas teorias e no corpus analisado podem discordar em parte com a teoria moderna,

visto em obras mais antigas, como o exemplo do referido auto, do período medieval, tem a

sua narratividade completamente baseada no sobrenatural cristão, conferindo o modo

ficcional de transgredir a racionalidade ao maravilhoso.

Conclusão

Concluímos que o gênero maravilhoso, junto à liberdade criativa que lhe é conferida

dentro da literatura, é um dos mais versáteis na construção da narrativa. Por meio dele o

irracional transpõe as barreiras do real e da compreensão lógica dos acontecimentos.

No Auto da Alma comprovamos a presença do maravilhoso no desenvolvimento da

sua narrativa, responde à problematização da pesquisa proposta quanto à sua utilização em

textos não modernos, assim como entendemos que o ponto de vista dos teóricos apresenta

ressalvas e variedades que devem ser adequadas a cada obra em particular. No caso deste

ensaio percebemos que a alegoria não se desassocia do elemento maravilhoso, porquanto

desempenham o papel essencial de ligação e de coerência aos eventos.

Finalmente, foi observada a questão da imprevisibilidade, característica do

maravilhoso, desviada pelas convenções do cristianismo medieval: a presença do teológico na

narrativa torna-o previsível: a vitória do Bem sobre o Mal; a conversão da Alma. Esse aspecto

confirma o cunho moralizante do auto, sem, no entanto, ofuscar a função do maravilhoso na

elaboração do enredo.

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Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média – Nascimento do Ocidente 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Tradução de José António Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70 Ltda, 1983. LOPES, Oscar e SARAIVA, José Antonio. História da Literatura Portuguesa. 16ª ed. Porto Editora, Porto s/d. RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. Rio de Janeiro: Ática, Série Princípios, 1988. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Perspectiva, série Debates, 1975. VICENTE, Gil. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello e Irmão, 1965.