O Meu Pai Já Deu a Volta Ao Mundo

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O meu pai já deu a volta ao mundo! Já viveu as dores mais profundas, já amou desbragadamente, j metralhadoras, distribuiu cravos e apanhou a azeitona, já escreveu revolução, já chorou o seu luto, já arrastou as multidões e já nel pai acredita no mundo, enfurecese com o seu ritmo mas vibra na s isso o transforma todos os dias durante todos os meses, ao longo d meu pai avança sempre e nunca chega, por ue o seu horizonte se afa como no mar. O meu pai tem paci#ncia, a sua f$ $ a pr%pria tempera marinheiro, ouve cont"nuamente o marulhar da água no casco do seu bolina segundo a rota da sua implacável determinação, conhece o l f&ria das ondas, $ o seu maior adversário e o seu mais intr$pido s sente a intensidade das coisas tang"veis por ue $ sens"vel ' sua p iman#ncia das coisas intu"das por ue $ permeável aos prod"gios da pai $ atento, o meu pai nunca dorme e a sua vig"lia $ a vig"lia d professa uma esp$cie de religiosidade dial$tica, ue transporta d mundo fantasmático dos evangelhos para a barafunda materialista da e das significações hist%ricas. O meu grita com a televisão, bara habilidade do meu pai $ legendária, o seu $ entusiamo contagiante, avassaladora, o seu pragmatismo $ cir&rgico, o seu )nimo $ puro "m conformidade $ o amor. O meu pai chora com as sonatas de +chubert, tamborilam continuamente os ritmos de lavacolhos, o meu pai adora prestidigitadores, construir com as pr%prias mãos jardins japones dispositivos ins%litamente &teis, sonhar com viagens sem roteiro, profundezas do oceano, integrar as multidões ue vergam o seu des elas, enervarse, comoverse, arrebatarse, adivinhar seus movimen convulsões, sonhar com a sua gl%ria ue será a gl%ria da humanidad talvez não durante a sua vida, mas talvez na minha, talvez na dos alvez o hiago, ou o -afael, ou a -ita, ou o iguel possam viver ue vivem no mundo prometido por seu av/, talvez reconheçam nesse ue $ a vocação dos homens, a justiça ue $ o diferencial da sua r talvez apenas os netos de seus netos possam e0perimentar a potenci a fosforecencia do inconformismo do meu pai irradiará pela consci#

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Texto poético

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O meu pai j deu a volta ao mundo!J viveu as dores mais profundas, j amou desbragadamente, j disparou metralhadoras, distribuiu cravos e apanhou a azeitona, j escreveu, j edificou, j fez a revoluo, j chorou o seu luto, j arrastou as multides e j nelas se dissolveu. O meu pai acredita no mundo, enfurece-se com o seu ritmo mas vibra na sua frequencia e com isso o transforma todos os dias durante todos os meses, ao longo de todos os anos. O meu pai avana sempre e nunca chega, porque o seu horizonte se afasta contnuamente, como no mar. O meu pai tem pacincia, a sua f a prpria temperana.O meu pai marinheiro, ouve contnuamente o marulhar da gua no casco do seu navio, alinha a bolina segundo a rota da sua implacvel determinao, conhece o labor dos ventos e a fria das ondas, o seu maior adversrio e o seu mais intrpido soldado. O meu pai sente a intensidade das coisas tangveis porque sensvel sua presena, sente a imanncia das coisas intudas porque permevel aos prodgios da metafsica, o meu pai atento, o meu pai nunca dorme e a sua viglia a viglia da Histria. O meu pai professa uma espcie de religiosidade dialtica, que transporta de forma peculiar o mundo fantasmtico dos evangelhos para a barafunda materialista das dinmicas sociais e das significaes histricas. O meu grita com a televiso, barafusta com os jornais. A habilidade do meu pai legendria, o seu entusiamo contagiante, a sua fria avassaladora, o seu pragmatismo cirrgico, o seu nimo puro mpeto, mas a sua total conformidade o amor. O meu pai chora com as sonatas de Schubert, seus dedos tamborilam continuamente os ritmos de lavacolhos, o meu pai adora ser iludido pelos prestidigitadores, construir com as prprias mos jardins japoneses, inventar dispositivos inslitamente teis, sonhar com viagens sem roteiro, mergulhar nas profundezas do oceano, integrar as multides que vergam o seu destino, clamar com elas, enervar-se, comover-se, arrebatar-se, adivinhar seus movimentos, prever suas convulses, sonhar com a sua glria que ser a glria da humanidade inteira, um dia, talvez no durante a sua vida, mas talvez na minha, talvez na dos meus filhos, um dia. Talvez o Thiago, ou o Rafael, ou a Rita, ou o Miguel possam viver esse dia, e sabero que vivem no mundo prometido por seu av, talvez reconheam nesse dia a fraternidade que a vocao dos homens, a justia que o diferencial da sua razo. Ou talvez no, talvez apenas os netos de seus netos possam experimentar a potencia dessa utopia, mas a fosforecencia do inconformismo do meu pai irradiar pela conscincia de todas as geraes que partilharem o seu sangue e nas quais prosperaro as raizes do seu pensamento e os contornos da sua tica. Todos vocs j devem ter ouvido falar do Juvenal.

o meu pai.