O MINISTÉRIO PÚBLICO DO BRASIL1 · PDF filedo curso de graduação...

download O MINISTÉRIO PÚBLICO DO BRASIL1 · PDF filedo curso de graduação em Direito da Faculdade de Campo Grande ... Tradução para o português de Roberto ... O futuro da democracia,

If you can't read please download the document

Transcript of O MINISTÉRIO PÚBLICO DO BRASIL1 · PDF filedo curso de graduação...

  • O MINISTRIO PBLICO DO BRASIL1

    Mrcio de Campos Widal Filho2 Resumo: A evoluo do Ministrio Pblico no Brasil revela um singular giro institucional ao longo da formao do Estado brasileiro e do amadurecimento democrtico de suas instituies. Nesse processo, destaca-se o parquet brasileiro, que adquire no Estado democrtico de direito notvel independncia e liberdade para, preservando a sua funo histrica da persecuo penal pblica, inserida agora na dialtica do sistema acusatrio, tambm se tornar um garantidor da ordem jurdica e democrtica, na defesa do interesse pblico primrio. Com o objetivo de ser predominantemente informativo, o presente trabalho apresenta o contexto histrico e constitucional do Ministrio Pblico brasileiro, no sem se desviar das controvrsias sobre o seu devido lugar no sistema acusatrio. Palavras-chave: Ministrio Pblico. Brasil. Constituio. Democracia. Sistema acusatrio. Sumrio: 1. Introduo. 2. Notas histricas de uma evoluo institucional. 3. O regime democrtico e a dignidade constitucional de princpios e garantias institucionais. 4. Funes e um ensaio sobre a sua natureza. 5. O papel democrtico no sistema acusatrio. 6. Consideraes finais. 1. INTRODUO O Ministrio Pblico brasileiro possui lugar singular nas democracias contemporneas. O seu desenvolvimento nas ltimas dcadas, atravs das cartas constitucionais e de sua legislao orgnica, moldou uma instituio com um leque amplo de funes, muito alm da tradicional atuao no processo penal. Tamanho o seu agigantamento pela Constituio de 1988, em especial pelo alto grau de independncia em relao aos Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, que chegou a despertar vozes que o cogitaram como um verdadeiro quarto poder do Estado. Historicamente, o Ministrio Pblico uma instituio de origem autocrtica. Os antecessores do promotor moderno foram verdadeiros defensores dos interesses do soberano, em tempos nos quais a figura deste se confundia com a do prprio Estado. Michel Foucault constata que aparece um personagem totalmente novo, sem precedentes no direito romano: o procurador. Esse curioso personagem, que aparece na Europa por volta do

    1 Artigo publicado na Revista Jueces para la Democracia, da Espanha, vol. 89, julho de 2017. p. 81-98. 2 O autor advogado, professor da ps-graduao lato sensu em Direito Penal e Processo Penal do Centro Universitrio Anhanguera de Campo Grande-Unidade 2 e professor de Direito Processual Penal do curso de graduao em Direito da Faculdade de Campo Grande (F.C.G.). Mestrando em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (Espanha).

  • sculo XII, vai se apresentar como o representante do soberano, do rei ou do senhor3. Apontar a sua exata gnese tema de conhecida controvrsia, pois, apesar das vozes majoritrias indicarem a procedncia na Frana, na figura do gen du roi4, h ainda quem cite o Egito Antigo, com o magia5; a pennsula italiana, com o conservatori dela legge de Florena, o avogadori di comune de Veneza e o avvocati dela gran corte de Npolis6; a Espanha medieval7; alm de referncias ao tesmteta da Grcia8, ao procurator caesaris de Roma9 e aos saions germnicos10. Por certo, durante a Antiguidade e a Idade Mdia, o que existiram foram servidores do poder, que, em nome do seu soberano, exerciam de forma parcial alguns dos atos hoje atribudos aos membros do moderno Ministrio Pblico, guardadas as devidas contextualizaes histricas e polticas. Como bem observa Hlio Tornaghi, onde ele surge pela primeira vez em todas as suas caractersticas em Frana, em consequncia da reao dos reis contra o poderio dos senhores feudais, explicando, ainda, que foi a hipertrofia de poderes dos antigos procuradores do rei e a confuso entre a pessoa desse e o Estado que fez surgir o Ministrio Pblico11. Nesse painel, na Frana reinada por Felipe IV, o Belo, foi editado o primeiro diploma legal que tratava dos procuradores do rei, a ordennance de Phelippe le Bel du 23 mars 1303, atribuindo figura do procureurs du roi a funo de tratar dos negcios do soberano. Aps, outras ordenaes e medidas rgias lanadas revelavam o propsito dos monarcas de conferirem aos seus representantes cada vez mais independncia e poder frente aos juzes do Reino, aproximando-os organicamente ao mximo. Mais tarde, na Revoluo Francesa, foram realizadas novas estruturaes na instituio, mas aquelas com maior profundidade ocorreram com os diplomas napolenicos, com especial destaque ao Cdigo de Instruo Criminal de 1808 e Lei de 20 de abril de 1810. Com as invases napolenicas, o modelo francs de Ministrio Pblico foi levado ao resto da Europa continental, e da para o mundo12. A compreenso histrica do Ministrio Pblico premissa fundamental para qualquer anlise sria e com boas intenes da instituio, pois, como j destacava Herdoto, o historiador de Mileto, deve-se pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Seguramente, o Ministrio Pblico fruto evolutivo de exigncias histricas que acompanharam a formao dos Estados contemporneos. Rememorar os primrdios permite entender o seu processo de evoluo institucional, destacar as conquistas, tecer as crticas necessrias e resistir contra retrocessos.

    3 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas, p. 65-66. Traduo para o portugus de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim de Morais. Rio de Janeiro: NAU-PUC, 2001. 4 CORDERO, Franco. Procedura penale, p. 173-174. Milo: Giuffr, 1991. 5 SILVESTRO GRAZIANO, La difesa penale nell'istruttoria, p. 198. Bologna: N. Zanichelli, 1912. 6 MANZINI, Vincenzo. Trattato di diritto processuale penale, vol. 2, p. 224. Torino: Torinese, 1931. 7 ALCAL-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto; LEVENE, Ricardo Hijo. Derecho procesal penal, v. 1, 371. Buenos Aires: Editorial Guilhermo Kraft, 1945. 8 GAUDEMET, Jean. Institutions de LAntiquit, p. 169. Paris: Sirey, 1967. 9 BRUNELLI, Ignazio. Del Pubblico Ministero, p. 16. Turim: Unione Tipografico-editrice, 1904. 10 MONTEIRO, Joo. Teoria do Processo Civil, tom. I, 6. ed., p. 195. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1956. 11 TORNAGHI, Hlio. A relao processual penal, 2. ed., p. 167. So Paulo, Saraiva, 1987. 12 RANGEL, Paulo. Investigao criminal direta pelo Ministrio Pblico: viso crtica, 3. ed., p. 118. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

  • Nessa perspectiva, surgir na genealogia do poder absolutista, aprimorar-se a partir das revolues burguesas do sculo XVIII e adaptar-se democracia dos Estados contemporneos, permitiu ao Ministrio Pblico, ao longo da evoluo poltica e jurdica da sociedade organizada, perseguir um papel alm de mero representante do soberano. O painel de constantes mudanas e adaptaes enfrentadas em seu desenvolvimento institucional confirma que a instituio j no respira mais ares autocrticos, e que busca aprimorar-se cada vez mais dentro do cenrio democrtico. A perspectiva est em harmonia com o contexto em que se insere, pois, como esclarece Norberto Bobbio, para um regime democrtico, o estar em transformao seu estado natural: a democracia dinmica13. O Ministrio Pblico do Brasil, certamente, despertaria ainda mais a curiosidade de Foucault, devido seu peculiar desenvolvimento ao longo do amadurecimento jurdico e poltico do Estado brasileiro. Para usar uma expresso de Rui Cunha Martins, o parquet14 pode representar o microcosmo15 da evoluo poltico-jurdica do Brasil, pois, alm da tradicional responsabilidade pela acusao criminal pblica, passou de brao forte dos interesses do soberano para um de seus maiores e mais fortes fiscalizadores na tutela da ordem constitucional e democrtica. 2. NOTAS HISTRICAS DE UMA EVOLUO INSTITUCIONAL No Brasil, o embrio do que viria a ser o Ministrio Pblico como instituio, surge durante o perodo colonial, sob gide das ordenaes da monarquia portuguesa. Submetida s leis rgias de Portugal, o modelo de poder judicirio e de administrao pblica da colnia foi importado da metrpole, o que torna indissocivel a origem do Ministrio Pblico no Brasil com o seu desenvolvimento anterior em Portugal. importante dizer que o modelo lusitano no seguiu exatamente os mesmos padres existentes dos outros sistemas europeus, tendo aperfeioado um Ministrio Pblico com caractersticas prprias, em atendimento s peculiaridades de Portugal, e se influncia alguma estrangeira ocorreu, esta foi meramente acidental e superficial16. Joo Baptista Ferro de Carvalho Mrtens, o primeiro procurador-geral da Coroa e Fazenda de Portugal, em relatrio encaminhado ao governo portugus, publicado no Dirio do Governo n 175, de 7 de agosto de 1871, consignou que a magistratura do Ministrio Pblico foi uma criao das necessidades de justia e da preparao de uma poca; desenvolveu-se simultaneamente nas diferentes naes que esse estado se dera17.

    13 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia, 13. Ed., p. 26. Traduo para o portugus de Marco Aurlio Nogueira. So Paulo: Paz e Terra, 2015. 14 Les Procureurs et avocats du Roi ne sigeaient pas sur la mme estrade que les juges, mais sur le parquet de la salle (Gaston Stefani et al., Procdure pnale, 16. ed., p. 107. Paris: Dalloz, 1996). 15 Expresso usada pelo autor para afirmar que o processo judicial o microcosmo do Estado de direito, em A hora dos cadveres adiados: corrupo expectativa e processo penal, p. 2 (So Paulo: Atlas, 2013). 16 PIARANGELLI, Jos Henrique. Ministrio Pblico e magistratura: frutos de uma mesma rvore, Justitia, v. 44, n. 117, p. 233 a 237. So Paulo: PGJ/APMP, abr./jun. 1982. 17 MRTENS, Joo Batista Ferro de Carvalho. O Ministrio Pblico e a Procuradoria-Geral da Coroa e da Fazenda, Boletim do Ministrio da Justia, n. 233, p. 0. 23, fev.1974.

  • Em Portugal, foi no reinado de Dom Afonso III, em um diploma de 14 de janeiro de 1289, que foi criado em carter permanente o cargo de procurador do rei, mas que ainda no reunia