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ISSN 1809-2616
ANAISIV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006
O MUSEU CASA LACERDARossana Meiko Manaka1
Angela Brandão2 [email protected]
Resumo: Este artigo trata das relações entre o mobiliário e a sociedade mediante o Museu Casa Lacerda, localizado na cidade paranaense da Lapa. O objetivo principal é apresentar uma forma de catalogação utilizada para os móveis, de forma a mostrar que valores além do funcional e utilitário são perceptíveis por meio de um estudo um pouco mais aprofundado do mobiliário e da casa. Para isso, o artigo foi apoiado em pesquisa bibliográfica, entrevistas e análise dos móveis do Museu. Ao final do artigo, são mostrados dois exemplos de catalogação, extraídos de um total de 58 peças catalogadas. A catalogação do mobiliário de um museu é uma importante ferramenta para vários tipos de estudos, já que o mobiliário e seu conjunto em uma casa revelarão muito sobre a forma como as pessoas vivem, agem e até mesmo, como elas pensam. Palavras-chave: Museu; Casa Lacerda; Catalogação de móveis.
INTRODUÇÃO
Qual a importância e o significado do móvel no nosso dia-a-dia? De que maneira
ele pode identificar usos e costumes de uma sociedade? Quando ele passa a assumir
valores além do funcional e utilitário? A partir dessas indagações, e tomando o
mobiliário do Museu Casa Lacerda como objeto de estudo, buscou-se identificar tais
respostas.
A casa Lacerda, sobrenome das quatro gerações da família que nela viveu
durante mais de 100 anos (1845 a 1981), foi doada ao IPHAN, que a ambientou como
uma típica casa lapeana dos séculos XIX e XX. Localizada na cidade histórica da Lapa,
no estado do Paraná, o Museu obteve junto à comunidade uma ótima aceitação.
1 Discente do Curso de Especialização em Design de mobiliário do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná/Universidade Tecnológica Federal do Paraná.2 Docente do Curso de Especialização em Design de mobiliário do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná/Universidade Tecnológica Federal do Paraná – orientadora do trabalho.
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A catalogação do mobiliário de uma casa-museu permite que sejam feitos
diferentes tipos de estudos, já que o móvel participa do dia-a-dia das pessoas e é
“testemunho de diferentes manifestações de usos e costumes da humanidade”.3
Para chegar-se às informações contidas no catálogo, foi necessário pesquisar
assuntos como: histórico da cidade, a família Lacerda, uma breve contextualização
sobre as origens da casa brasileira em relação à Casa Lacerda e também os estilos no
mobiliário, para que finalmente o catálogo dos móveis fosse estruturado. A descrição
técnica apresentada foi obtida a partir de livros de registro do IPHAN. A descrição
estilística partiu da observação e análise formal da peça. Por fim, o móvel é relacionado
com memórias e reflexões sobre o seu uso, costumes e considerações sobre a própria
história do mobiliário.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CASA COLONIAL BRASILEIRA E A CASA LACERDA
Muito da cultura lusitana, negra e indígena na moradia foi amalgamado e
transmitido por gerações de famílias desde o período colonial brasileiro até os nossos
dias. Esse sincretismo está presente desde as antigas casas de engenho, que
constituíam a base da sociedade brasileira no período colonial. Mesmo sendo um
exemplar de residência rural, teremos muitas semelhanças com as casas urbanas, já
que os ambientes retratam os mesmos usos e costumes, como veremos a seguir.4
Na cozinha, que tanto nas casas rurais como nas urbanas consistia em um
puxado quase fora do corpo da residência, quem era encarregada das tarefas
culinárias era uma escrava cozinheira. Neste espaço, há uma mistura de heranças
culturais, que vão desde a feijoada e a pimenta-malagueta africanas, até o uso da
mandioca e seus derivados como o polvilho, de origem indígena.5
A proximidade com os santos, a religiosidade na casa-grande materializava a
capela ao lado da casa, onde inclusive se enterravam os mortos. Essa devoção se faz
presente por meio de altares, oratórios, ou simplesmente imagens dos santos nas
residências brasileiras até os dias de hoje. Dessa forma, há também na Casa Lacerda
3 FONTOURA, Ivens. Móvel, o melhor amigo do homem. O Estado do Paraná, Curitiba, Almanaque, p. 4, 28 maio 2000. 4 VERÍSSIMO, Francisco Salvador; BITTAR, William S. M. 500 Anos da Casa no Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. 5 LACERDA, Maria Thereza Brito de. Café com Mistura; seguido de Cartas da minha cozinha. Curitiba: Imprensa Oficial, 2002.
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o Quarto dos Santos, um ambiente reservado para o oratório e lembranças de
antepassados.
A utilização de redes, nossa herança indígena, pode ser observada desde as
antigas casas de engenho no norte do país até mesmo nas varandas de regiões do sul,
de clima subtropical, como acontece na Casa Lacerda.
A SALA DE VISITAS NO MUSEU CASA LACERDA
Este é o ambiente com o maior número de móveis e elementos decorativos do
Museu Casa Lacerda: algumas cadeiras estão formalmente dispostas ao redor da
mesa de centro circular, outras cadeiras de balanço um pouco mais afastadas, o piano
e o realejo num dos cantos da sala, paredes repletas de imagens de membros da
família, além de um grande espelho com moldura dourada ao alto de uma das paredes.
A disposição formal (quase rígida) das cadeiras traduz um pouco do que era o
comportamento das pessoas nesse ambiente. Desde o século XVI, no Brasil, a sala de
visitas era um espaço de transição entre o espaço público e o espaço privado, era o
espaço de receber, onde a família se mostrava ao visitante.
Toda a formalidade no receber na casa do período colonial se justifica, em parte,
devido aos encontros sociais acontecerem em domínio público (igreja, praça ou
câmara) “justificando o papel das corporações de ofício, ordens terceiras e irmandades,
estas duas últimas muito importantes como antecedentes diretas de associações
contemporâneas”.6
Com a chegada da Família Real ao Brasil, tem-se acesso aos manufaturados
importados devido à Abertura dos Portos. Assim foi possível à família Lacerda adquirir
o mobiliário austríaco da sala. Ainda, foi nessa sala que Joaquim Lacerda, durante o
Cerco da Lapa, assinou, com outros companheiros, a rendição da cidade.7
Na sala de visitas, os móveis de assento seguem um Estilo Thonet, precursor do
Art Nouveau. Michael Thonet criou um sistema de envergar madeira com uso do vapor,
um dos primeiros sistemas industriais aplicados ao móvel. Nas peças da sala, a
liberdade do uso das curvas, de inspiração vegetal resultando num conjunto muito leve,
6 VERÍSSIMO; BITTAR. Op. cit.7 LACERDA, Maria Thereza Brito de. Visitando a Casa Lacerda. Curitiba: SPHAN/ Pró-memória, [s.d.].
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é considerada indicadora do Art Nouveau. Porém, as testeiras com entalhes indicam
ainda a permanência do ecletismo.
A DIAGRAMAÇÃO DAS PÁGINAS DO CATÁLOGO
A diagramação para as páginas do catálogo segue o roteiro explicado a seguir.
No alto da página, constam o nome do ambiente e o nome do móvel. A seguir,
logo abaixo e centralizada, uma imagem com a peça. Abaixo da imagem,
primeiramente as informações técnicas, na seguinte ordem: procedência; época;
material/ técnica; marcas; dimensões; descrição. Esses dados foram extraídos do livro
de registros do IPHAN existente no Museu Casa Lacerda, com cópias no IPHAN em
Curitiba e em Brasília, com exceção do tipo de madeira, que não estava registrado e foi
identificado pelo marceneiro lapeano, Sr. Lindolfo Adão Opólis. Também a descrição
de alguns móveis foi modificada. Os itens anteriores não encontrados por falta de
informações suficientes foram suprimidos da catalogação.
Após a descrição técnica, há uma descrição estilística, feita a partir da
observação de detalhes das peças. Foi, assim, sugerida uma corrente estilística à qual
o móvel deve pertencer. Finalmente, no último campo, intitulado Reflexões e memórias,
cada móvel é relacionado a usos, costumes e considerações pertinentes à família
Lacerda ou à história do mobiliário. Na figura abaixo, um modelo com a diagramação
seguida para a catalogação. A seguir, são apresentados dois móveis catalogados.
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Fig. 1 – Diagramação das páginas do catálogo
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Fig. 2 – Cadeira da sala de visitas
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8 Fig. 3 – Cômoda do quarto dos santos
8 MAURO, Frédéric. A Vida no Tempo de Dom Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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CONCLUSÃO
O Museu Casa Lacerda apresenta ao visitante um espaço outrora íntimo e
privado que tornou-se público. Porém, uma casa-museu traz algo diferente da imagem
impessoal e distante de um Museu de obras de arte, local para ser admirado e com o
qual muitas vezes não há grande interação por parte do visitante. No Museu Casa
Lacerda, especialmente pela maneira como se conseguiu ambientar todos os cômodos
da casa, o visitante torna-se partícipe do Museu, por ter despertado em si próprio algo
de pitoresco e familiar. Por se tratar do tema casa, um espaço conhecido e vivenciado
por todos, há um pouco da domesticidade citada por Witold Rybczynski.9 Traz de volta
a lembrança de uma época que já se foi, mas que se conserva intacta em cada
ambiente da Casa. Talvez por esse motivo, como afirmou a museóloga Solange
Godoy, que participou da montagem do Museu, a comunidade tenha se apropriado do
Museu, que não estagnou, pelo contrário, continuou recebendo doações da família,
tornando-o um local vivo. Após sua primeira visita em quase vinte anos da montagem
do Museu, Solange afirma que ele está muito melhor tanto quanto ao número de peças
quanto à sua conservação, o que não é comum no Brasil.10
O Museu Casa Lacerda é um exemplo de preservação da memória do cotidiano
na vida das pessoas comuns. A partir daí, trazem-se à tona muitos esclarecimentos e
reflexões sobre de que maneira grandes mudanças na história política, econômica,
social e industrial acontecem e são introduzidas na vida privada. Assim vimos as
movimentações da família durante a Revolução Federalista, as principais atividades
econômicas paranaenses sendo desenvolvidas por representantes da família Lacerda,
a introdução de móveis e utensílios importados na casa, assim como também as
máquinas, como o rádio e a geladeira. Também a religiosidade sempre presente na
casa brasileira, está bem representada nos oratórios do Quarto dos Santos.
As mudanças na configuração da casa em função da abolição da escravatura, a
incorporação de hábitos indígenas como o uso da rede, tradições portuguesas no
construir, sem mencionar a contribuição das posteriores imigrações, são exemplos de
como a grande mistura de etnias no Brasil contribuiu para a nossa formação cultural. A
Casa Lacerda é um espelho da casa brasileira no Paraná e a possibilidade de se entrar
num território privado, mas ao mesmo tempo comum a todos, faz refletir sobre a
9 RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro: Record, 1999.10 GODOY, Solange. Entrevista concedida a Rossana Meiko Manaka. Lapa, 4 jun. 2005.
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maneira como a grande diversidade cultural do nosso estado se traduz no espaço da
Casa.
A conservação de um conjunto de móveis, ambientados em uma residência,
mostra muito dos estilos que vigoravam no Brasil nos séculos XIX e XX e é um material
vivo para o estudo do mobiliário. A catalogação do mobiliário do Museu, a partir das
pesquisas bibliográficas, como também das entrevistas, além de importante ferramenta
para outros tipos de estudos, permite a reflexão sobre o mobiliário e suas inter-relações
com a casa e as pessoas que dele fizeram uso. A disposição dos móveis, a observação
dos ambientes em relação às memórias faz com que se pense sobre nossas origens,
sobre a vida no ambiente familiar, relações e reflexo desses aspectos na sociedade.
REFERÊNCIAS
FONTOURA, Ivens. Móvel, o melhor amigo do homem. O Estado do Paraná, Curitiba, Almanaque, p. 4, 28 maio 2000.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Círculo do Livro, 1933.
GODOY, Solange. Entrevista concedida a Rossana Meiko Manaka. Lapa, 4 jun. 2005.
LACERDA, Maria Thereza Brito de. Visitando a Casa Lacerda. Curitiba: SPHAN/ Pró-memória, [s.d.].
______. Café com Mistura; seguido de Cartas da minha cozinha. Curitiba: Imprensa Oficial, 2002.
MAURO, Frédéric. A Vida no Tempo de Dom Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro: Record, 1999.
VERÍSSIMO, Francisco Salvador; BITTAR, William S. M. 500 Anos da Casa no Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
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