O Olhapim #1

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O Olhapim #1

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O Olhapim põe-se a caminhar. Até que, sob a luz de um poste, venha alguém lhe contar uma história.

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prólogo

Produção Editorial

Diego Suriadakis

Pedro Cunha

Produção Gráfica

Projeto GráficoPedro Cunha

FotografiasPedro Cunha

Ilustrações Diego Suriadakis

Tens sob os olhos o princípio dos misté-rios da cidade.

O Olhapim, esse moço curioso, que se põe a caminhar diante daquilo que pouco vê, traz para esta tela de luz que reflete claridade diante dos teus olhos, histórias que a noite conta. A experi-ência, a luz tua, o entregará esse diá-logo de mil vozes. Nada será dado. O entorno, escuro, esse também está em ti. Ele é a ferramenta útil: agora está em você, amigo leitor, a compreensão. Caminhe por esse ambiente no qual o escuro permite.

Diego Suriadakis e Pedro Cunha

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valdo

Valdo, João, Tales, Manel, Lúcio, Rômulo ou Severino. Não faz diferença. Por aqui ele pas-sa despercebido, ninguém vê, comenta, ouve ou sente. Pés descalços fixos no chão sujo. Al-guns poucos, mais atentos, percebem a parte inferior do sujeito, mas não ousam percorrer o resto do corpo. Outros carecem completa-mente da visão periférica e seguem seus cami-nhos retos sem se aventurar na incerteza do desconhecido ao lado.

Ao contrario desses... ...o sujeito, sem nome, caminha, com a mão no bolso de um paletó surrado, pelos arredores do cruzamento que antes dava lugar a uma rotatória. Ligado ao passado, o anônimo não se desvincula da ideia de contornar, e passa boa parte dos seus dias dando voltas em torno daquilo que já não exis-te mais.

Senta-se para uma pausa, olha para as pessoas e para as letras que estão dentro do livro que o acompanha. Mas não vê lógica. Olha para um lado, para o outro, passa uma página, e não entende nada, só percebe. Sente. Levanta a cabeça e se perde no tom turvo que o hori-zonte ganha com as dezenas de pessoas que passam por ali. Abaixa a cabeça e se submerge na complexidade das letras que nem chegam a formar palavras. São códigos indecifráveis.

É um cotidiano cheio de páginas e um livro

com muitas pessoas. Os seus pés permane-cem imóveis, mas sua cabeça vai longe. Cada um que passa é uma palavra que ganha vida. Histórias são construídas em sua mente e ele avança algumas páginas. Enquanto o fluxo de pessoas persiste, ele cria.

São velhinhos engomados que atravessam, devagar, divagando pelas ruas, em vidas lentas que aguardam a morte. Operários sentados, zombando da existência enquanto o tempo do intervalo se excede. Crianças que são alvos de carros vorazes. E velhas putas dos tempos de bordel, esperando que os jovens cheguem antes do suicídio. Todos personagens reais na imaginação do inominado. Pessoas fictí-cias em uma realidade fugidia que se dissolve no momento de um instante. A efemeridade mata-os antes mesmo de nascerem. E estórias incríveis se perdem pelo descuido dos insensí-veis da sociedade.

Ele guarda o livro em uma sacola e deixa que o tom amarelado de fim de tarde conduza o des-tino dos seus personagens. E diz a uma moça que passa:

- Você já vai embora? Já vai né?! É, vai de dia. De noite é perigoso.

O sol se põe e as luzes dos postes se acen-dem. O olhapim chama-se Valdo.

pedro cunha

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Trata-se de um desleixo da ficção na vida de um personagem real. A trajetória de volta para casa. O mesmo caminho de todos os sábados naquele horário, fim de tarde, mais para começo de noite. O sol já se foi, os ôni-bus demoram a chegar. Impaciência. Ter que esperar no banco porco do centro da cidade o transporte que sabe-se lá que horas vai passar. “Ah, mas vou pra casa a pé!” disse, sem saber o que estava por vir. Direita, esquerda, vira rua suja, entulho de lixo, moleque no chão, monumento longi-líneo no meio do cruzamento, uma buzina, parei. Um carro familiar, um amigo? Fui me aproximando e, pelo vidro dianteiro, vi algo realmente singular. Cheguei mais perto, mas não tanto, e o vidro do motorista foi-se abrindo, tomei um susto de arregalar os olhos. Maquiagem excessiva em um rosto um tanto quanto masculino, uma voz que tentava imitar a de uma mocinha indefesa, um fiasco, logo percebi a farsa. “Quer uma carona?”, a pergunta foi feita. A resposta foi curta, objetiva e até bem educada para o momento: “Não, obrigado!”. Pus-me a andar de maneira impulsiva, senti arrepios

e não quis olhar para trás. Fiquei pensando no que teria acontecido se tivesse aceitado a carona e entrado no carro. Uma curiosi-dade jornalística, humana; a apuração, os ratos, os podres, a estroinice; a história que viria logo depois com tudo aquilo. Lembrei-me da alternativa da ficção e caminhei mais rápido.

Fadigado, ainda no centro da cidade, sentei em um daqueles bancos sujos. Percebi, lá longe, o ônibus que indicava o destino de-sejado. O automóvel vinha se aproximando quando, de repente, virou à direita antes de alcançar o ponto onde eu estava. Sentindo repulsa e uma falta de paciência insólita, re-solvi que iria pegar aquele ônibus que havia desviado do caminho original. Corri. Entrei e relaxei em um dos primeiros assentos, que, por sua vez, era reservado aos deficientes. Não dei importância, estava muito entu-siasmado com a ideia de chegar em casa. Entusiasmo que foi logo se convertendo em um desejo indiscreto de saber a respei-to de uma senhora baixinha que acabava de entrar. Era conhecida por grande parte dos passageiros que estavam ali; na verdade, to-

passageiros de ônibuspedro cunha

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dos já sabiam de sua estirpe nobre, do seu medo agonizante por pães de queijo e do seu modesto apelido. Tratava-se de Ismar, filha de Yara Tupynambá, uma das artistas plásticas mineiras mais conhecidas e respei-tadas por suas lindas telas que, para muitos, sintetizam Minas. Ismar, sua filha, até onde se sabe não pinta e nem ganha tanta fama por sua descendência; são suas excentrici-dades que costumam cativar os olhares dos alheios pelas ruas de Belo Horizonte, sobre-tudo os moradores dos bairros Vila Paris e São Bento. Nunca passa despercebida. Foi assim quando passou por mim, ali, relaxa-do no assento de deficiente. Despertou a minha atenção e encurtou meu trajeto. A maneira como conversava com o trocador, reclamava da vida, falava das sorveterias do centro e de sua vontade de ir para São Paulo, deram a mim o alento para a crônica de mais tarde. Satisfeito, desci do ônibus e, quando olhei para trás, curiosamente um homem negro, que contava com a ajuda de duas muletas de madeira, entrava no ônibus com perspicácia. Ele descansou as muletas e repousou no único assento livre reservado aos deficientes.

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um homem

Um homem, cujo nome é secreto, não é la-drão; toma cachaça (esse deve estar agora aloprado pela mesma); serviu ao exército e condena como devedores aqueles que ainda não serviram; está na igreja, que diz que é mundial; não gosta do seu rosto estampado no jornal, mas não se importa quanto à in-ternet; deixou a mulher e os filhos em casa com tudo que lhe era de direito, por livre e espontânea vontade; era um homem proli-xo, de tanto álcool que seu corpo abarcava; dizia a qualquer um que passasse para se-guir em paz, fosse homem, mulher, criança, jovem, cigano, palhaço, poeta, artista, polí-cia, safado, terapeuta, bicheiro, esposa, po-lítico, sem dente, ordinário, cantor ou vaga-bundo; era pobre, mas vivia em um país rico; cantava na boca do povo e dos requintados; ora era vate, ora alteridade; conhecera vá-rias das plantas do cerrado, de perto; teria ido à Nova York, Madrid, Lisboa e Pequim, aprendido várias línguas e se tornado diplo-mata, se não fossem os impropérios da vida; não dormia em colchão mole; a sua experi-ência era maior que a obra de Jorge Ama-do e os seus pés, da cor da areia do Espírito Santo. Esse homem de nome secreto sabia facilmente quando iria chover e sabia tam-bém quando seria dia de sol; tinha um reló-gio importado, banhado a prata e a prova d água (ele não sabia de onde aquele relógio

havia surgido); quando jovem foi ao Acre e, não conformado somente com a peque-na viagem, ficou lá por seis meses; gostava de samba e já havia morado na casa onde o poeta Manuel Bandeira esteve em profun-da depressão, na Lapa carioca; dormiu em cama de palacete, quando os patrões via-jaram para a Europa, na época em que era jardineiro no Jardins, na capital de São Pau-lo; teve várias mulheres e se casou satisfeito por achar ter encontrado o grande amor; foi feliz por pouco tempo; agora, um cachorro o acompanha; tem poucos dentes; sua mão encontra-se suja e os seus pés, imundos; um paletó velho é a sua única proteção das mal-dades da rua. Um homem, cujo nome há de continuar secreto, nunca teve ficha criminal, não sabe o porquê de tanto sofrimento e espera por dias melhores; levou pancada do guarda; está um pouco cansado da vida, do trabalho de todo dia, dos prazeres imedia-tos da cana; está cansado de acordar cedo para tocar o gado, tirar leite da vaca, dar co-mida aos porcos, cortar as mãos na lavoura canavieira e comer pouco; de se fantasiar de mulher para conseguir uma grana extra no fim do mês; de lavar o rosto com a água da enxurrada e deixar que o vento a enxugue. Um homem, cujo nome sempre será secreto, deitou-se no banco da praça e, sob a luz de um poste que não lhe incomodava, dormiu.

pedro cunha

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E tinha um teto de folhas verdes e a negra noite sempre a soprar o segredo de ser.

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andarilhos

ISentado no bar, num bairro boêmio, espe-rando pela juventude que havia combinado o encontro. Nenhum dos premeditados pas-sa por lá. Ao invés desses, um sul americano, que não consigo definir certamente o país. Um homem de meia idade, cabelos longos e brancos, passa. A oferecer brincos de penas, pérolas, brilhantes mirabolantes, pergunta:

“¿Quiere?”

Não há resposta; ele se vai.

II- Tio, por favor... Compra!- Como?!- Compra!

Sete anos, pele negra, pés descalços, bermu-da surrada, olhos baixos, cabelo curto, esta-tura diminuta. Diminuta que não se enxerga. Diminuta que não se escuta. Passa a noite de mesa em mesa, insistindo para que os boê-mios comprem as suas guloseimas. Arrecada-ção diminuta. Vai para casa preocupado com a surra de mais logo. Felicidade diminuta. No caminho de casa a solução encontrada pela criança demonstra o desespero. Os braços fi-nos atingem o vidro do automóvel. O alarme toca, o menino corre, a sirene ecoa e a surra se antecipa. Vida diminuta.

IIIDiz que é estilista, que tem e-mail, que vende pra loja, que sabe desenhar.

“Dá esse guardanapo ai! Deixa eu fazer uma

bolsa pra você. É a mais nova que tem no mer-cado.”

Em cada braço, umas dez bolsas; em cada pé, botas impermeáveis; em cada orelha uma ar-gola.

“Por que me chamou? Não vai comprar? Não to pra conversinha não!”

Vai caminhando insatisfeita pela desfeita do ex-possível comprador.

IV“Ta bonito hein! Toma um queijinho ai! Cadê o patrão? Pô Reynaldo, não vai me dizer que o patrão não vem?! Na luta cara, desde a tar-de, maior perrengue.”

A simpatia vem à mesa. Não é o garçom, mas trás comida. Não é ator, mas contracena. De maneira peculiar conquista, vende e se diverte. Começa no fim da tarde, vai até a madrugada. Senta em uma mesa aqui, bebe um copinho ali e vai instigando a noite. No final o que leva pra casa é a bacia vazia e um sorriso no rosto.

VO poeta da roça trás consigo os seus papéis preciosos, seu ganha pão. Do norte pro sul, de casa pra rua. O sol se põe e vai ele com uma pas-ta cheia de poesias coloridas. O “Fantasma da Fome” imprimido em azul, “Hino da Paz” em amarelo. Além de poeta é cantor e violonista. MPB é o seu forte.

Troca alguns versos por centavos e vai para a próxima mesa.

pedro cunha

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Carlos fotografava os salgados...“Olha ali, o que é aquilo ali? O cara tirando foto?”É que nós estamos fazendo um trabalho, fotografando a noite...

“Ah é? Por que você não tira foto desse menino aqui?! Olha essa cara de empada...”, grita o sujeito da chapa apontando o menino do balcão...

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...“Oh amigão, você se importa de deixar a mão onde estava?” Carlos fala com a empada,

fotografando os salgados.

diego suriadakis

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presentesdiego suriadakis

Ainda às 23h a conversa alta entre os últimos trabalhadores a caminho de casa e o cortar avenida dos ônibus continuam silenciosos. É que a essa hora os ruidos ainda se dissolvem, impessoais. São uns últimos restinhos do dia da grande metrópole, onde estão todos a tentar. Aí a pouco entrará a madrugada, e o sereno da hora tornará barulhento o pequeno detalhe: o carro que retorna conveniente em lugar errado faz escândalo, uma colherinha de plástico pisada na rua grita, uma moto em se-gunda marcha apressando o passo se denun-cia. Também o semáforo, piscando, intermi-tente e amarelo, emite seu próprio som. Kleber e Weberson trabalham sem conversar muito. Kleber entrou na flora às 22h. Agora são 4h da noite. De cigarro de palha acesso, ele calça meias e já se vê em seu rosto aque-le ar terno dos batalhadores em fim de expe-diente. Weberson, conversa aqui com ele, não repare, viu? Já vou indo.

O rádio ligado numa estação barata torna o lu-gar mais quente. Dá um colorido maior às pra-teleiras da loja. São gerânios em ramo, baldes com alguma terra, outros com terra alguma. Montes de copos-de-leite, lírios, margaridas e também flores de plástico. Faz um mês We-berson começou a trabalhar ali. Ele, que pe-gou serviço 23h, é bem mais moço que outro, e vai até as 7h da manhã no atendimento.

Seria agora a hora do movimento. O moreno novo vai explicando o que faz sem conster-nação. Como um mediador do perdão ou um intercessor para assuntos de paz dos lares, ele explica que ontem mesmo, a esse horá-rio, o motoboy que passou a procura de uma rosa vermelha tinha certo hálito alcoólico. Ele até estava guiando bem, mas a gente percebe né, no jeito. Weberson fez a ven-da. É muito isso mesmo, o cara vai pra farra, passa aqui com a gente, compra uma rosa, um buquê e vai pra casa. Fazemos entrega também, mas é mais comum eles passarem mesmo. Lá se foi na moto uma vontade ilus-trada. Com o colorido em punho o reque-rente deseja ser escutado. A rosa funciona como a madrugada, amplificando o que há de mais sincero no tom de rua da voz do mo-toboy. A dama, que aguardava impaciente ou dor-mindo, escuta agora um pedido alto. O que seria um murmúrio ao pé do ouvido é agora um apelo em tom maior.

Flora A Rosa, 32221122, atendimento 24h. O telefone é facil de lembrar. Aceita-se Visa e Mastercard. De sorriso mudo ele assume: to-dos temos alguém a quem entregar uma rosa dessas.

Kleber já foi pra casa.

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olha, meu bem,a chuva ruirdiego suriadakis

É dia ainda.Venta antes.Fecha o tempo. Escuro fica. A noite, essa crônica, chega do céu.

Água caindo, o chiado dos homens em suas máquinas. São carros de passeio, onde ape-nas um cidadão ao volante reduz o volume do ar condicionado ou do aquecedor e es-colhe as músicas que andam a embalar sua boa vida. É o que mais toca nas paradas de sucesso. É um mesmo hit o que toca dentro do ônibus lotado a caminho do existir. A ci-dade vai em busca da comida, da bebida, da reforma da casa. A cidade vai em busca do carro de passeio para mais uma vez poder ficar sozinha escolhendo suas músicas. O chiado dos homens em suas máquinas.

Os que estão do lado de fora do abrigo (não são tantos assim, é bem verdade. Contudo, levam consigo a miséria do rico, a cegueira do pleno, a surdez do bem aventurado: as-sim se fazem tantos, e por assim são de to-dos), mortos de ser, tem nessa água o mais estreito dos caminhos. Para eles, a chuva que cai afina ainda mais a fome do sentir. As marquises lotadas, a gente que corre e eles

ao chão. A gente que corre se defendendo dos pingos, abrigando-se do frio, a zelar por cabelos estéticos. Aqueles tem uma vaida-de límpida, se vestem de restos, adornos e xales de outras eras. Vestidos em números menores que seu corpo em definho, as cal-ças maiores que a dor do nada ser. E levam bagagem. São todos os anos de sua histó-ria atados a fios e restos, acomodados em sacos e plásticos permeáveis. Sua história é permeável.

Água caindo, o chiado dos homens em suas máquinas, e aqueles escorrem. Desfazem, matizam, deliram pelo chão. Não como as aquarelas do artista, não. São como o óleo que pinga dos motores no asfalto molhado. São tons e cores, em rastro, escorrendo des-tino ao bueiro lotado. Nocivos, poluentes, aqueles são o desastre ecológico, o pesa-delo econômico. E enchem a boca-de-lobo ainda mais. Respingam aos nossos pés feito pingos turvos pois não valem mão alguma. Nossa história é impermeável.

Cessa o vento. Abre o tempo. É dia ainda. A noite, agora, só sob o nosso saber.

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Numa caixa dois sapos de jardim.Na outra um fogãozinho de duas bocas.

Dois fogões de quatro bocas, duas geladeiras.Dois sofás e uma máquina de lavar.

Isso é uma doação. Topa tudo.Nas periferias onde a gente mora tem lojas nesse estágio, assim vendendo.

Você tem uma geladeira e quer um sofá.Eu tenho caminhão e faço frete.

C-10, carroçeria de madeira, tom amarelo dos ovos de ouro.Essas coisas funcionam mais sábado e domingo.

Geraldo carreto.Pode sim, pode tirar uma foto aí.

Tem noite chuvosa, fim de ano, hoje tá tranquilo.O fogão faz trovejar a pedra portuguesa.

Ele vai sendo arrastado.As vezes ele transporta animal.Um cavalo, de quatro mil reais.

Foi parar no haras em Pedro Leopoldo.A mulher faz força. A geladeira subiu.

É na Afonso Pena, que não para pra ver máquina de lavar.Isso aqui é 150 kilos.

É uma Brastemp.Deixa só subir a máquina.

– Jornalismo isso aí?,perguntou Geraldo à distância.

mudançadiego suriadakis

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gazetadiego suriadakis

Fosse talvez essa breve notícia o que lia o porteiro do edifício comercial. Talvez dita de outros modos, talvez o jornal fosse de ontem. Fato é que se tratava de Tamara, 24 anos. Ela chegou ofegante ao ponto de ônibus do outro lado da rua. A pele escura como a iluminação precária naquele assento público. Ela deu boa noite e tinha como que uma proximidade na voz. Você viu se passou o 4201? Não, não vi. Nossa, que vontade de chegar em casa, tomar um banho e dormir.

Viesse de onde viesse, fosse para o bairro Alto Caiçara. Seu breve relato era popular. Andava percorrendo a cidade, tomando as lotações, distraindo o expediente do outro, descendo no Centro ou em outra cercania já em cima da hora de pegar serviço. Tamara trabalha em dois lugares. Tentou a Faculda-de, nao deu conta. O tempo nao deu conta da energia da moça. Nem sinal do ônibus, Tamara acendeu um cigarro para encurtar a espera.

Ela mora sozinha. Trabalha sabe-se lá com o que, quem precisa saber. E se diz tradicional, sabe? Não consegue entender como os ho-mens de hoje não topam fazer a vida juntos. Como eles são moles, não tem raça de assu-mir o que fazem ou fizeram. Até mesmo de assumir o que querem, sabe? Já tô passando da hora. Em suas últimas férias Tamara foi a Barão de Cocais. Tem família aqui e lá. Tem doze irmãos e uma mãe que de vez em quan-do liga. Liga para pedir dinheiro, sabe?

Ela ficou grávida. Perdeu. Foi lá em Cocais, nas férias. Não tiraria, ela diz. Perdi mesmo, começei a fumar demais, fiquei nervosa. O moço, como se Tamara tivesse feito filho sozinha, não queria saber de prosa, nem de verso, nem de menino. Mas a moça tem uma voz enérgica, de apelo sensacional. Ela tem dois empregos e quer ser mulher, só isso. Tendo cabeça, tudo se ajusta, disse a anô-nima a seu lado. Ambas se levantaram, lá vinha a condução.

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Em uma noite de natal, João, que é colega de Gaguinho, disse ter visto um rapaz, vizi-nho de chão de rua, colocando pisca-pisca em uma árvore perto da calçada onde mora-vam. A imprensa, desassossegada com o ra-paz abusado pela personificação do homem rico e feliz que coloca luzes tremeluzentes em seu pinheiro artificial, solta a manchete: “Mendigos preparam árvore de natal para chamar atenção da população”. Gaguinho, que no fim do dia 26, pega um jornal para forrar a calçada, vê a manchete estrambó-lica e leva o periódico ao colega. João, im-pressionado com a capacidade criativa da imprensa local, diz:

- Olha só a conversa dos cara.

O que era uma simples vontade de se ver mais aprumado com luzes natalinas em um lugar onde o teto do quarto é o céu, tornou-se uma manchete fácil, vendável e criadora de discórdias. Desde então João conserva um receio hábil de jornalistas. Ele pensou que o repórter que o havia abordado não haveria de ter más intenções quando fizera todas aquelas perguntas sobre a sua árvore de natal. Agora, João não gosta que che-guem perto com traquitanas, nem mesmo bloquinhos são bem vindos, quando se trata

de câmeras fotográficas então, ele se assus-ta de súbito. Já não se aventura em embe-lezar a cidade com suas singelas luzinhas. Preocupa-se agora com coisas mais práticas, como conseguir a guarda de seu filho pe-queno que está nas mãos de sua ex-cônjuge, abatida pelo excessivo uso de crack; ou, até mesmo, a comida de mais logo que, comu-mente, não se encontra ao alcance.

Apesar dessas desventuras e a estapafúrdia capacidade criadora da imprensa, João se diz feliz, fala que mora em um paraíso, la-menta pelos que vivem em São Paulo, é um conhecedor indireto das terras andinas e dá o conselho aos que as desconhecem:

- Lá é que as pessoas passam fome. Aqui, nós estamos no Éden.

Ele diz com tanta certeza, pois tem amigos peruanos que lhe confessam o quanto o Bra-sil é maravilhoso, mesmo para aqueles que moram na rua.

Agora, a única luz que se vê perto de João, Gaguinho e do rapaz que ousou enfeitar a árvore é a da constante chama que ambos usam para se aquecer nas frias noites da cal-çada do centro.

noite de natalpedro cunha

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seria outro o belo horizontediego suriadakis

Viaduto Santa Tereza. Perto de nós, muito perto de nossos romances, já passaram pelo Arco mestres poetas em noites de rua. Com seus violinos embriagados, consagrados a caminho do bem, de passagem apenas. Hoje, que é hoje, eles resolveram parar. Es-tão sentados. Lá de cima entoam, com olhos sem brilho, estrofes mudas e rimas brandas a toada para o cortejo que se anuncia.

Acenderam as velas, já é procissão. Maquia-dos a tempo, combinados a torto, a pé ou em carros, a sós ou em bandos, seguimos, os Justos, o caminho dos bares. É sexta-feira, dia de paixão. O amor a soprar o ar da cidade, estalar em beijos, aquecer-se em abraços, a nadar em copos, alimentar-se em palitos.

O Injusto, esse, nu no negro vendaval; alas-trado, faminto, a evacuar em becos, sob via-

dutos, a lama que lhe escorre das veias. Sua vela se apagou, há muito. Sua celebração em cachimbo, todavia, arde de fé no escuro.

É a luz da noite.

A cada tragada todo o brio da poesia. O semblante fugidio, o medo em ser, a fuma-ça densa, o banquete. Cessou a dor em seu estômago, calmos os vermes que o habitam. É o único a escutar o som do instrumento pinicado lá em cima. De cócoras, esse me-nino vê a criação. Seu tempo parou na nota maior. Sua visão correndo a descrever uma vida pelo nada, a maravilha em seu corpo. Só ele contempla a beleza na voz do poeta que canta. Magro, esquálido, sem amanhã, é ele o Arco que toca o violino.

E a procissão passa, impassível. Em culto, amorfa.

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Em certos locais da cidade, onde o movimen-to é grande, noite e dia, tem uma hora que a confusão fica ainda mais intensa. É como dizem os motoristas, a hora do lusco fusco. Quando as primeras cores começar a circu-lar, logo antes da lua bater seu ponto para descanço, é como se a data ficasse pairando no vazio, no tempo.

Os bocejos friorentos dos homens encosta-dos às portas ainda fechadas das lojas não esclarecem muito. Acabaram de acordar, estão indo dormir, não se pode afirmar. Nas lanchonetes correria, nos últimos bares também. Nas loterias populares os madru-gadores fazem as primeiras apostas. Um olhapim que viu a noite clara pela janela de seu cobertor sujo pensa no sonho de logo mais. As coisas parecem um tanto fundidas quando falta pouco para as 6h.

Ela saiu de casa faz tempo. Dorme cedo, mas ontem viu tela quente, passou da hora. Pas-sou da hora mas não se atrasou. Chegou em seu ponto, na Avenida Paraná, em ponto. Bom dia, oi, claro, e aí, tudo bem, sim, paga depois, olá seu Manoel, domingo dá galo. Trabalha ali há 4 anos, sabe do mundo todo que lá passa. Uns eu deixo pagar depois. R$0,25 é o preço de seu peixe. Uns que eu já conheço, ou se eu não tiver troco, eu dei-

xo pagar depois. Você não, que eu conheci agora.

Sou mineira mesmo, aqui de Belo Horizonte. Olha o jornal, olha o jornal gente. Um senhor negro, distinto e de movimentos lentos, dá-lhe um beijo na face, pega seu diário e eles trocam palavras próximas. Um moço que vende miudezas a poucos metros de Fátima vem e faz uma piada. Em um exemplar da pilha pode-se ler uma manchete do caderno de esportes: A MATEMÁTICA MINEIRA.

Mineiro nao é calado não, mineiro fala. Ven-do 400 desses. Eles botam a gente pra tra-balhar, se der certo continua no ponto, eu dei sim.

Mas qual a data de hoje, se o peixe de Fáti-ma, como diriam os cronistas experimenta-dos, vai embrulhar o peixe amanhã. 6h, com fuso.

Comprei um jornal dela. Paguei com nota alta. Recebi troco em muita moeda. Ama-nhã, talvez não precisasse pagar. Esqueci de levar. A umas quadras dali, vi o senhor negro que a beijou. Ele levantava a porta metálica de seu estabelecimento. E vinha para o dia bem informado pelo periódico de ontem.

freguesia de alvordiego suriadakis

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