O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso...

8
O pai Desde que o enterro saíra, Gabriel estava com von- tade de urinar, mas nada fizera para esvaziar a bexiga do- lorida. Concentrado na dor incômoda, tentava de todas as formas esconder o que mais doía: o sofrimento causado pela morte do pai. Tenso, o garoto seguia o cortejo, olhos vazios, secos. O percurso entre a igreja e o cemitério era longo. O sol escaldante tornava a caminhada lenta. Durante o trajeto, vários amigos da família revezaram-se e o caixão passou de mão em mão. Gabriel não teve vontade de conduzir o corpo do pai. Gilca, sua irmã, guiada pelos conselhos do marido, cochichou: — Acho melhor você pegar na alça do caixão! Imagine o que não vão falar! Vai, menino, pega! Gilca insistia para que o irmão tomasse uma atitude. Mas os pensamentos do garoto giravam em torno de outras preocupações: controlar a vontade de urinar para não fazer

Transcript of O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso...

Page 1: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

O pai

Desde que o enterro saíra, Gabriel estava com von-tade de urinar, mas nada fizera para esvaziar a bexiga do-lorida. Concentrado na dor incômoda, tentava de todas as formas esconder o que mais doía: o sofrimento causado pela morte do pai. Tenso, o garoto seguia o cortejo, olhos vazios, secos.

O percurso entre a igreja e o cemitério era longo. O sol escaldante tornava a caminhada lenta. Durante o trajeto, vários amigos da família revezaram-se e o caixão passou de mão em mão. Gabriel não teve vontade de conduzir o corpo do pai. Gilca, sua irmã, guiada pelos conselhos do marido, cochichou:

— Acho melhor você pegar na alça do caixão! Imagine o que não vão falar! Vai, menino, pega!

Gilca insistia para que o irmão tomasse uma atitude. Mas os pensamentos do garoto giravam em torno de outras preocupações: controlar a vontade de urinar para não fazer

Cara para o futuro MIOLO.indd 9 29.05.06 10:16:55

Page 2: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

10

feio e conter a raiva por sentir-se alvo da piedade dos ou-tros. Bastava o desamparo da orfandade.

Assim que o cortejo atravessou o portão do cemitério, Gabriel se afastou sob os olhares reprovadores das amigas de sua mãe. Andou por entre as sepulturas caiadas. O cheiro dos cravos-de-defunto entrava nariz adentro, deixando-o enjoado. Em meio à terra seca, eram as únicas flores a co-lorir as covas rasas, destacando-se das cruzes pintadas de azul desbotadas pelo tempo. As falsas carpideiras, balan-çando a cabeça num gesto de desânimo, vaticinavam sobre seu destino.

Escondido atrás de um mausoléu, Gabriel aliviou a be-xiga, fazendo desenhos com a urina na parede mofada. As flores de uma coroa funerária, ainda com seus amarelos e roxos esmaecidos, fizeram-no recordar a decoração da sala de projeção do Cine Teatro Odeon, construído por seu pai. Como não podia colocar plantas na sala sem luz natural, ele inventara umas folhagens feitas de folhas-de-flandres, aquelas folhas metálicas, para decorá-la. As de plástico ainda não tinham aparecido na cidadezinha. As de papel crepom ou tecido, sugestão feita pela esposa, ele descartara. Rindo, dissera que elas desbotavam. Eram para enfeitar casa de caipiras.

Embora estivesse com vontade de se ver aliviado, o garoto urinou devagar. Era uma forma de se manter afas-tado por mais tempo dos discursos à beira do túmulo. “Não vão faltar belas palavras, todas ocas! De que adiantam as

Cara para o futuro MIOLO.indd 10 29.05.06 10:16:55

Page 3: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

11

Cara para o futuro MIOLO.indd 11 29.05.06 10:16:55

Page 4: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

12

frases feitas, os elogios, se nos últimos tempos papai viveu esquecido pelos amigos e correligionários?” Gabriel não se esquecera das reclamações do pai, acusando os amigos de injustiça. Eles tinham usado de influência nos altos esca-lões do governo e, por meio de intrigas, provocado diversas vezes sua transferência para cidades distantes, causando transtornos para a família.

Gabriel encheu a boca de cuspe, jogando-o com vonta-de sobre o reboco do mausoléu. Fiapos de palavras vinham com o vento. Aquele tom monocórdio da falação o deixava aflito. Já tinham sido tantos os discursos que ouvira até aquela idade que boas e bem-intencionadas palavras não lhe diziam mais nada! Todas as vezes que ouvia um dis-curso, sentia agonia. Um bolo subindo da barriga, parando entre as costelas, uma sensação incômoda. Respirou fundo. Ao ouvir a voz de um vereador, teve vontade de ir lá esmur-rá-lo. Não gostava daqueles políticos. Por mais que o pai se orgulhasse da imagem em que estava com o filho no colo, numa foto ao lado do governador do Estado, ele não con-seguia se envolver nas campanhas políticas que dividiam a cidade em brigas e xingamentos.

Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a fumaça. A maioria dos amigos de Gabriel fumava. Ele, por medo de ser considerado menos macho, fazia das tripas coração para suportar o ardor e a náusea provocada pelo Continental. O mal-estar resultante do cigarro não afastou a

Cara para o futuro MIOLO.indd 12 29.05.06 10:16:55

Page 5: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

13

lembrança da foto. A imagem continuava nas suas retinas: lá também estavam Gilca entregando flores para o governa-dor, amigo pessoal do pai, e seu irmão mais velho, distraído, como se estivesse noutro lugar.

E Ulisses, por onde andaria?A pergunta rodopiou no seu cérebro e ficou sem res-

posta. Na verdade, a questão já fazia parte da sua vida. Ha-via muitos anos pensava no irmão e não tinha idéia do seu paradeiro. Mas, naquelas últimas horas, a ausência de Ulis-ses tornara-se mais concreta. Gabriel desesperava-se ao ver a mãe inventar desculpas para aqueles que bisbilhotavam a respeito do filho mais velho. Ulisses tinha ido embora sem dizer para onde. Uma verdadeira fuga, concluíra Gabriel. Naquele momento, com a luz crua da manhã a cegá-lo, ad-mitiu aquilo que tentara esconder de si mesmo por muito tempo: “Eu também quero ir embora! Eu não quero viver mais aqui”.

Em vez de alimentar a idéia da partida, o garoto voltou a pensar na vida política do pai. Vida de que o filho não gostava. Nem mesmo das festas que ele organizava, dos comícios em cima de caminhões... Nem mesmo o fato de crescer em cima de um ridículo caixote, empolgado pelas idéias do pai, fizera do filho um aliado. Na verdade, Gabriel não compartilhava daquele universo. E, quando fora obri-gado a distribuir a vassourinha, símbolo da campanha de Jânio Quadros para a presidência, invejou seus amigos que, orgulhosos, exibiam a espada de Lott. Não que Biel gostasse

Cara para o futuro MIOLO.indd 13 29.05.06 10:16:56

Page 6: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

14

de generais, mas o fato de ser contra as idéias do pai apro-ximava-o dos amigos do outro partido.

Gabriel balançou a cabeça como se quisesse afastar a lembrança, mas as imagens continuavam a brotar. Vira os postes da cidade enfeitados com duas vassouras e um grande laço de fita verde-amarela, obra do seu pai. Não fizera ne-nhum comentário a respeito da decoração, deixando o pai aborrecido. Agora, diante da sua ausência, perguntava-se: “Valeu a pena discordar do pai?”. Sem muito esforço, concluiu que sim, mas outro pensamento foi mais forte: se por um lado não gostava das posições políticas paternas, por outro admirava sua alegria, inventividade, espírito empreendedor, inquietação, que terminavam pesando mais na balança dos seus sentimentos, tornando-se exemplos a serem seguidos.

Desde menino, Gabriel sentira-se atraído pela galinha do vizinho, como dizia seu pai ao acusá-lo de flertar com idéias opostas ao seu ideário. O melhor amigo de Gabriel era filho de um opositor político do seu pai. As namoradinhas também. Gabriel sorriu. Ele sabia que, mesmo sem aprovar suas escolhas, o pai não chegou a proibi-las.

— Desde que você não ultrapasse os limites — avisava sempre.

Mais por nojo que por respeito, Gabriel não se encos-tou ao mausoléu. Embora cansado, ficou em pé no estreito caminho de terra recortado pelas sepulturas. O suor escorria pela testa e pela nuca, tornando o colarinho apertado pela gravata cada vez mais presente. A calça de gabardine azul-

Cara para o futuro MIOLO.indd 14 29.05.06 10:16:56

Page 7: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

15

marinho do uniforme escolar esquentava. A luz inclemente fazia tudo tremer, acelerando os miasmas. De repente o ga-roto se deu conta do silêncio. Parecia que tudo tinha ter-minado e que ele ficara sozinho no cemitério. Arrepiou-se todo. Para afastar a sensação ruim, assobiou uma canção do filme que inaugurara o cinema do pai.

Antes do Cine Teatro Odeon, havia na cidade um ci-nema poeirento, cheio de pulgas, aonde os freqüentadores levavam as próprias cadeiras. O novo cinema foi uma sen-sação! Para Gabriel tornou-se um lugar de fuga. Não só durante as sessões, mas também durante a faxina, quando ele atormentava Margarida correndo por entre as cadeiras, brincando de bandido e mocinho.

Agora, restava a saudade. Aquele espaço de fantasia deixara marcas. Gostava de imaginar que um dia seria um astro das matinês. Via-se naquelas emoções aventurosas e dramáticas dos filmes. Os amigos diziam que ele vivia no mundo da lua.

O garoto, parado no meio do cemitério, rememorava as vezes que fora ao Cine Teatro Odeon sem pagar ingresso. Agora, quando ia ao cinema, sentia uma falta enorme da-queles tempos. Ah, o cinema! Gabriel carregava dentro de si um mundo de fotogramas que se misturavam e separavam, formando novos filmes, outras histórias. O cinema era seu contentamento, seu vício...

Uma fisgada e ele percebeu que a bexiga estava no-vamente cheia. Preparava-se para desabotoar a braguilha

Cara para o futuro MIOLO.indd 15 29.05.06 10:16:56

Page 8: O pai - smbrasil.com.br cidade em brigas e xingamentos. Acendeu um cigarro, desencadeando um acesso de tosse. Porcaria! Mesmo achando horrível, tentava tragar a ... Em vez de alimentar

16

quando sentiu o braço sendo pressionado. Alencar, seu cunhado, espumando de raiva, desembestou a falar en-quanto o puxava para reunir-se com a família em volta da sepultura.

— Você vai acabar matando a sua mãe de desgosto! Não vi você derramar uma lágrima sequer. Insensível! Você é um monstro! Devia pelo menos fingir, assim não dava o que falar. Você não é mais criança, Gabriel! De agora em diante vai ter de assumir responsabilidades.

A voz do cunhado esganiçava e ele falava sem olhar para Gabriel. Continuava o falatório repetitivo, só pelo pra-zer de aborrecê-lo. Quando viu que falava ao vento, apres-sou o passo. Gabriel foi atrás dele, assobiando baixinho a música do filme A estrada da vida, do diretor italiano Fede-rico Fellini. Lembrava a música e o rosto da atriz, com cara de cão sem dono, perdida no mundo.

Cara para o futuro MIOLO.indd 16 29.05.06 10:16:56