O Papel da Vítima no processo Penal
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PENSANDON 24/2010
O PAPEL DA VTIMA NO PROCESSO PENAL
Esplanada dos Ministrios | Bloco T | 4 andar | sala 434e-mail: [email protected] | CEP: 70064-900 | Braslia DF | www.mj.gov.br/sal
ISSN
217
5-57
60
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SRIE PENSANDO O DIREITON 24/2010 verso publicao
O Papel da Vtima no Processo PenalConvocao 01/2009
Instituto Brasileiro de Cincias Criminais - IBCCrim
Equipe de PesquisaCoordenao:
Marcos Csar Alvarez Pesquisadores:
Alessandra TeixeiraMaria Gorete Marques de Jesus
Fernanda Emy MatsudaAssistentes de pesquisa:
Caio SantiagoVeridiana Domingos Cordeiro
Colaboradores:Daniella Coulouris
Fernando SallaMaria Amlia de Almeida Teles
Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia (SAL)Esplanada dos Ministrios, Bloco T, Edifcio Sede 4 andar, sala 434
CEP: 70064-900 Braslia DFwww.mj.gov.br/sal
e-mail:[email protected]
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CARTA DE APRESENTAO INSTITUCIONAL
A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia (SAL) tem o prazer de apresentar uma nova srie de cadernos do Projeto Pensando o Direito, trazendo a pblico os resultados de pesquisas realizadas por instituies acadmicas que trabalharam em parceria com a SAL ao longo do ano de 2009.
Mais do que mera prestao de contas sociedade, as publicaes representam o xito de um novo modelo de relacionamento entre Estado e academia jurdica. Sem abdicar do respeito pleno autonomia cientfica, e ciente de que o Projeto no pretende ser linha de fomento pesquisa jurdica dado seu carter prtico e instrumental s competncias da SAL , prope-se uma cooperao aberta, crtica e colaborativa, que almeja construir alternativas qualificadas aos entraves prticos e tericos que circundam o processo de elaborao normativa. Seus contornos, alis, tm servido como base a outras aes governamentais que buscam aproximar a produo acadmica do cotidiano estatal.
Ganha a SAL no momento em que alcana o objetivo primrio do projeto, qual seja, a qualificao dos projetos apresentados e dos debates travados no mbito do Ministrio da Justia e do Congresso Nacional; ganha a academia jurdica e aqui talvez resida grande vitria, em que pese no ser meta precpua do trabalho no momento em que se abrem possibilidades de aplicao prtica produo cientfica e de participao efetiva no debate poltico.
O resgate da crena na poltica legislativa, a percepo de que o debate jurdico tambm ocorre no momento formativo da lei e o renascimento ainda tmido e inicial da participao acadmica nas instncias polticas decisrias contribuem, de modo inequvoco, para a (re)definio dos rumos da pesquisa e do ensino jurdico no Brasil. A pesquisa aplicada e o interesse pelo processo legislativo devolvem relevncia ao momento da gnese legislativa e, em ltima instncia, revigoram as caractersticas constituintes da cidadania. Renova-se a sensao de pertencimento; recorda-se a importncia de participao.
esta, em suma, a aposta da Secretaria de Assuntos Legislativos: um modelo de produo normativa aberto e efetivamente democrtico, permevel contribuio scio-acadmica, que resgate a importncia do processo legislativo e restaure os laos positivos existentes entre poltica e direito. Um desenho institucional que qualifique os esforos governamentais e, de outro lado, estimule a legtima participao daqueles que tm na lei posta seu objeto cotidiano de trabalho.
Este caderno integra o segundo conjunto de publicaes da Srie Projeto Pensando o Direito e apresenta a verso reduzida da pesquisa. Sua verso integral pode ser acessada no stio eletrnico da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia, em www.mj.gov.br/sal.
Braslia, 30 de junho de 2010.
Felipe de PaulaSecretrio de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia
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CARTA DE APRESENTAO DA PESQUISA
O Instituto Brasileiro de Cincias Criminais (IBCCRIM) uma entidade no governamental, sem fins lucrativos, de utilidade pblica e promotora dos direitos humanos, que tem por finalidade desenvolver as cincias criminais e afirmar o respeito absoluto aos princpios, direitos e garantias fundamentais estruturados na Constituio Federal. Foi fundado em 1992 e conta hoje com mais de 4.000 associados, entre operadores jurdicos, pesquisadores e estudiosos das cincias criminais, que dispem de acesso permanente a uma rede mundial de conhecimento e a um debate cientfico de alto nvel, tanto no cenrio acadmico quanto no profissional, das cincias humanas relacionadas s cincias criminais.
No que se refere ao fomento das cincias criminais, dentro de uma perspectiva pluralista e democrtica, o IBCCRIM tem propiciado diversos servios a seus associados e sociedade civil, tais como publicaes de excelncia, peridicos, cursos de extenso, de iniciao cientfica e de ps-graduao, eventos e seminrios. No mbito das publicaes, destacam-se o Boletim, a Revista Brasileira de Cincias Criminais (RBCCRIM) e a coleo de monografias. Por iniciativa prpria ou por meio de parceria e de convnios cientficos com entidades e universidades altamente qualificadas, o IBCCRIM realiza cursos e eventos que agregam um pblico numeroso e variado. Desde 1994, o IBCCRIM promove o Seminrio Internacional, um importante espao de intercmbio de conhecimento entre os mais renomados cientistas nacionais e internacionais, atravs de exposies e de debates com professores, pesquisadores e especialistas nacionais e estrangeiros sobre temas da atualidade, reunindo anualmente aproximadamente 1.000 pessoas vindas de todo o pas e do exterior.
No que concerne produo de estudos e pesquisas pelo IBCCRIM, preciso ressaltar o papel do Ncleo de Pesquisas, que desde 1996 realiza pesquisas aplicadas em diversas temticas, como administrao da justia criminal, segurana pblica, violncia, direitos humanos, prises e acesso justia. No Brasil, ainda no h uma tradio plenamente consolidada de pesquisa emprica no campo do Direito. O estudo no s do direito positivo, mas tambm dos processos legislativos, da histria das instituies jurdicas, das percepes e prticas dos operadores do Direito, bem como da populao em geral, diante da lei, ganham, assim, especial relevncia. As pesquisas realizadas pelo IBCCRIM buscam abordagens interdisciplinares, que trabalhem tanto as dimenses tradicionais da pesquisa jurdica por meio da anlise de fontes legislativas, doutrinrias e jurisprudenciais quanto as dimenses exploradas mais rotineiramente pelas cincias sociais.
A presente investigao, desenvolvida no mbito do Projeto Pensando o Direito da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do Ministrio da Justia, enquadra-se, desse modo, nessa busca de aprofundamento do conhecimento interdisciplinar, no mbito das cincias criminais, almejada pelo IBCCRIM. Deve-se destacar a importncia dessa iniciativa da SAL, que tem viabilizado o desenvolvimento da investigao cientfica inovadora no campo do direito e sua articulao com o necessrio aperfeioamento da democracia no Brasil.
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A equipe, responsvel pela realizao da pesquisa, agradece a todos que contriburam, direta ou indiretamente, para sua efetiva concretizao, especialmente os operadores jurdicos, que viabilizaram a pesquisa de campo e facilitaram o acesso s informaes necessrias, e as vtimas entrevistadas, que no se negaram a relatar experincias pessoais freqentemente traumticas e dolorosas.
Marcos Csar Alvarez
Coordenador
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INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS
SRIE PENSANDO O DIREITO
A VTIMA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
Resumo do Projeto de Pesquisa apresentada ao Ministrio da Justia/PNUD, no Projeto Pensando o Direito, Referncia PRODOC BRA 07/004
SO PAULO/BRASLIA
JUNhO DE 2010
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9SUMRIO
INTRODUO....11
1. O PRObLEMA DE PESQUISA: A EMERgNCIA DAS vTIMAS NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA....13
2. O RECORTE DE PESQUISA: OS JUIzADOS ESPECIAIS CRIMINAIS E O JUIzADO DE vIOLNCIA DOMSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULhER....21
2.1 O percurso da vtima na legislao penal e processual penal....23
3. A PESQUISA EMPRICA....35
3.1 Algumas reflexes metodolgicas....35
3.2 Resultados da pesquisa de campo....36
3.2.1 As infraes de menor potencial ofensivo: a experincia dos
JECRIMs....39
3.2.2 A violncia domstica e a Lei Maria da Penha....42
3.3 O homicdio de Ana Moura: um estudo de caso....52
4. CONSIDERAES A RESPEITO DA PESQUISA DE CAMPO....63
5. CONCLUSES....67
5.1 O acesso justia pela vtima: o direito assistncia judiciria....68
5.2 A importncia das medidas protetivas cautelares de carter pessoal....71
5.3 Como balizar o risco de aumento da represso penal e o aumento da
participao da vtima nos atos processuais?....73
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6. PROPOSTA LEgAL DE ALTERAO DO CDIgO DE PROCESSO PENAL NO TOCANTE vTIMA....75
6.1 Exposio de motivos e texto legal proposto....75
REFERNCIAS bIbLIOgRFICAS....81
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
INTRODUO
A presente pesquisa, desenvolvida no mbito do Projeto Pensando o Direito da Secretaria
de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia, dedicou-se ao estudo do papel conferido
vtima no processo penal brasileiro a partir de duas experincias distintas da legislao
recente, instauradas em um campo que tradicionalmente confere um tratamento que
no contempla possibilidades de participao efetiva da vtima: os procedimentos
restaurativos concernentes lei 9.099/95 e os processos penais referentes violncia
domstica e familiar que tramitam pelo procedimento previsto pela lei 11.340/06. Essas
duas iniciativas so consideradas inovadoras no que tange ao papel da vtima ao longo da
persecuo penal, pois delas advieram dispositivos vitimolgicos at ento inauditos no
ordenamento processual penal brasileiro.
De outro lado, a pesquisa buscou balizar e confrontar referidas experincias legais
com os dispositivos e as prticas pertinentes ao processo penal ordinrio1, no que toca
aos direitos e ao papel atribudo vtima. Para tanto, a pesquisa voltou-se tambm para o
campo de aplicao desse modelo, elegendo o estudo de caso como opo metodolgica
para acessar o modelo processual ordinrio. A pesquisa desenvolveu-se, ento, nos
contextos empricos do Juizado Especial Criminal (JECRIM) e do Juizado de Violncia
Domstica e Familiar contra a Mulher (JVD), tendo tambm por referncia o processo
penal ordinrio.
A investigao privilegiou as percepes das vtimas e de atores-chave do sistema
de justia criminal, procurando conhecer (a) o espao oferecido para a participao da
vtima resultante da operacionalizao dos procedimentos restaurativos, (b) eventuais
alteraes nas concepes tradicionais de crime e de vtima, (c) o grau de satisfao da
vtima com o desfecho do caso e (d) a existncia de entraves para a participao efetiva
da vtima.
1 Neste estudo atribuir-se- o termo processo penal ordinrio a todos os procedimentos previstos no Cdigo de Processo Penal para a
fase de conhecimento (tanto o rito propriamente ordinrio, quanto o rito do Tribunal do Jri), excludos os ritos especiais da legislao
extraordinria.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
A questo da possvel extenso e aplicao das experincias mais propriamente
vitimolgicas do JECRIM e do JVD ao rito ordinrio nortearam as anlises e concluses
da pesquisa, sobretudo com vistas produo legislativa. No puderam escapar anlise
e ao confronto com os resultados da presente pesquisa os projetos de lei em trmite que
se referem vtima, notadamente o PLS 156/09, concernente ao Anteprojeto de Cdigo
de Processo Penal, por introduzir diversos dispositivos que incidem diretamente sobre a
figura da vtima e na dinmica de sua participao no processo penal.
Nesta publicao, so apresentados os principais resultados da pesquisa. Como
desdobramento do projeto, apresenta-se ao final desta publicao uma exposio de
motivos e alguns dispositivos legais que se fundamentam em reflexes construdas face
aos resultados de pesquisa, propondo a modificao do sistema jurdico-penal para que
as demandas das vtimas sejam incorporadas ao funcionamento da justia.
Deste modo, a equipe interdisciplinar formada pelo Instituto Brasileiro de Cincias
Criminais, tendo trabalhado de acordo com os parmetros definidos pelo Projeto Pensando
o Direito da Secretaria de Assuntos Legislativos, buscou contribuir para o avano da
pesquisa jurdica e para o aprimoramento das instituies democrticas do pas.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
1. O PRObLEMA DE PESQUISA: A EMERgNCIA DAS vTIMAS NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA
A figura da vtima tem conquistado espao no mbito da vida social contempornea, ao
ganhar visibilidade e reconhecimento nos debates pblicos e nas prticas institucionais.
Movimentos sociais organizam-se em defesa das vtimas, a imprensa para elas se volta
como se fossem praticamente as nicas destinatrias das polticas de segurana, novos
saberes como a Vitimologia em torno delas se estruturam, rompendo com o interesse
quase exclusivo da Criminologia em relao ao criminoso, e o prprio campo jurdico
adota reformas legais buscando criar espao para sua maior participao nos ritos
legais. Enfim, uma inovao social de grande alcance parece em curso, embora seus
contornos e significados ainda no tenham adquirido total clareza. Para alguns, teramos
a efetiva emergncia de novos atores sociais, de novas demandas por reconhecimento
da parte daqueles que, durante sculos, estiveram silenciados. Para outros, no entanto,
essa emergncia faria parte de um novo fervor punitivo que invade o espao pblico,
do processo de hipertrofia do Estado Penal ou de constituio de uma nova cultura do
controle que se infiltra em todas as dimenses da sociedade. Tal o debate que, em
grande medida, travado no mbito das Cincias Sociais e Jurdicas.
Inmeros trabalhos recentes discutem essa entrada das vtimas nas representaes
sociais e na ao poltica nas sociedades contemporneas (ZAUBERMAN E ROBERT,
2007; WIEVIORKA, 2005; CARIO E SALAS, 2001; BERNARD E CARIO, 2001; DUMOUChEL,
2000; COLLARD, 1999; GARAPON E SALAS, 1997). A maior parte dos autores concorda
que tal irrupo implica numa ruptura em relao forma como a sociedade moderna
construiu as representaes e prticas hegemnicas em torno do crime e da punio. A
construo do monoplio da violncia legtima pelo Estado e pelo Direito na modernidade
implicou a excluso da vtima do processo penal. Se, durante muito tempo, a vtima
desempenhou um papel ativo na represso da infrao e na reparao dos prejuzos
sofridos, por razes polticas diversas o Estado moderno acabou progressivamente por
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praticamente exclu-la do processo penal (CARIO, 2000). Apenas recentemente a vtima
passou a obter o reconhecimento formal de seus direitos, sendo que tal processo est
ainda em curso.
Se h consenso em torno da idia de que a presena da vtima no espao pblico
contemporneo acarreta uma ruptura profunda na sociedade moderna, o mesmo
consenso no se estabelece quando se trata de avaliar criticamente tal processo. Para
alguns, essa emergncia implicaria em novas formas de ao coletiva, em novas formas
de construo dos sujeitos sociais e em possibilidades de emancipao. Para outros,
em contrapartida, tal fenmeno indicaria notadamente um novo fervor punitivo que se
torna hegemnico na sociedade contempornea e que ameaa as garantias e direitos
conquistados ao longo da modernidade.
Michel Wieviorka um dos autores que busca analisar essa transformao em
termos de seus aspectos mais promissores. Para esse autor, trata-se efetivamente de
uma verdadeira ruptura antropolgica, uma vez que, nas sociedades tradicionais, mesmo
que existisse a representao do sofrimento vivido, a figura mesma da vtima era pouco
relevante: suas dificuldades e seus traumatismos eram bem menos importantes do que
o prprio significado da violncia sofrida do ponto de vista da comunidade (WIEVIORKA,
2005, p. 81).
Com a constituio do Estado moderno, a vtima igualmente no ter grande demanda
a apresentar, uma vez que o Estado toma seu lugar para obter reparao em nome de
toda a sociedade. Tanto na perspectiva tradicional, como tambm na era moderna, a
sociedade em seu conjunto que agredida assim que uma pessoa vtima de um crime,
a sociedade que deve ser protegida e por isso que o crime no pode ficar impune. A
vtima deve delegar ao Estado e sua justia a preocupao com a reparao.
Em contraposio a esse processo de remoo da vtima do processo penal, tpico
da construo do monoplio da violncia legtima pelo Estado moderno, a vtima passou
a adquirir uma nova visibilidade pblica, ainda de acordo com Wieviorka, j no sculo
XIX. Nesse momento aparece pela primeira vez a preocupao em relao aos soldados
vitimados no campo de batalha e, tambm, no que diz respeito violncia sofrida pelas
mulheres e pelas crianas e suas conseqncias psquicas.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
Porm, sobretudo a partir da segunda metade do sculo XX que a vtima o outro lado
do crime passa a se constituir efetivamente como objeto de reflexes e aes especficas,
distintas dos conhecimentos e das prticas at ento acumuladas e desenvolvidas no
campo do direito criminal. Sem dvida nenhuma, a construo da memria em torno do
holocausto, aps a Segunda Guerra Mundial, forneceu um impulso decisivo, ao colocar
em primeiro plano a experincia das vtimas dos campos de concentrao implantados
pelo regime nazista. Posteriormente, igualmente com o impulso dos movimentos
feministas, a tomada em considerao das vtimas progrediu fortemente (CARIO, 2000).
Os movimentos feministas foram decisivos nessa transformao, pois, com eles, tornou-
se mais difcil manter confinada esfera privada as violncias sofridas pelas mulheres,
sendo paradigmtica a luta em torno do estupro como um crime de extrema gravidade,
o que s foi possvel a partir da superao da vergonha e do estigma que pairavam sobre
suas vtimas (WIEVIORKA, 2005, p. 86). E possvel perceber a convergncia desses
movimentos a partir da constatao de que as vtimas de estupro mimetizaram, em
suas lutas, a linguagem dos sobreviventes do genocdio judeu durante a Segunda Guerra
Mundial, ao reafirmarem a mesma postura por justia e reparao.
Embora considere que essa entrada massiva das vtimas nos espaos pblicos
contemporneos coloque inmeros problemas de ordem poltica, tica e jurdica tais
como os relativos ao enfraquecimento do Estado nacional, da possvel dissoluo entre
as esferas pblica e privada, da crise mais geral das instituies etc. , para Wieviorka
o mais importante que essa transformao coloca em cena novas possibilidades de
expresso dos sujeitos individuais e coletivos. Ou seja, ao invs de reduzir a dimenso
subjetiva da temtica da vtima apenas a uma ameaa de crise das instituies, deve-se
enfatizar que a emergncia da vtima aponta para o potencial de reconhecimento pblico
do sofrimento suportado por um indivduo singular ou por grupos, a possibilidade de narrar
a experincia vivida e o impacto dos traumatismos; enfim, permite fortalecer a presena
do sujeito pessoal na conscincia coletiva (WIEVIORKA, 2005, p. 100). Se a violncia, nas
suas mltiplas formas, sempre a negao dos sujeitos, a emergncia da vtima como
sujeito na cena pblica pode ajudar no combate prpria violncia, ao exercer um efeito
de responsabilizao sobre polticas e representaes, ao contribuir para a construo
da memria histrica, ao permitir novas perspectivas de reconhecimento, mesmo que
a derivao populista em torno da questo, sobretudo no plano penal, no possa ser
subestimada.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
Denis Salas (2005), em contrapartida, em seu livro intitulado La volont de punir [A
vontade de punir], ressalta justamente os perigos que a emergncia da figura da vtima nos
debates pblicos acerca da justia e da punio nas sociedades democrticas apresenta
em termos do fortalecimento do assim chamado populismo penal definido como o
discurso emotivo que clama por punio em nome das vtimas e contra as instituies
democrticas desqualificadas (SALAS, 2005, p. 14).
Para esse autor, em nome de um dever de memria para com as vtimas j descrito por
Wieviorka , na verdade uma vontade de punir teria invadido as sociedades democrticas.
Se nos Estados Unidos o 11 de setembro de 2001 foi o catalisador de tal mudana, ela
atingiu tambm a Europa e outros pases do mundo. Mas quem seria propriamente o
inimigo a ser combatido por essa nova vontade punitiva? O crime organizado que se
aproveita das fronteiras abertas? O terrorismo e suas ramificaes? O criminoso sexual
e o pedfilo? De acordo com o autor, torna-se difcil entender uma ameaa que envolve
figuras to dspares.
Para Salas, os Estados democrticos contemporneos adotam esse novo impulso
repressivo, tendo como armas uma polcia forte, uma magistratura disciplinada e um
direito de exceo contra esses inimigos difusos e dspares. Com essa proliferao de
perigos internos e externos, multiplicam-se igualmente as infraes, agravam-se as
penas e a inflao carcerria, cresce o custo da segurana etc. O Estado e a sociedade
civil passam a buscar exorcizar todos os grandes problemas da sociedade exclusivamente
pelo mbito penal, ao voltar-se para medidas repressivas contra a delinqncia juvenil,
os fluxos migratrios etc.
Ao buscar esclarecer as bases sociais e culturais desse processo, Salas enfatiza
que em nome das vtimas que todo esse processo sustentado, tanto nos Estados
Unidos como na Frana e em outros pases democrticos. O populismo penal, por sua
vez, configura esse conjunto de discursos que, em nome das vtimas, busca radicalizar o
direito de punir e, ao mesmo tempo, arruna sua legitimidade e compromete sua eficcia.
Reduzida, a partir desses discursos, a uma comunidade puramente emotiva, o corpo
social reage com desmedida s agresses, reais ou supostas, e abandona a moderao
que deveria governar o direito de punir nas sociedades democrticas.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
Salas admite, no entanto, que as razes de todo esse processo precisam ser melhor
compreendidas. Seria preciso analisar as razes dessa mutao, desse duplo movimento:
de um lado, o declnio de nossa solicitude em direo ao homem culpado face s formas
mltiplas de insegurana; de outro, a demanda crescente das vtimas, que colocam
nossa sociedade sob a influncia de sentimentos morais. Percebe-se assim a crise de
uma resposta individualizada delinqncia e uma exigncia de reconhecimento das
vtimas. Durante longo tempo silenciada, a vtima vem frente da cena, se faz onipresente
no imaginrio coletivo a ponto de ocultar a inquietao com o prprio culpado. O
problema que, para Salas, os discursos sobre as vtimas se prestam a estratgias de
instrumentalizao, as categorias penais so dilatadas nos seus espaos semnticos
devido s novas presses sociais.
Ao tomar esse caminho, Salas argumenta na mesma direo de inmeros autores que
diagnosticam, na cena contempornea, um novo impulso punitivo que, de certa forma,
acompanha a intensificao do movimento da globalizao econmica nas ltimas dcadas,
por vezes caracterizado pela ascenso de um Estado Penal (WACQUANT, 1998; 2001a;
2001b) ou como uma nova cultura do controle (GARLAND, 2001). Tais autores consideram
que, se at meados dos anos 70 do sculo XX, as assim chamadas polticas de bem-estar
no plano penal baseavam-se principalmente na retrica da recuperao dos criminosos,
a partir de ento se pde perceber uma significativa inflexo tanto nas prticas e nas
polticas quanto no prprio significado da punio para o conjunto da sociedade. O ideal
de recuperao, no mbito das polticas penais, passa a ser paulatinamente abandonado,
em prol de um novo paradigma punitivo, voltado mais para a imobilizao e neutralizao
dos criminosos do que para a correo e recuperao. Tal redirecionamento coincide com
a onda conservadora que, a partir do Reino Unido e dos Estados Unidos, redesenha o jogo
poltico mundial, inclusive com uma crtica acentuada s conquistas do Welfare state.
Mas, como j afirmado, para Salas o novo paradigma punitivo se torna hegemnico
mesmo em pases como a Frana, onde, desde os anos 1970, a demanda por segurana
endereada ao Estado igualmente recorrente. Se a pena de morte desapareceu do direito
francs, h, em compensao, uma inflao de leis penais e de endurecimento das penas.
A questo penal se torna um dos temas da competio poltica e uma nova economia
da punio permite enfrentar a batalha em dois flancos: a pequena delinqncia e o crime
organizado. S uma referncia domina o debate: a performance aliada eficcia na luta
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
contra o crime. E uma omisso tambm: em relao s garantias do processo, julgadas
muito indulgentes para com os inimigos do gnero humano. A justificativa enfim, seria a
causa das vtimas, matriz do populismo penal.
Entretanto, em descries como a de Wacquant e de Salas, a dimenso poltica
da ofensiva conservadora que est em jogo, o que torna difcil compreender como se
d o enraizamento efetivo dessas novas prticas de punio e controle do crime nas
transformaes sociais e culturais em curso. Em contrapartida, conforme preconiza
David Garland (1990), para compreender as transformaes contemporneas no mbito
da punio, preciso pens-las como mutaes no mbito das instituies sociais, como
fenmenos multifacetados e complexos conectados a uma ampla rede de aes sociais
e significados culturais.
Desse modo, em termos de reflexo e de investigao emprica, a explorao da
temtica da emergncia da vtima torna-se interessante por permitir indagar, ao mesmo
tempo, acerca da nova tendncia punitiva presente na sociedade contempornea
resumida por Salas na expresso populismo penal bem como compreender as razes
sociais de tal processo. Todavia, embora bastante sugestivas, ao indicar os perigos
subjacentes ao fortalecimento do papel da vtima no mbito penal, anlises como a de
Salas no permitem vislumbrar os aspectos positivos de tais mutaes. Como j citado,
Michel Wieviorka, em contrapartida, busca analisar essa transformao sem deixar de
apontar tanto as ambigidades quanto os aspectos mais promissores dessa ruptura.
Percebe-se, deste modo, a complexidade da prpria compreenso do que estaria em
jogo na questo do novo papel da vtima no direito penal contemporneo. Afinal, quais as
razes sociais mais profundas desse fenmeno? At que ponto a justia pode responder
a uma demanda de reparao potencialmente sem limites? O que procuram as vtimas:
apenas formas de vingana, a reparao de um traumatismo ou um caminho mais coletivo
de reconciliao (CARIO E SALAS, 2001)?
O que se coloca em questo, em ltima instncia, nessas discusses o diagnstico
acerca da prpria crise do Estado e da sociedade na contemporaneidade. Para alguns,
potencialmente sobrecarregado pela presso dessas novas demandas sociais e
polticas, o Estado estaria ameaado de perder o monoplio da ao penal, construdo
com dificuldade ao longo da modernidade, ou poderia ser levado inflao penal como
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
resposta a problemas cuja resoluo deveria ocorrer no plano civil, administrativo ou
social, exclusivamente (CARIO, 2000, p. 9).
O tema, portanto, permite diferentes tomadas de posio valorativa, bem como
coloca grandes desafios metodolgicos. Uma considerao metodolgica que pode
ser antecipada, considerando-se o aprofundamento do estudo do problema, que
historiadores do Direito Penal apontam que o prprio processo de emergncia da vtima
no direito penal contemporneo no to simples, como muitas vezes apresentado pela
bibliografia sobre o tema. Garnot (2001), por exemplo, ao estudar o estatuto jurdico
das vtimas durante o Antigo Regime na Frana, afirma que, nesse perodo, ao mesmo
tempo em que no havia uma definio jurdica da vtima, no plano das prticas ela era
reconhecida de fato e, em algumas circunstncias, indenizada. Com igual freqncia, as
vtimas conseguiam compensaes tambm por meio de procedimentos situados fora
da justia (infrajustia ou parajustia). Tal considerao torna problemtica mesmo a
anlise de Wieviorka, que enfatiza que, no caso contemporneo, estaramos diante de
uma efetiva ruptura antropolgica com a emergncia da vtima na cena pblica.
Percebe-se, deste modo, como afirma igualmente Allinne (2001), que tambm no que
se refere questo da vtima a marcha do direito no linear e evolucionista, devendo-
se desvendar em cada perodo as doutrinas e as prticas dos tribunais, bem como as
prticas infrajudiciais ou parajudiciais concorrentes.
Tanto no passado como no presente, a evoluo do estatuto social e jurdico da vtima
perpassada por conflitos e ambigidades. O decisivo que, na atualidade, instaurou-
se toda uma nova disputa em torno da prpria semntica da palavra vtima, nos mais
diversos mbitos da vida social. Se hoje se deve buscar um maior reconhecimento em
favor da vtima, tanto em termos sociais e culturais quanto no mbito penal, tal objetivo
bastante complexo e s possvel avanar em termos prticos a partir de uma melhor
compreenso do que est realmente em jogo nesse conjunto de transformaes.
A emergncia da vtima fortalece o sujeito individual diante da coletividade? possvel
evitar as manipulaes do populismo penal e da nova cultura do controle do crime,
que, por vezes, defende polticas de endurecimento penal em nome das vtimas? Como
transformar a presso legtima das vtimas em polticas verdadeiras de reconhecimento?
Tais questes no podem ser respondidas de forma abstrata apenas estudando-se
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
contextos e prticas especficas que ser possvel aprofundar as questes anteriormente
levantadas. esse o objetivo mais geral da presente pesquisa: ao estudar experincias
recentes no Brasil referentes aos procedimentos que procuram incorporar a figura da
vtima, busca-se uma melhor compreenso acerca das diferentes foras sociais que se
mobilizam em torno dessa figura, dos valores e dos repertrios tcnicos disponveis, das
opes mais interessantes em termos de fortalecimento das instituies democrticas e
de efetiva expanso da cidadania.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
2. O RECORTE DE PESQUISA: OS JUIzADOS ESPECIAIS CRIMINAIS E O JUIzADO DE vIOLNCIA DOMSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULhER
Na recente histria brasileira, tambm os perigos do populismo penal esto
presentes. A legislao criminal da dcada de 90 do sculo XX em especial a
lei 8.072/90 (Lei dos Crimes hediondos) e suas edies posteriores exemplo
da instrumentalizao da vtima em prol de uma poltica criminal de matriz
neoconservadora, mais repressiva e no atenta s garantias fundamentais e aos
direitos dos acusados (TEIXEIRA, 2009).
Alm disso, em inmeros debates pblicos, percebe-se a manipulao da figura
da vtima com a finalidade to-somente de maior criminalizao e punio, ao
reforar os fenmenos que deveria coibir: a vitimizao, secundria e terciria, e a
despersonalizao do conflito.
Porm, emergem igualmente dois movimentos que podem ser denominados
vitimolgicos. O primeiro, que data de meados dos anos 1980, surgido com a pretenso
de combater a despersonalizao do conflito e os efeitos vitimizadores da abordagem
clssica jurdico-punitiva, pode ser identificado nos procedimentos restaurativos
adotados nos Juizados Especiais Criminais e na prpria justia restaurativa. Embora
suas experincias se voltem a delitos de menor potencial ofensivo, no deixam de
buscar inaugurar outra ordem de referncias na definio de crime e na atuao dos
sujeitos envolvidos na percepo do conflito e de sua resoluo. As estratgias de
conciliao e transao, recepcionadas pela Constituio Federal brasileira de 1988
(artigo 98, inciso I), so consentneas ao projeto de justia restaurativa, tal como
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consolidado anos depois pela Resoluo 2002/12 do Conselho Econmico e Social das
Naes Unidas (ECOSOC), no que concerne ao processo restaurativo2.
O outro movimento, de carter mais recente, diz respeito s legislaes que visam
a coibir a violncia domstica e familiar, que tm sido editadas em diferentes pases
desde meados da dcada de 1990 e, sobretudo, na primeira dcada do sculo XXI,
resultado da articulao e das lutas do movimento feminista em diversas partes do
globo. Essas legislaes, ao inclurem a famlia como vtima de violncia, enunciam o
intento de tratar os conceitos de vtima e de crime de modo mais amplo, atendendo
quilo que fora desde sempre propugnado pela Vitimologia. No mesmo sentido, tais
legislaes parecem conferir vtima mais ateno e destaque na soluo do conflito
e na erradicao da violncia do que o sistema penal, inclusive em suas normativas
mais repressivas, costuma fazer.
O Brasil, no entanto, foi um dos ltimos pases a aderir a essa onda legislativa em
favor dos direitos das mulheres vtimas de violncia, por intermdio da lei 11.340,
de 7 de agosto de 2006, que cobe a violncia domstica e familiar contra a mulher,
consagrada como Lei Maria da Penha.
nessas duas direes que a presente pesquisa situa suas questes, ao investigar
empiricamente o quanto as duas experincias mencionadas (procedimentos
restaurativos nos JECRIMs e a Lei Maria da Penha) podem ter vindo ou no a configurar
um outro paradigma na tutela dos direitos da vtima no processo penal, tendo por
comparao o modelo tradicional de excluso da vtima no curso da persecuo
penal no ordenamento vigente. Do mesmo modo, questiona-se em que medida esses
dispositivos inaugurais podem operar como referncia para a normativa penal e
processual de modo geral, a fim de incluir de modo corrente a participao da vtima
e a ateno aos seus direitos no mbito do processo penal ordinrio e na lgica de
funcionamento do sistema.
2 A Resoluo 2002/12 traz a definio de processo restaurativo: processo em que vtima e agressor e, quando apropriado, quaisquer
outros indivduos ou membros da comunidade afetados pelo crime, participam conjunta e ativamente da resoluo de problemas advindos
com o crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo pode incluir mediao, conciliao, conferncias e crculos
de sentena.
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2.1. O PERCURSO DA vTIMA NA LEgISLAO PENAL E PROCESSUAL PENAL
Em 1995, por meio da lei 9.0993, foram criados os Juizados Especiais Criminais,
em ateno, substancialmente, a duas ordens de perspectivas em termos de poltica
criminal: de um lado, a lgica despenalizadora, voltada aos delitos definidos como de
menor potencial ofensivo e, de outro, a defesa da economia processual atravs de um
rito simplificador em substituio ao processo penal e do conseqente desafogamento
do sistema de justia criminal. Dessa maneira, as varas criminais poderiam atuar com
maior prioridade sobre os crimes de maior potencial ofensivo (AZEVEDO, 2000).
Com a lei, institucionalizou-se no sistema de justia criminal brasileiro a chamada
justia consensual ou restaurativa4, que teria por objetivo a conciliao e a busca do
restauro dos laos entre as partes, ampliando assim a interao entre agressor ou infrator5
e vtima, e buscando a pacificao do conflito. Esse modelo de justia introduziu uma
dinmica inovadora, com procedimentos informais e rpidos na tentativa de desenvolver
alternativas mais eficazes e menos onerosas (DIAS E ANDRADE, 1992).
Para os crimes de menor potencial ofensivo com pena igual ou inferior a um ano6 e
os delitos culposos a lei instituiu o rito em princpio descriminalizante dos JECRIMs,
a partir de procedimentos que precederiam e em alguns casos at substituiriam
a instaurao do processo penal, a saber, a composio civil (prevendo a tentativa de
conciliao como etapa necessria), seguida da transao penal e, enfim, da suspenso
condicional do processo.
No que toca transao penal, sua aceitao implica na aplicao das medidas
alternativas anteriores ao processo e pena, representadas, no entanto, pelas mesmas
modalidades j previstas no Cdigo Penal desde 1984 como penas restritivas de
3 A lei trata dos Juizados Especiais Cveis e Criminais. Neste relatrio, a meno lei 9.099/95 ser sempre para se referir ao JECRIM.
4 Os modelos conciliatrios (consensuais ou restaurativos) de soluo de conflito, que passaram a ganhar importncia a partir da dcada
de 1970 nos Estados Unidos, so parte de uma poltica de pacificao, que se preocupa com a harmonia e a eficincia. Passa-se de uma
tica do certo e errado para uma tica do tratamento (NADER, 1994), ou seja, a lgica dos tribunais, que era de se ter ganhadores e
perdedores, passa a ser substituda por uma lgica de acordo e conciliao em que s h vencedores.
5 Foram utilizadas as denominaes nativas, isto , empregadas pelos atores do sistema de justia criminal.
6 A lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Federais, passou a ampliar a definio de crime de menor potencial ofensivo, estendendo
seu rol de incidncia para os crimes cuja pena seja igual ou inferior a dois anos.
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direitos: prestao de servios comunidade, limitao de final de semana e interdio
temporria de direitos. Essa espcie de transao foi festejada por alguns autores por
incorporar tendncias internacionais que propunham mecanismos ressocializadores e
apaziguadores de conflitos. Outros, entretanto, consideraram-na polmica, pois se daria
em um momento no qual ainda no haveria investigao ou prova que demonstrasse
a responsabilidade do acusado. Seria, assim, uma espcie de punio antecipada, em
conflito com o princpio da presuno de inocncia7.
O acento desprisionalizador dessa lei diz respeito particularmente aos reclamos de um
determinado movimento de poltica criminal no qual as alternativas ao encarceramento
emergiam como proposta central. Foi assim, no bojo de uma poltica de alternativas penais,
que a lei 9.099/95 passou a contemplar instrumentalmente tal perspectiva, ao prever
procedimentos restaurativos que visassem a evitar, em ltima instncia, a privao de
liberdade dos condenados. Esse o sentido que pode ser extrado das Regras Mnimas
para a Elaborao de Medidas No Privativas de Liberdade, conhecidas como Regras de
Tquio, cujo texto foi aprovado pelas Naes Unidas em 14 de dezembro de 1990 e ao qual a
lei 9.099/95 estaria filiada. Em seu contedo, h a recomendao expressa pela adoo de
medidas penais alternativas ao encarceramento, como a restrio de direitos do condenado
e acusado, e de procedimentos restaurativos, como a composio do dano causado e a
indenizao da vtima, mais uma vez como alternativas ao processo penal e pena de priso.
O trabalho de Azevedo (2000) aponta para o fato de que a lei 9.099/95 promoveu uma
judicializao dos conflitos, uma vez que permitiu maior controle sobre os litgios que
antes eram resolvidos fora do mbito do Judicirio ou que permaneciam engavetados
nas delegacias de polcia, isto , que no chegavam a integrar o conjunto de demandas
levado ao sistema de justia. Foram tambm identificados problemas como a ausncia
de promotores em audincias preliminares, a atuao excessivamente burocratizada de
juzes e a presena de promotores e conciliadores na conduo de acordos, o que revelaria
uma preocupao com uma maior quantidade de desfechos rpidos e com baixo dispndio
de recursos. O autor considera, no entanto, que, levando-se em considerao o poder de
movimentar o sistema de justia criminal que colocado nas mos da vtima na medida
7 Ningum ser considerado culpado at o trnsito em julgado da sentena penal condenatria (Constituio da Repblica Federativa
do Brasil, art. 5, inc. LVII).
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em que ela quem se dirige autoridade policial para comunicar a ocorrncia e a
possibilidade de obteno da reparao do dano atravs da ao penal, haveria um maior
protagonismo da vtima nos juizados em comparao com o processo penal tradicional.
De qualquer modo, no foi exatamente na condio de protagonista que a vtima emergiu
nesse novo contexto, embora esse papel tenha sido disponibilizado, em tese, a partir de
procedimentos alternativos ao processo penal tradicional, expressos, especialmente, na
figura da composio civil do dano, cuja prtica remete lgica da mediao de conflitos,
na qual, em princpio, os prprios papis de agressor e vtima podem ser discutidos e
redefinidos.
Se as prticas restaurativas concernentes s conferncias, consubstanciadas em
audincias nos juizados, dividem posies no que diz respeito validade e eficcia dos fins
a que se destinam, dada tambm a heterogeneidade de sua aplicao, contudo, no que diz
respeito aplicao das medidas alternativas aos autores dos crimes sujeitos ao JECRIM,
a crtica bastante contundente ao denunciar a banalizao com que esses fenmenos
seriam tratados, em especial no que toca queles relativos violncia domstica.
Em verdade, a percepo do processo de banalizao foi acentuada com a edio da
lei 9.714/98, responsvel por instituir quatro novas modalidades de sanes restritivas
de direitos: a prestao pecuniria em favor da vtima, a perda de bens e valores, a
proibio de freqentar determinados lugares e a prestao de outra natureza, tendo
ainda modificado8 as condies de aplicabilidade das penas alternativas. Referida lei,
antes de operar como medida de ampliao e fortalecimento das medidas alternativas
ao encarceramento, prestou-se, ao contrrio, nos dizeres de Martins (2004, p. 656),
puramente ao fortalecimento do papel simblico da represso penal, alastrando penas
cosmticas e propiciando a banalizao da interveno penal na vida social.
Foi principalmente no que se refere ao recurso reiterado que a justia passou a fazer
da modalidade prestao pecuniria, em especial na converso do valor devido em cestas
bsicas e nos crimes relativos violncia domstica, que a perspectiva de banalizao
8 Ampliou-se de dois para quatro anos de recluso o tempo de pena de priso passvel de ser substituda por restritiva de direitos, desde
que se trate de delitos cometidos sem violncia ou grave ameaa, que seja primrio o agente e estejam atendidos os demais requisitos de
carter subjetivo.
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desse problema e, mais ainda, a de desvalorizao do papel da vtima se fizeram sentir
com maior evidncia no sistema dos juizados. Foi justamente a partir dessa crtica e em
oposio clara ao modelo previsto e executado nos JECRIMs que a sociedade civil e os
movimentos sociais reivindicaram outras formas de enfrentamento e de erradicao da
violncia de gnero, a partir da constatao da maior vulnerabilidade imposta s vtimas
desse tipo de violncia pela aplicao da lei 9.099/95.
A partir desse movimento reivindicatrio, impulsionado em grande medida pela
condenao do Estado brasileiro pela Comisso Interamericana de Direitos humanos
da Organizao dos Estados Americanos (OEA), em 2001, em razo da omisso e da
negligncia no que diz respeito violncia domstica, foi ento elaborada e editada a lei
11.340/06. A Lei Maria da Penha, como foi consagrada, acolheu as recomendaes da
Comisso Interamericana para erradicar e punir a violncia de gnero e passou a excluir
dos JECRIMs a competncia para processar e julgar os crimes cometidos no contexto de
violncia domstica e familiar contra a mulher, submetendo-os a um rito prprio previsto
na lei, que tambm objeto da presente pesquisa.
No deixa de ser uma questo no mnimo sui generis a de que foi justamente como
desdobramento de uma primeira experincia restaurativa no ordenamento nacional, que
ocorreram os reclamos por uma poltica mais protetiva e resguardadora dos direitos da
vtima. Porm, seria talvez o caso de ponderar se esse insucesso da iniciativa restaurativa
para os casos de violncia domstica teria se dado mais pelo modo de aplicao da lei
e pela cultura de banalizao do problema da violncia domstica, do que propriamente
pelo formato idealizado como despenalizador. Permanece, assim, o questionamento,
enfrentado ao longo da pesquisa, acerca dos limites do modelo dos juizados para atingir
finalidades restaurativas: referem-se eles intrinsecamente sua concepo ou, antes,
decorrem das deficincias de sua aplicao e, por conseguinte, de sua efetividade?
Do mesmo modo, insistente crtica dirigida ao sistema dos JECRIMs, no sentido de
operarem eles como uma ampliao da rede de controle social (COhEN, 1979) e institurem
formas antecipadas da punio (KARAM, 2005), possvel formular a mesma pergunta:
trata-se de princpios implcitos ao modelo ou de deficincias na sua estruturao?
A questo torna-se ainda mais pertinente quando se tem em conta o grau de
implementao dos juizados nas comarcas ao redor do pas e a j citada precariedade de sua
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instalao. Isso se deve ao fato de a instalao do JECRIM e seu adequado funcionamento
serem tarefas que demandam a criao de servios complexos, que envolvem no apenas
operadores jurdicos, mas tambm tcnicos e uma rede social capaz de monitorar as
medidas aplicadas, tarefa muito mais vultosa e complexa do que a criao de varas criminais.
certo que o Judicirio, a despeito de experincias pontuais, pouco avanou em
relao tarefa de dotao dos juizados de estrutura que os tornassem aptos a operarem
de acordo com o modelo previsto na lei. Em conseqncia, o grau de eficincia resta
comprometido, o que certamente contribui para que percepes de injustia, impunidade
e insatisfao tornem-se recorrentes entre os atores envolvidos, sobretudo da vtima.
A fim de impulsionar a criao e o fortalecimento dos juizados e de varas especializadas
na execuo de medidas e penas alternativas, o Poder Executivo federal inaugurou
uma poltica de fomento a partir da criao, em 2000, da Central Nacional de Apoio e
Acompanhamento s Penas e Medidas Alternativas (CENAPA) junto ao Ministrio da
Justia. Essa poltica se traduziria em incentivos para a criao desses servios nas
unidades federativas, por meio de convnios com secretarias de estado e com os rgos
do Poder Judicirio estadual.
Os resultados dessa poltica de fomento podem ser sentidos na criao de centrais
estaduais de penas alternativas e de varas especializadas na execuo de penas e
medidas alternativas. At 2005, contudo, contavam-se apenas cinco varas em todo o pas
(MATSUDA E TEIXEIRA, 2007), havendo, no entanto, pouco incentivo dotao estrutural
dos juizados no que toca, por exemplo, s dinmicas conciliadoras e restaurativas que
tais rgos deveriam compreender.
Algumas experincias de justia restaurativa foram igualmente implantadas no Brasil,
especialmente aps o impulso dado em 2003 com a criao da Secretaria de Reforma do
Judicirio e sua pretenso de instaurar uma alternativa real ao sistema judicirio, incapaz
de cumprir suas funes com rapidez, eficincia e acessibilidade. Diante da crena
na necessidade de uma interveno diferenciada nos conflitos de natureza criminal e
infracional, o Ministrio da Justia assumiu o discurso da justia restaurativa como uma
opo vivel para assegurar acessibilidade, combater a impunidade, proteger a vtima
de delitos, educar jovens em conflito com a lei e buscar a interao do Poder Pblico com
a sociedade (BASTOS, 2006 apud BENEDETTI, 2009, p. 55).
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
As iniciativas que incorporaram o modelo restaurativo freqentemente vieram
associadas ao sistema de justia da Infncia e Juventude, como o caso dos projetos-
piloto das cidades de So Caetano do Sul, em So Paulo, e de Porto Alegre. Tem-se
notcia de uma experincia no Distrito Federal que procurou transpor caractersticas do
modelo restaurativo para os JECRIMs, mas sem que consistisse efetivamente em uma
alternativa, j que se tratava, na realidade, de um complemento ao sistema de justia9,
diferentemente do que fora imaginado pelo Ministrio da Justia. Entretanto, o modelo
restaurativo, especialmente no que se refere a seus procedimentos, compe um pano de
fundo interessante para a anlise das possibilidades de participao da vtima.
Dessa forma, estipulou-se, como um dos objetivos da pesquisa, a anlise dos
procedimentos de cunho restaurativo em curso nos JECRIMs, tendo como referncia sua
compatibilidade com os propsitos pretensamente despenalizadores e promotores de
maior protagonismo da vtima no sistema de justia criminal.
No mbito da violncia domstica e familiar contra a mulher, com a promulgao
da Lei Maria da Penha, tem-se que os JECRIMs no apresentam mais a competncia
para processar e julgar esses crimes, submetendo-os a um rito prprio previsto na lei,
que tambm objeto da presente pesquisa. Dada a importncia das reivindicaes dos
movimentos feministas, especialmente no que diz respeito ao combate violncia contra
mulher, dos tratados e convenes internacionais de defesa das mulheres e da influncia
que tiveram com relao ao desenvolvimento de uma lei especfica para tratar da questo
da violncia domstica e familiar contra a mulher no Brasil, faz-se necessrio resgatar
aspectos do contexto em que a Lei Maria da Penha surge no pas.
No que diz respeito violncia contra a mulher no pas, os dados apontam para uma
situao preocupante: de acordo com pesquisa realizada pela Fundao Perseu Abramo
(2001), um tero das mulheres brasileiras admitiu j ter sido vtima, em algum momento
de sua vida, de alguma forma de violncia fsica (24% vtimas de ameaas com armas ao
cerceamento do direito de ir e vir; 22%, de agresses fsicas e 13%, de estupro conjugal ou
abuso). O marido, companheiro ou ex-marido e ex-companheiro foram apontados como
agressores em 53% das ocorrncias de violncia. Entre as formas de violncia mais citadas
9 Para informaes a respeito dos projetos-piloto, conferir Raupp e Benedetti (2007).
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destacam-se a agresso fsica leve, sob a forma de tapas e empurres (20% das mulheres),
a violncia psquica praticada por meio de xingamentos, com ofensa conduta moral da
mulher (18%) e a ameaa consistente em ter quebrados objetos pessoais, ter rasgadas
as roupas, ter objetos atirados contra si e outras formas indiretas de agresso (15%).
Observou-se tambm que 9% das mulheres j ficaram trancadas em casa, impedidas de
sair ou trabalhar. Diante dos dados, a pesquisa concluiu que uma em cada cinco brasileiras
so vtimas de violncia domstica e que, pelo menos 6,8 milhes, dentre as brasileiras
vivas, j foram espancadas ao menos uma vez (FUNDAO PERSEU ABRAMO, 2001, p. 3).
O Segundo Relatrio de Pesquisa sobre Violncia contra a Mulher, de autoria do Senado
Federal e divulgado em 2005, esclarece que 17% das mulheres entrevistadas, de um
total de 815 que compuseram a amostra, afirmaram ter sofrido algum tipo de violncia
domstica. Dessa parcela vitimada, 66% apontaram o marido ou o companheiro como o
autor da agresso e 23% consideravam o ambiente familiar um lugar de desrespeito
mulher (SENADO FEDERAL, 2005, p. 25).
Para combater as mltiplas formas de violncia e discriminao que atingem
as mulheres no mundo todo, no mbito das Naes Unidas foram adotados novos
instrumentos, especialmente designados para combater a desigualdade de gnero.
Todos os principais instrumentos de proteo dos direitos humanos que passaram a
vigorar nas duas ltimas dcadas faziam referncia ao problema da explorao sexual,
das desigualdades sociais e de salrio, bem como lanaram as bases para proteo e
assistncia s mulheres10.
Alm disso, vale lembrar que o Brasil reconheceu a competncia jurisdicional da
Corte Interamericana de Direitos humanos, em dezembro de 1998, por meio do Decreto
Legislativo 89, de 3 de dezembro de 1998, nos termos do artigo 62 da Conveno Americana.
O Brasil, ainda, assinou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, aprovado em Roma,
em julho de 1998. Nos dois casos, o que est em questo a jurisdio internacional para
julgamento de crimes e violaes contra os direitos humanos ocorridos nos pases-membros
10 Dentre esses instrumentos, destaquem-se: Conveno Americana de Direitos Humanos (1969), Conveno sobre a Eliminao de
Todas as Formas de Discriminao Contra a Mulher (CEDAW, 1979), Declarao da Conferncia Mundial das Naes Unidas sobre Direitos
Humanos de Viena (1993), Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher (Conveno de Belm do
Par, 1994), Plataforma de Ao e Protocolo Opcional da Conferncia Mundial sobre a Mulher de Pequim (1995).
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
e, particularmente, no Estatuto do Tribunal de Roma, a violncia contra a mulher figura
como crime sob sua jurisdio. Dessa forma, deu-se cumprimento aos preceitos legais da
Constituio Federal (artigo 226, pargrafo 8) e CEDAW e Conveno do Belm do Par.
Vrios pases tm envidado esforos no sentido de combater as desigualdades, embora
a grande maioria, incluindo o Brasil, no siga integralmente os padres de igualdade de
gnero. A partir das legislaes de pases como Espanha, Portugal, Argentina e Chile11,
possvel observar um movimento em mbito internacional no que se refere instituio de
leis que visam a coibir, prevenir e erradicar a violncia contra a mulher. Esse movimento,
influenciado e provocado principalmente pelos tratados e convenes internacionais de
defesa dos direitos das mulheres, vem crescendo e ganhando maior visibilidade mundial.
Essa verdadeira onda legislativa de combate violncia contra a mulher permite
tambm que se constate um novo movimento vitimolgico, sobretudo a partir dos anos
2000. Nesse novo cenrio, o conceito de violncia se estende para alcanar tambm sua
dimenso moral e simblica, e as esferas de proteo legal tambm se ampliam para
alm da resposta penal. A questo que se coloca em que grau essas novas medidas que
redefinem a lgica de proteo legal e prestao jurisdicional vtima tm ultrapassado
a barreira das legislaes especiais sobre violncia de gnero para se incorporarem
normativa ordinria desses pases e quais so os efeitos dessa experincia.
Em agosto de 2006, foi aprovada e sancionada no Brasil a lei 11.340, que cria
mecanismos para coibir a violncia domstica e familiar contra a mulher. De acordo
com Teles, a lei estabeleceu que a violncia domstica deve ser enfrentada pelo Estado
e pela sociedade brasileira a fim de responder de forma satisfatria realidade de
milhes de mulheres que, cotidianamente, sofrem as mais diversas formas de violncia:
fsica, psicolgica, sexual, moral, patrimonial, entre outras (TELES, 2009, p. 13).
11 Na Espanha, significativo avano legislativo foi a promulgao da lei orgnica 1, de 28 de dezembro de 2004, que prev medidas de
proteo integral contra a violncia de gnero, tanto no mbito civil quanto no criminal. Essa lei complementar lei 27/2003, que trata
especificamente das medidas de urgncia para preservar a integridade fsica da mulher vtima de violncia domstica. Em Portugal,
destaquem-se a lei 61/91 (que garantiu a proteco adequada s mulheres vtimas de violncia), a lei 107/99 (que instituiu a poltica de
criao de casas de abrigo e ncleos de atendimento para as mulheres vtimas de violncia), a lei 129/1999 (que prev a antecipao da
indenizao, pelo Estado, vtima de violncia domstica), e a lei 7/2000 (que tipificou a violncia domstica do cnjuge e alterou o processo
penal no que tange suspenso condicional do processo). No curso da suspenso, o juiz pode determinar medidas de restrio de direitos
ao agressor, como afastamento do domiclio e proibio de se aproximar da vtima. Na Amrica Latina, h dois exemplos importantes: a
Argentina, que tratou dos casos de violncia domstica na Lei de Proteo contra a Violncia Familiar (lei 24.417/1994), e o Chile, que na lei
20.066/05, Lei de Violncia Intrafamiliar, tratou dos casos de violncia contra mulheres, crianas e adolescentes.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
Pode-se dizer que um antecedente direto dessa lei consiste na condenao sofrida
pelo Estado brasileiro na Comisso Interamericana de Direitos humanos, pelo
tratamento dado ao caso de Maria da Penha Maia Fernandes, vtima de duas tentativas
de homicdio perpetradas por seu marido. Com o apoio do Centro de Justia pelo
Direito Internacional (CEJIL) e do Comit Latino-Americano de Defesa dos Direitos da
Mulher (CLADEM), Maria da Penha teve seu caso admitido porque se entendeu que o
Estado, ao se omitir, fora responsvel pela violao de direitos. O Relatrio 54/2001
condensa as recomendaes advindas da condenao, que exigiam o empenho
do Estado para pr fim tolerncia e ao tratamento discriminatrio no que atine
violncia domstica contra as mulheres. Recomendou-se que o Estado simplificasse os
procedimentos judiciais penais, sem afetar os direitos e garantias do devido processo,
estabelecesse formas alternativas s judiciais, que fossem rpidas e efetivas na soluo
de conflitos intrafamiliares, e promovesse a sensibilizao com respeito gravidade e
s conseqncias penais geradas pela violncia domstica.
Alm disso, os movimentos de mulheres denunciavam a fragilidade da lei 9.099/95,
cuja dinmica no daria conta da complexidade da violncia domstica. O processamento
dos casos de violncia domstica nos JECRIMs foi bastante criticado, tanto pela
equiparao desse crime a uma infrao de menor potencial ofensivo, quanto pelos
desfechos obtidos, considerados inadequados pelas vtimas. O depoimento de uma
delegada a Debert e Oliveira (2007, p. 201) ilustra a polmica provocada pela atuao
dos JECRIMs em relao violncia domstica:
A lei [9.099/95] no foi feita para isso, foi feita para outros fins, mas
levou de roldo isto a violncia domstica. E o maior ndice da violncia
domstica leso leve e ameaa. A lei prev essa fase de composio,
ela obrigatria. E essa fase feita porque eles no entendem nada de
violncia de gnero Ah! Meu filho, vamos parar com essa encrenca a.
D um ramalhete de flores para ela e est tudo resolvido. O advogado
quer se livrar, o cartorrio quer se livrar, todo mundo quer se livrar.
Ningum preparado em violncia de gnero [...]. A gente levou 12 anos
fazendo parecer que a violncia domstica era crime. De repente, isso
foi banalizado. Ento, os homens comearam a agredir as mulheres
por conta de uma cesta bsica, por conta de um ramalhete de flores
[...] aquilo que era inibido aqui pela delegacia, agora tirou a inibio,
caminha para a morte.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
Desse modo, ao longo das discusses que redundaram na lei 11.340/0612 , procurou-
se construir um novo modelo para o tratamento da questo da violncia domstica no
pas, que se distanciasse daquele previsto pela lei 9.099/95 e que alasse o problema a
um outro patamar, em que o papel da vtima fosse reconfigurado.
As discusses acerca de uma lei para o enfrentamento da violncia domstica contra
a mulher, que contaram com a participao de representantes da sociedade civil,
provocaram modulaes no texto do projeto de lei original (PL 4.559/2004). Durante o
trmite legislativo, a passagem do projeto pela Comisso de Seguridade Social e Famlia
acarretou um conjunto de mudanas em relao ao texto original, tendo sido muitas
dessas propostas de alterao efetivamente aprovadas13.
Dentre as principais inovaes da lei 11.340/06, vale mencionar: (a) a tipificao do crime
de violncia domstica e familiar como fsica, psicolgica, sexual, patrimonial e moral;
(b) a criao de medidas integradas de preveno violncia domstica e familiar; (c) a
criao de mecanismos de assistncia mulher vtima de violncia domstica e familiar;
(d) a prescrio da forma de atendimento dessa vtima pela autoridade policial; (e) a
criao do Juizado de Violncia Domstica e Familiar contra a Mulher, com competncia
cvel e criminal, e retirada da competncia dos JECRIMs para julgar crimes de violncia
domstica e familiar contra a mulher, bem como a vedao da aplicao da lei 9.099/95;
(f) a criao de medidas protetivas de urgncia para a vtima; (g) a previso de assistncia
judiciria para a vtima e (h) a previso de equipe de atendimento multidisciplinar14.
12 O projeto de lei 4.559/2004, que visava criao de lei para o enfrentamento da violncia domstica, foi elaborado pelo Grupo de
Trabalho Interministerial, criado pelo decreto 5.030 de 31 de maro de 2004, do qual faziam parte a Secretaria Especial de Polticas para as
Mulheres, a Casa Civil da Presidncia da Repblica, a Advocacia-Geral da Unio, o Ministrio da Sade, a Secretaria Especial de Direitos
Humanos, a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial, o Ministrio da Justia e a Secretaria Nacional de Segurana
Pblica. O Consrcio de Organizaes No Governamentais Feministas encaminhou ao Grupo de Trabalho anteprojeto que subsidiou as
discusses sobre a lei em diversos nveis (oitivas, seminrios, debates e oficinas) e com diversos atores (representantes da sociedade civil,
rgos diretamente envolvidos na temtica etc.).
13 Dentre as mudanas mais importantes propostas pela deputada Jandira Feghali (PC do B/RJ), relatora do projeto na Comisso de
Seguridade Social e Famlia, esto a substituio do termo medidas cautelares por medidas protetivas de urgncia, a notificao da
ofendida dos atos processuais, supresso de qualquer meno lei 9.099/95 e a criao dos Juizados de Violncia Domstica e Familiar
contra a Mulher, determinao de cadastro pelo Ministrio Pblico dos casos de violncia domstica, criao de centros de atendimento
psicossocial e jurdico, casas-abrigo, delegacias especializadas, ncleos de Defensoria Pblica, servios de sade, centros especializados
de percias mdico-legais, centros de educao e de reabilitao para os agressores.
14 Aps a promulgao da lei, iniciou-se uma discusso doutrinria e jurisprudencial em torno de sua constitucionalidade. A polmica
ensejou ao declaratria de constitucionalidade em 2007, por iniciativa da Presidncia da Repblica. O Ministro do Supremo Tribunal
Federal Marco Aurlio Mello negou liminar e at o encerramento desta publicao aguardava-se o julgamento pela Corte.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
3. A PESQUISA EMPRICA
3.1 ALgUMAS REFLExES METODOLgICAS
Uma das primeiras escolhas que se colocam quando se pretende investigar
empiricamente um fenmeno social remete ao emprego de mtodos quantitativos ou
qualitativos. Atualmente, encontra-se bem estabelecido, no campo das Cincias Sociais,
o consenso de que, dependendo do problema de pesquisa a ser investigado, possvel
obter respostas satisfatrias tanto a partir de dados quantitativos quanto qualitativos ou
mesmo pela combinao das diferentes tcnicas. Considera-se que a tcnica quantitativa
permite uma melhor padronizao dos procedimentos de pesquisa, j que possibilita
generalizaes a partir do emprego de tcnicas estatsticas e comparaes de dados e
hipteses com pesquisas realizadas em outros contextos, mas que empreguem os mesmos
mtodos. A tcnica qualitativa, em contrapartida, permite um exame mais intensivo dos
dados, possibilita uma maior flexibilidade na coleta do material, abre mais espao para a
interpretao dos significados dos dados investigados. Na pesquisa qualitativa em geral, a
nfase recai sobre o sujeito, sobre a forma como ele age e interpreta sua prpria condio
numa determinada situao social (BOUDON, 1989; COULON, 1995; MARTINS, 2009).
Na presente pesquisa, tendo em vista o problema a ser aprofundado, optou-se pela
pesquisa de natureza qualitativa por meio do emprego de dois instrumentos investigativos
principais: a observao e a entrevista. Ao mesmo tempo em que a reviso da bibliografia
e a anlise de fontes documentais forneceram o arcabouo terico e o contexto mais
amplo para subsidiar a anlise de campo, os citados instrumentos viabilizaram o acesso
aos comportamentos e valores dos agentes envolvidos.
As entrevistas tiveram importncia fundamental nessa empreitada, j que o propsito
precpuo foi o de resgatar as percepes das vtimas que se inserem nos mecanismos
processuais instaurados pelas leis 9.099/95 e 11.340/06. As entrevistas semi padronizadas
nas quais o entrevistador deve fazer certo nmero de perguntas principais e especficas,
mas igualmente livre para ir alm das respostas dadas, ao incluir novos temas e
indagaes (PhILIPS, 1974) visaram a alcanar as percepes subjetivas de atores-chave
do sistema de justia e das vtimas e suas representaes face efetiva participao e ao
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
grau de satisfao em relao ao desfecho processual, no sendo ignorados eventuais
impactos em suas condies de vida, de cunho material e psicolgico. Tambm foram
entrevistados sujeitos cujas trajetrias de vida foram consideradas significativas em
termos das questes aqui investigadas.
3.2 RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO
A pesquisa de campo teve por objetivo principal a anlise das percepes das vtimas
atravs da observao e de entrevistas realizadas durante as audincias nos Juizados
Especiais Criminais (lei 9.099/05) e nos processos penais referentes violncia domstica
e familiar que tramitaram de acordo com o previsto na Lei Maria da Penha (lei 11.340/06).
Como anteriormente ressaltado, essas duas experincias legislativas podem ser
consideradas inovadoras, uma vez que permitem uma maior possibilidade da participao
das vtimas durante o processo penal em comparao com o modelo tradicional de justia
criminal. Inserem-se, assim, em uma nova perspectiva de justia criminal, em uma
tendncia de reconhecimento dos sofrimentos e prejuzos das vtimas, e de incluso de
seus interesses pessoais, pecunirios ou subjetivos nas resolues judiciais.
O modelo tradicional de justia criminal orienta-se segundo o princpio da punio de
determinado indivduo em razo do cometimento de um crime e dos danos e prejuzos
ocasionados, bem como do risco que o autor do crime representa para a sociedade,
tentando sempre estabelecer a culpa do infrator pelos atos, considerados criminosos,
por ele praticados. Nesse modelo, a vtima constitui apenas um elemento perifrico
no processo, no tendo importncia para o encaminhamento ou para o desfecho. Em
contrapartida, as duas experincias citadas a lei 9.099/95 e a Lei Maria da Penha
trazem inovaes que permitem uma maior participao da vtima durante o processo.
A lei 9.099/95 buscou inaugurar um tipo de justia criminal a justia restaurativa
(informal ou conciliatria) na qual o crime visto muito mais como um mal vtima
do que uma violao de uma lei penal e uma ofensa sociedade. Todos os afetados pelo
crime tm papis e responsabilidades e devem, por isso, trabalhar coletivamente em
torno do impacto e das conseqncias do delito. Portanto, a vtima, nessa circunstncia,
importante para o encaminhamento do processo judicial e para soluo do conflito.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
A Lei Maria da Penha, por outro lado, apesar de orientar-se pelo modelo tradicional
de justia, possui mecanismos que estabelecem medidas de assistncia e proteo
s mulheres em situao de violncia domstica e familiar, tais como: as medidas
protetivas; o direito de ser notificada acerca dos atos processuais relativos ao agressor,
especialmente dos pertinentes ao ingresso e sada da priso; o direito de ser atendida
pela equipe de atendimento multidisciplinar, que pode desenvolver trabalhos de
orientao, encaminhamento, preveno e outras medidas, voltados para a vtima, o
agressor e os familiares. As medidas protetivas consistem em um mecanismo que pode
ser acionado pela prpria vtima, que assim procede quando julga necessrio para sua
proteo fsica e psicolgica. No menos importante o efeito simblico da lei, ao abrir
um espao privilegiado para que a verso das vtimas dos acontecimentos narrao
das diversas violncias sofridas e da vulnerabilidade das vtimas e crianas envolvidas
possa ser construda e comunicada.
Tendo em vista as duas experincias, foram selecionados dois contextos empricos
para desenvolvimento da investigao: o primeiro contexto corresponde a duas varas
criminais da Comarca de So Paulo que apresentam competncia tanto para julgar
delitos de acordo com a lei 9.099/95, quanto para julgar casos de violncia domstica
segundo o que prev a Lei Maria da Penha, alm de serem varas criminais comuns e,
portanto, terem competncia para julgamento de crimes pelo rito ordinrio. O segundo
contexto corresponde ao primeiro Juizado Especial de Violncia Domstica e Familiar
contra a Mulher do estado de So Paulo, instaurado em janeiro de 2009 no Foro Central
da Barra Funda e que ainda se encontra em processo de implementao, criado para
proporcionar um atendimento mais especfico s vtimas de violncia domstica15, em
conformidade com a lei.
Nesses dois contextos empricos, a preocupao da equipe de pesquisa esteve voltada
para a operacionalizao dos elementos restaurativos, as medidas assecuratrias de
carter no penal e a sua aplicao, eventual alterao na concepo de crime e de
vtima e, principalmente, a percepo da vtima com relao sua participao nesses
procedimentos e seu grau de satisfao com o desfecho alcanado. Por intermdio da
15 Optamos aqui por no identificar as duas varas criminais pesquisadas, uma vez que o objetivo da pesquisa no consiste em avaliar a
conduta dos operadores, mas apenas reconstituir quadros materiais e simblicos de atuao que podem igualmente estar presentes em
outros contextos.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
anlise das percepes das vtimas a respeito do tratamento recebido pelo Judicirio, e
da resoluo do conflito por ele promovida, possvel avaliar, sob a tica da vtima, em
que medida lhe concedido espao para participao e para a garantia de seus direitos.
Com esse objetivo, a equipe de pesquisa, a partir das pautas de audincias consultadas
com antecedncia, previu inicialmente o acompanhamento de 50 audincias entre os
meses de outubro e novembro de 200916, sendo que muitas delas no ocorreram, na
maioria dos casos em razo da ausncia de uma das partes. Assim, foram acompanhadas
efetivamente 35 audincias, conforme se pode verificar no quadro anexado ao final deste
relatrio. Os resultados da pesquisa de campo, que inclui observaes e entrevistas
realizadas pelos pesquisadores, so aqui apresentados de forma a privilegiar os aspectos
atinentes participao e s percepes das vtimas em relao ao que os diferentes
procedimentos, previstos pela lei 9.099/95 e pela lei 11.340/06, propem. Considera-se
que cada uma dessas leis possui objetivos especficos e projeta expectativas tambm
distintas de atuao dos operadores de direito.
O JECRIM tem por propsito a conciliao e a negociao entre as partes visando
pacificao dos conflitos, tambm por meio de medidas alternativas, nos processos
relativos s infraes de menor potencial ofensivo. Um de seus objetivos declarados
absorver o excesso de demanda no sistema judicirio atravs de proposies de solues
para acelerar o trmino do conflito. No caso da lei 11.340/06, sua criao teve por objetivo
justamente definir e orientar determinada atuao particular do sistema de justia
criminal, voltada para as especificidades dos crimes e das vtimas no campo da violncia
domstica.
Foi justamente o confronto entre essas diferentes ordens de percepes e de trajetrias
que forneceram os subsdios de anlise que permitiram desnudar aspectos dos dois
modelos de ateno vtima hoje vigentes o tradicional, no processo ordinrio, e o
inovador, decorrente de experincias ainda perifricas ao sistema , e pensar possveis
formas de generalizao desse ltimo.
16 Com esse nmero no se buscava nenhum tipo de representatividade estatstica dos dados, pois se trata de uma pesquisa qualitativa,
como j ressaltado. Buscou-se, em contrapartida, a identificao de um conjunto de casos significativos, de acordo com o problema de
pesquisa proposto.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
3.2.1 As infraes de menor potencial ofensivo: a experincia dos JECRIMs
Muito embora no seja o escopo desta pesquisa a reconstituio minuciosa do
funcionamento dos JECRIMs, preciso resgatar, a partir dos resultados obtidos no
trabalho de campo, quais fatores estruturais tm impacto sobre a questo da participao
da vtima nesse procedimento especfico do sistema de justia criminal. Por conseguinte,
no se pode esquecer o conjunto de disposies dos operadores do direito, tampouco os
recursos materiais e humanos, fatores que se convertem em condies de possibilidade
para que a vtima e seus interesses sejam recepcionados pela dinmica dos JECRIMs.
A estrutura disponvel para o funcionamento do JECRIM e as idias cultivadas pelos
operadores a respeito de suas atribuies esto imbricadas. Se de um lado h apenas um
juiz de direito e um promotor de justia para dar conta de duas salas onde so realizadas
audincias simultaneamente, de outro, as percepes dos operadores convergem para a
minimizao desse problema diante da simplicidade do procedimento do JECRIM.
As audincias preliminares so simples, no precisa estar o promotor
junto. Veja bem, no que eu estou fazendo o papel dele, que eu j sei
o que ele vai propor17.
um papo rpido mesmo, para ver se tem acordo18.
Quando besteirinha prope-se cesta bsica19.
Ainda em relao estrutura do Juizado, a inexistncia de defensor pblico em seus
quadros , sem dvida, um grande obstculo no apenas garantia dos direitos do acusado
que muitas vezes comparece audincia sem orientao adequada e desacompanhado
de advogado e, particularmente, participao efetiva da vtima. Os casos observados
revelaram que nas ocasies em que a vtima est assistida por advogado, o espao para
sua participao maior mesmo que seu discurso seja incorporado pela manifestao
de seu representante e o desfecho se aproxima mais de suas pretenses. Nas audincias
em que estavam presentes a vtima e o infrator20, notou-se que na maioria dos casos a
vtima no foi sequer consultada quanto opo de ser ouvida pelo juiz sem a presena
17 Entrevista realizada com juiz de direito atuante na vara criminal pesquisada.
18 Idem.
19 Ibidem.
20 Casos de delitos contra o meio ambiente, contravenes penais e receptao culposa de veculos, por exemplo, foram abarcados pela
observao, sem que houvesse a figura da vtima tal como abordada pela pesquisa.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
do acusado21. Algumas das vtimas entrevistadas foram categricas ao afirmar que se
os agressores no estivessem presentes audincia, sua liberdade para falar poderia
ter sido maior. A presena do infrator, e at mesmo de seu advogado, traduzia-se, nos
casos analisados, em um obstculo para a expresso da vtima, j restrita por conta da
celeridade do procedimento.
A preocupao com a rapidez das etapas do processo, aliada enorme demanda
que se apresenta aos JECRIMs, resta por inibir as possibilidades de manifestao
e de satisfao da vtima. Observou-se que juiz de direito e promotor de justia
sistematicamente deixavam de lado a tentativa de composio civil do dano e partiam para
a transao penal, expediente que ocasiona o afastamento da vtima do procedimento.
Conseqentemente, a informalidade do JECRIM, que poderia ser positiva para a vtima ao
remover barreiras entre o cidado e o sistema de justia, transforma-se no seu oposto,
j que procedimentos informais, sobretudo quando implementados de forma deficitria,
ficam sujeitos a manipulaes e abrem brechas para que os direitos das vtimas no
sejam garantidos, principalmente se no h prestao de assistncia jurdica de maneira
adequada.
No que diz respeito ao grau de satisfao das vtimas, percebeu-se que sua frustrao
decorre em grande parte da incapacidade do resultado alcanado em restabelecer o
direito lesado ou o dano causado pelo agressor. A sensao de impunidade tambm foi
recorrente dentre as percepes coletadas, sendo o descontentamento produzido pelas
medidas alternativas, que no constituiriam uma resposta suficiente. Esse fenmeno se
mostrou mais freqente nos casos em que vtima e infrator no guardavam uma relao
de interpessoalidade.
Pagar uma cesta bsica no uma punio forte, acho que a punio
deveria ser mais punitiva22.
21 Algumas excees ocorreram, como a ocorrida na audincia do caso 6. No entanto, ainda que tivesse declarado querer ser ouvida sem
a presena do agressor, a vtima teve que aguardar a audincia no mesmo corredor em que ele se encontrava.
22 Entrevista com vtima envolvida em um conflito de trnsito (caso 14). A vtima chegou a manifestar na audincia o interesse pela
composio civil (pagamento de R$1.700,00), que foi rechaada pelos infratores. Na transao penal, o juiz ofereceu aos infratores duas
opes: o pagamento de cestas bsicas ou a prestao de servios comunidade. Os infratores optaram pelo pagamento de cesta bsica, o
que a vtima considerou insatisfatrio, j que no teria ressarcido o prejuzo causado pelo dano, muito menos correspondia ao que julgava
realmente punitivo.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
Os casos estudados no JECRIM evidenciam que a satisfao da vtima liga-se ao sucesso
da composio civil e, em decorrncia, ao ressarcimento dos prejuzos causados. Duas
situaes que compuseram o universo da pesquisa ilustram essa constatao. Em uma
delas, uma vtima de leso corporal, munida de recibos que comprovavam seus gastos
com o tratamento, disse estar parcialmente satisfeita com o desfecho, o pagamento de
R$1.000,00 pelas despesas, e surpresa com a rapidez do processo:
Foi bem tranqilo, sem muita burocracia [...]. Eu esperava isso mesmo,
no tinha nada alm disso, sempre acreditei que ia dar certo23.
Em outro caso, o prprio infrator props vtima o pagamento dos prejuzos sofridos
em razo do acidente por ele provocado. Alm disso, ele aproveitou o momento
da audincia para se desculpar com a vtima pelo que havia ocorrido e por no a ter
procurado antes daquele momento, j que eram vizinhos que moravam na mesma rua.
Esse efeito simblico da atuao do sistema de justia tambm pde ser aferido em outro
caso e pode servir como elemento a ser considerado na prpria avaliao que a vtima
faz do desfecho propiciado. Uma vtima declarou-se satisfeita com a audincia porque
pde manifestar que a deciso quanto continuidade ou no do processo estava em suas
mos e que a agressora teria se sentido intimidada pelo juiz:
Fiquei satisfeita. Pelo menos serviu para amedrontar ela, n? Vamos ver
o que vai acontecer agora24.
Outro fator que tem relevncia em se tratando da satisfao da vtima a oportunidade
que lhe dada para exprimir sua verso do episdio e seus interesses. Metade das vtimas
entrevistadas relatou insatisfao em relao ao tempo e ao espao concedidos para sua
fala.
O promotor no me deixou falar, eu estou com medo, eu moro sozinha.
O promotor nem me deixou falar isso, ele s perguntou se eu queria que
continuasse o caso e eu disse que sim. No foi dado espao para falar25.
23 Entrevista com a vtima do caso 26.
24 Entrevista com a vtima do caso 6.
25 Entrevista com a vtima do caso 11.
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
3.2.2 A violncia domstica e a Lei Maria da Penha
(a) Resultados da pesquisa nas varas criminais com competncia para casos de
violncia domstica
Aps a promulgao da Lei Maria da Penha, as varas criminais assumiram competncia
para julgar casos de violncia domstica enquanto no se estruturem os Juizados de
Violncia Domstica e Familiar contra a Mulher. Por esse motivo, as varas criminais
pesquisadas voltavam seu trabalho para casos de violncia domstica e, tambm,
para as infraes de menor potencial ofensivo. Ou seja, em uma mesma tarde, eram
realizadas audincias do JECRIM e de casos de violncia domstica, alm das audincias
correspondentes aos processos ordinrios.
A falta de uma dotao estrutural, que converge para o funcionamento concomitante
de lgicas substancialmente diversas, por certo dificulta a incorporao e a aplicao
adequada dos princpios que norteiam a proposio de uma e de outra lei. Antes da
Lei Maria da Penha, as varas criminais para as quais se voltou a pesquisa tratavam a
violncia domstica a partir da tica do JECRIM. Conforme o depoimento de juiz de direito
ouvido para a pesquisa, antes da promulgao da Lei Maria da Penha o JECRIM lidava
majoritariamente com casos de violncia domstica.
Nas audincias preliminares que foram acompanhadas pela pesquisa, tanto o juiz quanto
o promotor propuseram a transao penal em praticamente todos os casos de violncia
domstica. A informalidade proporcionada pela lei 9.099/95 parece ter sido transferida
para todos os casos que tramitam nas varas criminais, inclusive aqueles enquadrados na
Lei Maria da Penha, em afronta ao artigo 41, que dispe que aos crimes praticados com
violncia domstica e familiar contra mulher, independentemente da pena prevista, no se
aplica a lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. A observao das audincias ocorridas nas
varas criminais ao longo da realizao do trabalho de campo confirmou a hiptese de que
no houve uma ruptura efetiva quanto ao tratamento oferecido por essas varas em relao
aos casos de violncia domstica e, especialmente, s vtimas.
As consideraes feitas em relao participao da vtima no JECRIM (item 3.2.1. deste
relatrio) podem ser repetidas para retratar o que ocorre nas varas criminais. As vtimas
de violncia domstica entrevistadas relataram no terem participado da construo do
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Esta pesquisa reflete as opinies de seus autores e no do Ministrio da Justia
desfecho do caso e nem do processo como um todo, e no conseguiram, principalmente
no momento da audincia preliminar, expor suas expectativas26 ou solicitar a medida
protetiva. Nos casos de violncia domstica em que ocorreu a transao penal, isso ficou
ainda mais evidente.
A pesquisa de campo mostrou que juzes e promotores so orientados pelas
contingncias da falta de estrutura e pela conseqente preocupao com diminuir
o nmero de processos e agilizar as audincias, no havendo nenhuma prestao de
esclarecimentos para as vtimas, principalmente quanto aos procedimentos a serem
adotados diante de uma nova ameaa ou agresso, o que poderia interromper o ciclo de
vitimizao. O caso 4 ajuda a compreender essa questo: aps proposta de transao
penal oferecida pelo Ministrio Pblico, a vtima de leso corporal, que na ocasio estava
grvida e sofreu um abortamento por conta da agresso, dirigiu-se ao promotor e disse
temer que o ex-companheiro voltasse a agredi-la, principalmente porque ela havia
manifestado a impossibilidade de acordo ou de conciliao entre as partes. Perguntado
pela vtima sobre como deveria proceder caso voltasse a ser agredida, o promotor de
justia respondeu que ela deveria registrar boletim de ocorrncia. A vtima reiterou sua
preocupao quanto sua segurana, ao que o promotor respondeu:
Todos temos medo, eu tenho medo tambm, a violncia urbana est em
todo lugar.
A satisfao das vtimas de violncia domstica, diferentemente do que foi observado
nos casos dos JECRIMs, est vinculada resoluo do problema, que passa pelo
constrangimento dos cnjuges para que cessem as agresses. De modo geral, as vtimas
manifestaram que sua inteno ao acessar o sistema de justia no era que o agressor
fosse punido, mas, sobretudo, de se verem protegidas da violncia. o que se depreende
da fala de vtima ouvida na pesquisa:
[...] na verdade eu esperava outra coisa, algo que eu pudesse sair hoje
26 Diferentemente do que se poderia esperar d