O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CARLA SODRÉ DA MOTA DESSIMONI O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS Belém, PA 2015

Transcript of O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS...

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR INSTITUTO DE CINCIAS JURDICAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

CARLA SODR DA MOTA DESSIMONI

O PAPEL DO JUDICIRIO NA EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS

Belm, PA 2015

CARLA SODR DA MOTA DESSIMONI

O PAPEL DO JUDICIRIO NA EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS

Dissertao apresentada como requisito parcial para

a obteno do grau de Mestre em Direito pelo

Instituto de Cincias Jurdicas da Universidade

Federal do Par.

Linha de Pesquisa: Constitucionalismo, Democracia e

Direitos Humanos.

rea de Concentrao: Direitos Humanos e Polticas

Pblicas

Orientadora Prof. Dr. Violeta Refkalefsky Loureiro.

Belm, PA 2015

Dados Internacionais de Catalogao na publicao (CIP) Sistemas de Bibliotecas da UFPA

Dessimoni, Carla Sodr da Mota

O papel do judicirio na efetivao dos direitos sociais/ Carla Sodr da Mota Dessimoni; Orientadora, Violeta Refkalefsky Loureiro. - 2015.

110 f. : il. ; 29 cm Inclui bibliografias

Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Par, Instituto de Cincias Jurdicas, Programa de Ps-Graduao em Direito, Belm, 2015.

1. Direitos fundamentais. 2. Direitos sociais. 2. Poder Judicirio. 3.

Efetividade. 4. Polticas Pblicas. 5. Controle judicial. I. Loureiro, Violeta Refkalefsky, Orientadora. II. Titulo. CDD 22 ed. 341. 27

CARLA SODR DA MOTA DESSIMONI

O PAPEL DO JUDICIRIO NA EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS

Dissertao apresentada como requisito parcial para

a obteno do grau de Mestre em Direito pelo

Instituto de Cincias Jurdicas da Universidade

Federal do Par.

Linha de Pesquisa: Constitucionalismo, Democracia e

Direitos Humanos.

rea de Concentrao: Direitos Humanos e Polticas

Pblicas

Aprovado em: ___/___/2015

Banca Examinadora

Prof. Dr. Violeta Refkalefsky Loureiro. Orientadora-ICJ/UFPA

Prof. Dr. Jos Claudio de Brito Filho Examinador-UFPA)

Prof. Dr. Elder Lisboa Ferreira da Costa Examinador- ICJ/UNAMA

Conceito: __________

Belm, PA 2015

Para Bruna

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Carlos Eduardo e Rozilda, por forjarem o meu carter, por

todo amor e apoio nos momentos mais difceis da minha caminhada at aqui. E,

principalmente, por terem dispensado de seu tempo para cuidar da minha filha para

que eu pudesse concluir os crditos do mestrado.

Ao meu marido Cesar pelo apoio e pelas palavras de incentivo, quando

pensei em desistir. Obrigada por cuidar de nossa filha nos meus momentos de

ausncia, seja para concluso do programa ou para o exerccio do meu mister em

Altamira.

A minha filha Bruna, que nasceu ainda no segundo semestre do programa

de ps-graduao, por superar a minha ausncia e ser o motivo pelo qual me

esforo todos os dias para ser um ser humano melhor.

A minha brilhante orientadora, Violeta Refkalefsky Loureiro, por todas as

valiosas sugestes e correes, e tambm pelo exemplo de educao, humildade,

vitalidade e alegria de viver que me serve como modelo a ser perseguido.

Aos professores do PPGD com os quais tive a honra de cursar disciplinas e

que contriburam valiosamente para o meu crescimento intelectual, especialmente

aos professores Jos Cludio Monteiro de Brito Filho e Antnio Jos de Mattos Neto,

que aceitaram participar de minha banca de qualificao e contriburam de maneira

mpar para a qualidade da minha dissertao.

Aos meus colegas no PPGD com os quais tive a feliz oportunidade de

vivenciar experincias de vida e dividir as alegrias e as angstias comuns aqueles

que se lanam na jornada do saber.

Muito obrigada.

RESUMO

A atuao do poder judicirio para efetividade dos direitos sociais uma questo

relevante, sendo objeto de debate tanto no meio jurdico quanto no poltico. O tema

aqui tratado ganha maior relevncia em virtude do crescimento do papel judicirio

como guardio da Constituio Federal e, consequentemente, dos direitos

fundamentais previstos na Carta Constitucional. inegvel que atrelado

efetividade dos direitos sociais est o incremento do gasto pblico para a realizao

desses direitos, chamados de direitos prestacionais, garantidos pela Constituio,

que necessitam de prestaes positivas do Estado. Diante desse panorama, mostra-

se importante situar os direitos sociais no direito internacional, a fim que se perceba

a real dimenso desses direitos no mbito global. Ser estudado o papel do

judicirio na efetivao dos direitos sociais, analisando-se os elementos fticos e

jurdicos que podem ser levados em considerao pelo julgador na sua aplicao no

caso concreto como a reserva do possvel, o mnimo existencial, o oramento

pblico e a chamada teoria dos custos dos direitos. Ser analisada ainda a questo

da legitimidade e da possibilidade de se impor limites a essa atuao jurisdicional no

controle das polticas pblicas criadas pelos demais poderes, fundamentando-se o

posicionamento aqui adotado na teoria da justia distributiva e na democracia

constitucional. Por fim, ser abordada a racionalidade da deciso judicial e a teoria

da integridade formulada por Dworkin para embasar o estudo ora desenvolvido.

Sero objeto de anlise ainda as decises atuais do Supremo Tribunal Federal

acerca da temtica abordada.

Palavras-chave: Direitos fundamentais sociais. Poder Judicirio. Efetividade. Polticas Pblicas. Controle judicial.

ABSTRACT

The role of the judiciary for effective social rights is an issue, the subject of much

debate in the legal environment and politically. The hereof theme gains greater

relevance due to the growth of the judicial role as guardian of the Constitution and

hence of fundamental rights provided in the Constitutional Charter. It is undeniable

that tied the effectiveness of social rights is the increase in public spending for the

realization of these rights, called rights of provide, guaranteed by the Constitution

that require positive state benefits. Against this background, proves important to

situate social rights in international law in order to realize that the real dimension of

these rights at the global level. We will study the role of the judiciary in attaining

social rights, analyzing the factual and legal elements that can be taken into

consideration by the judge in its application in this case as the reserve as possible,

the existential minimum, the public budget and the theory of the cost of rights. Still it

will be considered the question of legitimacy and ability to impose limits on this legal

action in the control of public policies created by other powers, the positioning

adopted here in the theory of distributive justice and constitutional democracy.

Finally, the rationality of judicial decision and the theory of integrity formulated by

Dworkin to support the study now developed will be addressed. Will be analyzed

further the current decisions of the Supreme Court about the theme.

Keywords: Fundamental Social Rights. Effectiveness. Public Policy. Judicial Control.

SUMRIO

1 INTRODUO.....................................................................................

9

2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS.................... 15

2.1 Contextualizao Histrica.............................................................. 15

2.2 Diferena entre os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais................................................................................... 17

2.3 A dignidade da Pessoa Humana..................................................... 19

2.4 Direitos Humanos e a Constituio de 1988.................................. 24

2.5 Os Direitos Fundamentais............................................................... 27

2.5.1 Caractersticas dos Direitos Fundamentais........................................ 27

2.6 Classificao dos Direitos Fundamentais........................................... 29

2.6.1 Direitos fundamentais de defesa........................................................ 29

2.6.2 Direitos fundamentais de prestao................................................... 30

2.7 Direitos fundamentais sociais......................................................... 32

2.8 Os direitos sociais e a Constituio de 1988................................. 34

3 ELEMENTOS TERICOS E FTICOS CONDICIONADORES EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS.......................................... 39

3.1 O mnimo existencial........................................................................ 39

3.2 A reserva do possvel....................................................................... 44

3.3 A posio do Supremo Tribunal Federal acerca do mnimo existencial e a clusula da reserva do possvel............................ 48

3.4 Custos financeiros dos direitos prestacionais............................ 57

3.5 O oramento pblico e os direitos sociais.................................. 60

4 A QUESTO DA LEGITIMIDADE DO PODER JUDICIRIO....................................................................................... 65

4.1 A separao de poderes.................................................................. 65

4.1.2 A legitimidade democrtica............................................................. 69

4.2 A Justia Distributiva....................................................................... 74

4.3 A racionalidade jurdica................................................................... 77

4.4 O Direito como integridade.............................................................. 82

4.5 Os limites da interveno judicial na efetivao dos direitos sociais apresentados pela doutrina ptria..................................... 88

4.6 A posio do Supremo Tribunal Federal acerca do tema............ 91

5 CONSIDERAES FINAIS............................................................... 97

REFERNCIAS.................................................................................. 104

9

1 INTRODUO

Na ltima dcada no Brasil houve um aumento significativo da demanda por

justia por parte da sociedade brasileira e a ascenso institucional do Poder

Judicirio provocou uma intensa judicializao das relaes polticas e sociais, que

passaram a ter nos tribunais a sua instncia decisria final. Podem ser tomados de

exemplo os seguintes casos recentes que foram decididos pelos tribunais

superiores: o uso das clulas tronco para pesquisa e tratamentos mdicos, a

legitimidade da interrupo da gestao em certas hipteses de inviabilidade fetal e

o reconhecimento da unio estvel homoafetiva como unidade familiar.

Se num primeiro momento os direitos sociais eram considerados apenas

como normas programticas previstas na Constituio Federal, sendo raras as

intervenes judiciais nesta seara, em nome da preservao do princpio da

separao de poderes, hoje o quadro se modificou significativamente. Atualmente,

so inmeras as decises, tanto nas esferas federal quanto estadual, garantindo a

aplicabilidade desses direitos, seja individualmente ou em prol da coletividade.

Diante do agigantamento das demandas sociais no Pas, o poder judicirio

acabou por evoluir o seu entendimento com relao eficcia dos direitos sociais,

como expresso dos direitos fundamentais, apresentando-se a via judicial como um

forte instrumento colocado disposio dos cidados brasileiros em prol da defesa

dos direitos individuais e sociais, visando a observncia do mnimo existencial e a

garantia de uma vida digna.

De outra banda, o debate judicial, pela sua prpria natureza, permite o

crescimento da democracia, uma vez que trazendo para discusso temas caros

sociedade, como o direito de greve, direito ao aborto e outros, amplia o espao de

discusso democrtica, uma vez que exige certo grau de racionalidade s propostas

colidentes.

Contudo, a questo da judicializao das polticas pblicas, entendida como

a possibilidade do controle das polticas pblicas pelo Poder Judicirio vem

rendendo grandes discusses no meio doutrinrio e jurisprudencial, com severas

crticas expanso da jurisdio constitucional e a sua legitimidade para intervir no

carter discricionrio do administrador pblico com relao s polticas pblicas.

O crescente impacto financeiro no oramento pblico gerado por aes que

demandam a efetivao de direitos sociais, notadamente o direito sade e

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educao, tem gerado crticas que questionam a legitimidade do poder judicirio

para determinar gastos pblicos em questes de polticas pblicas, atrelada ainda

falta de capacidade tcnica dos juzes para controlar as polticas pblicas.

Embora neste trabalho defenda o entendimento doutrinrio acerca da

possibilidade de o Poder Judicirio conhecer e atuar em conflitos que envolvam

direitos sociais, garantindo-se maior efetividade ao texto constitucional, parte da

doutrina entende necessria a existncia de parmetros mnimos processuais e

materiais para que se possa dar efetividade aos direitos fundamentais sociais

consagrados na Constituio, sem prejuzo discricionariedade da administrao

pblica para a alocao de recursos atinentes as polticas pblicas.

Para ns, a atuao do poder judicirio na efetividade dos direitos individuais

e sociais mostra-se relevante e essencial na realizao dos direitos fundamentais

sociais, sendo um espao de participao poltica da sociedade civil para a

conduo das polticas pblicas para os direitos sociais, principalmente para os

menos favorecidos, que podem se valer da jurisdio para ter garantido direito no

prestado ou prestado de forma deficiente pela administrao pblica.

Todavia, h vrias dificuldades polticas e econmicas que devem ser

enfrentadas para que se possa traar os limites para a atuao positiva do poder

judicirio em prol da efetivao dos direitos sociais, ressaltando-se que as decises

judiciais devem estar amparadas nas disposies constitucionais (sem esquecer dos

tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatrio em matria de direitos

econmicos, sociais e culturais).

Uma das questes principais colocadas pelos opositores do entendimento

acima esposado que os recursos disponveis so finitos, o que traz tona a

discusso sobre a pertinncia da atuao do poder judicirio na efetivao dos

direitos sociais, sobretudo na rea de sade pblica, mormente em situaes

pontuais em que o direito vida de um indivduo que dependa de tratamento

mdicos caros e no disponveis na rede pblica pode por em risco o atendimento

aos demais cidados.

A questo do controle das polticas pblicas envolve tambm a demarcao

do limite adequado entre matria constitucional e matria a ser submetida ao

processo poltico majoritrio. Se, de um lado, a Constituio protege os direitos

fundamentais e determina a adoo de polticas pblicas aptas a realiz-los -

cabendo ao poder judicirio zelar pela observncia do texto constitucional, por outro,

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atribuiu as decises sobre o investimento de recursos ao executivo e legislativo, o

que dificulta o desenvolvimento de parmetros objetivos de controle de polticas

pblicas.

Outro ponto nevrlgico acerca do tema a amplssima cartela de direitos

individuais e sociais brasileiro, no se limitando aos direitos expressos na

Constituio Federal, no havendo qualquer limite para a atuao jurisdicional. Por

isso, parte da doutrina questiona a legitimidade do poder judicirio em interferir nas

decises do poder executivo na alocao dos recursos pblicos para determinados

fins sociais.

O fato de os membros do poder judicirio no serem eleitos pelo povo,

tampouco responderem politicamente perante o povo, suscita, por alguns, a falta de

legitimidade para interferir na realizao das polticas pblicas estatais.

Necessrio ainda ponderar acerca da possibilidade da tutela efetiva dos

direitos fundamentais em contraponto ao princpio da separao dos poderes, pois

h doutrinadores que defendem a superioridade hierrquica do princpio da

separao dos poderes em detrimento dos direitos fundamentais em caso de

coliso, rejeitando qualquer interveno do poder judicirio nas questes que

envolvam direitos prestacionais.

A ausncia de regulamentao ampla acerca da possibilidade de

interveno do poder judicirio na realizao das polticas pblicas do Estado, no

antevendo o ordenamento jurdico ptrio todas as necessidades de direito material,

bem como a precariedade dos estudos doutrinrios acerca do tema, no podem

representar obstculos para a concretizao dos direitos fundamentais, dentre os

quais os direitos sociais, que por sua relevncia, devem ser viabilizados pelo Estado

da forma mais efetiva possvel.

A doutrina divergente em relao ao tema, no havendo consenso sobre

os limites da atuao do poder judicirio na efetivao dos direitos sociais,

principalmente, por fora da diversidade de direitos abarcados pela Constituio de

1988, o que dificulta a harmonizao dos posicionamentos doutrinrios.

Ponto importante da problemtica apresentada identificar se os direitos

sociais podem ser objeto da tutela jurisdicional. No caso positivo, deve-se perquirir

os limites da atuao jurisdicional, ante a escassez de recursos materiais do Estado

para a concretizao plena dos direitos fundamentais, principalmente nos entes

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federativos que tenham diminuta dotao oramentria, bem como outras limitaes

colocadas pela doutrina ptria e estrangeira.

A discusso do tema ora proposto mostra-se relevante diante do avano da

atuao do poder judicirio na efetivao dos direitos fundamentais sociais, o que

implica na necessidade de se determinar se existem limites para essa atuao e

quais seriam esses limites, bem como discutir se o poder judicirio possui

legitimao para faz-lo.

Assim, a questo posta em debate se justifica pela crescente demanda da

populao brasileira pelos direitos sociais, que acaba desembocando no poder

judicirio quando a administrao pblica no atende as demandas dos indivduos, o

que de fato gera uma sobrecarga financeira aos cofres pblicos pelos custos,

inerente aos cumprimentos de direitos garantidos pelas decises judiciais

concessivas de direitos sociais, o que torna necessrio estudo mais aprofundado do

tema, a fim de evitar decises temerrias ao equilbrio financeiro do Estado.

Registre-se que o conceito de poltica pblica que ser adotado neste

trabalho o que entende como polticas pblicas o conjunto organizado de atos e

programas de ao governamental para a realizao de objetivos socialmente

relevantes e politicamente determinados para a realizao dos direitos sociais

insculpidos na Constituio brasileira e os objetivos do Estado Democrtico de

Direito.

Dessa forma, nossa proposta identificar e analisar os aspectos

fundamentais dos direitos sociais, bem como a possibilidade de interveno do

poder judicirio com vistas eficcia desses direitos no Brasil, identificando e

destacando os entraves prticos e doutrinrios na sua realizao, bem como

apresentar os parmetros colocados pela doutrina para sua atuao, com o intuito

de contribuir com a discusso doutrinria acerca do tema.

Para tanto ser necessrio analisar a evoluo dos Direitos Humanos como

fator que influenciou no resgate do princpio da dignidade da pessoa humana, que

serve de fundamento ordem jurdica ptria, permitindo a realizao dos direitos

sociais pelas polticas pblicas, e a possibilidade de interveno do poder judicirio

para a garantia dos direitos sociais no Brasil, identificando os limites prticos e

doutrinrios na sua realizao.

Na busca de respostas adequadas ao tema proposto ser utilizado como

referencial terico a teoria da integridade de Dworkin, que entende o Direito como

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um exerccio interpretativo, defendendo a coerncia de princpios como exigncias

morais, sendo as proposies jurdicas verdadeiras se constam ou derivam dos

princpios da equidade e devido processo legal, que oferecem a melhor

interpretao construtiva da prtica jurdica da comunidade.

No caso especificamente brasileiro, ainda reduzido o nmero de

demandas judiciais relacionadas implementao dos direitos sociais e econmicos

a exceo do direito sade e educao, sendo em sua grande maioria aes

individuais.

A interveno judicial na efetivao dos direitos sociais perpassa o problema

da prpria legitimao do poder judicirio e a discusso acerca da necessidade de

imposio de limites para essa atuao, a fim de preservar o Estado Democrtico de

Direito.

Repise-se que a judicializao dos direitos sociais questo ainda

controvertida na doutrina ptria e aliengena, existindo teorias divergentes acerca da

possibilidade interveno do poder judicirio no controle das polticas pblicas com o

fim de garantir efetividade aos direitos sociais.

A metodologia a ser utilizada ser a pesquisa jurdico-terica, valendo-se de

consultas a textos tericos, legislao, doutrina e jurisprudncia do Brasil,

tendo em vista que a pesquisa destina-se primordialmente a encontrar soluo para

os parmetros e/ou limites para a atuao jurisdicional na realizao das polticas

pblicas pelos entes federativos, com enfoque na garantia da realizao do princpio

da dignidade da pessoa humana no mbito nacional, funcionando os elementos de

direito como exemplos e possveis fontes de inspirao na criao de um modelo

eficaz para a resoluo do problema.

No primeiro captulo sero abordados os principais pontos do processo de

evoluo dos direitos humanos como a distino dos direitos humanos e direitos

fundamentais, trazendo os principais aspectos dos direitos fundamentais sociais, a

fim de permitir o adequado entendimento do objeto de discusso do presente

trabalho.

Em seguida sero discutidos os principais elementos condicionadores dos

direitos sociais elencados pela doutrina nacional para efetividade dos direitos

fundamentais sociais, atendo-se a trs questes que so temas recorrentes: a teoria

da reserva do possvel, o mnimo existencial, os custos financeiros dos direitos

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prestacionais, uma vez que servem de argumentos para aqueles que defendem a

impossibilidade de controle de polticas pblicas pelo Poder Judicirio.

Aps traar o panorama geral acerca do tema, sendo vencidos os chamados

elementos condicionadores dos direitos sociais, ser travada a discusso que

entendo ser muito importante para a concluso do trabalho que a chamada

judicializao dos direitos sociais, sendo abordada a questo da legitimidade do

poder judicirio no controle de polticas pblicas relativas aos direitos sociais e

posio da jurisprudncia ptria dos tribunais superiores acerca do tema.

A ltima parte da dissertao abordar o objetivo central da discusso que

a definio do papel do poder judicirio na efetivao dos direitos sociais, a

importncia da racionalidade jurdica para a correta delimitao dos parmetros da

interveno judicial na efetivao dos direitos sociais, sendo discutido o carter

discricionrio do administrador pblico na escolha das polticas pblicas,

fundamentando-se a posio aqui adotada na teoria da justia distributiva e na

democracia constitucional. Por fim, ser abordada a racionalidade da deciso judicial

e a teoria da integridade formulada por Dworkin para embasar o posicionamento

apresentado neste trabalho.

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2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 Contextualizao Histrica

As doutrinas ptria e aliengena citam alguns documentos que so

entendidos como antecedentes dos direitos humanos, como a Carta Magna das

Liberdades, declarao solene assinada pelo rei Joo Sem-terra, de 1215 (Magna

Charter Libertatum), firmada entre o rei, os bares e bispos ingleses com o propsito

de reconhecer e garantir certas liberdades a uma parcela da sociedade, como a

liberdade eclesistica para designao de autoridades, permitindo o reconhecimento

ao longo dos sculos dos direitos fundamentais pelas constituies nacionais.

A declarao de direitos dos povos da Virgnia, de 1776, foi o primeiro

documento a positivar os direitos naturais do homem, sinalizando o incio de uma

nova fase para os direitos humanos, marcando a transio entre as liberdades legais

inglesas para os direitos fundamentais constitucionais (SARLET, 2012).

O primeiro documento a afirmar os princpios democrticos na histria da

poltica moderna foi a declarao de independncia dos Estados Unidos. A sua

importncia histrica reside no fato de ser o primeiro documento poltico que

reconhece, ao lado da soberania popular, a existncia de direitos inerentes a todo o

ser humano, independentemente de caractersticas individuais (COMPARATO,

2013).

A declarao de direitos do homem e do cidado de 1789, nascida da

revoluo burguesa na Frana, tambm um documento de suma importncia para

entender a evoluo dos direitos fundamentais, uma vez que reconheceu a todo ser

humano direitos naturais imprescritveis e inalienveis.

Comparato (2013) ressalta que as declaraes de direitos norte-americanas

e francesa significam a emancipao do indivduo em face dos grupos sociais aos

quais pertenciam como a famlia, o cl ou as organizaes religiosas, porm

tornaram o indivduo mais vulnervel aos reveses da vida.

Contudo, os direitos humanos como direitos reconhecidos

internacionalmente ganharam propulso aps a constatao das atrocidades

cometidas contra a raa humana pelo nazismo nas dcadas de 30 e 401. Aps a II

1 O legado da segunda Guerra mundial apresentava o Estado como grande violador de direitos humanos. O perodo do ps-guerra buscou reconstruir a noo de respeito pessoa humana,

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Guerra Mundial o ideal de tutela global dignidade da pessoa humana passou a

figurar na pauta de discusso dos lderes mundiais em mbito internacional

inicialmente. Declaraes e Pactos sobre os direitos humanos foram firmados com a

criao de cortes internacionais, a fim de impedir que o mundo protagonizasse

novas histrias de holocausto.

Comparato (2013) assinala que a Declarao Universal dos Direitos

Humanos de 1948 e a Conveno Internacional sobre preveno e punio do crime

de genocdio (aprovada um dia antes da primeira) ambos documentos elaborados

pela Organizao das Naes Unidas - constituem os marcos inaugurais da nova

fase histrica que se encontra em desenvolvimento na atualidade.

Com a declarao de 1948, tem incio a terceira e ltima fase, na qual a afirmao dos direitos , ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido que os destinatrios dos princpios nela contidos no so mais apenas os cidados deste ou daquele Estado, mas de todos os homens; positiva no sentido de que pe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem devero ser no mais apenas proclamados ou apenas idealmente conhecidos, porm efetivamente protegidos at mesmo contra o Estado que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do cidado tero se transformado, realmente, positivamente, em direitos do homem. (BOBBIO, 1992, p. 30).

A Declarao Universal dos Direitos Humanos o documento internacional

de maior importncia para a afirmao dos Direitos Humanos, que embora tenha a

forma de simples recomendao feita pela Assembleia Geral da Organizao das

Naes Unidas (ONU), tem reconhecida sua fora vinculante pelos Estados

membros.

A criao da ONU bem como a edio da Declarao dos Direitos Humanos

de 1948 e outros pactos internacionais que se seguiram, assinados e ratificados por

um nmero cada vez crescente de Estados ampliou a discusso acerca da proteo

e promoo dos direitos humanos para os Estados Nacionais, os quais tambm

passaram a se preocupar internamente com a proteo dos novos direitos.

Outros dois documentos de suma importncia para a expanso dos Direitos

Humanos so os chamados Pactos Internacionais de Direitos Civis e Polticos e o

Pacto de Direito Econmico, Social e Cultural, ambos datados de 1966.

Ressalte-se que a Comisso de Direitos Humanos da ONU tentou elaborar

um pacto internacional nico que englobaria todos os direitos protegidos e

delimitando o conceito de soberania nacional perante aos direitos humanos. A concepo contempornea dos direitos humanos inicia o seu processo de consolidao (UGATTI, 2008, 75).

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reconhecidos pela ordem internacional. Mas, a ausncia de entendimento entre os

pases que compunham a Organizao das Aes Unidas poca impediu a

realizao de um nico documento. A divergncia entre os pases resultou na

confeco de dois tratados: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e o Pacto pelos

Direitos Sociais e Econmicos, ambos de 1966.

Os direitos humanos, em sua concepo contempornea, so definidos pela

Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948. Sobre este ponto afirma

Piovesan que:

Essa concepo fruto da internacionalizao dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na histria, surgindo, a partir do ps-guerra como resposta s atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. nesse cenrio que se vislumbra o esforo de reconstruo dos direitos humanos, como paradigma e referencial tico a orientar a ordem internacional contempornea. Com efeito, no momento que os seres humanos se tornam suprfluos e descartveis, no momento em que vige a lgica da destruio, em que cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessria a reconstruo dos direitos humanos, como paradigma tico capaz de restaurar a lgica do razovel (PIOVESAN, 2007, p. 8-9).

Dessa forma, o movimento de internacionalizao dos direitos humanos se

fortalece e se expande, o que se observa pelo crescente nmero de documentos

internacionais e a criao de mecanismos de promoo, defesa e controle para

efetivao dos direitos humanos.

2.2 Diferena entre os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais

No tocante aos termos direitos humanos e direitos fundamentais,

considerando a existncia de pontos de contato entre os dois termos, deve-se

entender que os direitos fundamentais so sempre direitos humanos, contudo nem

todos direitos humanos podem ser abrangidos pelo termo direitos fundamentais.

A sua diferenciao se mostra necessria, uma vez que no sero utilizados

como sinnimos, tendo cada um o seu conceito definido e delineado como ficar

claro a seguir.

Embora o entendimento adotado acerca do tema objeto dessa dissertao

no se filie ao positivismo jurdico, deve-se destacar a distino trazida por Bobbio

para afastar o conceito de direitos humanos do direito natural, afirmando que os

direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como

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direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realizao

como direitos positivos universais (BOBBIO, 1992, p. 30).

Silva (1998, p. 182) sustenta que

no qualificativo fundamentais acha-se a indicao de que se trata de situaes jurdicas sem as quais a pessoa humana no se realiza, no convive e, s vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, no apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.

Sarlet (2012) assevera que no existe identidade necessria entre o elenco

dos direitos que compem os direitos humanos e os direitos fundamentais, nem

entre o direito constitucional dos diversos Estados e o direito internacional nem entre

as Constituies, ficando muitas vezes o catlogo de direitos fundamentais

constitucionais aqum ou alm dos direitos humanos contemplados nos documentos

internacionais. Para Sarlet os termos direitos humanos e direitos fundamentais no

possuem o mesmo significado, sendo que os direitos fundamentais nascem e se

desenvolvem com as Constituies nas quais foram reconhecidos e assegurados

(SARLET, 2012, p. 35).

A locuo direitos fundamentais reservada aos direitos relacionados com

posies bsicas das pessoas, inseridos nos diplomas normativos de cada Estado.

So direitos vigentes numa ordem jurdica concreta, garantidos e limitados no

espao e no tempo, uma vez que so assegurados na medida em que cada Estado

os consagra (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009). Brito Filho (2013) adota a

distino entre os direitos humanos e direitos fundamentais, sendo os direitos

fundamentais como os direitos humanos reconhecidos pelo Estado como regras

constitucionais escritas como necessrios dignidade da pessoa humana2.

A positivao dos direitos fundamentais significa a incorporao na ordem

jurdica positiva de direitos considerados naturais e inalienveis, porm os direitos

fundamentais devem ser alados a fonte fundamental do direito que so as normas

constitucionais, permitindo a proteo dos direitos fundamentais mediante controle

de constitucionalidade dos atos normativos desses direitos. (CANOTILHO, 2003).

2 Para Brito Filho (2013, p. 27) No obstante, para ns, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais tenham definies baseadas na necessidade de seu reconhecimento como forma de garantir a dignidade da pessoa humana, elas diferem no sentido de que nem sempre haver coincidncia entre ambos, pois, alm de ser comum que, no plano interno dos Estados, nem todos os direitos humanos consagrados no plano internacional sejam reconhecidos, comum tambm que alguns direitos s sejam reconhecidos como fundamental em algum ou em alguns Estados.

19

Num primeiro momento apenas os direitos civis e polticos foram

reconhecidos como direitos humanos. Os direitos econmicos, sociais e culturais

somente foram reconhecidos como parte da cartela de direitos fundamentais aps a

afirmao dos direitos civis e polticos. Por ltimo, estendeu-se o conceito de direitos

humanos ao direito ao meio ambiente, direito ao patrimnio comum da humanidade.

Assim, os direitos fundamentais so apresentados pela doutrina como um

conjunto de direitos formados pelos direitos individuais, polticos e sociais, bem

como os direitos de fraternidade plasmados nas Constituies.

Os direitos fundamentais individuais so associados aos direitos de

liberdade, o livre exerccio dos direitos civis, livre da atuao estatal. Os direitos

polticos representam os direitos associados livre participao dos indivduos na

vida pblica do Estado, sendo corolrio do princpio da igualdade. Por ltimo, os

direitos sociais, econmicos e culturais compem a ideia de direitos fundamentais, a

serem respeitados e fomentados pelo Estado a fim de garantir a existncia plena

dos indivduos.

Mendes; Coelho e Branco (2009, p. 273) resumem o papel dos direitos

fundamentais na sociedade ocidental contempornea afirmando que:

os direitos fundamentais assumem posio de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relao entre Estado e indivduo e se reconhece que o indivduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relao ao indivduo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar da necessidade dos cidados.

2.3 A dignidade da Pessoa Humana

O valor da dignidade da pessoa humana o principal fundamento que

justifica o respeito e a promoo dos direitos humanos, bem como os direitos

fundamentais positivados pelos Estados.

O ponto de partida para a concepo contempornea da dignidade da

pessoa humana como condio inerente ao prprio ser humano a concepo

defendida por Kant, que sustenta que todo ser humano um fim em si mesmo. Para

ele o homem, e duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si

mesmo, no como meio para uso arbitrrio para essa ou aquela vontade. Pelo

contrrio, em todas as suas aes, tanto aquelas que se dirigem a outros seres

20

racionais, ele tem que ser considerado simultaneamente como um fim (KANT, 1980,

p. 134 -135).

Em outra passagem importante em defesa do tema, Kant (1980) afirma que

a qualidade peculiar e insubstituvel da pessoa humana a dignidade, que est

acima de todo preo, o que no permite sua troca por outro equivalente. Difere das

demais coisas do mundo s quais podem ser atribudas um preo e, portanto,

permitem equivalentes. Dessa forma, todo o ser humano tem dignidade e no um

preo, e como os tm as coisas que podem ser substitudas por outras equivalentes.

Sarlet conceitua a dignidade da pessoa humana como:

A qualidade intrnseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado e da Comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel, alm de propiciar e promover a sua participao ativa e co-responsvel nos destinos da prpria existncia e da vida em comunho com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2012, p. 73).

A dignidade da pessoa humana serve de fundamento aos documentos

internacionais que regulam os direitos humanos, a exemplo da Declarao Universal

dos Direitos Humanos de 1948, que dispe no artigo 1 que todos os seres

humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razo e

conscincia, devem agir uns com os outros em esprito e fraternidade.

Dessa forma, a dignidade da pessoa humana no um direito a ser

concedido pelo ordenamento jurdico, mas atributo inerente a qualquer ser humano,

sendo que o seu reconhecimento pelo Estado significa o dever de respeito, fomento

e proteo dos direitos fundamentais que se alicercem direta ou indiretamente no

seu preceito.

O conceito de dignidade humana pode ser expresso em um feixe de condies concretas, que devem estar (ou no podem estar) presentes para que a dignidade da pessoa humana seja garantida. Sobre essas condies possvel haver consenso. Assim, a dignidade humana no garantida se o indivduo humilhado, estigmatizado, perseguido ou proscrito. Acerca de outras condies possvel haver controvrsias, como, por exemplo no caso de se saber se o desemprego de longa durao de algum que tenha vontade de trabalhar - continua (ALEXY, 2015, p. 355).3

3 Alexy discute a dignidade da pessoa humana quando analisa o artigo 1, 1 da Constituio Alem, que dispe que a dignidade da pessoa humana inviolvel.

21

Deve ser ressaltado que o princpio da dignidade da pessoa humana atua

simultaneamente como limite dos direitos e limite dos limites, isto , barreira contra a

atividade restritiva dos direitos fundamentais (SARLET, 2012). Duarte (2012, p. 56),

defende que a dignidade da pessoa humana deve funcionar, como, pelo menos, um

dos critrios identificadores do contedo material (ou fundamentalidade material) dos

direitos materialmente constitucionais, ainda que no formalmente constitucionais.

O princpio da dignidade possui um papel hermenutico importante,

funcionando como diretriz para a interpretao das normas de todo ordenamento

jurdico, em razo de ser fundamento basilar da ordem constitucional (SARMENTO,

2002).

No mesmo sentido, Sarlet (2011) diz que a dignidade da pessoa humana

princpio fundamental da ordem constitucional brasileira, dotada de plena

normatividade, sendo referencial no mbito do processo hermenutico.

Os direitos fundamentais, sociais e econmicos, tanto os direitos de

liberdade e de justia se originam da dignidade humana, sendo que sua prpria

natureza de princpio fundamental faz com que a dignidade humana se irradie para

toda a Constituio e imante todo o ordenamento jurdico (TORRES, 2003, p.14).

A ideia da pessoa como um fim em si mesma implica no s o dever

negativo de no prejudicar um terceiro, mas tambm implica o dever positivo de

obrar no sentido de favorecer a felicidade do outro. Constitui a melhor justificativa do

reconhecimento dos direitos e das liberdades individuais, bem como dos direitos

humanos para a realizao de polticas pblicas de contedo econmico e social,

como enunciados na Declarao Universal dos Direitos Humanos (COMPARATO,

2013).

A dignidade da pessoa humana tem sido reconhecida pelos principais

instrumentos internacionais e textos nacionais como ponto fundamental dos Direitos

Humanos.

Porm, deve ser ressaltado que a dignidade da pessoa humana deveria

prescindir de previso legal, no sendo um direito a ser concedido pelo ordenamento

jurdico, mas atributo inerente a qualquer ser humano, sendo que o seu

reconhecimento pelo Estado significa o dever de respeito, fomento e proteo dos

direitos fundamentais que se alicercem direta ou indiretamente no seu preceito.

22

Para Brito Filho (2008) os direitos humanos podem ser entendidos como o

conjunto de direitos necessrios garantia da dignidade da pessoa humana. Dessa

forma, quando determinado direito for entendido como essencial para o respeito

dignidade humana, dever ser considerando parte integrante dos direitos

fundamentais. Defende ainda que a dignidade funciona ao mesmo tempo como um

m e como um freio. Como o primeiro para atrair todos os direitos indispensveis a

uma vida digna do ser humano, e como o segundo para impedir a tentao, s

vezes desenfreada de alguns, de querer incluir todos os direitos como direitos

humanos (BRITO FILHO, 2008, p. 33).

No Brasil, a Constituio de 1988 reconheceu expressamente a dignidade

da pessoa humana como preceito axiolgico, despontando entre os fundamentos do

Estado, pelo que se extrai da leitura do inciso III do art. 1. Outros artigos da carta

constitucional tambm se referem dignidade da pessoa humana, podendo ser

citados o artigo 170, artigo 226, 7, artigo 227 e artigo 230.

Nessa linha de pensamento, o constituinte da Constituio de 1988 elegeu o

valor da dignidade um dos fundamentos do Estado democrtico de direito, servindo

como parmetro que deve nortear a interpretao das normas constitucionais e as

aes do Estado em prol de uma sociedade solidria e igualitria.

O direito fundamental da dignidade da pessoa humana e o mnimo

existencial possuem dimenso ampliada nos pases pobres ou com imensa

desigualdade social, como o Brasil, pela prpria necessidade da proteo estatal ser

mais efetiva na garantia aos bens essenciais sobrevivncia das populaes.

O princpio da dignidade da pessoa humana exerce mltiplas funes no

ordenamento jurdico ptrio, em face de sua importncia dentro do sistema

constitucional vigente, bem como pela sua fluidez estrutural, sendo a primeira delas

a legitimao tica da Constituio (SARMENTO, 2002). Diz ainda que sob outro

aspecto, o princpio da dignidade possui uma dimenso negativa, uma vez que

concebido como limite inafastvel para a atuao estatal. Assevera ainda que

lcito afirmar que todo e qualquer ato normativo, administrativo ou jurisdicional

atentatrio dignidade da pessoa humana ser invlido e desprovido de eficcia

jurdica, ainda que no colida frontalmente com qualquer dispositivo constitucional

(SARMENTO, 2002, p. 71).

Seguindo o mesmo raciocnio, Sarlet (2012) defende que o Estado deve se

abster de praticar atos atentatrios ao princpio da dignidade da pessoa humana,

23

bem como dever promov-la por meio de condutas ativas, garantindo o mnimo

existencial para cada ser humano em seu territrio.

Diante dos argumentos acima esposados fica clara a posio do constituinte

de 1988, que elegeu o princpio da dignidade da pessoa humana como fundamento

do Estado brasileiro, sendo pressuposto filosfico de nosso regime jurdico, o que

pressupe a existncia de eficcia positiva de seu enunciado normativo, no

podendo ser ignoradas pelo administrador pblico, sob pena de afronta

Constituio.

Contudo, o princpio da dignidade da pessoa humana deve ser

compatibilizado com os demais princpios constitucionais, uma vez que no existem

princpios absolutos.

Alexy (2015) ressalva que o princpio da dignidade da pessoa comporta

graus de realizao, embora em determinadas situaes preceda a todos os outros

princpios. Isso no lhe confere carter absoluto, significando apenas que quase no

existem razes jurdico-constitucionais que no se deixem de comover para uma

relao de preferncia em favor da dignidade da pessoa4.

Barcelos resume que a dignidade da pessoa humana princpio

fundamental da ordem jurdica, vetor de interpretao constitucional, mas deve ser

harmonizado com os demais princpios e regras constitucionais5. Isso se deve em

parte pelo princpio da unidade da Constituio, mas tambm porque os demais

princpios constitucionais so partes de uma estrutura cujo objetivo final a

realizao da dignidade da pessoa humana (BARCELLOS, 2008).

4 Alexy diz que a razo da impresso que a dignidade tem carter absoluto reside no fato de que a norma ser tratada em parte como regra e em parte como princpio, e tambm no fato de existir, para o caso da dignidade, um amplo grupo de condies de precedncia que conferem altssimo grau de certeza de que, sob essas condies o princpio da dignidade humana prevalecer contra os princpios colidentes (2015, p. 112) O autor prossegue seu pensamento: [...] necessrio que se pressuponha a existncia de duas normas da dignidade humana: uma regra da dignidade humana e um princpio da dignidade humana. No o princpio que absoluto, mas a regra, a qual, em razo de sua abertura semntica, no necessita de limitao em face de alguma relao de preferncia. O princpio da dignidade pode ser realizado em diferentes medidas. 5 Torres argumenta que Com a mudana do paradigma jurdico e tico trazido pelo Estado Democrtico de Direito, houve profunda modificao na problemtica da dignidade humana: a) j no princpio hierarquicamente superior, pois se abre a ponderao; b) dela se irradiam no s os direitos fundamentais, mas os sociais. De feito. Coube a Alexy chamar a ateno para a necessidade de se colocar a dignidade humana no mesmo conjunto de outros princpios fundamentais e sujeit-la ao jogo da ponderao diante de interesses emergentes, em virtude de sua caracterstica de princpio e regra (TORRES, 2003, p. 14).

24

2.4 Direitos Humanos e a Constituio de 1988

No Brasil o reconhecimento dos direitos humanos, pela adeso e ratificao

aos instrumentos internacionais se deu de forma gradativa, refletindo a situao

poltica do pas em dado momento histrico.

A redemocratizao do Pas na dcada de 1980, bem como com a

Assembleia Constituinte de 1988 marcaram a mudana da trajetria do

reconhecimento dos direitos humanos no ordenamento jurdico brasileiro.

A Constituio de 1988 inaugura uma nova fase de um regime democrtico

de direito no Pas, garantindo os direitos fundamentais e a proteo aos grupos de

vulnerveis, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e

pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil (PIOVESAN,

2009, p. 24).

O Estado Democrtico de Direito brasileiro adotou como seus fundamentos

a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do

trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo poltico (art. 1, incisos I a V, CF/88), bem

como estabeleceu seus objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa

e solidria; garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a

marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de

todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas

de discriminao (art. 3, incisos I a IV, CF/88), o que demonstra a predisposio do

constituinte em transformar o Pas em uma sociedade plural, onde o respeito e a

promoo dos direitos humanos tm um papel fundamental.

Vale ressaltar que a Constituio fixou entre os princpios que regem o pas

em suas relaes internacionais: prevalncia dos direitos humanos, a

autodeterminao dos povos, a no-interveno e a defesa da paz (artigo 4, incisos

II, III, IV e VI).

Resta evidenciado o carter democrtico da nova carta constitucional do

pas, que preza reconhecimento dos direitos humanos. Pode-se afirmar que a Carta

de 1988, elege o valor da dignidade humana como valor essencial, que lhe d

25

unidade de sentido. Isto , o valor da dignidade informa a ordem constitucional de

1988, imprimindo-lhe uma feio particular6. (PIOVESAN, 2009, p. 28).

A nova ordem poltica iniciada aps a redemocratizao pode ser notada na

adoo e ratificao dos instrumentos internacionais dos direitos humanos, a

exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos e do Pacto

Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, adotados pela ONU em

06.12.1966 e 16.12.1966, respectivamente, que somente foram ratificados pelo

Brasil em 24.01.1992.

Outro ponto relevante a ser mencionado a importncia destinada aos

instrumentos internacionais que reconhecem os direitos humanos, assegurando a

Constituio de 1988 que os direitos e garantias expressos nesta Constituio no

excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte ( 2, art.

5 da CF/88), havendo posterior incluso pela Emenda Constitucional n. 45 do

seguinte texto: Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos

que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas

constitucionais ( 3, art. 5 da CF/88)7.

Dessa forma, o que se observa que houve um alargamento dos direitos

humanos reconhecidos pelos Estado brasileiro com reconhecimento dos direitos

previstos nos tratados internacionais ratificados pelo Pas, o que sem dvida um

avano para a promoo dos direitos humanos.

No caso dos direitos humanos que no esto includos no rol dos direitos

fundamentais elencados pelo texto constitucional, merece ser mencionada a posio

do Supremo Tribunal Federal, que fixou entendimento que, tratados e convenes

internacionais esto numa denominada supralegalidade na hierarquia das normas,

estando acima das normas infraconstitucionais, mas abaixo das normas

6 Ainda para Flvia Piovesan: [...] o valor da dignidade da pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, vm a constituir os princpios constitucionais que incorporam as exigncias de justia e de outros valores ticos, conferindo suporte axiolgico a todo o sistema jurdico brasileiro.Com efeito, a busca do Texto em resguardar o valor da dignidade humana redimensionada, na medida em que, enfaticamente, privilegia a temtica dos direitos fundamentais. (PIOVESAN, 2009, p. 32). 7 Embora exista uma discusso doutrinria acerca da natureza jurdica dos tratados de direitos internacionais no Direito ptrio, esse ponto no ser objeto de estudo do presente trabalho. Sobre o tema Piovesan, Flvia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. 10 edio. So Paulo: Saraiva, 2009.

26

constitucionais, quando no obedecido o que dispe o 3, artigo 5 da Constituio

de 1988. Assim, os tratados internacionais somente tero status de norma

constitucional quando aprovados por cada casa do Congresso Nacional em qurum

qualificado.

Neste sentido firme a posio do STF quando trata da proibio de priso

civil por dvida (exceto em caso de alimentos), nos termos da ratificao do Pacto de

San Jose da Costa Rica8.

Embora existam autores9 que discordem da posio adotada pelo Supremo

Tribunal Federal neste tema, a maior parte dos autores segue o entendimento

esposado.

8 DIREITO PROCESSUAL. HABEAS CORPUS. PRISO CIVIL DO DEPOSITRIO INFIEL. PACTO DE SO JOS DA COSTA RICA. ALTERAO DE ORIENTAO DA JURISPRUDNCIA DO STF. CONCESSO DA ORDEM. 1. A matria em julgamento neste habeas corpus envolve a temtica da (in)admissibilidade da priso civil do depositrio infiel no ordenamento jurdico brasileiro no perodo posterior ao ingresso do Pacto de So Jos da Costa Rica no direito nacional. 2. H o carter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Polticos (art. 11) e da Conveno Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San Jos da Costa Rica (art. 7, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos reservado o lugar especfico no ordenamento jurdico, estando abaixo da Constituio, porm acima da legislao interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicvel a legislao infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificao. 3. Na atualidade a nica hiptese de priso civil, no Direito brasileiro, a do devedor de alimentos. O art. 5, 2, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput do mesmo dispositivo no excluem outros decorrentes do regime dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de So Jos da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em matria de direitos humanos, expressamente, s admite, no seu bojo, a possibilidade de priso civil do devedor de alimentos e, consequentemente, no admite mais a possibilidade de priso civil do depositrio infiel. 4. Habeas corpus concedido. (HC 95967, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 11/11/2008, DJe-227 DIVULG 27-11-2008 PUBLIC 28-11-2008 EMENT VOL-02343-02 PP-00407 RTJ VOL-00208-03 PP-01202) 9 Novamente convm citar Flvia Piovesan que entende que corrobora-se o entendimento de que os tratados internacionais ratificados anteriormente ao mencionado pargrafo (3 do art. 5 da CF/88), ou seja, anteriormente Emenda Constitucional n 45/2004, tem hierarquia constitucional, situando-se como normas material e formalmente constitucionais (PIOVESAN, 2009, p. 73). Enquanto os tratados internacionais de proteo dos direitos humanos apresentam status constitucional e aplicao imediata (por foa do art. 5, 1 e 2, da Carta de 1988), os tratados tradicionais apresentam status infraconstitucional e aplicao no imediata (por fora do art. 102, III, b, da Carta de 1988 e da existncia de dispositivo constitucional que lhes assegure aplicao imediata (PIOVESAN, 2009, p. 92).

27

2.5 Os direitos fundamentais

2.5.1 Caractersticas dos Direitos Fundamentais

Para a identificao adequada dos direitos que esto inseridos no conceito

de direitos fundamentais a doutrina elenca algumas caractersticas essenciais para

tais direitos, sendo que as caractersticas relacionadas tambm so aplicveis ao

sistema internacional dos direitos humanos.

A universalidade atribuda aos direitos humanos no uma unanimidade

entre aqueles que se dedicam ao estudo do tema pois, para alguns autores, eles

somente trariam sentido para as sociedades ocidentais. O reconhecimento dos

direitos humanos como universais foi fruto de intenso debate entre as naes que

compunham a Organizao das Naes Unidas poca da assinatura da

Declarao Universal dos Direitos Humanos e continua a ter importncia nos dias

atuais, razo pela qual a tese da universalidade no pode ser afastada.

O entendimento da universalidade desses direitos a posio adotada neste

trabalho, uma vez que se pauta na observncia da dignidade da pessoa humana,

independentemente da concepo particular de dada sociedade,

independentemente de suas particularidades sociais e culturais.

A universalidade dos direitos humanos pautada no art. XXVIII da

Declarao Universal dos Direitos Humanos ao afirmar que todos os homens tm

direito a uma ordem social e internacional, em que todos os direitos e liberdades

estabelecidos na presente Declarao possam ser plenamente realizados. Como

defende Paulo Bonavides:

A vinculao essencial dos direitos fundamentais liberdade e dignidade humana, enquanto valores histricos e filosficos, nos conduzir sem bice ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana. A universalidade se manifestou pela vez primeira, qual descoberta do racionalismo francs da Revoluo, por ensejo da celebre declarao dos direitos do homem de 1789. (BONAVIDES, 2007, p. 562).

O pensamento kantiano e o imperativo categrico10, que coloca o indivduo

como um fim em si mesmo, no podendo nenhum ser humano ser usado como

10 O imperativo categrico kantiano possui um carter procedimental. uma frmula para verificao da moralidade de uma ao, que depende da viabilidade de sua universalidade. Segundo Kant, algumas leis moralmente possveis so tambm moralmente necessrias, dando a elas o status de

28

instrumento de outrem para o alcance de uma finalidade, fundamenta a ideia da

dignidade da pessoa humana e a universalidade dos direitos humanos.

A defesa da universalidade dos direitos humanos na teoria kantiana parte da ideia de que as pessoas so iguais em sua dignidade e, como tal, justo que todas as pessoas possam reclamar os mesmos direitos. (HERNANDEZ, 2013, p. 191).11

A universalidade, portanto, reflete a defesa da prpria condio humana de

existncia, que conduz ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana como

fundamento dos direitos humanos.

Contudo, Hesse (2009) ressalva que a diversidade das concepes politicas

de cada Estado depende, por exemplo, de fatores extrajurdicos como os

comportamentos sociais, a cultura e histria do povo, o que reflete nas diferentes

formas de garantir os direitos fundamentais, embora exista conformidade em seu

contedo e interpretao, como ocorre no mbito das democracias ocidentais. Para

Hesse toda essa diversidade evidencia que a validade universal dos direitos

fundamentais no supe a uniformidade.

Outra caracterstica comum aos direitos fundamentais a sua historicidade,

isto , so direitos fruto da evoluo das sociedades e de seus anseios polticos e

sociais. No surgiram todos no mesmo momento histrico, evoluindo de acordo com

as mudanas da sociedade, somente fazendo sentido o reconhecimento de

determinados direitos fundamentais num determinado contexto histrico.

A indivisibilidade dos direitos humanos introduzida pela Declarao

Universal dos Direitos Humanos ao conjugar os direitos civis e polticos com os

direitos econmicos, sociais e culturais, inovando ao afirmar a sua igualdade em

importncia e interdependncia (PIOVESAN, 2009).

A inalienabilidade dos direitos fundamentais significa dizer que no podero

ser disponibilizados ou preteridos pelo mero fato do titular do direito consentir, uma

dever. Assim, pode-se afirmar que o imperativo uma regra prtica em virtude da qual uma ao se converte em necessria. (HERNANDEZ, 2013, p. 189). 11 O primeiro ponto indispensvel ao entendimento desta questo a distino entre Direito e Moral em Kant, uma vez que ao distinguir e, simultaneamente, submeter o Direito Moral, Kant faz com que se chegue a um complexo arranjo terico que caracteriza os direitos humanos como direitos morais. Outro ponto importante a questo do imperativo categrico. Ao elaborar uma maneira de verificar a moralidade e a universalidade de uma ao, Kant fornece aos direitos humanos um fundamento, tendo em vista que ao submeter uma ao a tal frmula garante-se a condio de autonomia, a qual conduz ao princpio da dignidade humana, sustentculo da ideia de direitos humanos. (HERNANDEZ, 2013, p. 186).

29

vez que essa caracterstica se fundamenta na dignidade da pessoa humana. Os

direitos fundamentais tambm no so passveis de renncia por parte do indivduo,

em qualquer situao. So, portanto, irrenunciveis.

2.6 Classificao dos Direitos Fundamentais

Diante da multiplicidade de funes de desempenhadas pelos direitos

fundamentais, as classificaes apontadas pela doutrina so importantes para

facilitar a sistematizao do assunto servindo como forma de aclarar a sua

compreenso. Embora existam vrias classificaes dos direitos fundamentais na

doutrina especializada12, neste trabalho apenas ser dada nfase distino entre

os direitos de defesa, normalmente vinculados aos direitos de liberdade, e os direitos

de prestao13, vinculados aos direitos sociais, uma vez que esta abordagem ser

importante para limitar o objeto de estudo.

2.6.1 Direitos fundamentais de defesa

Os direitos fundamentais de defesa se traduzem na obrigatoriedade de

absteno do Estado (leia-se rgos estatais) em prticas que inibem o exerccio de

um conjunto de aes, protegendo o indivduo de qualquer ato abusivo por parte do

Estado. Tais direitos podem ser imediatamente usufrudos pelos titulares,

independentemente de qualquer interveno do poder judicirio, tendo, portanto,

plena eficcia, a exemplo da maioria dos direitos civis e polticos.

A doutrina contempornea sustenta que os direitos de defesa so

verdadeiros direitos assegurados com aplicabilidade imediata e eficcia plena.

A primeira funo dos direitos fundamentais a defesa da pessoa humana e

da sua dignidade perante os poderes do Estado e de outros esquemas polticos

coercitivos, cumprindo a funo de direitos de defesa dos cidados sob uma dupla 12 Podem ser citadas as seguintes classificaes: direitos fundamentais formalmente constitucionais, direitos fundamentais materialmente constitucionais, direitos fundamentais positivos e direitos fundamentais negativos. Deve-se mencionar ainda a teoria geracional desenvolvida por Karel Vasak que divide os direitos fundamentais em direitos de primeira, segunda e terceira gerao. 13 Importante registrar a ressalva feita por Sarlet ao afirmar que h de se levar em conta a circunstncia de que vrias normas definidoras de direitos fundamentais exercem simultaneamente duas ou mais funes, sendo, neste sentido, inevitvel alguma superposio [...]. , de destacar-se, ainda, que a incluso dos direitos fundamentais em um ou outro grupo se baseia no critrio de predominncia do elemento defensivo ou prestacional, j que os direitos de defesa podem, por vezes, assumir uma dimenso prestacional e vice-versa. (SARLET, 2012, p. 166).

30

perspectiva. A primeira se constitui das normas de competncia negativa para

poderes pblicos, proibindo de forma fundamental sua ingerncia na esfera jurdica

individual. A segunda implica o poder de exercer positivamente direitos

fundamentais e de exigir omisses dos poderes pblicos a fim de evitar agresses

lesivas aos jurisdicionados (CANOTILHO, 2003)14.

Alexy (2015) denomina os direitos de defesa como direitos a ao negativa,

sendo composto por trs grupos: direitos a que o Estado no impea ou dificulte

determinadas aes do titular do direito, direitos a que o Estado no afete

determinadas caractersticas ou situaes do titular do direito e ainda direitos a que

o Estado no elimine determinadas posies jurdicas do titular do direito.

Mendes; Coelho e Branco (2009) ressaltam que os direitos de defesa

impedem as interferncias do Estado no mbito de liberdade dos indivduos,

constituindo-se, sob esse prisma, normas de competncia negativa para os poderes

pblicos. Explicam que os direitos de defesa tambm podem proteger os bens

jurdicos, a exemplo do direito vida, contra as aes do Estado que os afetem.

Apresentam ainda como efeito do direito fundamental de defesa a proibio de que o

Estado elimine posies jurdicas concretas, a exemplo da proibio de extino de

direito de propriedade de quem adquiriu de acordo com as normas em vigor.

No direito ptrio, os direitos de defesa esto contidos no art. 5 da

Constituio de 1988, a exemplo do direito de liberdade de expresso artstica,

cientfica e intelectual (inciso IX); o sigilo de comunicaes (inciso XII); a liberdade

de locomoo (inciso XV), bem como a liberdade de associao para fins lcitos

(inciso XVII). Os direitos de defesa so, via de regra, de eficcia plena, isto , podem

ser aplicadas imediatamente, independentemente de norma regulamentadora.

2.6.2 Direitos fundamentais de prestao

Os direitos fundamentais de prestao so aqueles que exigem do Estado

uma prestao positiva que permita o efetivo exerccio dessa parcela dos direitos

fundamentais pelos indivduos, seja jurdica ou material, a fim de permitir o pleno

14 Canotilho defende a existncia de quatro funes dos direitos fundamentais: funo de defesa ou de liberdade, funo de prestao social, funo de proteo perante terceiros e funo de no discriminao.

31

gozo dos direitos. Aqui, enquadra-se uma gama expressiva de direitos sociais que

necessitam da atuao estatal para que alcancem a sua plenitude de exerccio, a

exemplo do direito sade e moradia.

Alexy divide o direito a prestaes em dois grupos: direitos prestacionais em

sentido amplo, que englobam os direitos proteo e direitos organizao e

procedimento, e direitos prestao em sentido estrito.

Tratando acerca dos direitos a prestao em sentido estrito, Alexy sustenta

que esses direitos se referem normalmente a aes positivas fticas, que poderiam

ser realizados por particulares. Entretanto, h direitos prestao que requerem

aes positivas normativas por meio da atuao do Estado para sua normatizao.

Para Alexy (2015, p. 499) os direitos de prestao em sentido estrito so

direitos do indivduo, em face do Estado, a algo que o indivduo, se dispusesse de

meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado,

poderia obter de particulares, exemplificando que quando se fala em direitos

fundamentais sociais, como, por exemplo, direito assistncia sade, ao trabalho,

moradia e educao, quer-se primariamente fazer meno a direitos de

prestao em sentido estrito.

Mendes; Coelho e Branco (2009) dividem o direito de prestao15 em direito

prestao jurdica e direitos a prestao material em face da ao do Estado.

Sero direitos prestao jurdica quando os direitos fundamentais esgotem seu

objeto na satisfao de uma prestao pela normao pelo Estado do bem jurdico

protegido como direito fundamental. Essa prestao jurdica pode consistir na

emisso de normas jurdicas penais ou de normas de organizao e procedimento.

(MENDES; COELHO; BRANCO, p. 292).

Os direitos a prestaes materiais so os direitos prestao em sentido

estrito, resultando da concepo social do Estado, concebidos com o propsito de

atenuar as desigualdades de fato da sociedade, visando ensejar que a libertao

das necessidades aproveite ao gozo da liberdade efetiva por um maior nmero de

indivduos (MENDES; COELHO; BRANCO, p. 293).

15 Os autores partem dessa distino de direito a prestao jurdica e a prestao material porque a circunstncia de os direitos a prestao traduzirem-se numa ao positiva do Estado conferem-lhes peculiaridades estruturais, em termos de nveis de densidade normativa, que os distinguem dos direitos de defesa, no somente quanto a finalidade, mas, igualmente, quanto ao seu modo de exerccio e a eficcia. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 292).

32

Os direitos a prestao em sentido estrito16 normalmente carecem de

interveno do legislador para produzir seus efeitos plenos, embora existam

algumas normas constitucionais que contenham direitos a prestao material com

alta densidade normativa, permitindo a imediata exigncia do indivduo a sua

satisfao, independentemente de atuao do legislativo.

Parte dos direitos fundamentais sociais enquadrada no grupo de direitos

de defesa por sua estrutura normativa e funo, no havendo maiores dificuldades

na sua aplicabilidade imediata. Mas, a maior parcela de direitos fundamentais

sociais est includa entre os direitos fundamentais sociais que demandam uma

prestao positiva do Estado, o que inclui a necessidade de sua concretizao

legislativa atravs de normas regulamentadoras para garantia do exerccio pleno

desses direitos.

Diferentemente dos direitos de defesa, os direitos prestao normalmente

carecem de eficcia em caso de ausncia de concretizao legislativa, uma vez que

eles dependem da existncia de recursos pblicos e de condies materiais para a

satisfao objetiva de todas as prestaes relacionadas ao equilbrio material na

distribuio e redistribuio dos recursos pblicos (CALIENDO, 2013).

2.7 Direitos fundamentais sociais

Os direitos fundamentais sociais tiveram reconhecimento mais tardio do que

os direitos de igualdade e de liberdade, que foram o embrio para o reconhecimento

dos direitos fundamentais.

Embora a pauta da constitucionalizao do social remonte o sculo XVIII, a

questo ressurge de maneira vigorosa com as revolues ocorridas no perodo entre

as duas grandes guerras. Esse movimento se estende at a Revoluo Espanhola

de 1931, florescendo a denominao de constitucionalismo social que se refere ao

movimento de incorporao das clusulas programticas de contedo econmico e

social nos textos constitucionais (HERRERA, 2008).

16 Para Mendes, Coelho e Branco os direitos a prestao notabilizam-se por uma decisiva dimenso econmica. So satisfeitos segundo conjunturas econmicas, de acordo com a disponibilidade do momento, na forma prevista pelo legislador infraconstitucional. Diz-se que esses direitos esto submetidos reserva do possvel. So traduzidos em medidas prticas tanto quanto permitam as disponibilidades materiais do Estado (MENDES; COELHO; BRANCO, p. 294.)

33

O reconhecimento dos direitos sociais como parcela integrante dos direitos

humanos foi decorrente das lutas encampadas pela classe trabalhadora, que

buscava o amparo estatal para combater a explorao desenfreada do trabalho ps

revoluo industrial, visando melhores condies de vida, de moradia, de trabalho e

outros direitos.

O reconhecimento dos direitos humanos de carter econmico e social foi o principal benefcio que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do sculo XIX. O titular desses direitos, com efeito, no o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. o conjunto de grupos sociais esmagados pela misria, a doena, a fome e a marginalizao. (COMPARATO, 2013, p. 66).

Os direitos sociais que albergam os direitos econmicos, sociais e culturais,

so, portanto, de formao mais recente remontando Constituio Mexicana de

1917 e Constituio de Weimar de 1919. Sua consagrao marca a superao de

uma perspectiva estritamente liberal, em que passa a considerar o homem para

alm de sua condio individual, impondo aos Estados deveres de prestaes

positivas, visando melhoria da qualidade de vida e promoo da igualdade

material.

No conceito de Jos Afonso da Silva, os direitos sociais

so prestaes positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condies de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualizao de situaes desiguais. Vale como pressuposto de gozo dos direitos individuais na medida em que criam condies materiais mais propicias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condio mais compatvel com o exerccio efetivo da liberdade (SILVA, 2003, p, 199).

A dignidade da pessoa humana o fundamento primordial para o

reconhecimento dos direitos sociais como direitos humanos (e fundamentais), a

legitimao dos direitos sociais se funda, como j explicitado por Jos Afonso da

Silva, pela busca de uma igualdade material que possa proporcionar melhoria nas

condies de vida do indivduo, permitindo ainda a participao plena na vida

poltica e social do Estado17.

17 Para Alexy: a questo acerca de quais os direitos fundamentais sociais os indivduos tm uma questo de sopesamento entre princpios. De um lado est, sobretudo, o princpio da liberdade ftica. Do outro lado esto os princpios formais da competncia decisria do legislador democraticamente legitimado e o princpio da separao de poderes, alm dos princpios materiais, que dizem respeito sobretudo liberdade jurdica de terceiros, mas tambm a outros direitos fundamentais sociais e a

34

Desse modo, os direitos sociais, econmicos e culturais, sejam na sua

condio positiva (direitos de prestao) ou negativa (direitos de defesa), constituem

exigncia e concretizao da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

No h dvida que os direitos sociais, econmicos e culturais, na ordem

internacional e nacional, compem a cartela de direitos humanos e so

considerados direitos fundamentais da pessoa humana.

2.8 Os direitos sociais e a Constituio de 1988

O processo de redemocratizao do Pas e a Constituio de 1988 marcam

uma mudana no tratamento dado aos direitos humanos em nvel internacional, uma

vez que a partir deles o Pas ratificou os mais importantes tratados internacionais de

proteo dos direitos humanos, notadamente no mbito dos direitos sociais e

econmicos o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de

1966, bem como o Protocolo Adicional de San Salvador em 1996 (PIOVESAN,

2010).

Ao lado do reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais

no mbito internacional, a Constituio de 1988 estabeleceu um grande avano no

reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, albergando os direitos sociais

dentro da cartela dos direitos fundamentais, encontrando-se a maioria dos

dispositivos que tratam da matria dispostos entre os direitos e garantias

fundamentais elencadas no art. 5, bem como materialmente, uma vez que

congregam valores da dignidade da pessoa humana.

Outra caracterstica que assevera o prisma comunitrio do texto

constitucional condiz com o fato de possuir clusulas gerais e conceitos

indeterminados, que implicam o referencial de Constituio aberta, como j dito,

evitando o engessamento de seus preceitos, enfatizando valores sociais, culturais e

ticos da sociedade num determinado contexto histrico (SARMENTO, 2008, p.

566).

Gotti (2012) sustenta que a Constituio de 1988 delineou um regime

jurdico prprio dos direitos fundamentais, norteado por uma principiologia e lgica

interesses coletivos (ALEXY, 2015, p. 512). Pelo modelo de ponderao proposto por Alexy, "o indivduo tem um direito definitivo a prestao quando o princpio da liberdade ftica tem um peso maior que os princpios formais e materiais colidentes, considerados em conjunto. Esse o caso dos direitos mnimos (ALEXY, 2015, p. 517).

35

prprias, diante da clara preocupao em conferir especial proteo s normas

definidoras dos direitos fundamentais.

A observncia, a prtica e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolvel contextura formal, premissa indeclinvel de uma construo material slida desses direitos, formam hoje o pressuposto mais importante com o que fazer eficaz a dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organizao democrtica da sociedade e do poder (BONAVIDES, 2007, p. 642).

Diz Sarlet (2012) que trs caractersticas atribudas de forma consensual

Constituio de 1988 podem ser estendidas ao ttulo dos direitos fundamentais,

nomeadamente seu carter analtico, seu pluralismo e forte cunho programtico e

dirigente. Diz que seu carter plural advm do seu carter compromissrio, uma vez

que o constituinte optou por acolher e conciliar posies e reivindicaes

discordantes, como resultado das fortes presses polticas.

Para Bonavides (2007), sem a concretizao dos direitos sociais no ser

possvel alcanar uma sociedade livre, justa e solidria, elencada no artigo 3 como

um dos objetivos da Constituio de 1988.

Faz parte da discusso acerca dos direitos fundamentais sociais a questo

da eficcia das normas jurdicas que preveem a sua realizao.

Hesse (2009) coloca que a problemtica que envolve os direitos

fundamentais sociais explicada pela estrutura distinta dos direitos de liberdade e

igualdade, uma vez que tais direitos no se tornam efetivos pelo respeito ou amparo

legal, mas requerem aes do Estado tendentes a realizar o programa neles contido.

Canotilho (2008, p. 100) exemplifica a problemtica relativa aos direitos

sociais, afirmando que paira sobre a dogmtica e sobre a teoria jurdica dos direitos

econmicos, sociais e culturais a carga metodolgica da vagueza, indeterminao e

impressionismo que a teoria da cincia vem apelidando, em termos caricaturais, sob

a designao de fuzzysmo ou metodologia fuzzy. Continua o autor afirmando que

em toda a sua radicalidade, a censura do fuzzysmo, lanada aos juristas significa

basicamente que eles no sabem do que esto a falar quando abordam os

complexos problemas dos direitos econmicos, sociais e culturais (CANOTILHO,

(2008, p. 100).

Parte da doutrina entende que apenas os direitos civis e polticos so

autoaplicveis, enquanto os direitos sociais, econmicos e culturais so

programticos, dependendo de implementao progressiva por parte do Estado,

36

uma vez que somente podero ser postos disposio dos indivduos mediante a

prvia existncia de recursos econmicos.

No caso brasileiro, a Constituio de 1988 atribuiu eficcia imediata s

normas definidoras de direitos fundamentais, conforme dispe o artigo 5, 1

abrangendo todos os direitos fundamentais, dentre os quais direitos sociais,

econmicos e culturais.

Repise-se que no que concerne a nossa carta constitucional, os direitos

sociais so considerados direitos fundamentais, uma vez que formalmente se

encontram dispostos, em sua maioria, entre os direitos e garantias fundamentais

elencadas no art. 5, bem como materialmente, uma vez que congregam valores da

dignidade da pessoa humana.

Embora a disposio constitucional clara no sentido de garantir ampla

efetividade aos direitos sociais, a doutrina divergente acerca do tema, diante da

necessidade de recursos econmicos para efetivao desses direitos, sendo que

parcela da doutrina entende que os direitos socais assumem a feio de normas

programticas, dependentes de polticas pblicas para sua efetivao, rechaando

ainda a possibilidade de interveno do poder judicirio frente violao desses

direitos pelo ente pblico.

Neste ponto Grau (2010), ao defender a aplicabilidade imediata de todas as

normas definidoras dos direitos fundamentais vai mais alm ao afirmar que o Poder

Judicirio o ltimo aplicador do direito e na ausncia de correta aplicao do direito

pela administrao pblica ou pelo poder legislativo, o judicirio poder ser acionado

com a finalidade de aplic-lo. Assim, o preceito imediatamente aplicvel vincula

tambm o judicirio que dever decidir pela imposio de sua pronta efetivao

quando negado o direito pela administrao pblica, pelo legislativo ou pelos

particulares.

O poder judicirio, ento, estar, de uma banda, vinculado pelo dever de conferir efetividade imediata ao preceito. De outra, estar autorizado a inovar no ordenamento jurdico suprindo, em cada cidado que tomar, eventuais lacunas que, no estivesse o preceito dotado de aplicabilidade imediata, atuariam como obstculo a sua exequibilidade. (GRAU, 2010, p. 319).

O Administrador pblico est vinculado Constituio e s normas

constitucionais para implementao das polticas pblicas relativas ordem social

plasmada na Constituio, o que significa dizer que est vinculado a sua finalidade

37

que a justia social. O administrador no tem discricionariedade18 para determinar

a convenincia e oportunidade na implementao das polticas pblicas

discriminadas pelo prprio texto constitucional, pois no lhe cabe essa deliberao,

uma vez que j determinada pelo constituinte (FRISCHEISEN, 2000).

Defendendo ponto de vista intermedirio, Sarlet (2012) entende que a

melhor interpretao do artigo 5, 1 da Constituio de 1988, parte da premissa

que se trata de norma de carter principiolgico, sendo uma espcie de mandado de

otimizao que estabelece aos rgos estatais o dever de reconhecerem maior

eficcia aos direitos fundamentais19. O postulado da aplicabilidade imediata no

pode ser resolvido na lgica do tudo ou nada, dependendo o seu alcance do exame

do caso concreto (SARLET, 2012).

Para Sarlet (2012, p. 281 os direitos prestacionais, por menor que seja a

sua densidade normativa ao nvel da Constituio, sempre estaro aptos a gerar um

mnimo de efeitos jurdicos, sendo, na medida dessa aptido, diretamente

aplicveis. Ressalta ainda que inexiste norma Constitucional destituda de eficcia

e aplicabilidade (SARLET, 2012, p. 281).

Canotilho (2008) entende que alguns direitos sociais, econmicos e culturais

no so verdadeiros direitos, mas, apenas, poltica ou economia, sustentando que a

consagrao acoplada de direitos sociais e polticas pblicas sociais pode originar

srias questes no plano de concretizao desses direitos, a exemplo do

reconhecimento do direito ao ensino, acoplado a uma poltica de democratizao do

ensino baseada na gratuidade progressiva do ensino em vrios graus. Dessa forma,

No h dvida que a consagrao concreta de polticas implica um mandato constitucional de otimizao dos direitos, atravs de uma poltica pr-determinada, com a consequente restrio de liberdade conformadora do legislador e a entrada do controle das polticas pblicas no circuito da constitucionalidade (ou inconstitucionalidade). (CANOTILHO, 2008, p. 130).

18 Bandeira de Mello (2000, p. 48), conceitua discricionariedade como: a margem de liberdade que remanesa ao administrador para eleger, segundo critrios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos, dois comportamentos cabveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a soluo mais adequada satisfao da finalidade legal, quando por forca da fluidez das expresses da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela no possa se extrair objetivamente, uma soluo unvoca para a situao vertente. 19 Jos Afonso da Silva entende que o valor do que dispe o 1 do artigo 5 da CF: Em primeiro lugar, significa que elas so aplicveis at onde possam, at onde as instituies ofeream condies para o seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o poder judicirio, sendo invocado a propsito de uma situao concreta nelas garantida, no pode deixa-las de aplic-las, conferindo ao interessado o direito proclamado, segundo as instituies existentes. (SILVA, 2007, p. 165).

38

Embora a questo seja controvertida na doutrina, inquestionvel a

importncia da disposio constitucional do art. 5, 1, que garante aos direitos

fundamentais posio de destaque no ordenamento jurdico ptrio, devendo ser

observado tanto pelo poder pblico quanto pelos particulares, com o fim ltimo de

garantia da dignidade da pessoa humana.

Assim, embora haja divergncia doutrinria a respeito da fundamentalidade

dos direitos sociais, faz-se necessria sua salvaguarda pelo Poder Judicirio em

ambas as dimenses (positiva e negativa) com respeito ao princpio da dignidade

humana e satisfao das prestaes vinculadas ao mnimo existencial.

39

3 ELEMENTOS TERICOS E FTICOS CONDICIONADORES EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS

3.1 O mnimo existencial

Retomando a ideia de dignidade da pessoa humana, inserido no seu

conceito est o que a doutrina denomina de mnimo existencial. A ideia do mnimo

existencial20 tem sido proposta por parte da doutrina como forma de superao de

vrias dificuldades inerentes ao contedo do princpio da dignidade da pessoa

humana, na medida em que procura representar, dentro dos direitos sociais,

econmicos e culturais, um subconjunto menor minimizando o problema dos

custos, mais preciso e que seja efetivamente exigvel do Estado (BARCELLOS,

2007).

Dizendo de outro modo, o mnimo existencial serve de fundamento para a

garantia da dignidade da pessoa humana, com a finalidade de obrigar ao Estado a

prestar uma parcela mnima dos direitos fundamentais sociais em que pese a

alegao de ausncia de recursos pblicos.

A noo de mnimo existencial foi originada na Alemanha em decorrncia da

necessidade de proteo e promoo dos direitos sociais, uma vez que a

Constituio de 1949 limitava a proteger apenas os direitos civis e polticos. Alexy

destaca que a Constituio da Alemanha, embora no trate claramente a proteo

aos direitos sociais, permite identificar pontos de apoio que permitem uma

interpretao no sentido de proteo desses direitos21.

20 Na definio de Ingo Wolfgang Sarlet: todo o conjunto de prestaes materiais indispensveis para assegurar a cada pessoa uma