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1 O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um mapeamento da área 1 Lucas Carvalho (UFF) Antonio Brasil Jr. (UFRJ) Numa definição minimalista, podemos arriscar dizendo que a área de pesquisa em “Pensamento Social no Brasil” se debruça sobre as interpretações da sociedade brasileira e seus produtores, bem como sobre os seus efeitos no processo social. Se uma certa visão estereotipada sobre a área ainda vê nesta especialização acadêmica um foco talvez excessivo em um conjunto muito limitado de textos e autores da primeira metade do século XX aparentemente vistos como em si mesmos “importantes” –, a verdade é que, nas duas últimas décadas, ampliou-se e se diversificou consideravelmente não só o que se entende por “interpretações da sociedade brasileira” mas também o que se considera “intelectual”. O que levou, como não poderia deixar de ser, a um debate bastante sofisticado, feito em diálogo com outras áreas de pesquisa, a respeito de novos modos de se pensar a relação entre texto e contexto, sobre o alargamento da noção da própria noção de intelectual e sobre o efeito (variado e em múltiplos sentidos) de suas ideias na modelagem de relações sociais. E, atravessando tudo isso, questões mais amplas, como a crise do Estado-nação e a consequente problematização do “brasileiro” ou “no Brasil” e a consciência mais aguda quanto ao caráter estruturante da ordem racial e de gênero, por exemplo, vem suscitando ângulos novos para a leitura dos textos “clássicos” ou criando o contexto para a discussão franca de textos pouco lidos ou até então quase desconhecidos. Trata-se, pois, de uma área de pesquisa que vem sabendo se renovar e fazer frente aos desafios teóricos, metodológicos e empíricos postos pelas ciências sociais contemporâneas. Um deles diz respeito ao grande volume de dados e informações (big data) sobre a vida social produzido e transmitido em escala até pouco tempo atrás inacessível aos cientistas sociais. Grandes organizações públicas ou privadas geram diariamente volumes cada vez maiores de informações sobre os mais variados aspectos da vida social, o que vem suscitando o surgimento e a popularização crescente de ferramentas computacionais que permitem tratar esse material empírico através da anotação e da codificação de textos. A Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), a primeira Biblioteca Virtual de uma área de pesquisa integralmente dedicada às ciências humanas, tem estimulado a discussão sobre o tema e o treinamento de seus 1 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT32 - Pensamento Social no Brasil.

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O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um

mapeamento da área1

Lucas Carvalho (UFF)

Antonio Brasil Jr. (UFRJ)

Numa definição minimalista, podemos arriscar dizendo que a área de pesquisa em

“Pensamento Social no Brasil” se debruça sobre as interpretações da sociedade brasileira e seus

produtores, bem como sobre os seus efeitos no processo social. Se uma certa visão estereotipada

sobre a área ainda vê nesta especialização acadêmica um foco talvez excessivo em um conjunto

muito limitado de textos e autores da primeira metade do século XX – aparentemente vistos

como em si mesmos “importantes” –, a verdade é que, nas duas últimas décadas, ampliou-se e

se diversificou consideravelmente não só o que se entende por “interpretações da sociedade

brasileira” mas também o que se considera “intelectual”. O que levou, como não poderia deixar

de ser, a um debate bastante sofisticado, feito em diálogo com outras áreas de pesquisa, a

respeito de novos modos de se pensar a relação entre texto e contexto, sobre o alargamento da

noção da própria noção de intelectual e sobre o efeito (variado e em múltiplos sentidos) de suas

ideias na modelagem de relações sociais. E, atravessando tudo isso, questões mais amplas,

como a crise do Estado-nação – e a consequente problematização do “brasileiro” ou “no Brasil”

– e a consciência mais aguda quanto ao caráter estruturante da ordem racial e de gênero, por

exemplo, vem suscitando ângulos novos para a leitura dos textos “clássicos” ou criando o

contexto para a discussão franca de textos pouco lidos ou até então quase desconhecidos.

Trata-se, pois, de uma área de pesquisa que vem sabendo se renovar e fazer frente aos

desafios teóricos, metodológicos e empíricos postos pelas ciências sociais contemporâneas. Um

deles diz respeito ao grande volume de dados e informações (big data) sobre a vida social

produzido e transmitido em escala até pouco tempo atrás inacessível aos cientistas sociais.

Grandes organizações públicas ou privadas geram diariamente volumes cada vez maiores de

informações sobre os mais variados aspectos da vida social, o que vem suscitando o surgimento

e a popularização crescente de ferramentas computacionais que permitem tratar esse material

empírico através da anotação e da codificação de textos. A Biblioteca Virtual do Pensamento

Social (BVPS), a primeira Biblioteca Virtual de uma área de pesquisa integralmente dedicada

às ciências humanas, tem estimulado a discussão sobre o tema e o treinamento de seus

1 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT32 - Pensamento Social no Brasil.

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integrantes no uso desses softwares. Isso porque, em razão do crescimento da área de

pensamento social nos últimos anos, a BVPS tem feito o esforço de pensar crítica e

reflexivamente a sua produção, de modo a reforçar ou criar laços com outras áreas, internas e

externas às ciências sociais, e de incorporar novos debates temáticos e metodológicos. Como a

criação, manutenção e diversificação de uma área nem sempre é um processo dirigido

conscientemente, dependendo em grande medida das redes de relações entre instituições,

pesquisadores e pesquisas, o exercício de análise de sua produção contribui não somente para

formarmos uma visão mais ampla sobre ela, mas também para acompanharmos mudanças,

permanências e tendências. Portanto, a “auto-observação”, quer dizer, o esforço de pensar a

partir de “dentro” questões caras à determinada área, torna-se um importante elemento, junto a

outros, de renovação e diversificação científica, ao fornecer dados e perspectivas que as práticas

rotineiras de pesquisa não permitem. Além disso, torna-se um aspecto fundamental e

constitutivo da própria manutenção do acervo da BVPS, já que ele permite que se mapeie a

produção presente da área de pensamento social no Brasil e assim crie uma espécie de memória

científica.

Os dados que apresentaremos ao longo deste trabalho permitirão exemplificar algumas

possibilidades de ligar o big data ao “pensamento social no Brasil”, vale explicitar o que talvez

seja um pressuposto teórico-metodológico compartilhado: a “leitura distante” (distant reading),

na acepção dada por Franco Moretti ao termo (MORETTI, 2008). Levar a sério a concepção de

que a distância em relação ao texto pode ser uma condição do conhecimento na área de pesquisa

que é o campo por excelência da “leitura cerrada” ou “em profundidade” (close reading)

certamente parece provocador. Contudo, não se trata de traçar uma linha de ruptura ou muito

menos sugerir qualquer superioridade da leitura distante em relação aos protocolos mais

estabelecidos de pesquisa com textos. Pelo contrário, a leitura distante não está em posição de

concorrência com a leitura em profundidade, pois ela constrói um novo objeto de pesquisa, que

não possui qualquer comensurabilidade com os textos tomados individualmente. O que está em

jogo, diante da tarefa de pesquisar em conjunto mil, dez mil, cem mil ou mesmo um milhão de

textos não é a leitura exaustiva de cada um deles – decerto frustrante e impossível – mas buscar

estratégias para simplificá-los e codificá-los, permitindo o manejo de ferramentas de

visualização de dados e de mensuração estatística de seus conteúdos.

Aliás, a leitura distante não é somente um novo protocolo possível da pesquisa com

textos. Podemos dizer que formas de leitura distante passam cada vez mais a fazer parte do

estoque rotineiro de auto-observações recursivamente levado a cabo no processo social. Já há

certa literatura disponível que enquadra esse fenômeno nos marcos do chamado “capitalismo

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cognitivo” – uma forma de acumulação que precisaria produzir de modo crônico um grande

volume de dados –, ou nos termos de uma “audit culture”, que multiplicaria em todas as

organizações formas de avaliação e de medição de atividades, performances, condutas a partir

de uma lógica mais ampla de mercado. Para continuar no nosso exemplo do campo científico,

o volume de produção de artigos atualmente disponível vem exigindo formas de auto-

observação que possam lidar com esse universo complexo e potencialmente infinito de

informações – e os estudos bibliométricos e cientométricos emergem justamente para lidar com

esse problema. Que a forma preferencial de lidar com essa complexidade seja o fator de impacto

da produção científica – mesurada a partir de critérios sempre muito seletivos (e discutíveis) de

citações dos artigos – revela, é claro, um poderoso amálgama entre interesses comerciais dos

grandes publishers e das principais bases indexadoras, que se combina com a difusão das “audit

cultures” nos meios universitários de todo o mundo – amálgama este que reproduz de modo

perverso desigualdades entre instituições, disciplinas, regiões etc (VOGEL et al., 2014). No

entanto, não se trata simplesmente de se recusar essas formas de medições; pelo contrário,

recusar as formas de leitura distante implicaria renunciar às possibilidades de manejar – por

meio da codificação e da ultrassimplificação – o volume de conhecimento científico atualmente

disponíveis. Um caminho possível parece estar presente nos movimentos atualmente existentes

pelo “acesso aberto”, pelas “citações abertas” e pelos “dados abertos” dos artigos científicos,

bem como iniciativas como o “Manifesto de Leiden” por um uso responsável das métricas e

dos rankings científicos (HICKS et al., 2015). Esses movimentos pretendem dar mais

autonomia aos próprios cientistas ao democratizarem o acesso aos dados e às ferramentas

capazes de gerar uma leitura distante da produção científica existente.

A profusão de modos de auto-observação da sociedade por meio da leitura distante está

longe de ser privilégio do campo da ciência. Nas interações sociais atualmente remodeladas

pelas mídias sociais, por exemplo, popularizaram formas próprias de leitura distante, como os

trending topics e as hashtags, que permitem medir o volume de certos termos e fazer a ligação

entre os textos (postagens) que os compartilham. Num contexto de proliferação inaudita de

textos que circulam online, o uso de uma hashtag pode ser decisivo para criar ligações com

outros textos – provavelmente escritos por pessoas desconhecidas (e que continuarão a sê-lo) –

e, talvez, alguma ressonância em alguma discussão. Fenômenos aparentados emergem em todos

os campos da vida social.

Essa multiplicação de formas de leitura distante, que estão alterando os modos habituais

da reflexividade social, revela que os princípios de seleção cultural até pouco tempo atrás

“naturalizados” estão cedendo lugar a modos novos de seleção. A autoridade dos “especialistas”

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vem sendo deslocada por novos modos de codificação e de seleção das informações – por

exemplo: a distinção entre informação válida/inválida – que dependem da agregação de rastros

imensos de sinalizações (likes, dislikes, recomendações...) ou da atuação descentrada de

compartilhamentos entre pessoas ou ainda de formas concertadas de operações de bots e afins.

Não por acaso, vemos a simultaneidade das crises de representação na política, na credibilidade

dos veículos de mídia tradicionais, na crença na verdade científica etc.

O volume crescente de dados estruturados e semi-estruturados parece, enfim, colocar

novos desafios às ciências humanas, de forma geral, e ao pensamento social brasileiro, em

particular (ESPOSITO, 2019). Desafios inclusive de ordem teórica. Afinal, a complexidade das

relações internas a esses dados, que demandam forte investimento nas mais variadas técnicas e

tecnologias de big data, trazem informações que não seriam possíveis de serem observadas a

partir de outras perspectivas de análise mais tradicionais. Tamanha complexidade e variedade

no tratamento analítico exige, nos parece, tomar o grande volume de dados formados por

diferentes plataformas enquanto um sistema relativamente autônomo, cuja lógica de operação

não é estável – já que cada nova informação gera um novo reagrupamento dos elementos do

conjunto –, mas que, a um só tempo, consegue expressar processos societários e culturais

dinâmicos (GONZÁLEZ-BAILÓN, 2013). Traduzir esses processos e descortinar os seus

sentidos, já dissemos, não é tarefa fácil e demanda o uso extensivo de formas diversas de

visualização de dados (dataviz). Os recursos visuais não são apenas tangenciais ou meramente

ilustrativos nesse campo, mas se constituem em uma linguagem, que auxilia na interpretação

das formas semânticas utilizadas por atores nas interações intermediadas por essas plataformas.

Portanto, longe de ser uma linguagem objetiva, a visualização de dados, ao contrário, exige um

esforço interpretativo constante do analista na coleta, sistematização e apresentação dos dados.

Neste texto, empreenderemos um esforço preliminar de mapeamento da área de

pensamento social concentrada no Brasil a partir duas frentes distintas de pesquisa. A primeira

frente é dedicada a coletar e sistematizar dados de bases indexadoras de produção científica.

Para tanto, optamos por realizar um recorte via critério de pertencimento dos pesquisadores à

área2. Reunimos nomes de 326 pesquisadores que participaram ao menos uma vez nos Grupos

de Trabalho de Pensamento Social dos dois principais congressos das ciências sociais no Brasil,

o da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e da

Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Com o auxílio do ScriptLattes, software

desenvolvido para a extração e compilação automática da produção contidas nos currículos da

2 Uma análise mais detalhada dos dados aqui se encontram no artigo (CARVALHO; BRASIL JR, 2020)

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Plataforma Lattes (MENA-CHALCO; CESAR JUNIOR, 2009), coletamos ao todo 7.826

artigos, cujos anos de publicação vão de 1967 a maio de 2020. Nem todos os artigos estão com

seus metadados disponíveis, por isso recorremos àqueles indexados na base SciELO via

plataforma Web of Science, chegando a um novo total de 664 artigos no período de 2002 a maio

de 2020. São eles que constituem a amostra das análises que se seguirão. Antes, porém,

gostaríamos de fazer duas observações acerca dos recortes realizados para essa etapa da

pesquisa. A definição sobre o pertencimento a uma área é sempre algo difícil de ser capturado,

até mesmo porque talvez seja raro que um pesquisador se identifique exclusivamente com uma

especialidade. Esse é um desafio ainda maior para a área de pensamento social, com forte

interlocução com outras especialidades e com reconhecidos trabalhos interdisciplinares. A

segunda observação diz respeito à escolha de nos limitarmos à análise dos artigos acadêmicos.

Embora o livro ainda seja fundamental para a circulação do conhecimento, sobretudo nas

ciências sociais (HAMMARFELT, 2016), os artigos vêm ganhando cada vez mais espaço nos

currículos dos pesquisadores. Em sentido complementar à análise da produção em livros da

área de pensamento social (BRASIL JR; JACKSON; PAIVA, 2020), o intuito deste texto é

apontar temas, conceitos e referências que conformam os códigos com os quais operam seus

pesquisadores. A vantagem, porém, de tomarmos os artigos como objeto é que eles permitem

acompanhar de forma mais dinâmica as discussões de uma área, considerando os tempos

distintos de maturação e publicação que, em geral, livros e artigos têm.

A segunda frente de pesquisa dedicada a mapear o pensamento social no Brasil busca

identificar e extrair dados – intérpretes, temas e categorias - caros à área na Wikipédia,

enciclopédia on-line, multilíngue, de licença livre e escrita de forma colaborativa pelos seus

usuários. Tomar a Wikipédia como objeto de análise parece promissor para compreendermos a

rotinização de certas ideias, questão ademais constitutiva da área de pensamento social no

Brasil. As estatísticas de visualização e edição referentes à plataforma são ilustrativas da

capilaridade do conhecimento ali disponibilizado. De acordo com portal Alexa3, a

Wikipedia.org é o décimo-quarto site mais acessado no Brasil com média de 3 acessos a seu

conteúdo por usuário, tendo em torno de 769 mil links de sites direcionados a ele. Somente no

mês de agosto de 2020, o Brasil foi responsável por aproximadamente 282 milhões de

visualizações a artigos da Wikipédia em português de um total de 403.759.964 milhões de

visualizações, incluindo usuários de outros países. Em um ano, entre agosto de 2019 e agosto

de 2020, a versão em português atingiu 4,9 bilhões de visualizações. Ao reunirmos dados

3 https://www.alexa.com/topsites/countries/BR

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cientométricos de bases de indexação científica e dados de visualização da Wikipédia,

pretendemos assim percorrer o circuito complexo e dinâmico entre o conhecimento

especializado da área de pensamento social no Brasil e suas leituras e releituras por amplos

segmentos da sociedade.

Pensamento Social no Brasil e sua produção em artigos

Como dito acima, a análise cientométrica da produção intelectual da área de pensamento

social por meio de seus artigos científicos permite ter acesso aos metadados estruturados de um

considerável corpus textual. Metodologicamente, esse material se torna ainda mais valioso

porque permite contribuir para o debate central na área de pensamento social no Brasil sobre as

relações entre “texto” e “contexto” (BASTOS; BOTELHO, 2010; JOSIOWICZ; BRASIL JR,

2019; SCHWARCZ; BOTELHO, 2011). Embora nunca tenha sido algo trivial, a investigação

sobre qual tipo de relação que um “texto” estabelece com o seu “contexto” (BOTELHO, 2010)

ganha novas dimensões analíticas a partir das discussões levantadas pela cientometria. Como

argumenta Leydesdorff (LEYDESDORFF, 2001), os metadados da produção científica, tais

como os que iremos expor aqui, permitem uma visão dinâmica e ampla da relação entre

“autores”, “textos” e “cognições”. Cada um desses termos não tem uma definição estável e

tampouco podem ser reduzidos uns aos outros, embora mudanças em cada um deles possam ser

sentidos nos demais. Para deixar mais claro o ponto, podemos dizer que a “cognição”, isto é,

os códigos de comunicação científica (a exemplo das citações), se manifesta como

conhecimento discursivo na forma de “textos” (artigos, livros, teses...). Esses códigos de

comunicação são socialmente construídos pelas relações estabelecidas por autores e

instituições, mas tendem a se transformar em mecanismos relativamente autônomos, eficazes e

seletivos no agrupamento entre os textos. Podemos destacar um exemplo do modo como essa

perspectiva auxilia na compreensão das dinâmicas científicas que abordaremos em seguida: a

rede bibliométrica gerada a partir das relações de coautoria entre pesquisadores em diversos

casos é muito distinta da rede baseada nas citações dos trabalhos desses mesmos pesquisadores.

Muito provavelmente a rede de coautoria demonstrará relações muito próximas às do contexto

institucional dos pesquisadores (em termos de parceria de áreas disciplinares e grupos de

pesquisa, por exemplo), ao contrário da rede que toma a similaridade das citações, cujas

relações são estabelecidas pelos usos dos códigos de comunicação (autores e obras)

compartilhados por pesquisadores de diferentes instituições, grupos de pesquisa e mesmo áreas

disciplinares.

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Nesse sentido, embora programas de pesquisa e redes de colaboração científica façam

parte das práticas cotidianas de pesquisadores – sendo parte importante de estratégias na

concorrência por recursos de financiamento e elaboração de projetos, por exemplo –, nem

sempre elas podem ser reduzidas a uma dimensão consciente. Ainda que, por vezes, os códigos

científicos tendam a criar comunidades científicas muito coesas, chama a atenção que o grau

de compartilhamento de referências, citações, autores e temas extrapolem esses nichos e

ganhem significados variados e não raro polêmicos no interior de uma especialidade ou área

científica. Destacar a independência analítica de cada uma dessas dimensões significa, portanto,

conceber a produção científica em sua multidimensionalidade, de modo que melhor possa se

responder à questão fundamental de como formas cognitivas emergem entre os autores/agentes,

sedimentando-se em “textos” e conformando um arsenal compartilhado – mas não

necessariamente consensual – no interior de uma especialidade disciplinar. Tendo em vista essa

discussão, vejamos agora os dados relativos aos artigos da área de pensamento social no Brasil.

Selecionando o período entre 2002 e 2020, encontramos um total de 664 documentos,

assim distribuídos temporalmente:

Figura 1. Artigos dos participantes de Gts de Pensamento Social no Brasil indexados na base SciELO (2002-2020). Fonte: SciELO e Web of Sience.

Na imagem acima, vemos que a área conta, pelo menos na base SciELO, com um

volume considerável de produção – desde 2004, quase sempre com mais de 30 documentos por

ano, a despeito de naturais oscilações. O volume nada desprezível de informações que é possível

de se extrair desse conjunto de dados pode auxiliar na detecção de temas que permitam indexar

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

2019

2020

total 15 10 32 31 24 38 41 40 34 63 48 41 28 47 50 27 34 54 7

y = 0,7246x + 27,702R² = 0,0775

0

10

20

30

40

50

60

70

total Linear (total)

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a produção intelectual de acordo com os critérios internos e autônomos da área de pesquisa,

como, por exemplo, os “intérpretes do Brasil” mais citados ou as questões mais investigadas.

Para tal, procederemos nossa análise através de duas técnicas muito comuns na bibliometria, a

saber: o acoplamento bibliográfico de artigos e a cocitação de autores. A primeira permitirá

revelar, através do grau de semelhança entre artigos, medido por meio do compartilhamento de

referências bibliográficas, como os documentos se distribuem por diferentes eixos temáticos

e/ou disciplinares. Já a segunda permitirá perscrutar quais são os “intérpretes” mais citados e,

ainda mais significativo, como eles se distribuem em termos de suas cocitações, isto é, com

quem eles tendem a ser citados juntos mais frequentemente no interior deste corpus.

Antes de seguirmos, vale explicitar melhor como funcionam estas técnicas de análise.

O acoplamento bibliográfico entre dois artigos “ocorre quando estes referenciam pelo menos

uma publicação em comum. Nesse contexto, o acoplamento bibliográfico estabelece uma

conexão entre dois artigos ao utilizarem as mesmas referências”(GRÁCIO, 2016, p. 85). Já a

cocitação, ao contrário, “identifica a ligação/semelhança de dois documentos citados, via suas

frequências de ocorrência conjunta em uma lista de referências dos autores citantes”(GRÁCIO,

2016, p. 88). Dito de outro modo, ambas técnicas procuram identificar

proximidades/afastamentos a partir de um compartilhamento maior ou menor de referências

bibliográficas. O que muda, fundamentalmente, é a unidade de análise em jogo: na cocitação,

a unidade são os autores ou documentos citados, ao passo que, no acoplamento bibliográfico,

a unidade são os artigos que citam.

Vamos aos temas, definidos de acordo com o padrão de relações construído através do

acoplamento bibliográfico. Usando o algoritmo de detecção de comunidades conhecido como

Louvain (BLONDEL et al., 2008), encontramos 12 comunidades de artigos. Este algoritmo

procura distribuir cada elemento da rede em comunidades específicas de acordo com suas

relações: quanto maior o peso das relações entre dois elementos, maiores as suas probabilidades

de caírem em uma mesma comunidade – calibrando-se, é claro, para o total de relações

existentes na rede em questão, no sentido de otimizar a “modularidade”, isto é, a melhor

distribuição possível de comunidades para o conjunto dos elementos. Na imagem abaixo,

gerada a partir dos softwares VOSViewer (VAN ECK; WALTMAN, 2010) e Gephi

(BASTIAN; HEYMANN; JACOMY, 2009), temos a rede de acoplamento dos 546 documentos

situados na componente principal da rede – ou seja, aquela que reúne o maior número de

relações – e suas 12 comunidades, destacadas cada um em uma cor diferente.

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Figura 2. Rede acoplamento bibliográfico de artigos de Pensamento social no Brasil (2002-2020). Fonte:

SciELO e Web of Science

Algumas comunidades chegam a reunir muitos documentos – a comunidade 1, em

amarelo, por exemplo, concentra 93 artigos ou 14% do total de 664 –, ao passo que outras

reúnem menos de 5%. Para facilitar, vamos nos limitar aos agrupamentos principais, destacando

os temas e/ou disciplinas mais importantes no interior de cada um. Antes de prosseguirmos,

vale relembrar: a rede é composta por artigos cujos autores participaram dos GTs na ANPOCS

e/ou SBS, o que não significa, portanto, que todos os artigos possam ser identificados como da

área de pensamento social no Brasil. O mais usual é que os pesquisadores se identifiquem e

tenham produções em diferentes especialidades. Sem necessariamente ser um problema, essa

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forma complexa de observar pode ser profícua para detectarmos o que há de interesse

compartilhado e de diálogo no interior da(s) área(s). Além disso, permite um recorte por

temática e não por autores e autoras clássicos da área de pensamento social no Brasil, como de

costume. Salientamos ainda que os temas destacados serão fundamentais para um projeto futuro

de uma seção no site da BVPS destinada a grandes temas para os quais pesquisadores da área

de pensamento social no Brasil podem contribuir. Para identificarmos a que temáticas

correspondem cada comunidade da rede, coletamos as palavras-chave indexadas pelos autores

dos artigos.

Comecemos pelas comunidades mais agrupadas e que ocupam as bordas da rede. Em

amarelo, com 93 documentos, encontra-se a maior comunidade – comunidade 1 –, que reúne

tanto perspectivas de análise, como sociologia dos intelectuais, sociologia da literatura,

sociologia da cultura e campo intelectual, quanto temas e/ou autores como objeto de pesquisa

(identidade nacional, arte, Antonio Candido, Joaquim Nabuco etc.). Em verde claro

(comunidade 2), formada por 87 documentos, temos os artigos cujos temas mais recorrentes

(democracia, liberalismo, eleições e autoritarismo) se ligam ao campo de “pensamento político

brasileiro” (LYNCH, 2016). Com 59 documentos, a comunidade 3, em lilás, é formada

sobretudo por temas caros à teoria social (modernidade, mudança social, imigração e

desenvolvimento) e à história das ciências sociais no Brasil (Amazônia, estudos de comunidade,

sociologia no Brasil e memória). Mais destacado do resto da rede, em azul médio, temos o

cluster dos 42 artigos majoritariamente dedicados a temas clássicos da ciência política

(comunidade 4), em particular ao estudo das instituições (partidos políticos, forças armadas,

eleições) e de seus formatos (democracia, centralização, descentralização) (MARTINS;

LESSA, 2010). Ainda neste agrupamento, um termo fundamental é de cultura política, em

grande medida associada aos comportamentos dos indivíduos e instituições.

Com 58 artigos, a comunidade 5, colorida de azul escuro, tem temáticas associadas à

subárea designada de sociologia política, cujas temáticas se associam às discussões sobre

movimentos sociais e ativismo transnacional (BOTELHO, 2014), mas também sobre gênero,

sexualidade, mídias digitais e internet. A comunidade 6, em vermelho, com 53 documentos,

reúne artigos que versam sobre a história das ciências sociais, state-making (processo de

formação do Estado nacional), história das ciências e da saúde.

Passemos, agora, para as comunidades que, embora menos agrupadas e com menos

artigos em relação às demais, ocupam posições importantes na rede, sobretudo porque estão

localizadas na interseção entre comunidades. A primeira delas é a em preto (comunidade 7),

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com 39 documentos, cujas palavras-chave estão associadas ao modernismo e a movimentos da

cultura brasileira de forma geral, à discussão sobre o ensaísmo e a produção anterior à

institucionalização das ciências sociais no Brasil, e à relevância da comparação enquanto

recurso metodológico (BASTOS; BOTELHO, 2010; OLIVEIRA, 1999; SCHWARCZ;

BOTELHO, 2011). Por fim, cabe destacar a comunidade em azul claro (comunidade 8), com

31 documentos, dedicada à questão racial, traço fundante da sociedade brasileira, e tema perene

das grandes interpretações do Brasil e das ciências sociais brasileiras. Outro dado que aponta

para a sua relevância na área de pensamento social no Brasil é que seus artigos se encontram

relativamente espalhados pela rede, na interseção de diversas comunidades. De fato, os temas

das comunidades 7 e 8 são, digamos, fundantes da área de pensamento social (BASTOS;

BOTELHO, 2010; OLIVEIRA, 1999; SCHWARCZ; BOTELHO, 2011), e se revelam ainda

hoje como mediadores importantes entre discussões distintas de que se ocupam seus

pesquisadores, como demonstram as relações de acoplamento bibliográfico.

Outra forma possível de detectar os temas da área de pensamento social no Brasil se dá

pela análise de cocitação. A seguir, modelaremos a rede de cocitação dos autores mais citados

no interior dos 664 documentos, destacando o label apenas dos chamados “intérpretes”, isto é,

os produtores intelectuais tomados como referência para a pesquisa na área. A fim de facilitar

a visualização e a limpeza dos dados, restringimos a visualização aos nomes com mais de 10

citações neste conjunto de documentos – advertência fundamental pois revela as limitações da

análise a seguir –, gerando uma lista de 233 nomes diferentes.

Ainda que o debate acumulado na área nos últimos anos venha descentrando os “grandes

intérpretes do Brasil” como unidade autoevidente de pesquisa, vale registrar a relevância de

suas formulações para as pesquisas atuais, sejam como objetos de estudo, sejam como

repertórios cognitivos a que recorrem os pesquisadores para a compreensão de fenômenos

sociais do passado e do presente. Isso porque, longe de serem registros datados, as

interpretações do Brasil revelam pujança justamente porque os processos pretéritos sobre os

quais se debruçaram ainda nos dizem respeito. E no esforço de tentarem compreender a

formação da sociedade brasileira, seus impasses, conflitos e acomodações, forjaram visões

distintas sobre ela, orientando em maior ou menor grau práticas de indivíduos e grupos

(BOTELHO, 2010; BRANDÃO, 2007).

Conforme a rede de cocitação de autores na figura abaixo, pode-se visualizar como o

cânone de pensamento social no Brasil, formado sobretudo por autores como Gilberto Freyre,

Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Florestan Fernandes, é ainda

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muito presente nas pesquisas evidenciadas pelos artigos. Embora a construção de um cânone

não seja aleatória, porque associada a relações cognitivas e a práticas científicas mais ou menos

estabelecidas, é possível capturar parte de sua dinâmica através do processo de revisão e

ampliação dos autores e autoras que o integram. Por essa razão, esse constante movimento de

inclusão – e, claro, de exclusão – de um cânone revela seleções cognitivas feitas no interior de

uma área de pesquisa, direcionando os focos para determinadas questões analíticas e empíricas4.

Nesse sentido, pode-se dizer que autores e obras canônicos se constituem também em instâncias

importantes de auto-observação da área, permitindo que pesquisadores ganhem perspectiva

sobre suas práticas e escolhas rotineiras.

Dito isso, é possível perceber na figura 3 como se entrelaçam em comunidades

específicas autores consagrados e outros que começam a ser inseridos no cânone, movimento a

que aludimos acima. O maior grupo, em azul, reúne nomes como Antonio Candido (173

citações), Gilberto Freyre (131), Mario de Andrade (82), Sérgio Buarque de Holanda (61),

Alceu Amoroso Lima (35) e Caio Prado Jr. (26). O nosso ensaísmo se encontra aí bem

representado, com os nomes mais “canônicos” dos pensamento social no Brasil. Já o grupo

verde reúne basicamente os principais nomes da geração pioneira das ciências sociais

institucionalizadas no Brasil, como Florestan Fernandes (191 citações, o mais citado de todos),

Fernando Henrique Cardoso (50), Roger Bastide (41), Octavio Ianni (37), Maria Isaura Pereira

de Queiroz (35), Charles Wagley (32) e Donald Pierson (29). Por fim, o grupo laranja, mais

centrado no “pensamento político brasileiro”, ainda que não exclusivamente, congrega

Raymundo Faoro (91 citações), Guerreiro Ramos (89), Joaquim Nabuco (51), Oliveira Vianna

(48), Afonso Arinos de Melo Franco (47), Celso Furtado (36), entre outros. Ainda chamam a

atenção mais dois grupos: um em rosa, com nomes de escritores como Lima Barreto (30

citações), e outro na cor vinho, abarcando autores ligados ao debate racial no primeiro terço do

século XX, como Edgard Roquette-Pinto (43 citações) Euclides da Cunha (21) e Renato Kehl

(17).

4 Para uma discussão sobre a ideia de cânone feita na chave da “leitura distante”, vale conferir os trabalhos de

Franco Moretti (MORETTI, 2000).

Page 13: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

13

Figura 3. Rede de cocitação de “intérpretes” referenciados nos artigos de PSB (2002-2020). Número

mínimo de citações = 10. Fonte: SciELO e Web of Science

A análise de cocitações também permite revelar como a própria dinâmica da área

de pesquisa em “pensamento social no Brasil” vai tecendo relações entre os seus

pesquisadores, como na imagem abaixo. Afinal, já há um acúmulo considerável de

análises sobre as “interpretações do Brasil”, que vai sendo acionado nos artigos que se

debruçam sobre este material textual. Não temos aqui nenhuma pretensão de

hierarquizar os autores em uma lista de importância, pois o que nos interessa é, ao

reproduzir as mesmas posições estruturais da rede acima – destacando agora apenas os

labels dos pesquisadores ligados a este campo com maior ou menor intensidade –, ver

como eles se posicionam nas comunidades acima. Os pesquisadores se reúnem, grosso

modo, em torno de regiões disciplinares, como a antropologia (comunidade em rosa), a

sociologia (comunidade em verde), a ciência política (comunidade em vermelho), e sub

ou interdisciplinares, como a sociologia política (comunidade em amarelo) e a história

da ciência e da saúde (comunidade em vinho). E, justamente localizados na comunidade

em azul, encontra-se um grupo de pesquisadores de diferentes disciplinas voltados à

investigação (em sentido ampliado) da cultura brasileira, incluindo as obras de ensaístas,

artistas, literatos e demais produtores de bens simbólicos.

Ao fim e ao cabo, menos que reforçar distinções rígidas, a modelagem da rede

de cocitação de autores exprime as relações entre textos que se encontra subjacente à

produção de conhecimento na área de pensamento social no Brasil, pelo menos com

Page 14: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

14

base na atividade citante dos seus praticantes. Os nomes dos autores citados são formas

de simplificação da matriz de relações entre textos, posto que a unidade de agregação

não é o elemento citado, mas o conjunto de elementos bibliográficos escritos por um

mesmo autor. Portanto, estas relações entre nomes não se traduzem automaticamente

em relações sociais entre os autores; antes, são relações cognitivas que identificam as

principais interações entre os recursos textuais que conformam a área de pesquisa.

As palavras-chave, os nomes dos “intérpretes” e a identificação de pesquisadores

permitem, por meio das técnicas de “leitura distante” aqui empregadas, sugerir uma

espécie de vocabulário-básico que define – mesmo que de modo tentativo – a área de

pensamento social. Este vocabulário pode ajudar a definir termos de busca que, de modo

recursivo, levarão à ampliação da amostra de 664 artigos aqui usada como

“representativa” deste campo do conhecimento. Se a construção do nosso corpus partiu

de um critério de pertinência extratextual – a frequência de pesquisadores em dois

grupos de trabalho da área –, o desafio agora é mobilizar os nossos resultados de

pesquisa para definir um conjunto específico de termos que possa constituir uma

imagem ampliada da produção intelectual da área.

Leituras em competição: um estudo de caso do pensamento social no Brasil na

Wikipédia5

O estudo da circulação e recepção das ideias para além dos muros da academia

é sempre um desafio metodológico. No Brasil, a área de “pensamento social no Brasil”

tradicionalmente se dedica ao assunto e vem produzindo trabalhos fundamentais que

buscam analisar, através de materiais empíricos diversos, como determinadas

interpretações sobre a sociedade brasileira se relacionam com o substrato social que lhe

dão vida (BASTOS; BOTELHO, 2010). Recentemente, a essa discussão vem se

juntando novas abordagens dedicadas a capturar a dinâmica de interações da Web 2.0,

termo que designa uma ampla rede de comunidades e serviços oferecidos na internet

com ativa participação de seus usuários, a exemplo das mídias sociais. Nesse novo

campo de possibilidades empíricas que se abre à área de “pensamento Social no Brasil”,

a análise da plataforma Wikipedia é uma das mais promissoras. Com a proposta de ser

uma enciclopédia online, a Wikipedia reúne e disponibiliza, através da colaboração de

seus usuários, informações sobre os mais variados temas de interesse científico e de

5 Essa seção faz parte de um artigo no prelo em coautoria com Karim Hellayel (UFRJ).

Page 15: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

15

conhecimento geral. A editoração e organização dos artigos contidos na plataforma

dependem da participação constante de seus usuários através de discussões em fóruns,

definição de conteúdo, sistematização de referências bibliográficas e a localização de

links entre os verbetes (interlinks). A particularidade da Wikipedia em relação a outras

plataformas de divulgação do conhecimento reside justamente em uma série de critérios

que precisam ser cumpridos por seus editores para que o conteúdo disponibilizado seja

confiável. Frequentemente ocorrem disputas entre versões de editores à frente de um

mesmo verbete, os quais recorrem ao conhecimento científico especializado para

validação ou refutação de argumentos. Por esses motivos, a plataforma se constitui

enquanto um ambiente propício para a análise da recepção e circulação das ideias

acadêmicas, o que é reforçado quando analisamos as estatísticas referentes à

visualização e os interlinks dos verbetes. De acordo com portal Alexa , a Wikipedia.org

é o décimo-quarto site mais acessado no Brasil com média de 3 acessos a seu conteúdo

por usuário, tendo em torno de 769 mil links de sites direcionados a ele. Somente no

mês de agosto de 2020, o Brasil foi responsável por aproximadamente 282 milhões de

visualizações a artigos da Wikipedia em português de um total de 403.759.964 milhões

de visualizações, incluindo usuários de outros países. Em um ano, entre agosto de 2019

e agosto de 2020, a versão em português atingiu 4,9 bilhões de visualizações.

Tendo em vista o importante lugar que a Wikipedia ocupa atualmente na

circulação do conhecimento, analisaremos as interpretações sobre a trajetória e a obra

de Celso Furtado contidas nos verbetes a ele dedicados escritos em diferentes idiomas,

particularmente em português, inglês e espanhol . Com isso, percorreremos o circuito

cujo ponto de partida foi a análise realizada na seção anterior sobre a produção

acadêmica relacionada à obra furtadiana, destacando agora a sua recepção por um

público mais amplo e não necessariamente especializado em sua obra ou nos assuntos a

ela relacionados. Veremos especificamente como as diferenças entre os verbetes em

cada idioma se ligam a controvérsias acadêmicas, indicando como as diferentes

interpretações acerca da obra do economista paraibano informam não só os conteúdos

disponibilizados pelos editores, mas também, e em grande medida, a possível leitura do

público que os acessam.

Na figura 9, podemos acompanhar as visualizações de usuários ao artigo “Celso

Furtado” em português, inglês e espanhol entre os meses de janeiro a agosto de 2020.

No total, foram 35.857 visualizações ao verbete em português, 5.413 ao verbete em

Page 16: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

16

inglês e 4.899 ao verbete em espanhol ao longo do período destacado . O pico em julho

reflete provavelmente o interesse pelo autor no mês do centenário de seu nascimento.

As listagens dos interlinks que estão no interior do verbete de Celso Furtado nos dão

pistas importantes do conteúdo que os editores desejam transmitir aos leitores. Na tabela 1,

disponibilizamos os interlinks indexados no verbete que foram clicados ao menos 10 vezes

entre janeiro e agosto de 2020. A interpretação da obra de Celso Furtado fornecida pelo verbete

vincula os preceitos teóricos do economista àqueles do keynesianismo e aos da Comissão

Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) de raiz estruturalista. Nota-se o interesse

do público por conceitos associados a essa teoria, como “desenvolvimento econômico”,

“consumo conspícuo”, “substituição de importações” e “subdesenvolvimento”, todos interlinks

disponíveis no corpo do texto principal do verbete. As exceções são “desenvolvimentismo” e

“teoria da dependência”, que se encontram em seção à parte do texto intitulada “Ver Também”.

Aparentemente um detalhe, mas é importante notar que a disposição dos interlinks e mesmo as

suas repetições ao longo do verbete podem orientar a leitura dos usuários, chamando a atenção

para informações importantes ou as deixando em segundo plano. O exemplo mais

paradigmático é a palavra “Cepal” e suas variações (“pensamento cepalino” e “cepalinos”)

mencionada dez vezes no verbete, das quais quatro são interlinks ao verbete “Comissão

Econômica para a América Latina e o Caribe”.

0

2000

4000

6000

8000

10000

12000

J A N E I R O F E V E R E I R O M A R Ç O A B R I L M A I O J U N H O J U L H O A G O S T O

Wiki_pt Wiki_en Wiki_es

Figura 4.Visualizações ao artigo "Celso Furtado". Fonte: Wikipedia (janeiro a agosto de 2020)

Page 17: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

17

Tabela 1.Interlinks indexados no verbete “Celso Furtado” em português por números de cliques. Fonte: Wikipedia.

Verbete de origem Verbete de destino Cliques

CELSO FURTADO ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS 818

CELSO FURTADO FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL 743

CELSO FURTADO COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA

LATINA E O CARIBE 474

CELSO FURTADO JOHN MAYNARD KEYNES 470

CELSO FURTADO ROBERTO CAMPOS 359

CELSO FURTADO POMBAL (PARAÍBA) 317

CELSO FURTADO BIBLIOTECA CELSO FURTADO 236

CELSO FURTADO LÚCIO DE MENDONÇA 170

CELSO FURTADO LISTA DE MINISTROS DO PLANEJAMENTO

DO BRASIL 159

CELSO FURTADO HUGO NAPOLEÃO DO REGO NETO 142

CELSO FURTADO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO 132

CELSO FURTADO CONSUMO CONSPÍCUO 129

CELSO FURTADO ORDEM MILITAR DE SANT'IAGO DA

ESPADA 128

CELSO FURTADO SUPERINTENDÊNCIA DO

DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE 95

CELSO FURTADO RAÚL PREBISCH 84

CELSO FURTADO SUBDESENVOLVIMENTO 84

CELSO FURTADO PLANO TRIENAL DE DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO E SOCIAL 77

CELSO FURTADO LISTA DE MINISTROS DA CULTURA DO

BRASIL 75

CELSO FURTADO ALUÍSIO PIMENTA 63

CELSO FURTADO TEORIA DA DEPENDÊNCIA 54

CELSO FURTADO ATO INSTITUCIONAL N.º 1 46

CELSO FURTADO SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES 39

CELSO FURTADO SORBONNE 37

CELSO FURTADO FAGUNDES VARELLA 31

CELSO FURTADO PLANO DE METAS 28

CELSO FURTADO NICHOLAS KALDOR 21

CELSO FURTADO DESENVOLVIMENTISMO 16

CELSO FURTADO ÉCOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES

SOCIALES 15

CELSO FURTADO FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA 15

CELSO FURTADO FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS 14

CELSO FURTADO LYCEU PARAIBANO 13

CELSO FURTADO HÉLIO JAGUARIBE 12

CELSO FURTADO JUSCELINO KUBITSCHEK 11

Quando invertemos a direção dos interlinks, destacando os verbetes da Wikipedia que

levam ao verbete “Celso Furtado”, vemos como a estrutura de conexão entre os artigos (que

representam conceitos, instituições, intelectuais, localidades, etc.) não se altera

substancialmente. Observa-se a presença, sobretudo, de economistas ligados a Furtado que

Page 18: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

18

esposavam muitas de suas ideias ou mesmo compartilhavam de seus pressupostos teóricos

sobre o desenvolvimentismo. Instituições pelas quais passou ou teve papel fundamental são

outras fontes que levam os leitores a acessarem o verbete “Celso Furtado”. Tanto em um sentido

quanto em outro, os interlinks e os cliques sugerem semelhanças no fluxo de informações que

leva ao interesse pela obra de Furtado no verbete em português, cuja especificidade só é trazida

à tona se compararmos com os verbetes em outros idiomas.

Tabela 2 : Origem dos jnterlinks que levam ao verbete “Celso Furtado” por número de cliques. Fonte:

Wikipedia.

Verbete de origem Verbete de destino Cliques

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES CELSO FURTADO 729

ROBERTO CAMPOS CELSO FURTADO 415

LISTA DE MINISTROS DA CULTURA DO

BRASIL

CELSO FURTADO 376

ECONOMISTA CELSO FURTADO 304

PARAÍBA CELSO FURTADO 215

COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA

LATINA E O CARIBE

CELSO FURTADO 152

FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL CELSO FURTADO 128

FILOSOFIA DA ECONOMIA CELSO FURTADO 85

JOÃO GOULART CELSO FURTADO 84

GINÁSIO PERNAMBUCANO CELSO FURTADO 74

CARLOS LESSA CELSO FURTADO 68

26 DE JULHO CELSO FURTADO 66

SUPERINTENDÊNCIA DO

DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE

CELSO FURTADO 64

ECONOMIA ESTRUTURALISTA CELSO FURTADO 46

IGNÁCIO RANGEL CELSO FURTADO 34

LISTA DE AGRACIADOS NA ORDEM DO

MÉRITO CULTURAL

CELSO FURTADO 22

ECONOMIA HETERODOXA CELSO FURTADO 15

ATO INSTITUCIONAL N.º 1 CELSO FURTADO 12

MARIA ADÉLIA APARECIDA DE SOUZA CELSO FURTADO 12

OS ECONOMISTAS CELSO FURTADO 11

REFORMA AGRÁRIA CELSO FURTADO 11

SATURNINO BRAGA CELSO FURTADO 11

FLORESTAN FERNANDES CELSO FURTADO 10

HUGO NAPOLEÃO DO REGO NETO CELSO FURTADO 10

LISTA DE MEMBROS DA ACADEMIA

BRASILEIRA DE LETRAS

CELSO FURTADO 10

LISTA DE MINISTROS DO PLANEJAMENTO DO

BRASIL

CELSO FURTADO 10

PLANO DE METAS CELSO FURTADO 10

Estamos sugerindo que a disposição dos links feita pelos editores no texto do verbete

em certa medida guiam os cliques e, portanto, a leitura dos usuários – no fundo, ela pressupõe

Page 19: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

19

uma interpretação (que pode ser cronicamente disputada pelos editores da Wikipedia) sobre o

sentido e o lugar da produção furtadiana. Isso é perceptível quando comparamos o verbete em

português dedicado a Celso Furtado com as suas versões em inglês e espanhol. Como não

poderia deixar de ser, a estrutura mais geral das conexões – e das possíveis interpretações a elas

subjacentes – nas duas versões é semelhante à versão em português ao vincular Furtado ao tema

do desenvolvimentismo, aos preceitos da economia estruturalista e à teoria cepalina. Mas uma

diferença chama a atenção, sobretudo quando notamos a presença do verbete “teoria da

dependência” no campo semântico e de interlinks que orientam as leituras do verbete.

Enquanto, nas versões em espanhol e em inglês, o sentido de orientação da leitura é o mesmo

– do verbete “teoria da dependência” ao verbete “Celso Furtado” –, na versão em português, o

sentido é inverso, conforme as tabelas 3 e 4.

Tabela 3: Fluxo de cliques entre os verbetes conectados ao verbete “Celso Furtado” na versão em espanhol.

Fonte: Wikipedia.

Verbete de origem verbete de destino cliques

DESARROLLISMO CELSO FURTADO 264

TEORÍA DE LA DEPENDENCIA CELSO FURTADO 120

CELSO FURTADO DESARROLLISMO 114

CELSO FURTADO MOVIMIENTO DEMOCRÁTICO

BRASILEÑO (1980)

84

CELSO FURTADO RAÚL PRÉBISCH 84

FUERZA EXPEDICIONARIA

BRASILEÑA

CELSO FURTADO 39

JOÃO GOULART CELSO FURTADO 11

CELSO FURTADO COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA

LATINA Y EL CARIBE

10

CELSO FURTADO JOHN MAYNARD KEYNES 10

CELSO FURTADO LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA 10

ESTRUCTURA CENTRO-PERIFERIA CELSO FURTADO 10

Tabela 4: Fluxo de cliques entre os verbetes conectados ao verbete “Celso Furtado” na versão em inglês.

Fonte: Wikipedia.

Verbete de origem verbete de destino cliques

CELSO FURTADO STRUCTURALIST ECONOMICS 146

STRUCTURALIST ECONOMICS CELSO FURTADO 135

CELSO FURTADO RAÚL PREBISCH 118

IMPORT SUBSTITUTION

INDUSTRIALIZATION

CELSO FURTADO 87

CELSO FURTADO UNITED NATIONS ECONOMIC

COMMISSION FOR LATIN AMERICA AND

THE CARIBBEAN

75

PREBISCH–SINGER HYPOTHESIS CELSO FURTADO 66

AUTARKY CELSO FURTADO 49

Page 20: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

20

DEPENDENCY THEORY CELSO FURTADO 49

RAÚL PREBISCH CELSO FURTADO 24

DEVELOPMENT ECONOMICS CELSO FURTADO 20

Provavelmente estamos diante de compreensões distintas sobre o que seja “teoria da

dependência” e por isso buscamos rastrear os interlinks do verbete dedicado ao tema nos

diferentes idiomas. Na tabela 5, é possível perceber que a compreensão de autores e obras que

compõem a “teoria da dependência” difere na versão em português e nas versões em inglês e

espanhol. Nos verbetes nestes dois últimos idiomas, Furtado é tido como um dos principais

teóricos da teoria da dependência, recebendo 146 e 48 cliques no interlink nos verbetes em

espanhol e em inglês, respectivamente. Corrobora a interpretação da associação entre

pensamento cepalino à teoria da dependência a presença de Raúl Prebisch na lista dos mais

acessados. Quanto ao verbete em português, não há sequer menção e tampouco interlink que

direcione ao verbete “Celso Furtado” à teoria da dependência, que é tomada “em contraposição

às posições marxistas convencionais dos partidos comunistas e à visão estabelecida pela

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)”6. De todo modo, escapa às

diferentes versões dos verbetes sobre “teoria da dependência” e também sobre “Celso Furtado”

uma avaliação mais matizada das etapas da obra do economista paraibano, sobretudo aquela

desenvolvida a partir dos anos 1960, em que passa a rever a sua aposta na industrialização como

saída da situação de dependência na periferia (SAWAYA, 2008).

Tabela 5: Interlinks indexados no verbete “Teoria da dependência” em três idiomas por número de cliques.

Fonte: Wikipedia.

TEORIA DA DEPENDÊNCIA

PORTUGUÊS

POSIÇÃO VERBETE CLIQUES

1 RUY MAURO MARINI 305

2 THEOTÔNIO DOS

SANTOS

262

3 COMISSÃO

ECONÔMICA PARA A

AMÉRICA LATINA E

O CARIBE

251

4 VÂNIA BAMBIRRA 225

5 ANDRÉ GUNDER

FRANK

217

6 DIVISÃO

INTERNACIONAL DO

TRABALHO

134

6 Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_da_depend%C3%AAncia

Page 21: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

21

7 FERNANDO

HENRIQUE CARDOSO

40

8 IMPERIALISMO 39

9 DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO

33

10 TEORIA DO SISTEMA-

MUNDO

23

// CELSO FURTADO NÃO HÁ LINK

ESPANHOL

1 TEORÍA DEL

DESARROLLO

936

2 COMISIÓN

ECONÓMICA PARA

AMÉRICA LATINA Y

EL CARIBE

860

3 ANDRÉ GUNDER

FRANK

437

4 THEOTÔNIO DOS

SANTOS

373

5 ENZO FALETTO 316

6 KEYNESIANISMO 312

7 RAÚL PRÉBISCH 276

8 RUY MAURO MARINI 233

9 DESARROLLISMO 229

10 SUBORDINACIÓN 202

14 CELSO FURTADO 146

INGLÊS

1 MODERNIZATION

THEORY

1842

2 WORLD-SYSTEM 1107

3 RAÚL PREBISCH 740

4 DEVELOPMENT

THEORY

649

5 WORLD-SYSTEMS

THEORY

636

6 PREBISCH–SINGER

HYPOTHESIS

492

7 HANS SINGER 458

8 ANDRE GUNDER

FRANK

447

9 STRUCTURALIST

ECONOMICS

392

10 IMPORT

SUBSTITUTION

INDUSTRIALIZATION

305

47 CELSO FURTADO 48

Como podemos notar, trata-se de definições distintas sobre o que se convencionou

chamar de “teoria da dependência” e se nela Furtado estaria integrado ou não. Nossa

intepretação é de que essas leituras sobre a obra furtadiana estão ligadas a diferentes versões da

Page 22: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

22

história da “teoria da dependência” produzidas por seus próprios praticantes ou por estudiosos

dela. Para ficarmos apenas em alguns exemplos, vale citar o livro Latin American Theories of

Development and Underdevelopment, publicado originalmente em 1989, de Cristóbal Kay

(2011), no qual o autor efetua um balanço das principais correntes teóricas que se debruçaram

sobre a problemática do desenvolvimento e do subdesenvolvimento na América Latina. Ao

tratar das diferentes perspectivas e abordagens da “teoria da dependência”, o autor propõe uma

divisão entre o que ele entende ser as vertentes “marxista” e “reformista” do debate. Na vertente

“marxista”, Kay localiza intelectuais como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Andre

Gunder Frank, Vânia Bambirra, Aníbal Quijano, dentre outros, ressaltando como especificidade

de seus trabalhos a mobilização da abordagem marxista e o prognóstico político de que apenas

a revolução socialista poderia superar a dependência (KAY, 2010, p. 127–128). Na vertente

oposta, qualificada como “reformista”, na qual figuram intelectuais vinculados à CEPAL, Celso

Furtado aparece ao lado de Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, Osvaldo Sunkel, Helio

Jaguaribe, Aldo Ferrer e Aníbal Pinto, compartilhando das expectativas de resolução do

problema da dependência através da reforma do sistema capitalista (KAY, 2010, p. 127). Ou

seja, malgrado não deixar de entender a perspectiva de Furtado como “estruturalista”7, Kay

parece possuir um entendimento algo amplo do debate da dependência, chamando a atenção

para a participação do economista paraibano como um teórico que, a seu ver, pode ser

qualificado também como “dependentista”.

No balanço realizado pelos economistas suecos Magnus Blomström e Bjorn Hettne

(1984), podemos constatar que a análise mais detalhada da perspectiva de Furtado figura no

capítulo “The Latin American Dependency School”. Segundo os autores, as contribuições de

Furtado estariam próximas de Gunder Frank, entendendo a perspectiva do economista

paraibano, portanto, como uma contribuição decisiva para o debate da dependência. Para o duo,

ao pensar as diferenças entre o desenvolvimento capitalista nos países centrais e periféricos,

Furtado teria procedido de maneira similar à operada pela escola da dependência

(BLOMSTROM; HETTNE, 1984, p. 57).

De forma semelhante, Joseph Love (1998) afirma que, além de ter sido o mais original

e prolífico dos autores da vertente estruturalista no Brasil, Furtado teria sido o primeiro

intelectual a se debruçar sistematicamente, na América Latina, sobre a problemática da

dependência. Love lembra, de modo contraintuitivo, que Furtado se voltaria para a articulação

entre desenvolvimento e subdesenvolvimento por meio de uma análise sobre o “colonialismo

7 Kay (2011) localiza Furtado diante tanto das diferentes abordagens da dependência quanto em relação à chamada

“escola estruturalista do desenvolvimento”.

Page 23: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

23

interno”, ao discutir as relações entre o Nordeste e o Centro-Sul no Brasil, antecipando-se ao

que seria desenvolvido, ao longo da década de 1960, – diga-se de passagem, de formas distintas

– por ele próprio, Andre Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso e Osvaldo Sunkel (LOVE,

2007, p. 386). Portanto, Furtado teria ido além do interesse de Raúl Prebisch pelos ciclos

econômicos da América Latina, ao historicizar de modo consistente a perspectiva estruturalista

(LOVE, 2007, p. 502).

Neste sentido, talvez seja interessante discutir, por contraste, como Furtado é visto entre

os próprios intelectuais brasileiros imediatamente envolvidos no controverso debate da

dependência, uma vez que o debate local certamente modelou a versão “pública” com maior

circulação sobre a teoria entre nós – pensando, é claro, no número de leituras que o verbete da

Wikipedia possui. Em dois pequenos textos recolhidos na coletânea Pensadores que inventaram

o Brasil, publicada em 2013, e em um artigo intitulado “A vida e a obra de Celso Furtado”,

Fernando Henrique Cardoso discute as formulações de Furtado, voltando-se principalmente

para a potente interpretação do país codificada em Formação econômica do Brasil, mas não há

menção à sua suposta contribuição para a “teoria da dependência” (Cardoso, 2004, 2013).

Já em revisão bibliográfica sobre a “teoria da dependência”, publicada na revista

Estudos Avançados, Theotônio dos Santos elenca o livro O mito do desenvolvimento

econômico, de Furtado (SANTOS, 1998, p. 141), o que nos permite inferir que, para ele,

diferentemente de Cardoso, o economista cepalino talvez possa ser ligado diretamente aos

debates sobre a dependência. O que parece ser corroborado em artigo dedicado à reflexão de

Furtado, no qual Santos (2015) destaca como aquele teria incorporado a noção de “capitalismo

dependente”, para mensurar a diferenciação entre a experiência histórico-social norte-

americana e a da América Latina. Santos discute o contexto de fundação da “Asociación

Internacional de Economistas del Tercer Mundo”, da qual participa junto a Furtado, cujo

primeiro congresso teria tido lugar, em fevereiro de 1976, na Argélia. De acordo com Santos, a

associação teria levado em consideração a problemática da dependência, procurando formular

um pensamento econômico capaz de articular tanto o ponto de vista quanto os interesses dos

países terceiro-mundistas (SANTOS, 2015, p. 20). O intérprete destaca ainda o artigo

“Creatividad cultural y desarrollo dependiente”, de Furtado, trabalho que seria, a seu ver, “el

punto de partida para la total incorporación de sus reflexiones al campo de la crítica al

eurocentrismo y al economicismo que prevalecieron en las Ciencias Sociales hasta muy

recientemiente” (SANTOS, 2015, p. 21). Assim, sugerimos que, em contraste com os balanços

estrangeiros aqui discutidos, nos quais Celso Furtado surge como um elo crucial para a “teoria

da dependência” ou mesmo como um precursor do debate, a posição de Fernando Henrique

Page 24: O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um ...

24

Cardoso e Theotônio dos Santos parece ser mais tímida, não conferindo o grau de centralidade

que Kay, Love e os intérpretes suecos Blomström e Hettne atribuem ao economista paraibano.

Não pretendemos, por óbvio, sugerir aqui um balanço exaustivo da relação controversa,

a depender do contexto linguístico em jogo, das relações entre Celso Furtado e a teoria da

dependência, tal qual sugerida pelos fluxos de visitações aos seus verbetes na Wikipedia. Mas

ilustrar como as controvérsias científicas quanto ao sentido e o lugar da obra furtadiana

extravasam o debate acadêmico e ganham concretude nesta forma móvel, dinâmica e altamente

disputada do debate público que ocorre na chamada Web 2.0. Neste movimento entre a pesquisa

científica e a circulação “pública” do conhecimento, nexos semânticos (com efeitos políticos

variados) vão emergindo, trazendo novas agendas de pesquisa. Esta foi a principal motivação

deste segundo experimento de pesquisa ensaiado aqui.

Considerações Finais

A análise preliminar da área de pensamento social no Brasil via artigos acadêmicos

indexados na base SciELO/Web of Science e via verbetes da Wikipédia são algumas das

diversas frentes de pesquisa em andamento no âmbito da BVPS. Elas cumprem uma importante

etapa, ainda que incipiente, na qual se unem aspectos metodológicos e analíticos. Quanto aos

primeiros, estamos cientes que os artigos não fornecem um retrato de corpo inteiro da área e,

por isso, buscamos uma primeira aproximação de um objeto empírico que, pela sua

dinamicidade e complexidade, não é de fácil captura. Ao recuperarmos os temas de interesse

dos pesquisadores, suas formas de indexação – via palavras-chave – e citação – via referências

bibliográficas –, estamos apenas construindo as bases para um novo ponto de partida que nos

permitirá rastrear com maior rigor metodológico os raios de interações do pensamento social

com outras especialidades das ciências sociais e humanas. Pois se é certo que determinadas

perspectivas analíticas – relação entre ideias e vida social – e temas – interpretações e

intérpretes do Brasil –, são recorrentes na área, isso não significa que elas demarquem fronteiras

rígidas. É sempre muito difícil definir até onde vai os limites de uma área do conhecimento e,

no caso do pensamento social, isso parece ainda menos possível. Supomos, ao contrário, que

talvez advenha dessas interações com temas caros a outras especialidades sua principal

contribuição às ciências sociais brasileiras (BASTOS; BOTELHO, 2010). Não se trata, por

óbvio, de entender que o tipo de análise e de auto-observação aqui ensaiados se substituirão aos

modos habituais de reflexão sobre as ciências sociais, nas quais o tradicional balanço

bibliográfico é sem dúvidas fundamental (BOTELHO; BRASIL JR.; HOELZ, 2019). A “leitura

distante” implica um outro objeto de conhecimento, que permite a detecção de tendências e

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padrões estruturais de outro modo inapreensíveis, inclusive, como no caso da Wikipédia,

percorrer os caminhamos variados entre conhecimento especializado e conhecimento público.

E, como adverte Niklas Luhmann, as comunicações voltadas para a auto-observação, sejam

aquelas voltadas exclusivamente para o campo científico, sejam aquelas voltadas a

compreender a relação entre ciência e sociedade, justamente ao serem comunicadas, alteram o

que é observado (LUHMANN, 2013). Em suma, nosso intuito aqui é criar uma espécie de

instância de “autoirritação” do pensamento social no Brasil por meio de observações de outros

tipos de sua dinâmica e funcionamento, o que poderá, quem sabe, abrir novas perguntas e

problemas para a área de pesquisa.

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