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Pro-Posições VaI. 8 n° 2[23], * Março de 1999 PÓS-MODERNISMO, PÓS-ESTRUTURALISMO E NOVA HISTÓRIA: A RECUSA DA RAZÃO TOTALIZANTE Antônio Lúcio Campos Almeida* Resumo: O presente estudo visa focalizar, em traços essenciais, o empreendimento convergente de determinadas correntes de pensamento, no campo da filosofia, das ciências sociais e da his- tória, no sentido de ocupação de um espaço hegemônico exc1udente, tendo como substrato comum a tendência ao irracionalismo e o abandono da categoria da totalidade na explicação da realidade histórico-social, Por outro lado, intenta este estudo desvendar o caráter ideológico- político de tal démarche, visto que, mediante a diluição das categorias fundamentais da práxis social inovadora, reforça a tendência sempre crescente de adesão ao status quo neoliberaL Palavras-chave: Totalidade, irracionalismo, pós-modernismo, pós-estruturalismo, nova história, Abstract: The artic1e attempts to discuss the essential traits of a movement which is briging about the convergence of several currents in philosophy, social sciences and history, which have in common a tendency towards irrationalism and the abandon of the category of totality in the explanation of sociohistorical reality. The artic1ealso seeks to unveil the ideologico-political character of this démarche, since, through the dilution of the fundamental categories of an innovating social prexis, it strengthens an evergrowing acceptance ofthe neoliberal status quo. Keywords: Totality, irrationalism, post-modernism, post-structuralism, new history. Introdução Não é a predominância dos motivos econô- micos na explicação da histÓria que distin- gue de modo decisivo o marxismo da ciência hurguesa, é o ponto de vista da totalidade. (Lukàcs. 1989, p. 4\). A tendência ao irracionalismo marca forte- mente o panorama das idéias contemporâneas e constitui fonte de preocupação para todos os que julgam acertadamente que não se aban- dona impunemente o modelo de racional idade totalizante na explicação do real, Essa tendên- cia se faz presente, sobretudo, no domínio da Filosofia, das Ciências Sociais e da História. Ela se consubstancia numa crítica geral à modernidade e à razão moderna. Essa ampla e diversificada déll/arche intelectual, quando submetida ao exame crítico, deixa entrever que estam os diante de uma grande operação ideo- lÓgica,cujo poder de envolvimento emocional e de ocullamento teórico pretende instituir um espaço em que se torne impossível pensar a sociedade fora das categorias que justificam o atual arranjo social, econômico e político neoliberaL Para compreender adequadamente a significação ideológico-política desse procedi- mento, impõe-se, de antemão, traçar em linhas essenciais o quadro conjuntural subjacente. Esgotado o arranjo social do Welfare Sta- te pelo refluxo da "onda longa expansiva" (MandeI, 1982) que se seguiu ao fim da Se- gunda Guerra Mundial, a solução encontra- da para manter a reprodução das taxas de lu- cro do capital foi uma redefinição do papel do Estado na arbitragem social, com a conse- qüente ressignificação do conceito de cida- dania. Convém observar, a propósito, que a crise do Wclfare State explicita o fracasso do único ordenamento sociopolítico que. na " Mestrando em filosofia da educação pela Faculda- de de Educação da Unicamp 85

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Pro-Posições VaI. 8 n° 2[23], * Março de 1999

PÓS-MODERNISMO, PÓS-ESTRUTURALISMO E NOVA HISTÓRIA:A RECUSA DA RAZÃO TOTALIZANTE

Antônio Lúcio Campos Almeida*

Resumo: O presente estudo visa focalizar, em traços essenciais, o empreendimento convergentede determinadas correntes de pensamento, no campo da filosofia, das ciências sociais e da his-tória, no sentido de ocupação de um espaço hegemônico exc1udente, tendo como substratocomum a tendência ao irracionalismo e o abandono da categoria da totalidade na explicação darealidade histórico-social, Por outro lado, intenta este estudo desvendar o caráter ideológico-

político de tal démarche, visto que, mediante a diluição das categorias fundamentais da práxissocial inovadora, reforça a tendência sempre crescente de adesão ao status quo neoliberaL

Palavras-chave: Totalidade, irracionalismo, pós-modernismo, pós-estruturalismo, novahistória,

Abstract: The artic1e attempts to discuss the essential traits of a movement which is brigingabout the convergence of several currents in philosophy, social sciences and history, whichhave in common a tendency towards irrationalism and the abandon of the category of totality inthe explanation of sociohistorical reality. The artic1ealso seeks to unveil the ideologico-politicalcharacter of this démarche, since, through the dilution of the fundamental categories of aninnovating social prexis, it strengthens an evergrowing acceptance ofthe neoliberal status quo.

Keywords: Totality, irrationalism, post-modernism, post-structuralism, new history.

Introdução

Não é a predominância dos motivos econô-micos na explicação da histÓria que distin-gue de modo decisivo o marxismo da ciênciahurguesa, é o ponto de vista da totalidade.(Lukàcs. 1989, p. 4\).

A tendência ao irracionalismo marca forte-

mente o panorama das idéias contemporânease constitui fonte de preocupação para todosos que julgam acertadamente que não se aban-dona impunemente o modelo de racional idadetotalizante na explicação do real, Essa tendên-cia se faz presente, sobretudo, no domínio daFilosofia, das Ciências Sociais e da História. Elase consubstancia numa crítica geral àmodernidade e à razão moderna. Essa ampla ediversificada déll/arche intelectual, quandosubmetida ao exame crítico, deixa entrever queestamos diante de uma grande operação ideo-lÓgica,cujo poder de envolvimento emocionale de ocullamento teórico pretende instituir um

espaço em que se torne impossível pensar asociedade fora das categorias que justificam oatual arranjo social, econômico e políticoneoliberaL Para compreender adequadamente asignificação ideológico-política desse procedi-mento, impõe-se, de antemão, traçar em linhasessenciais o quadro conjuntural subjacente.

Esgotado o arranjo social do Welfare Sta-te pelo refluxo da "onda longa expansiva"(MandeI, 1982) que se seguiu ao fim da Se-gunda Guerra Mundial, a solução encontra-da para manter a reprodução das taxas de lu-cro do capital foi uma redefinição do papel doEstado na arbitragem social, com a conse-qüente ressignificação do conceito de cida-dania. Convém observar, a propósito, que

a crise do Wclfare State explicita o fracassodo único ordenamento sociopolítico que. na

" Mestrando em filosofia da educação pela Faculda-de de Educação da Unicamp

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ordem do capital, visou expressamente compa-libilizar a dinâmica da acumulação capitalistacom a garantia de direitos políticos e sociaismínimos (Netto. 1993. p. 68).

Reconduzido o Estado a suas funçõesmínimas. quais sejam "prover uma estruturapara o mercado e prover os serviços que omercado não pode fornecer" (Hayek, 1978,apud Merquior, 1991, p. 191), e liberado o mer-cado para cumprir a precípua função de ins-tância ~lediadora das relações sociais, inevi-tável se fez que a significação teórico-práticade cidadania, como produto histórico dos em-bates de classes no interior da sociedade ca-pitalista, tenha-se alterado substancialmente.Ao cidadão sujeito de direitos historicamenteconquistados substitui-se agora o cidadãoconsumidor. O fenômeno da progressiva exclu-são social, já previsto por Marx, representa ocorolário lógico da nova ordem capitalista.

Ora, visto que o pensamento das classesdominantes é sempre, em última instância, o re-flexo das modificações operadas no interior dasrelações de produção, e tende a tornar-se o pen-samento dominante de uma época, patenteia-seo caráter ideológico dos "novos paradigmas"de explicação do mundo. Neoliberalismo, "qua-Iidade totar', pós-modern ismo, pós-estrutura-lismo, "nova história" são os semblantes multi-'

facetados dessa orquestração ideológica. cujopapel não se esgota na apresentação de alter-nativas, mas, como já salientamos, destinam-sea tornar inviável o espaço de operação de cate-gorias diversamente orientadas. É o domínio dochamado "pensamento único", que hoje se es-tende desde os produtos mercantis da indús-tria cultural e do "Jast thinking" mediático atéfreqüentes elaborações teóricas de periódicose produções acadêmicas.

Tratar tais vertentes do pensamento comosimples modismos inconseqüentes, reflexo noplano do pensamento, da obsolescência progra-mada dos produtos materiais no mercado globa-lizado, seria evitar a percepção do que há degrave e arriscado em tal empreendimento inte-lectual. Por di versificado que seja em suas mo-ti "ações e fontes inspi radoras, subsiste um

substrato comum, um núcleo categorial, que éa tendência ao irracionalismo.Quando se declaranão mais haver lugar para as "grandes narrati-vas", quando se confere uma ênfase hiperbólicaao caráter fragmentário, provisório e cambiantede toda elaboração teórica, quando se sobre-valoriza o emocional e o imaginário na constru-ção do conhecimento, quando se procura en-contrar paradigmas epistemológicos em filoso-fias de matriz irracionalista,como Schopenhauere Nietzche, o caminho se abre à recusa de qual-quer herança da razão iluminista.

Na intenção de tornar mais nítido essequadro de idéias, propomo-nos analisar sepa-radamente três manifestações que nos pare-cem mais inquietadoras, a saber, o pós-moder-nismo, o pós-estruturalismo e a /lOl'ahistória.Advertimos, no entanto, que as repetiçõestemáticas são inevitáveis, visto serem taismovimentos confluentes para concepçõesteórico-metodológicas comuns.

o pós-modernismo

Em entrevista à Revista Cultura Vozes, osociólogo francês PierreBourdieu simplesmentedescartou a relevância teórica do chamadopós-modernismo, considerando-o como "umabobagem". Alegava Bourdieu que, paradoxal-mente, se desenvolvem longos discursos parajustificar a pretensa inviabilidadeatual das "lon-gas narrativas". Por radical que seja, em suageneralização. é possível admitir que a fragili-dade teórica de muitas manifestações dessacorrente, aliada à multiplicidade caótica dos ní-veis e planos de análise, impedindo qualquersíntese minimamentecoerente, faça jus à taljul-gamento sumário.

De fato, o pós-modernismo parece, por ve-zes, muito mais um amontoado de slogans so-bre o fim da modernidade e sobre a "sociedadepós-industrial", do que uma elaboração teóricaque se pretenda filosófica. O que não tem impe-dido, no entanto, que o clima intelectual por eleinstaurado se revele profundamente corrosivo.

Proclama-se, resumidamente, a caducidadedas grandes sínteses teóricas derivadas dol1uminismo. () cerne da intenção iluminista.

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como viu Kant, reside na idéia de emancipaçãodo homem e da humanidade pelo exercício darazão crítica. O homem somente pode se auto-determinar como liberdade pelo saber racional.Pela razão ele se eleva à maioridade e conquistaa autonomia. Do conceito axial de razão críticaderivam a possibilidade da ciência, da verdadee da reforma das instituições, com seu corolárioúltimo: a Revolução. Embora representando aideologia da burguesia ascendente em sua opo-sição ao AI/ciel/ Régime, o IIuminismo detinhavetores que ultrapassavam os interesses de umasó classe e que apontavam para uma emancipa-ção universal. Claro está que, enquanto movi-mento de idéias mais que sistema filosófico, oIluminismo não é unívoco. A supervalorizaçãodo saber científicoconduziu a contrafações ma-nipulatórias da razão, à hipertrofia da razão ins-trumental. Isso ocorre, sintomaticamente, quan-do a burguesia revolucionária perde seu cará-ter universal. Todavia, nesse mesmo momento,por volta de 1848,o novo antagonismo burgue-sia-proletariadoexaspera a luta de classes, ense-jando a elaboração teórica do projeto de eman-cipação humana universal de Marx e Engels.

Ocorre que a crítica à modernidade realiza-da pelo pós-modernismo não se cinge apenas àhipertrofia da razão instrumental, mas dirige-seao conjunto da racional idade moderna e, cmespecial, à racionalidade marxista. Daí, por gc-neralização,a dccretação categórica da inviabili-dade de qualquer síntese explicativa do real. Emseu lugar, propõe-se uma tarefa empobrecedorapara a razão: já que não mais é possível a ambi-ção de um pensamento totalizante do movimen-to do real, que se concentre a análise no frag-ment,irio,noefêmero, nas singularidades irredu-tíveis. Se não é mais possível vislumbrar umsentido na história, que se refugic a razão nasparticularidades desconexas do quotidiano.Dessa forma, com o culto do fragmento, do queé efêmero e provisório, pretende-se dar adeus àRazão Iluminista.

O que realmcnte ocorre é quc o hábitomental do fragmcntário se instalou na mcntali-dade comum por influência dos mcios de comu-nicação de massa. Ao cxtrapolar essa cons-tatação cmpírica para o plano das impossibili-

dades teóricas, o pós-modernismo está aderin-do ao discurso dominante que faz das mass-media o instrumento por excelência de aliena-ção e de fetichização das relações sociais.

o pós-estruturalismo

Confesso desconhecer a razão do prefixo"pós" na designação desta vertente do pensa-mento contemporâneo. Talvez se deva à tendên-cia hoje generalizada de prestigiar a pretensasuperação dos paradigmas teóricos passados.De qualquer forma, essa versão mais recente dopós-modernismo vem se impondo como modis-mo de prestígio em certos meiosculturais e aca-dêmicos, constituindo novo desafio aos defen-sores da racionalidade objetiva. Se pensarmosque modalidades do estruturalismo, especial-mente as ligadas à antropologia de Lévi-Strauss, continham em germe uma filosofia ex-plosivamente anti-humanista e potencialmenteanti-racionalista, podemos considerar que seusucedâneo ampliou ou radicalizou a démarchejá em elaboração. A filosofia implícita no estru-turalismo é condensada por Lepargneur (1972,pp. 129-110):

A cultura produz a consciência; a verdade dohomem reside no inconsciente; à pergunta deNietzche: 'Quem está falando?', responde-se:'ninguém' ou 'ça' ou '0 sistema', 'o mistériodo ser'; numa palavra. trata-se da filosofia dapersonagem de Samuel Beckett que declara:"Eu sou feito de palavras, das palavras dosoutros."

Como ocorre em outras versões "pós-mo-dernas", os pressupostos teóricos nem sempresão claramente expostos e justificados, mas aproposta é manifesta: trata-se de uma contes-tação dos fundamentos das ciências sociais eda própria filosofia, embasada em desenvolvi-mcntos teóricos em torno do papel e da nature-za da linguagem. Como fontes inspiradorasmcncionam-se Foucault, Derida, Barthcs.

O sujeito histórico, fonte da práxis trans-formadora do real, sofre um descentração ese dilui, substituído que é pelo poder ubíquoela linguagem e pelas "práticas discursivas".

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"A linguagem constitui o sujeito" - esta, asúmu]a da filosofia pós-estruturalista. A ca-tegoria da política enquanto mediação essen-cial da práxis transformadora se dissolve,visto que o poder já não é referenciado a umcentro, mas é concebido como uma miríade defocos, de "micropoderes", em cujo nível se dáo jogo sempre reversível da dominação e da re-sistência. Os efeitos da "virada lingüística" nãose detêm aí. Transformada em linguagem, emdiscurso, a realidade destitui-se de toda obje-tividade. Já não é possível distinguir entre overdadeiro e o falso, porquanto a própria dis-tinção, criada pela linguagem, só possui valorcontextual. Se não há verdade no sentido for-te do termo, não existe igualmente razão parase falar de ideologia. O conhecimento objeti-vo transmuda-se em "representação simbóli-ca", os referentes apartam-se da significaçãoe ganham importância preponderante.

Ao lado da dessubstantivação do sujeito,da descentração da política e da descons-trução do conhecimento, o pós-estruturalismorealiza a "descausa]ização da história", quepassa a ser vista como lugar do fortuito e docontigente. Nega-se qualquer vínculo inteligí-vel de necessidade entre os eventos ou entreas relações sociais. Nessa ótica, o marxismo,porlador da concepção iluminista de progres-so e de razão na história, será visto "como umefeito involuntário, e apenas derivativo, de umaantiquada episteme vitoriana" (Zaidan Filho,1989, p.44). Se a existência de potencia]idadesimanentes no processo histórico, que cabe aohomem atualizar, não passa de ilusão, só reslaàs ciências sociais a tarefa descritiva da rea]i-dade, agora desprovida de qualquer dimensãoontológica. Pode-se indagar, então, que senti-do ainda resta à práxis política, uma vez que ascategorias normativas da práxis foram dissol-vidas e negadas pela idéia central do homemcomo linguagem. Em suma, se não há verdadefora do "texto", que papel cabe ainda à razão?

Diante de tal "filosofia", o que surpreendeé a aceitação acrítica que esse "novo paradig-ma" vem obtendo nos meios intelectuais brasi-leiros, a pretexto de "abertura aos novos discur-sos". Em considerações críticas cheias dc ambi-

güidades, Tomaz Tadeuda Silva (1994, pp. 247-248) termina por ena]tecer o papel positivo dopós-estruturalismo na superação dos "dogma-tismos" e das "metanarrativas". Como sempre,o que se visa com ta] discurso é a decretação dacaducidade do marxismo, ao ensejo da crise do"socialismo rea]". Confunde-se, sem mais, a cri-se de uma tradição marxista - o marxismo-]eni-nismo - com a tradição marxistaem geral. Pode-mos, sem favor, concordar com a recusa das in-terpretações talmúdicas da obra de Marx, o quecontraria, aliás, o próprio caráter dialético quelhe é essencial. Se Marx deve ser superado, éexatamente no scntido da auj71ebullgdia]ética:negação-conservação-superação. Reconhecer oque é periférico e datado em seu sistema, atua-]izar as virtual idades analíticas nele contidas,constitui tarefa inelidíve]do marxismoautêntico.

A Nova História

Nesse rápido esboço das tendências dis-sol ventes da raciona]idade, que lugar podeocupar a verlente mais recente na evolução darevista Allllales, a saber, a chamada "NovaHistória"? A dificuldade reside aqui não só naapreciação que se possa fazer de suas propos-tas mClodológicas preponderantes, mas tam-bém, já de início, na própria caracterização es-pecífica dessa escola ou movimento historio-gnífico. Dificuldade essa que se vincula, so-bretudo, ao fala da enorme produção recobertapor tal epíleto. Na inviabilidade, portanto, deefetuar uma apreciação crítica globa], cingimo-nos à consideração de alguns aspectos teóri-co-melodológicos que nos parecem geradoresde inquietação. Eles dizem respeito, no essen-cial, à ressignificação do conceito de ciênciahistórica com o abandono final no percurso dolongo processo de evolução teórico-meto-do]ógica no interior dos Allllales, de qualquerpretensão a ser uma elaboração totalizante domovimento do real. Pierre Nora é explícito:

É essa noção de história 10lal que me pareceproblemática hoje (...).Vivemos uma históriaem migalhas, eclética, ampliada em direção àscuriosidades, às quais não precisamos nosrecusar (1974. apud Dosse, 1992. p. 182).

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o desafio sempre presente em toda histó-ria dos Anna/es de integrar os progressos dasciências sociais - desafio a que não está ausen-te a constante preocupação de seus historia-dores em manter a hegemonia no campo acadê-mico e cultural- termina praticamente em capi-tulação final. A história se demite de seu esta-tuto científico autônomo e passa a constituir-se como "antropologia histórica". Como obje-to assume a descriçãoda "cultura material". Quenão nos engane o termo. Não se trata mais deanalisar a base material dos processos sociaise de articulardialeticamenteos dois planos numaexplicação totalizante dos eventos históricos."Cultura material" designa apenas um conjun-to de elementos etnográficos: "hábitos físicos,gestuais, alimentares, afetivos, hábitos men-tais" (Burguiere, 1990,apudDosse, 1992,p. 174).Nessa linha inserem-se trabalhos sobre a his-tória do gosto, da etiqueta, das manieres detable, tomadas como indicadores de diferenci-ação social. Mergulha-se então na descrição doscostumes que se manifestam no quotidiano.Este, o quotidiano, passa a ser o quadro privi-legiado dos "novos objetos" historiográficos:a criança, a mulher,a família, os marginalizadossociais, o homem comum. Essa microhistória ébem caracterizada por Carlo Ginzburg: "Propo-mos definir a micro-história e a história em ge-ral como a ciência do vivido" (1981, apudDosse, 1992,p. 175).Microobjetos que induzemos historiadores à busca de novas fontes do-cumentais: a tradição oral, a história de vida. amemória dos mais velhos, a iconografia e seme-lhantes. Ainda sob a influência da etnografia,um outro objeto será privilegiado: a cultura. Estaé vista sobretudo pela c1ivagem cultura erudita/ cultura popular. Campo certamente rico e pro-missor para o olhar histórico, não fosse o equí-voco em que, freqüentemente, se incorre ao dis-tanciar os dois níveis, ou em não se perceber ainterconcxão que se estabelece entre eles naconstituição do complexo cultural de uma soci-edade historicamente detcrminada. Introduz-se,dessa forma. uma hierarquia valorativa, atribuin-do-se ao pólo erudito o lugar dinâmico da mu-dança e do progresso e ao pólo popular traçosdc permanência, de rcpetição e de atraso. Uma

estranha dialética de duas tcmporalidades en-tão se estabelece: um tempo vivo, dinâmico, odas "elites", e um tempo morto, estático, o dascamadas populares. Acontece que a própriaidentificação da origem da cultura popular estásujeita a enganos. Como observa Dosse,

a adequação estabelecida entre uma cultura e opovo é artificial. pois essa cultura é, em geral,proposta ou imposta pelas classes dominan-tes, nas formas degradadas, específicas. desti-nadas ao povo, mas que não se enraízam nascamadas populares (Dosse, ]992, p. ]77).

Os equívocos não param aí. O erro maior da"história cultura!", ou etno-história, é tratar acultura como um domínio autônomo e não comouma instância superestrutural de uma socieda-de historicamente determinada. Omite-se assima determinação social da cultura, fazendo-a, aocontrário, a instância criadora do social.

Essas considerações sobre a vertente daetno-históriajá permitem introduzir a questãodo caráter ideológico que vem assumindo aNova História. É patente a postura conserva-dora - por vezes até reacionária - das novasproduções historiográficas. As turbulências demaiode 68 levaram boa parte da intelectualidadefrancesa a uma atitude de recusa a qualquerprojeto dc transformação estrutural da socie-dade do capital. O temor do futuro altera a vi-são do passado e os "novos historiadores" sedistanciam sempre mais do viés iluminista quevê na história potencial idades de progresso ede transformação social. A matriz teórica mar-xista é sistematicamente negada em sua valida-de analítica. Refugia-se então numa paradoxalhistória sem hislOricidade. A supervalorizaçãodo quotidiano, a que já nos referimos, enquan-to quadro privilegiado da duração, é indicativadessa intenção de evitar a dialética presente-passado-futuro, essencial a toda ciência histó-rica que assuma a tarefa de revelar o potencialtransformador inscrito no movimento do real.Se o presente é ameaçador, se o futuro está pre-nhe de incógnitas, melhor fazer da história umaciência neutra, apenas descritiva, desprovidade qualquer dimensão analítica politicamentecomprometida. Melhor ainda limitar-se à super-

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l"ície epiknomenal do devir histórico. aos mi-croobjetos, m icropoderes, microssaberes. "Cu-riosidodes·'. enfim. como confessa Pierre Nora.O modelo etnográl'ico presta-se então muitobem a essa história pasteurizada. história dostempos mortos, em que os connitos e toda mu-dança significativa foram exorcizados. Presta-se, ainda. à desconstrução do sujeito, da práxistransformadora. UI7IO histório sem homens: aaspiração de Braudel é retomada pela ovaHistória. que para tanto realiza a mutação cpis-temológica necessária à operação de desrefe-renciar o real. Não é sem razão que Foucault,praticante dessa história de múltiplos centros,a vê com confessa simpatia.

O resultado é que não se fala mais de "his-tória", mas de "histórias". Descrições, "curio-sidades": este o segredo do sucesso mercantilalcan<;ado pela Nova História. Se essa modali-dade de escritura histórica ocupa um lugar deprestígio na indústria cultural, é porque, comoobserva Dosse

a inlluência da etnologia no discurso hist6ricocorresflondc a esse poder invasor dos meiosde comunicação de massa que impõe sua lei esuas normas e é flonador de uma história cul-tural. ( ... ) Encontramos na escola dos Annotesum helo exemplo de adaptação a essa socieda-de dos meios de comunicação de massa. Ela seinstala C01ll0 moda cultural ao apresentar umahist6ria em migalhas em uma sociedade cadavez mais fragmentada (Dosse. 1992. p. I~O).

o mesmo cariz ideológico mani festa-se natentativa de suprimir as descontinuidades his-tóricas. de esvaziar os momentos de ruptura. Ossaltos qualitativos operados pelas revoluçõessão. dessa forma. destituídos de significaçãoprogressista. ou então considerados como pu-ros desvios da normalidade histórica, momen-tos de puro desvario totalitário. A interpreta<;ãodada por Marx à Revolução Francesa. comomomento histórico privilegiado de exasperaçãoda luta de classes e de superação do conrJitode classes antagônicas. interpretação esta re-tomada por Arbert Soboul. é submetida a umaradical re\'i~ã(l por François FureI. que. em sín-tese. vê na Revolução Francesa um período de

"desl'io do histório". Perde-se então toda a sig-nificação simbólico-universal que a RevoluçãoFrancesa assume na obra de Marx.

As considerações precedentes visavamsubmeter a Nova História a um olhar crítico, re-cortando alguns aspectos (entre outros pos-síveis) que nos pareceram inquietantes relati-vamente ao estatuto epistemológico da histó-ria. A nosso ver. esses traços são reforçadoresda tendência dissolvedora da racional idadeque encontramos em outras vertentes do pen-samenlo contemporâneo.

Todavia, das análises feitas poderia resul-tar a impressão de um inteiro negativismo, oque seria injusto em relação a alguns autorese obras catalogados na designação genéricade Nova História. Além disso, seria confissãode ingenuidade denegar os méritos de avançohistoriográl'ico na ampliação do campo de ob-jetos ainda não contemplados pela análise an-terior dos historiadores. Os equívocos não sesituam aí, mas no modo de tratamento teórico-metodológico que é dado a tais objetos novos,e no projeto ideológico subjacente à mudan-ça da concepção da história. Para efeito de sín-tese, algumas proposições básicas podem serdelincadas:

Há. na ova História. uma patcnte des-continuidade em rela<;ão às gera<;ões an-teriores dos AI/I/oles. muito embora algunstraços tcndenciais já estejam nelas presen-tcs. O próprio novo título quc assume arevista - "Écol/olI/ies. Societés. Ci\'ili--::,atiol/s" - é revelador de alteração de ru-mos substancial. O projeto inicial da revis-ta. o de ser uma história global, é totalmen-te riscado. Permanece. no entanto. a mes-ma ausência da categoria política. en-quanto mediação analítica fundamental.A intenção ele aproximar a história dosavanços metodológieos das ciências so-ciais tcrmina numa perda de autonomia ci-enlírica. dando a parecer que são estas-em especial a antropologia - é que vêm asubsumir a hist(íria.

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Realiza-se uma omissão progressiva dasdeterminações econômicas do movimentodo real, ou, quando estas ainda se apresen-tam, não possuem nenhuma prioridade emrelação a outras instâncias sociais. É sabi-do que os Annales sempre procuraram umavia intermediária entre o positivismo e omarxismo. Na Nova História, entretanto, háum refluxo em direção ao paradigma posi-tivista e um afastamento sempre mais acen-tuado do modelo marxista.

A procura de novos objetos, a influênciado modelo etnográfico e, por fim, a recu-sa de concepções totalizantes levam aNova História a uma fragmentação sem-pre crescente do objeto histórico. Assis-te-se, ao final, à construção de um "fan-tástico caleidoscópio de microobjetos"(Zaidan Filho, 1989, p.22) desprovidos desentido e de interconexões causais. Jánão subsiste a unidade histórica: a gran-de História dá lugar às "histórias".O modelo etnográfico, preponderantena escola, leva-a à perda da ambiçãoexplicativa do real. A história se resig-na com a dimensão puramente descriti-va. Renuncia a explicar porque a cate-goria da totalidade, fonte de sentido ede racional idade, tornou-se apenas si-nônimo de pluralidade do particular.Em correlato com a fragmentação do ob-jeto, estreita-se a dimensão temporal domovimento do real. O quotidiano passa aser o quadro de referência mais adaptadoà descrição dos microobjetos.Opera-se, concomitantemente, a descen-tração do sujeito histórico. O agente his-tórico coletivo, único capaz de transforma-ções significativas, é substituído pelo in-divíduo confinado às suas particularida-des. É sintomática, nesse sentido, a omis-são da categoria de classe social e de seucorrelato, a luta de classes.Em conseqüência, procura-se esvaziar osignificado das rupturas revolucionárias,reduzindo-as à condição de "desvios dahistória". Acentua-se, ao contrário, a im-portância dos bloqueios e das resistências

às mudanças. quando, com François Furet,se declara que "a Revolução Francesa estáterminada", fica patente a intenção ideo-lógica reacionária de sepultar o passadoinquietante e justificar a adesão ao discur-so dominante do capitalismo "globalizado".Tudo, enfim, conflui para o abandono da

visão iluminista da história como lugar dosprogressos da razão no conflitivo processo daemancipação do homem. Com a diluição daracional idade histórica, com o afastamentodefinitivo do modelo marxista, insere-se a NovaHistória no projeto geral, hoje tendencialmentehegemônico, da Desrazão.

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