O Perfeito Cavalheiro

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O Perfeito CavalheiroCATHERINE GASKINTtulo original: The property of a GentlemanRomanceLiteratura Anglo-Americana - sculo XXGuimares Editores, 1988Traduo de Maria Emlia Ferros MouraEsta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, este ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.Estranha herana...Na grandeza bravia de Lake District locaza-se Thirlbeck, remoto e antigo domnio dos condes de Askew. Para Joanna Roswell, chegada de uma famosa casa de leiles londrina para avaliar as suas antiguidades, Thirlbeck como algo sado de um conto de fadas, com o seu diamante de um valor incalculvel, soberbas pinturas e antigos mveis, tudo fechado e posto distncia dos curiosos.Mas a grande casa regurgita com outros segredos - antigos escnda los e maldies que durante sculos apavoraram uma nobre linhagem. E Joanna encontra-se gradualmente envolvida numa estranha e inesquecvel situao, que aparentemente lhe oferece a felicidade e o amor que ela procura e, ao mesmo tempo, abala a sua prpria existncia...Romance, mistrio e um pouco de histria.AFECTUOSAMENTE, A MEMRIA DE LEE BARKERMEU EDITOR E AMIGONOTA DO AUTORDesejo expressar a minha grande gratido ao Cristhie's pela bondade e generosidade demonstradas ao permitirem-me uma viso dos bastidores da maneira como trabalham. O objectivo da minha narrativa no , porm, o Christie's; nem to pouco os personagens se baseiam em pessoas vivas. Cabe-me inteira responsabilidade por os requisitos da fico terem exigido dos meus personagens certas atitudes que no esto de acordo com os princpios ou prtica de uma importante casa de leiles. PRLOGOCerca de metade dos noventa e trs passageiros, os que seguiam na reetaguarda do avio, sado de Zurique com destino a Paris e Londres, sobreviveram quando o aparelho se despenhou na vertente de uma montanha, pouco depois de ter levantado voo. Entre os que morreram, contava-se um novo membro do Gabinete de Ministros ingls, metade de uma equipa holandesa de futebol, uma antiquria londrina chamada Vanessa Roswell e um homem, supostamente holands, cujo corpo ningum apareceu a reclamar e cujo passaporte as autoridades, aps cuidadoso exame, descobriram ser falsificado.Horas depois do acidente, a filha de Vanessa Roswell e um amigo, Gerald Stanton, seguiam a caminho de Zurique com a desesperada e muda esperana de que Vanessa pudesse constar dos sobreviventes; tinham acabado de saber que Vanessa seguia nesse voo. Antes de deixar Londres, Gerald Stanton fez um telefonema a um scio na Cidade do Mxico que, por sua vez, realizou a faanha heroica de entrar em contacto pelo telefone com uma remota hacienda, situada nas montanhas a sul de Taxco; em seguida, um homem que detestava cidades, bem como viajar de avio, dirigiu-se Cidade do Mxico e apanhou o primeiro voo para a Europa - para qualquer cidade que tivesse ligao com Zurique, segundo pediu, em tom fatigado, ao funcionrio das reservas. Chegou no dia a seguir ao do avio se ter despenhado. Nevava, com a neve a embranquecer os horrveis destroos. O homem estremeceu, com saudades do sol mexicano. Os corpos das vtimas encontravam-se na escola da pequena aldeia prxima do local onde o avio se despenhara. O corpo de Vanessa Roswell j tinha sido identificado e dirigiu-se assim, e por indicao da polcia, a um hotel que ficava distante uns oito quilmetros. Ali foi encontrar, sentados silenciosamente diante de uma lareira, Gerald Stanton e uma mulher jovem, uma bonita mulher, segundo avaliou ao observ-la com o seu olhar de pintor e cujo rosto denotava, agora, uma expresso nublada de choque e de tristeza. Ela fitou-o sem o reconhecer. No era de admirar; h vinte e sete anos que no a via.- Joanna. Sou Jonathan... o teu pai, Jonathan Roswell - anunciou ele calmamente. CAPTULO INo foi, porm, do meu pai, Jonathan Roswell, que falmos nesse dia, ao almoo, duas semanas depois.- Suponho que um ano na priso modificaria qualquer homem, mastratando-se de cumprir uma sentena pelo homicdio da mulher e filho, deve ter vivido um inferno muito especial.Gerald puxou vagarosamente uma fumaa do cigarro, nada preocupado com a ideia de que ainda tnhamos uma longa viagem a fazer nessa tarde; abstive-me de olhar para o relgio. Ele ter-se-ia apercebido do gesto, que lhe desagradaria. Procurara deliberadamente este restaurante famoso e afastado da auto-estrada, bebera o martini, no grau exacto de securae arrefecimento, que o seu palato requintado exigia e acompanhara o almoo com vinho. Na medida em que eu ia a conduzir, limitei-me a um Tio Pepe.Passara o gnero de manh desapontadora e desgastante que, com frequncia, se experimenta quando se est metida no negcio dos leiles e ainda no me libertara da tenso que isso provocava. Mal comeara a prestar ateno ao que nos esperava.- O pai e o av enquadravam-se bem no modelo da excentricidadeinglesa e Robert acrescentou o seu toque pessoal de bizarria. Eram reclusos e autocratas no seu prprio mundo e um tal isolamento e distncia deve ter-se assemelhado ao seu reinado desses tempos. Robert discutia com o pai... era aparentemente um hbito entre pais e filhos Birkett. E depoisRobert cometeu a heresia de ingressar na Brigada Internacional durante a Guerra Civil Espanhola... e enquanto estava l casou com uma mulher da aristocracia espanhola que, como bvio, se opunha a Franco. Catlica, naturalmente. Robert s regressou a Thirlbeck para o funeral do pai.Tudo pareceu ajustar-se, de certo modo, ao inslito da sua vida, pelo facto de se encontrar, na realidade, de volta quando o acidente se deu. Assistiu por conseguinte, ao funeral do pai e, logo a seguir, ao funeral da mulher e do filho. Depois, acusaram-no de homicdio... afirmaram que ele estivera a beber e perdera o controlo do automveL (Uma sentena de um ano e reduo de pena por bom comportamento).- E suponho que se manteve fiel ao modelo desde essa altura: um prisioneiro no seu prprio mundo - retorqui com uma expresso distrada, pensando na viagem que me esperava, meio imersa no actual percurso at um outro pas e quase uma outra era, que tinha acabado de fazer.Gerald apagara o cigarro e apenas contribuiu para a minha impacincia, ao fazer uma pausa a fim de acender um outro. Apercebi- me de que estava novamente a fazer uma tempestade num copo de gua, a preocupar-me com pequenos detalhes. No fundo, estvamos num restaurante e no num leilo do Hardy's em St. James, o local que constitua o fulcro das nossas vidas. No Hardy's era proibido fumar em pblico ou nas grandes salas de venda e esta limitao de tempo e lugar fora-me inculcada desde os meus dezoito anos, quando era a mais nova empregada no balco da recepo. Gerald, que tambm era obrigado a respeitar a regra, fumava contnuamente noutras ocasies; andava muito prximo dos setenta anos e a dedicao de toda uma vida ao bom vinho e boa comida apenas contribura para o rosto um pouco redondo e uma leve faixa de gordura na cintura. Nem sequer tinha tosse de fumador. Suponho que se tivesse de dar um nome ao meu melhor amigo, esse seria o de Amigo. Eu tinha vinte e sete anos. Era agradvel ter um amigo que no constitua nem a mais remota ameaa de se tornar um amante.- Bem pelo contrrio - redarguiu Gerald. - Saiu da priso logo aps o comeo da guerra, em 1939, e alistou-se imediatamente. Julgo que era antiestablishment, antes mesmo que algum conhecesse tal palavra. Nada seria capaz de convenc-lo a aceitar uma comisso. Talvez tencionasse prestar servio na guerra, to anonimamente quanto possvel. No nascera, contudo, para o anonimato. Ganhou uma medalha em Dunquerque e uma condecorao no Saara ocidental. Recebeu esta ltima das mos do rei e deve ter sido esta uma das raras vezes em que um ex-condenado foi convidado a estar presente em Buckingham Palace: As pessoas que o conheciam, afirmavam que no possua fibra de heri: faltava-lhe imaginao e ficou to indiferente depois da priso, que no sentia o que quer que fosse. Pela minha parte, considero esta afirmao uma calnia. Lembro-me de Robert em Eton como um rapaz imensamente tmido, um aluno mdio, mas superdotado para o atletismo. O facto de ser bom no desporto grangeou-lhe fama, independentemente de a desejar ou no. Vi-o literalmente a tremer, no vestirio, depois de ter marcado mais de cem pontos no crquete e saa do campo de rguebi, parecendo roxo de frio, como se nem meio metro tivesse corrido e foi, no entanto, capito da sua equipa, no ltimo ano. Penso que no ficou mais de um ano em Cambridge, mas nesse espao de tempo ganhou a fita azul clara em vrios desportos. As pessoas sem imaginao no so assim, mas empenham- se de alma e corao no que fazem. Se Robert findou a guerra como provavelmente o soldado com maior10nmero de condecoraes do Exrcito Britnico, no foi por ignorar o que fazia. E manteve-se um soldado at ao final. Era quase embaraoso. Quando tudo acabou, fez um esforo resoluto para desaparecer. S que as pessoas como Robert tm dificuldade em desaparecer.- O que aconteceu?- Sei que tentou voltar a Thirlbeck, onde julgo que se manteve uns seis meses - replicou Gerald, franzindo levemente o sobrolho. - Em seguida partiu e tanto quanto sei, nunca mais voltou. Viajou por alguns dos lugares habituais: as Carabas, Itlia, Grcia. Era sempre o primeiro a descobrir a nascente e o primeiro a afastar-se quando o rebanho chegava. Fez parte do jet set, antes que algum soubesse da sua existncia. Ajudou a constru-lo. No entanto, sempre que o encontrei num dos lugares mais frequentados - refiro-me aos confortveis - dava sempre a impresso de ter regressado de qualquer stio estranho como lucato ou as ilhas Malvinas, ou de ter dobrado o cabo Horn contra a corrente. Conseguiu meter-se em vrias escavaes arqueolgicas, onde sempre desempenhou o papel de animal de carga, sem recolher quaisquer louros - prosseguiu Gerald que dificilmente reprimiu um arrepio ante a ideia de um tal desconforto. Acho que nunca teve morada fixa, mas sempre viveu em villas alugadas - acrescentou. - No voltou a casar. Tambm essa seria uma situao com demasiada continuidade para o seu temperamento. Teve, no entanto, provavelmente na poca dzias de amantes, algumas delas ricas, outras famosas e vrias as duas coisas. Todas elas bonitas, pelo que vi. Robert era um homem que exercia fascnio sobre as mulheres, sem que fizesse avanos ousados. Robert tem estilo, o que algo diferente do charme. Sempre o teve, mesmo nos seus tempos de rapazinho extraordinariamente tmido. Era capaz de derreter os coraes de qualquer mulher ou jovem que o vissem a avanar para bater na bola de crquete. Como vs, tem um passado histrico.- Que estranho! - exclamei, apercebendo-me em simultneo que, l fora, a luminosa manh de Abril se transformara numa tarde cinzenta, ameaando chuva. - No me recordo de ter ouvido falar nele. E no sou to preguiosa que deixe de passar os olhos pelas colunas sociais.- Bom. Atribui a circunstncia ao facto de que, agora, ele est pro vavelmente no comeo dos sessenta - observou Gerald, com um encolher de ombros. - Desde os anos 40 que no vive em Inglaterra. No um dos jovens na berra. H ainda a dizer que, nos ltimos anos, a sua falta de dinheiro do conhecimento pblico. Para ir directo ao assunto, est provavelmente falido. Deixou de comprar jias para belas mulheres e no d recepes. Pode ter-se tornado no recluso que imaginaste Por uma questo de necessidade e no de escolha.- A no ser que decida fazer um leilo, aps o que desaparea e viva dos lucros.11Nos lbios de Gerald desenhou-se um ligeiro esgar. Ergueu a mo, a fim de pedir a conta ao criado.- Minha querida Joanna... - pela forma como o disse, apercebi-me que o meu comentrio lhe desagradara. - Fico, na realidade, surpreendido por nesta altura no te mostrares mais discreta. No houve um sussurro que fosse de leilo. Apenas estamos a par de que ele atravessa uma situao econmica difcil e que regressou, ainda nem fez uma semana a uma casa que se sabe no ter visitado desde 1945. - Acompanhou as ltimas palavras com um gesto irritado. - Aps cerca de uns trinta anos de ausncia, desconhecendo o estado em que ela se encontra. Tanto quanto sabemos, pode no haver nada para leiloar. Estas velhas casas... sabe-se l...- Porque vais, nesse caso?- Fui convidado. esse o motivo - retorquiu Gerald, voltando a instalar-se na cadeira, de onde fizera meno de se levantar. - Um convite quer dizer qualquer coisa. Quando ele entrou em Eton, eu estava no ltimo ano. Recordo-me que, uma vez, Lhe fiz um pequeno favor, o gesto mais insignificante que um finalista pode ter com o objectivo de proteger o caloiro que ingressa nesse brbaro sistema educacional. Ignoro se ele se lembra ou no desse facto. Nenhum de ns lhe fez, obviamente, meno desde essa altura. - prosseguiu, desaparecidos os vestgios de irritao. Neste negcio e como muito bem sabes, Jo, vamos a todos os stios para onde nos convidam socialmente e mantemos os olhos bem abertos, pois h sempre a possibilidade de que decorridos vinte anos, algum possa querer vender o seu Condestvel, ou o seu servio de Svres e que pensem no Hardy's, antes de Lhes ocorrer o Christie's ou Sotheby's. Este convite, porm, no se assemelha a tantos outros. Pode ser que me engane, mas pressenti uma espcie de necessidade desesperada por parte de um homem solitrio, que volta, a um lugar que lhe desagrada, um homem com poucos amigos em Inglaterra e talvez um medo daquilo onde regressa. Quando me pediu que me encontrasse com ele no clube, h cerca de dez dias deu-me a impresso de um homem que se debate com qualquer dvida. Precisa de conselho... talvez precise de ajuda. Julgo que por isso que me pediu que viesse.Ps-se em p e baixou o olhar na minha direco.- E foi por isso que te pedi que viesses comigo - concluiu, dirigindo- me um sorriso afectuoso. - Todos ns precisamos dos amigos, Jo. Esperei at que Gerald pagasse a conta, exagerando um pouco na gorgeta, como era seu hbito; em seguida, dirigiu- se casa de banho com um passo leve. Sentia-me, Simultaneamente, aquecida pelo seu amor e aborrecida com a minha falta de sensibilidade, Sa para o parque de estacionamento e passei o tempo de espera a despejar o cinzeiro, a limpar o prabrisas, a tirar o p ao tablier, a consultar novamente o mapa, tudo isto para alm de me amaldioar por ser uma idiota. Iria passar a minha vida a dspejar 12cinzeiros, porque foi isso o que me haviam ensinado? Contudo, tinha aprendido bastante mais no Hardy's e, entre outras coisas, um tipo de respeito por pessoas como Gerald, que pareciam saber bastante mais do que alguma vez eu poderia esperar. Estava, por conseguinte, disposta a despejar cinzeiros, a carregar-lhe a mala e a conduzir-Lhe o imponente Daimler, porque Gerald no gostava de guiar, s pela experincia de usufruir da sua companhia, de visitar uma casa como o fizeramos nessa manh e observar o seu olhar perspicaz a percorrer uma biblioteca, alguns quadros e uma coleco de cermica, enquanto eu tirava apontamentos. Era uma pessoa privilegiada e sabia-o; e no conseguia igualmente suportar o que era muitas vezes demasiado evidente - no podia suportar a esperana, tristemente revelada na expresso ansiosa do proprietrio, que simulava indiferena. No me escapava, porm, a pobreza das salas outrora elegantes, o frio de casa sem aquecimento e a enorme negligncia dos jardins. At mesmo eu, que no era entendida em quadros, conseguia determinar se o quadro pertencia escola de Reynolds ou Romney e que por debaixo da sujidade de outra tela enorme havia apenas uma cpia de m qualidade de Rubens. Sempre que quadros destes apareciam para leiloar no Hardy's podiam, hipoteticamente, ser etiquetados com estes nomes, mas tal apenas significava que o Hardy's os considerava como tendo sido pintados por volta da poca de Reynolds ou Rubens. Caso o Hardy's decidisse colocar as iniciais do pintor no catlogo, tal significaria que um dos alunos ou um colaborador prximo desse mestre podiam ter feito o trabalho. Ter colocado na tela a etiqueta de Sir Peter Paul Rubens daria todo o peso da autoridade de uma importante casa de leiles por detrs e constituiria um significativo leilo de obras de arte. Quando Gerald e eu nos deslocmos manso Draycote nessa manh, j souberamos que no existia ali uma notvel obra de arte. - No fundo, sabemos onde est tudo, ou seja, a sul de Walsh observara Gerald, enquanto subramos o gramado coberto de erva daninha. - H muito pouca coisa a descobrir e no espero encontrar nada aqui. Na medida, porm, em que as pessoas nos pagam para virmos fazer uma avaliao... - Encolheu os ombros como que a afastar a ideia, mas no ntimo eu sempre considerara que as despesas de viagem para avaliao pagas pelo Hardy's eram muito modestas.O proprietrio da manso Draycote agradara-me bastante. Era um homem delicado e triste que ficara vivo h alguns anos e, agora, vagueava pela casa como uma alma perdida, interrogando-se onde ir buscar o dinheiro para a manter. Teria gostado que houvesse algo que achssemos poder alimentar as suas esperanas. O que ele possua para vender garantir-Lhe-ia algum dinheiro, mas no era motivo para entusiasmos. O produto do leilo no bastaria para deter a decadncia que o rodeava. Os meus olhos tinham pousado instintivamente nos vasos de balastre com tampa que ele mencionara na carta. Julgava serem Fumille Noire. No eram. Tratava-se13 de imitaes bastante pobres, produzidas em Inglaterra durante o sculo passado. Contou-nos que o av lhe dissera que tinham vindo da China. Senti-me destroada com a sua desiluso. Tambm eu esperava que fossem, realmente Famille Noire. A minha especialidade era a cermica. Dei xara, no entanto e obviamente, a Gerald, que era mais velho e antigo direc tor do Hardy's, a incumbncia de Lho comunicar. Estava furiosa comigo por sentir o seu desapontamento e, no entanto, caso no tivesse ficado desiludida por no haver qualquer Famille Noire, no poderia ter trabalhado todos aqueles anos no Hardy's, no teria despejado cinzeiros a Gerald a troco do mero privilgio de aprender por seu intermdio, nem teria passado da patente de aprendiz, abrindo caminho para um conhecimento aceitvel, uma viso perspicaz e a esperana remota de que algum dia viria a tornar-me uma perita, a perita, cujo nome serviria para autenticar uma pea. A meta ainda estava longe.Enquanto aguardava, puxei o espelho lateral para baixo e arranjei o cabelo. A face que via reflectida parecia-me sempre pertencer a uma estranha. Seria por tentar agradar a demasiadas pessoas com demasiada frequncia, sem nunca haver proporcionado a mim mesma a oportunidade de deixar que a minha personalidade transparecesse nele? Tratava-se de um rosto bastante bonito; at a sabia-o por outras pessoas. Fizera o meu papel no balco da recepo do Hardy's e muitos homens, velhos e novos, me tinham sorrido. Gerald gostava que Lhe conduzisse o automvel no apenas porque eu guiava bem, mas pelo meu ar, da mesma maneira que apreciava os seus martinis, secos e gelados. Aps ter acabado o meu perodo experimental no balco da recepo, qualquer espirituoso no Hardy's comentara que Jo Roswell desaparecera na poeira do departamento de cermicas para no mais se ver. Vinte e sete anos. Nem velha nem to pouco uma jovem. Escovei mais resolutamente o cabelo e prestei mais ateno aos lbios. Toda a minha paixo e verdes anos iriam perder-se na Famille Noire? Logo de seguida avistei Gerald, que atravessava o parque de estacionamento em direco ao automvel e, semelhana de uma eficiente guia intrprete, saltei do carro e apressei-me a ir abrir-lhe a porta. Fi- lo sem que conseguisse dominar-me. Raios! No me corria outro sangue nas veias para alm daquele que o Hardy's me pusera l dentro?Contudo, o Hardy's corria-me no sangue, quer me agradasse ou no. Nem se havia verificado uma sombra de recusa, quando Gerald me sugerira que o acompanhasse nesta visita, aparentemente e tanto quanto sabia casual, a Thirlbeck, residncia de Robert Birkett, dcimo oitavo Conde de Askew, onde poderamos encontrar tesouros ou, para me servir de uma das frases preferidas de Gerald, um monte de lixo.14 Gerald tinha-me indicado que tomasse pelo desvio da autoestrada em Penrith. Tinha julgado que riamos encontrar uma fila de carros na direco de Lake District nessa tarde de sexta-feira, agora que a M6 tornara muito mais rpido o acesso de Manchester; era, no entanto, primavera e ainda fazia frio e o trfico, excepo de camies de longo curso que se dirigiam fronteira e Esccia, escasseava; uma chuva cortante dificultava a viso e os camies atiravam lama para o pra- brisas, quando os ultrapassvamos. Os limpavidros produziam um rudo montono; Gerald dormitava, exactamente como eu previra, e fiquei entregue aos meus pensamentos.Gerald tinha representado tanto na minha vida e ainda representava, guiando-me, acotovelando-me, empurrando-me, sempre que eu dava a sensao de titubear ou hesitar. Tinha sido provavelmente o mais ntimo e velho amigo que a minha me possura. Haviam-se conhecido pouco depois do meu nascimento, quando ela estava a tentar montar negcio em Kensington Church Street; Gerald apresentara-a a outros comerciantes, ensinara-lhe muito do que ela sabia sobre antiguidades, conservara-se, amigavelmente, de olho nos seus bastante caticos mtodos de negociar, tentara refrear-lhe os excessos temperamentais e, por vezes, falhara. Tinha-se conservado como espectador indulgente de uma srie das suas ligaes amorosas e sempre estivera presente para a consolar ou elevar- lhe o moral, quando as mesmas atingiam o fim inevitvel. Nunca lhe tinha pregado sermes nem tentado modific-la. A minha me fora uma mulher bonita, apaixonada e exuberante e Gerald sempre a apreciara devidamente num mundo excessiva e frequentemente cheio de pessoas estpidas e seguras de si. Eu amava Gerald por tudo o que fizera pela minha me e, com a morte dela, quase me parecia agora ter-me esgueirado para o seu lugar, embora fossemos diferentes em muitos aspectos. Gerald tinha-se sentado ao meu lado no avio para Zurique e nunca me dera falsas esperanas de que a descobriramos entre os sobreviventes. Mantivera-se, de p, ao meu lado quando eu fora obrigada a identificar o corpo. Fora o seu telefonema que trouxera o meu pai do Mxico. Gerald tinha sido uma presena universal na vida de Vanessa e na minha tambm.Gerald tinha sido, obviamente, o responsvel pela minha iniciao no Hardy's, ele e o facto de Vanessa ali comparecer todas as semanas, observando, assistindo aos leiles sempre que algo a interessava, obtendo por vezes uma pea de qualidade por baixo preo e, outras, vendo-a ir parar s mos de um antiqurio que tinha um cliente especial em mente para proceder revenda. Vrias aquisies tinham sido inspiradas, algumas boas, outras idiotas; as idiotas oravam uma louca extravagncia. Esta qualidade do temperamento da minha me fora bem conhecida e no me tinha, 15 segundo creio, ajudado, quando me apresentei para a entrevista com o director do Hardy's. Houve, no entanto, outros pormenores positivos. Na sua melhor poca Vanessa havia sido igualmente brilhante e com um olho arguto, quando se dispunha a us-lo. Creio que a entrevista dependeu dos directores acharem que eu podia ter herdado o seu brilhantismo sem me precipitar na apreciao. Nessa altura, aos dezoito anos, eu atingira a idade certa. Era prefervel, aos seus olhos, menos educao do que muita no sentido errado. "Se deres boas provas", dissera Gerald, "ensinar-te-emos o que precisas de saber. um trabalho duro, excepto se parasitares e nesse caso estars longe, muito antes de teres acabado o perodo experimental. Se, por fim, te aceitarmos num departamento, trabalhars como a Vanessa nunca trabalhou na vida. Se ficares... bom, no preciso de te explicar o que te levar a achar que valeu a pena. A propsito, o dinheiro vem mais tarde, quando tivermos certezas a teu respeito". As palavras fizeram-me recordar um pouco os jesutas, devotados na conquista dos espritos dos jovens e seguros de que, posteriormente, se verificaria uma devoo inquebrantvel, quase fanatismo. Eu fora aprovada na entrevista, enquanto Gerald tivera o cuidado de se ausentar, e ocupara o meu lugar no balco de recepo, como acontecia durante algum tempo a todos os que trabalhavam para o Hardy's. Tudo havia sido maravilhoso, excepo do ordenado de principiante. Tivera tudo a meu favor: a minha vistosa e extravagante me, que me fazia um aceno apressado ao subir a grande escadaria para as salas de leilo, quase sempre profundamente imersa em qualquer conversa com um antiqurio, quase sempre, segundo observava, um homem; havia, igualmente, Gerald que era meu amigo e meu mentor e, tambm, o facto de que no constitua um impeditivo ser a filha de Jonathan Roswell, alguns dos quadros do qual comeavm ento a aparecer nos leiles e a atingir preos assinalveis. Naquela poca ao balco de recepo, os homens sorriam-me e Vanessa apercebera-se disso e aprovava; ter-se-ia sentido desiludida com uma filha, qual os homens no ligassem. E, em seguida, aps um ano de balco, algum decidira onde poderia estar a minha vocao e fui para o departamento de cermicas. Nos anos seguintes passei a ver Vanessa cadda vez mais raramente, pois alugara um apartamento para mim. Continuei a trabalhar, a ganhar maturidade, a construir uma vida para mim prpria e espera de que qualquer coisa acontecesse, talvez espera de me tornar uma outra Vanessa ou de me tornar eu mesma. Nenhuma dessas coisas aconteceu. At ao dia do acidente de avio eu parecia meramente a criatura sada das mos de Vanessa, de Gerald e do Hardy's.A chuva transformou-se em nvoa. Os camies eram agora em menor quantidade. Usufru daquela sensao de poder no enorme automvel, da sensao de me encontrar praticamente s naquela autoestrada rectilnea. Tinha que prestar ateno para no passar do limite dos cem quilmetros horrios. Gerald gostava de uma conduo rpida e suave, mas ficaria aborrecido se me multassem por excesso de velocidade; iria parecer-lhe uma16prova de mau gosto. Era estranho que Gerald gostasse de automveis grandes e potentes e, no entanto, jamais tivesse conduzido de boa vontade, desde a altura em que sara do exrcito, no final da guerra. Tornava-se impossvel imagin-lo em qualquer veiculo que funcionasse mal ou fizesse rudos. A suavidade conjugava-se com todo o comportamento de Gerald, com todo o seu estilo de vida. Eu no havia, obviamente, testemunhado a forma como enfrentara a crise dos primrdios da vida; vira o retrato da mulher com quem se casara e que, ao morrer, deixara Gerald sem filhos, senhor no s dos seus significativos rendimentos privados mas tambm da considervel fortuna que ela lhe legara. Para alm, sim, do que ganhava no Hardy's, onde se encontrava em permanente ascenso e desempenhava um cargo administrativo juntamente com as suas funes no departamento das avaliaes, tinha dinheiro para fazer um tipo de vida susceptvel de lhe haver proporcionado a convivncia de pessoas que haviam confiado ao Hardy s a venda de alguns dos seus bens mais preciosos, pessoas que no desejavam publicidade relativa a esses leiles. Quem iria saber, excepto Gerald e poucos mais, se as pratas georgianas tinham sado para venda da caixa forte do Banco? Quem iria saber que se fizera uma imitao de um colar e que s o olhar do perito consegue detectar? Gerava-se, evidentemente, um interfase muito mais vincado se qualquer pea para leiloar fosse conhecida; quanto maior publicidade, mais elevado era o nmero de pessoas que acorria ao Hardy s; sempre que se conhecia a provenincia da obra, o dono ficava de posse de mais referncias e algumas peas eram demasiado clebres para que a sua venda em leilo passasse despercebida. O mundo da arte vendda em hasta pblica estava a rarear. O que se passava nos gabinetes dos antiqurios particulares era considerado apenas de sua conta; o Hardy's no podia dar-se ao luxo de deixar que qualquer sombra de dvida pairasse sobre as suas transaces. A discrio era tudo; a discrio e a avaliao. Quem aparecia e fazia uma oferta pelo qu e para quem, tambm s dizia respeito ao cliente. O Hardy's, no entanto, oferecia ao escrutnio pblico o que tinha para venda, mencionando qual a provenincia e colocando todo o peso da reputao da firma por detrs do que considerava genuno, deixando unicamente deciso do comprador aquilo que oferecia dvidas. Tratava-se de um jogo de risco e aposta, muitas vezes de grande excitao, dissimulada sob a capa da maior calma. Havia uma parte que se revelava, uma outra igual que ficava oculta e no mbito do acaso. Contudo, nesta poca de inflaco, era cada vez mais elevado o nmero de pessoas que pareciam dispostas a aceitar a aposta de que a obra de arte que compravam valia mais do que o dinheiro que tinham pago em troca. Pessoas, parecidas com aquele homem triste que havamos visitado na manso Draycote nessa manh, rebuscavam os stos, sempre que apareciam anncios nos jornais, a informar das fabulosas quantias em dinheiro que uma aparente ninharia atingira em leilo. As miniaturas eram observadas novamente com esperana, juntamente com a espalhafatosa coleco de ces chineses; pegavam17cuidadosamente num ou dois pratos do servio de jantar que tinha sido arrumado nas ltimas prateleiras da cozinha, no tempo da av. Poderiam verificar-se desgostos ligados venda de qualquer pea nica ou de toda uma coleco, dissimulados segundo as esperanas do proprietrio, por detrs da discrio do Hardy's e sob a obscura designao de propriedade de um cavalheiro, ou qualquer outra generosa meno destinada a salva guardar o orgulho. Era bbvio que todos os elementos, desde o nome do proprietrio, ao comprador e no caso do objecto ter anteriormente passado pelas mos do Hardy's, ficavam registados nos livros encadernados em cabedal e conservados desde a sua inaugurao em St. James, h quase duzentos anos. Aqueles livros tinham sobrevivido, por milagre, ao bom bardeamento das instalaes durante a guerra. Pensava muitas vezes que havia bastante gente que desejava que tal no tivesse acontecido. Deve ser triste recordar que constava nos registos que, uma coisa vendida nos anos 30 por umas meras centenas de libras, valia agora muitos milhares, medida que a inflaco aumentava. O orgulho desejaria, indubitavelmente, que alguns daqueles registos de leiles desaparecessem, em particular por parte dos que ainda fingiam ter as pratas no cofre forte ou ali conservar as jias por questes de segurana. Quantas dessas coisas Gerald conservava ainda na memria, Gerald que, por vezes, me parecia ser o eptome do Hardy's.Gerald tinha frequentado as instituies escolares correctas e passado a vida entre os ricos e os poderosos. Jovem demais quando tinha rebentado a Primeira Guerra Mundial, estivera ao servio de um famoso general na segunda. Nada de medalhas para Gerald, mas sim contactos teis, tanto a nvel poltico como militar. "Nunca tive a fibra dos herbis, minha querida", confessara-me um dia, ao referir-se ao seu servio militar. Havia, no entanto, revertido tudo em seu benefcio e para vantagem do Hardy's. Falava fluentemente francs e italiano, o que fazia parte do cenrio nas reunies de gente rica. O seu olhar rpido e perspicaz tinha detectado muitas obras de arte em casas que s abriam as suas portas a convidados. Os seus dirios de guerra nunca viriam a ser publicados; a minha me contara-me que eles continham um registo do avano e recuo dos exrcitos e eram nicos nas referncias s casas dos ricos e dos nobres, que tinham surgido no caminho desses exrcitos. Ningum sabia, ao certo, quantos conselhos Gerald proporcionara Comisso de Obras de Arte dos Aliados sobre os locais onde poderiam ir buscar obras de arte saqueadas, os tesouros desaparecidos. No era o tipo de assunto que ele alguma vez abordasse. Conservara o seu registo particular daqueles que haviam ficado sem casas nem fortunas. Com os seus modos cavalheirescos e pacientes e sem o mnimo de sobranceria, dedicara os tempos livres a contactar com essas pessoas, indagando delicadamente se qualquer dos tesouros sobrevivera, de qualquer maneira, ao holocausto, destruio, aos anos de fome que se seguiram. Para alguns, os anos continuaram a definir-se pela fome, mas a fome no apagara o orgulho.18Tornara-se necessrio algum do tacto de Gerald para lhes sugerir maneira de minorar o problema. Foi, muitas vezes, por intermdio de Gerald, do seu dirio e da sua prodigiosa memria, que qualquer pea fabulosa surgira nos leiles do Hardy's.Esta parada de hoje situava-se no mesmo mbito e resultava do instinto de Gerald quanto a programao, pacincia e tacto e dos seus contactos de longa data. E eu encontrava-me ao seu lado neste momento, porque assim ele o quisera e tambm porque eu regressara do Mxico h dois dias apenas e o choque da morte da minha me, bem como a magia do homemque era o meu pai, ainda pairavam sobre mim, tal como o queimado do sol do Mxico, visvel nos meus pulsos, por cima das luvas de conduzir.Foi Gerald que nos impelira a tomar a deciso de enterrar o corpo de Vanessa no cemitrio da pequena aldeia sua. "Ela no era religiosa" declarou com razo "e este lugar indubitavelmente mais agradavel do que Highate". Depois da cerimnia e junto s filas de sepulturas recentemente cavadas, Jonathan virara-se na minha direco. "Queres vir passar algumas semanas de sol e de calma, Jo. Nada mais h do que isso. tudoo que tenho para te oferecer agora". Tinha sido Gerald a levar-me a tomar a deciso. "Devias ir, Jo. Encarregar-me-ei de tudo no Hardy's. Tens direito a umas frias, no verdade? De qualquer maneira, sei que tencionam dar-te uns dias. Ser prefervel no regressares a Londres, agora. Ters tempo daqui a umas semanas."Mas... eu", hesitei, olhando para o estranho que era o meu pai nunca visto at esse momento e que estava a propor-me que o acompanhasse, que aprendesse a conhec-lo, depois desta ausncia de vinte e sete anos. "... No trago roupas", conclu desajeitada e estupidamente."Compraremos algumas na Cidade do Mxico. No precisars de muita coisa. San Jos um stio remoto e antiquado. Vens, Jo?". Era uma pergunta, um desafio quase e respondera-lhe com um aceno de cabea afirmativo, o que no lamentei.San Jos revelara-se como meu pai a tinha descrito: simples, remota, com um estilo de vida praticamente campesino, habitada pelos numerosos descendentes da famlia Martinez que tinham obtido a concesso original daquela vastido de acres de Isabel e Fernando e licena de extrair a prata das minas concedidas por posteriores reis de Espanha. Eram orgulhosos e muito pobres, aderiam com obstinao ao mito de que eram ainda espanhis, de que nem uma gota de sangue ndio lhes corria nas veias, o que todos no Mxico reivindicavam, sem que o acreditassem. A sua enorme hacienda encontrava-se beira da runa. Jonathan tinha-me contado que, h vinte anos, a descobrira e tinha pedido para alugar uma das arruinadascasas das redondezas para lhe servir de estdio e habitao. Haviam- lhe concedido o estdio pelo preo dos materiais para consertar o telhado e, a partir dessa altura, Jonathan passara a viver ali na qualidade de membro da famlia, o membro mais rico que pagava extras dispendiosos tais como19electricidade, transporte e a comida, que eles no podiam plantar. Nessa poca fra uma despesa enorme e dias tambm penosos. Aquela gente no compreendia a sua reputao mundial por pintar o que eles consideravam de forma alguma verdadeiros quadros e, por conseguinte, no levavam o seu trabalho a srio. Para aquela gente apenas contava a generosa preocupao de que lhes dava provas no sentido de dar continuidade sua forma de vida, embora as minas de prata estivessem h muito fora do seu con trolo e vivessem o melhor que podiam do que a terra pobre Lhes oferecia.Era por esse motivo que aproximadamente cinquenta crianas de olhos pretos - os seus ninos como lhes chamava - o seguiam por todo o lado, tagarelando e lutando pelas suas atenes. E1 Ingls - era como o tratavam - e no um Ianque. E havia tambm a bonita mulher de olhos negros e cerca de trinta anos que adivinhei ser a sua amante, uma viva com trs filhos nenhum dos quais era dele. A familia considerava mais outra bizarria que o meu pai a tratasse com tanta generosidade e delicadeza. E assim se deixara ficar, trabalhara e vivera como parte daquele grupo familiar durante vinte anos e, na qualidade de sua filha, encaravam-me como um objecto de curiosidade e quase de venerao. De incio, achei esta situao estranha e desconfortvel mas acabei por me render ao lugar, quela gente delicada e atenciosa e atmosfera de uma vida de h sculos.Conseguia lembrar-me de ter ficado ao lado dele, observando o grande aqueduto de pedra do sculo dezasseis que continuava a fornecer gua hacienda, de rosto virado para o sol."Como lmpido este ar... e a luz to intensa", comentei. "A luz de um pintor, Jo", replicou. "Vejo tudo nela: contornos e formas, tudo o que necessito. Cores fortes e vivas e sombras escuras nesta paisagem que diz tudo aquilo que eu pretendo dizer. Nunca tentei pintar o que vejo, mas apenas o que os contornos so". Fra isto, acrescido ao seu poder de concentrao, o que o transformara num dos melhores pintores abstractos do mundo. "Nunca abandonarei este lugar", prosseguiu. "Se saisse daqui, morreria. E morrerei, antes de sair daqui. Enterrar-me-o com o resto da famlia, Jo... ali naquele terreno ao lado da capela. Compreenders, no verdade, Jo? Tal como deixmos Vanessa naquela vertente. No um stio desconhecido. Aqui a minha ptria".Naquele curto espao de tempo eu tinha, de certo modo, tomado conhecimento e compreendido.Soubera, finalmente, qual o motivo por que ele e Vanessa se tinham separado, soubera porque que nunca poderiam ter ficado juntos. Tornava-se impossvel imagin-lo em qualquer outro lugar. E quando o vira tossir, mal chegara atmosfera poluda da Cidade do Mxico, compreendera muito mais coisas. Apenas se mantinha vivo naquela elevada e lmpida atmosfera das montanhas num clima tropical, tapado com pesados cobertores e aque cido por fogueiras que ardiam durante a noite, protegendo-o do repentino e cortante frio. Era nesta serena e pura atmosfera que respirava, vivia e20trabalhava. Fizera bem em pedir-me que o fosse visitar; agora, eu tinha um pai ao qual no s conhecia, mas tambm comeara a compreender.Em seguida e de regresso a Londres, com as malas ainda quase por desfazer, recebera o telefonema de Gerald a comunicar-me que queria que fosse visitar duas casas na sua conpanhia e que me era dada permisso do meu director, Mr. Hudson, para permanecer com Gerald os dias que fossem necessrios. Li a correspondncia acumulada no meu apartamento - na sua maioria cartas de condolncias pela morte de Vanessa e no me sentira com coragem para comear a responder-lhes. Fiz umavisita ao Hardy's e todos se mostraram atenciosos, pronunciaram frases simpticas a respeito de Vanessa, mesmo aqueles que eu sabia no a terem, de facto admirado. Troquei impresses sobre os pormenores desta viagem com Gerald, deambulei um pouco pelo rs-do- cho do Hardy's, metendoa cabea em departamentos que raras vezes visitava - h quanto tempo no fora seco de armas e armamento? - ou parara algum tempo a examinar os vestidos alinhados no expositor? - ou a fila de bonecas espera de um leilo especial? Subi ao andar de cima e passei vinte minutos a assistir ao leilo de quadros ingleses, bastante importantes; os preos subiam, perante a animao de uma numerosa assistncia, tinham montado um circuito fechado de TV para outra sala. Tudo se processava como habitual mente, numa atmosfera de despreocupao e familiaridade, enquanto os vrios antiqurios murmuravam comentrios custicos ou depreciativos sobre as aquisies dos outros antiqurios. Tudo se distanciava enormemente dolmpido e calmo silncio de San Jos e da montanha coberta de neve na Sua. Eu estava de regresso ao meu velho mundo, mas algo havia mudado. Num caf, em Jermyn Street, fui cumprimentada por dois novos especialistas do departamento de moedas e miniaturas do Hardy's. Comemos por falar do Mxico e, em seguida, a conversa reverteu para o Hardy's: leiles programados e preos esperados: nenhum de ns conseguiu evit-lo. ramos todos assim. Interroguei-me sobre durante quantos anos faramos a mesma coisa, s que os preos discutidos seriam diferentes. Fui dar a minha rotineira doao de sangue ao St. Giles Hospital - um carto metido entre o monte de correio, servira para me lembrar. Depois fui para casa, preparei umas costeletas para o jantar, sentei-me e desejei que o telefone tocasse e Harry estivesse do outro lado da linha; contudo, Harry no me telefonou. Tinha-me enviado trs telegramas, longos e extravagantes, para o Mxico, mas nenhuma mensagem me chegava aqui. Comecei a fazer novamente as malas para esta viagem com Gerald. Senti uma espcie de aperto na garganta ao pensar em Harry Peers. Gerald contara-me que Harry se metera num avio para a Sua, sem avisar, no dia em que eu partira com o meu pai para o Mxico e que no me apanhara. Harry era assim. Acabei por telefonar para o seu apartamento e o criado informou-me de que Mr. Peers estava fora do pas e ignorava quando voltaria. Restava-me, portanto, esperar que ele telefonasse. Desejei sentir-me irritada com ele, mas21era-me impossvel. Harry vivia segundo as suas prprias regras e todos os que o conheciam, acabavam por entender esse ponto. Ou o aceitava como ele era, ou teria que passar sem ele.E, nesse momento, chegou-me aos ouvidos a voz de Gerald acima do suave rudo dos limpa-vidros. Julgara-o adormecido.- maravilhosa a forma como recuperamos o entusiasmo. - observou - Comeava a pensar que estava velho demais para este negcio. O prprio Robert desde 1945 que no esteve na casa - prosseguiu, como se soubesse que eu lhe seguiria a linha do pensamento. - No consigo encontrar um registo dela ou do seu contedo em parte alguma. No outro dia mandei um dos nossos funcionrios passar em revista os ndices da Counti Life. Deve ser a nica casa de qualquer tamanho em Inglaterra, que no foi fotografada nem registada. O pai e o av devem ter sido uns excntricos com um sentido de vingana. O pai nem sequer se deu ao trabalho de ocupar o lugar de deputado na Cmara dos Lordes. Duvido que Robert o tenha feito. Interrogo-me sobre quem ser o herdeiro... A descendncia quase se extinguiu no tempo do seu bisav, tendo o ttulo e a propriedade passado para as mos de qualquer lavrador-comerciante que no esperava herd-los. Comeo a perguntar a mim prprio se seriam coleccionadores de alguma coisa ou se a casa estar a abarrotar de lixo victoriano? Bom... quem sabe? Talvez haja por l coisas de uma poca anterior da av. Devo dizer que, para um conde, a herana de Robert muito modesta. Eu devia ter pensado em ter consultado os jornais da altura do seu julgamento e tambm de quando recebeu a distino. Os jornalistas tm dotes to acentuados de meter o nariz onde ningum mais consegue - retorquiu, ao mesmo tempo que a voz se lhe tornara mais spera, se endireitava e pegava num cigarro. - Todos estes anos e uma casa por visitar e sem registo! O que iremos encontrar, pergunto-me? bom uma pessoa sentir-se excitada, Jo? - acrescentou.- Ele no estar, obviamente tua espera - prosseguiu. - Talvez se recorde, no entanto, de que me desagrada conduzir. Lembro-me de que ficou bastante divertido quando, da ltima vez que o encontrei numa festa particular em Itlia, verificou que eu tomara disposies para a vinda de um motorista e de um automvel de Inglaterra. Como se eu fosse uma pessoa que confiasse num motorista italiano! No entanto, o Robert ir evidentemente aceitar-te. Mostra-se sempre encantador com mulheres, mesmo quando est furioso com elas, ou pior ainda, lhe so indiferentes. S Deus sabe em que estado se encontra a propriedade...- Dificilmente poderemos esperar ter calor. - acrescentou, baixando a voz ao reflectir no assunto - Contudo, no morreremos por umas noites. Depressa saberei o que o levou a pedir-me que o visitasse. Ou est meramente neceessitado de um amigo, ou precisa que lhe indiquem o que h a vender da sua casa. Depressa saberei se valer a pena mandar chamar os nossos jovens gnios dos vrios departamentos para que faam uma avaliao detalhada. 22Depressa saberemos se este olho de velho continua to capacitado como ele pensa.No se expressava com falsa modstia. Devido sua idade, Gerald trabalhava, agora, somente como conselheiro do Hardy's. Estava, por con seguinte, mais disponvel do que nunca para se entregar sua paixo e passatempo: a tranquila busca do que ainda estava por conhecer e classificar e que algum dia poderia aparecer num catlogo do Hardy's. No era especialista em nada; possua o conhecimento generalizado de uma vida passada entre coisas raras e belas. Contudo; os peritos seguiam os seus conselhos e raramente tinha cometido erros graves.- Informei que iramos visitar uma propriedade relativamente prxima dos Lakes - declarou, quando na autoestrada comearam a aparecer tabuletas para Penrith. - Robert conhece suficientemente o Hardy's para saber que nunca mencionaramos a quem pertence a propriedade. Ser desnecessrio dizer que passmos a tarde inteira dentro do automvel para chegar a Thirlbeck.- Veremos... Veremos - prosseguiu quase num sussurro e como se falasse para si prprio. - Se ainda por l houver algo que valha a pena vender, talvez eu pudesse convenc-lo a livrar-se das despesas do seguro. H, obviamente qualquer coisa l, algo to fabuloso que nem os Birkett conseguiram ocultar a sua existncia. Quem no entanto alguma vez o compraria, pergunto? Penso que ningum em seu perfeito juzo. Contudo, que leilo faria a La Espanola...A voz sumiu-se num suspiro de cansao de um homem que j trabalhou o suficiente para um dia; mantive-me por conseguinte, nos cem quil metros, e no fiz perguntas. Gerald informar-me-ia a devido tempo.- Deus do cu! - exclamou um ou dois minutos depois. - Espero que o lugar no esteja demasiadamente arrumado. Espero que haja gelo para as bebidas...Tommos a direco de Thirlbeck, percorrendo quilmetros dessas tortuosas e mgicas estradas de Lake Country; as montanhas erguiam-se sobre as nossas cabeas, delineando contornos imaginativos e semelhantes a um encadeado de animais sados do lpis de uma criana e caminhando pelo camp; no se tratava, realmente, de montanhas mas de formas, amontoados retorcidos de terra, pouco altas mas com subidas e descidas to abruptas, que se assemelhavam a torres imponentes e inamovveis. Em seguida e repentinamente, decorrido um quilometro e aps termos transposto o corcovo, 23surgia-nos, l em baixo, outro vale que servia de leito a um misterioso lago escuro formado pela chuva.- Teatral! - comentou Gerald. As nuvens aglomeravam-se sobre topos invisveis de montanhas e noutros lugares, o cu apresentava-se lmpido e raios luminosos de sol emanavam incidncias de ametista, ambar e opala; o feto castanho comeava a desenrolar os seus verdes tentculos, os larios adquiriam o verde mais verde que uma rvore pode exibir, os troncos de btulas eram plidas e esguias florestas retorcidas; avistavam-se escuros rectngulos verdes de conferas.- Teremos que nos lembrar de lhes chamar colinas - replicou Gerald, esboando um aceno na direco das montanhas, enquanto eu me conservava em silncio e atenta difcil e irregular estrada, ladeada pelas mais belas paredes rochosas que me foram dadas ver na vida. - E os pequenos lagos, so charcos. Bom. Cometeremos, sem dvida, alguns erros, mas no ficaremos aqui o tempo suficiente para que se lhes atribua importncia. Todos os visitantes so turistas e, por esse motivo, bastante desprezveis. Tudo o que no tenha nascido em Cumberland tem menos interesse do que os animais. Por estes lados, gostam de carneiros. Conheo um antiqurio de arte que um indivduo estranho. Vem c todos os anos e passa duas semanas a vaguear pelas colinas. Afirma que est prestes a deixar-se disso, que quase se mata, mas consegue sempre sobreviver e voltar. Agora, sente-se irritado devido construo de uma auto-estrada. Garante que toda a regio est to superlotada na poca, que possvel passar um fim de semana numa estrada a olhar para as traseiras das roulottes. A nica forma de estar sozinho sair para as colinas e caminhar, e mesmo nessas circunstncias, tem-se sorte quando no se apanha uma dzia de outros na frente ou atrs. H vinte anos, apesar de Wordsworth e dos seus mal mequeres, era um local diferente de difcil acesso e inteiramente afastado do mundo. Oh, sim... dei-me ao cuidado de telefonar ao meu amigo, antes de virmos. Lembrei-me disso. Ouviu falar evidentemente de Thirlbeck. Contudo, nada sabe a seu respeito. Trata-se de um mero nome no mapa, num vale que se encontra praticamente cercado pelo National Park e onde os transgressores, passeantes ou os que gostam de piqueniques no so convidados, desejados nem admitidos. E quando afirmam que "os transgressores sero punidos por lei", esto a falar a srio. , sem dvida, um homem curioso dada a sua profisso de antiqurio de arte, s que os habitantes locais no falam de Thirlbeck. A recordao do pai e do av de Robert e da sua paixo pela privacidade deve custar a apagar- se... e, como natural, os mais novos no ligam. Um ou dois caadores furtivos que possa haver na propriedade sero os ltimos a falar. Sabem que h uma casa. Contudo, ningum parece saber ou recordar-se do que existe l dentro. Um dia, o meu amigo escreveu uma carta a pedir licena para visitar a propriedade... Presumo que esperava poder chegar casa. Recebeu uma carta nada delicada a avis-lo de que lhe seria levantado um processo legal, caso o24tentasse. Foi tudo o que pde contar-me e acho que as palavras falam por si prprias. Oh, Jo! Estou ansioso por chegarmos l. Tem sido um longo dia. O Lake District nunca me interessou verdadeiramente. Demasiado agreste! Demasiado chuvoso. Acho que preciso ter-se nascido aqui para se gostar.- E esta a minha primeira visita a estas bandas. curioso que, excepo de viagens para avaliao de casas - repliquei, lanando um olhar afectuoso para o seu rosto cansado - na sua maioria por sua interveno, desconheo completamente a Inglaterra. Esta confisso vergonhosa, nolhe parece? Sempre que pude dar-me ao luxo de gozar frias, parti disparada para Paris, Roma ou Madrid e, mais tarde, comeei a pedir o automvel emprestado a Vanessa e a passear por toda a Europa. E fi-lo sempre para visitar museus e igrejas. Devo ser a nica pessoa viva sobre a Terra que passou semanas em Veneza e nunca foi ao Lido.Aquele pensamento ocorreu-me de uma forma cortante, idntico s lminas brilhantes que atingiam as paredes rochosas da paisagem.- Tenho vinte e sete anos, Gerald - prossegui. - Terei passadodemasiado tempo da minha vida com o nariz colado s vitrinas dos museus?Sinto um desejo enorme de viajar at Nova lorque e a Washington e sabe porqu? S para visitar o Metropolitan, os Cloisters e a National Gallery.Sempre que algum fala na Califrnia, no penso no sol, mas sim na coleco de Norton Simon! Vinte e sete anos... no se ria, Gerald! Pareo-lhejovem. Contudo e bastante inesperadamente comeo a sentir que falhei qualquer coisa. E no fao a mnima ideia do qu!- Porque no te casas com o Harry Peers? Podias ter ao mesmo tempo o Metropolitan e uma sute no ltimo andar do Pierre. E se o Lido de Veneza no te interessa, ainda existem praias privadas no Egeu, com pequenos anfiteatros gregos como pano de fundo. Poderias comprar essas pequenas peas de porcelana chinesa, em vez de te limitares a olh-las. A tuaresposta ao facto de teres vinte e sete anos e sentires que nada fizeste, reside em casares com Harry Peers. um homem capaz de te oferecer todos os mundos que julgas no haveres pisado.- Independentemente de algumas outras coisas, tais como uma srie de bonitas mulheres que conhece, o que h de errado nessa ideia, Gerald, que no me pediu em casamento. Se o fizer - se - tudo se efectuar rapidamente, de um dia para o outro. As aces sero compradas a toda a pressa e sem estardalhao. At essa altura, manter o mesmo secretismo que envolve os seus negcios. Neste momento, encontra-se no estrangeiro, julgo que em Nova Iorque. Ignoro se foi tentar comprar o Empire StateBuilding ou atrs de qualquer mulher que lhe agrade. No se dar ao trabalho de visitar o Metropolitan. Esteve l. Regressar, porm, com qualquer objecto valioso, comprado a um antiqurio. Mostrar-mo-. E quererque me cresa gua na boca por esse motivo... assim o Harry. E ser que algum como Harry precisa realmente de casar com quem quer que25 seja, nos tempos que correm? No. Tem todas as mulheres disposio... de todos os tamanhos e feitios e, para Harry, de vrios graus de inteligncia. E no me venhas com a mxima de "tudo tem o seu preo". Sim. Eu sei. De certo modo, todos estamos para leiloar. No estou, porm, a ser justa. Harry no assim. melhor e tem uma noo muito mais subtil daquilo que procura. H mais coisas em jogo do que o preo. E... e o problema comigo que sou montona demais para ele. Grave demais. Porque que no me pareo com Vanessa? Harry adorava Vanessa e Vanessa adorava-o. Sim... acho que me casaria com ele, se alguma vez chegasse o dia em que ele, finalmente, decidisse que a situao lhe convinha. Harry tem uma personalidade curiosamente antiquada nesse aspecto. Desejaria que fosse para o bem e para o mal e para todo o sempre. Ainda detm os mesmos valores da classe operria relativamente a esse assunto. Acha que se um casamento vier a findar em divrcio, ter sido um desperdcio de tempo e dou-lhe, obviamente, razo. Nunca jogar com o casamento, da mesma maneira como o faz com as aces na Bolsa.- Bom, ento um pouco idiota, uma opinio que jamais me ocorreria fazer de Harry Peers. O casamento a instituio menos segura do mundo. Os verdadeiros jogadores adoram-no. E se ele no apostar em ti, um idiota.- um homem bom, Gerald - respondi com um sorriso. - Ser-me- mais fcil ler as suas faanhas nas colunas sociais. - E no acrescentei que fora, igualmente, por esse motivo que me sentira contente por sair de Londres por alguns dias. Talvez Harry ficasse um pouco chocado se eu no respondesse do outro lado do fio quando decidisse telefonar-me, hora que lhe conviesse fazer a chamada, de Nova Iorque, das Bahamas, de qualquer praia isolada ou de uma casa no meio da cidade que, de momento, o tentasse. Pensei irritada que ele era extraordinariamente egosta; mas se quisesse fazer-lhe justia, era tambm justo e bom, em aspectos curiosos e inesperados. Era igualmente um homem capaz de gestos exuberantes e exibicionistas que, por vezes, o faziam parecer vulgar e, outras vezes, me faziam tanto lembrar a minha me. Era verdade que Vanessa tinha gostado de Harry; aplaudira-lhe o seu gosto pela vulgaridade e admirara-lhe o estilo.Talvez eu estivesse a pensar demais em Harry, mas a curva naquele local era muito apertada. No ia a conduzir com velocidade, mas mesmo assim quase me vi em cima de outro carro, mesmo antes de me dar conta e travei a fundo.- Desculpe, Gerald - pedi -, mas ele segue a passo de caracol.- Sim... teria sido uma pena.- O que que teria sido uma pena?- Se tivesses batido nas traseiras de um... bom, acho que se tratava de um Bentley de 1931. Em ptimo estado, no achas?- Sabe a marca e o ano, Gerald?26- Sim, querida. a verdade que no fabricaram daquelascoisas em quantidade, nessa poca. Hoje -me impossvel distinguir uns dos outros...Abrandei um pouco. Estvamos a dezasseis quilmetros de Kesmere que era a cidade mais prxima de Thirlbeck e, tanto quanto eu sabia, no havia um troo de estrada que oferecesse segurana bastante at l: E muito menos onde nos encontrvamos agora, com curvas distncia de poucos metros e precipcios por debaixo de ns. Suspirei; estava quase a escurecer:Logo aps, o carro que seguia nossa frente e levava a capota descida, abrandou e, no primeiro stio onde encontrou a estrada suficientemente larga, encostou e parou. Vi que me fazia sinal para que o ultrapassasse e, na minha opinio, de uma forma bastante impaciente. Pareceu-me avistar ao volante um indivduo bastante novo, com o cabelo despenteadoe de um louro palha, vestido com uma camisola grossa. Pareceu-me indiferente, sentado nas alturas daquele anacronismo e estava provavelmente tambm um pouco molhado, na medida em que tnhamos passado por um aguaceiro que o devia ter igualmente atingido. Ergui o brao para lhe agradecer, mas nem sequer cheguei a v-lo mais pelo retrovisor; as curvas eram inmeras e apertadas.Percorremos cerca de trs quilmetros, quase descendo at ao fundo do vale e mais uma vez fui obrigada a travar com fora. Ambos tnhamos visto o intervalo numa parte do elevado muro de pedra, que havamos se ido ao longo de cerca de meio quilmetro, a demarcar um semicrculo de terreno fora da auto-estrada e, entre colunas de pedra em runas, desagradavelmente encimadas por arame farpado, uns pesados portes em ferro forjado. Por detrs do muro, que se encontrava igualmente protegido com arame farpado, erguiam-se as runas de uma casa de caseiro, cujo telhado havia desabado. Nos portes estava pendurado um letreiro com umas letras mal desenhadas e bastante apagadas.THIRLBECKESTRITAMENTE PRIVADOOS TRANSGRESSORES SERO PUNIDOS POR LEIPousei o olhar em Gerald. - isto? - A estrada que se situava para l da casa do caseiro assemelhava-se a um trilho irregular, inacreditavelmente ngreme, aberto entre muros de pedra, feito por mos humanas e uma floresta de larios verdes.Gerald pareceu-me embaraado. - Deve ser - respondeu, com um fundo suspiro. - Deus do cu! Achas que esta a entrada principal? - prosseguiu, remexendo num bolso do casaco. - Confesso que as explicaes 27que me deu no foram muito claras... onde est aquela carta? Recordo-me, porm, que ele fazia qualquer referncia a Kesmere... Nesta altura, eu j estava fora do carro e Gerald baixara o vidro da janela. - Esta certamente a porta das traseiras - observei - e est bem fechada com o cadeado. - Enquanto falava, fazia tilintar a pesada corrente e o cadeado, que prendiam os portes, e, contemplava a vincada desolao e tristeza da casinha em runas que outrora devia ter sido bonita; avistei, depois, encostados ao muro lateral, os cestos enferrujados de pesados portes trabalhados, com vestgios de um desenho e o que poderia ter sido um braso. - Espero que a porta da frente seja mais acolhedora. Teremos que continuar, Gerald. Lamento... e est cansado.- Sim... Est aqui indicado para se atravessar Kesmere e virar direita - replicou Gerald que, entretanto, encontrara a carta. - Ora! No tem importncia. Perguntaremos quando l chegarmos.Lancei um ltimo olhar estrada ladeada de larios e verifiquei que fra resultante de mo-de-obra, tal como os muros. Emanava uma espcie de toque feudal, uma recordao dos tempos em que o trabalho tinha sido to barato; e, agora, as ervas danimhas cresciam por entre as pedras e o braso dos grandes portes estava enferrujado e cado no anonimato.Apesar de toda a sua imponncia, o Bentley tinha um motor ruidoso; ouvi-o aproximar-se, antes de aparecer na curva. Abrandou e parou, estacionando na estrada nossa frente, naquele espao circular diante dos enormes portes. O homem saiu. Agora, pareceu-me menos desportivo e menos jovem. No era velho, nem sequer de meia-idade, mas tinha um rosto cansado, de lbios fmos e rectilneos, com rugas volta de uns olhos cinzentos. As sobrancelhas eram grossas e mais escuras do que o cabelo cor de palha. Alm da camisola grossa, usava umas calas gastas de bombazina.- Precisam de ajuda - inquiriu num tom brusco, como se lhe desagradasse perder tempo com preliminares.- Lord Askew espera-nos... - pronunciou-se Gerald em meu lugar. - Interrogvamo-nos se...- Lord Askew espera-vos - repetiu o homem, sem se preocupar em dissimular sarcasmo. - Lord Askew no aparece por estas bandas, sabe-se l desde quando.- Nesse caso est mal informado - replicou Gerald asperamente - Lord Askew est na residncia e somos esperados esta noite, alm de que o seu bilhete indica "`atravessar Kesmere". Julgmos que este fosse um caminho mais curto. Estou cansado...O homem avanou na sua direco e deu a volta ao automvel para lhe falar pela janela com o vidro descido. Quando olhou para Gerald, apercebi-me de uma curiosa descontraco naquele rosto tenso. Todo o distanciamento se evaporou, ento, entre ambos. Aquele homem e Gerald formavam opostos bem vincados: um com uma aragem de herdade sua volta e conduzindo, porm, aquele elegante Bentley e Gerald, com o seu28fato de bom corte londrino, as feies plidas em contraste com o rosto tisnado do campo, da figura sua frente. Identificaram-se por qualquer motivo, no como duas pessoas conhecidas, mas como seres que reconheciam uma honestidade bsica um no outro.- Sabe, ento, que ele est c? Mal passou uma semana...- Pediu-me que viesse. Posso tomar a liberdade de me dizer seu amigo.- Um amigo! - exclamou o homem, fitando-o mais uns momentos. - Sinto-me surpreendido por ouvir que ele tem tal coisa como um amigo em Londres. Bom. No interessa. Acredito em si e talvez possa ajud- lo.- Ah, sim?- Se esta senhora souber conduzir... - retorquiu com um olhar na minha direco -... a estrada no fcil, mas poupa-lhes cerca de vinte quilmetros. E bastante trnsito na cidade. Poupa-lhes a travessia de Kesmere e mais uns cinco quilmetros nos arredores. um desvio. Devolve-lhes alguns quilmetros percorridos.- Como? - inquiriu Gerald com os seus modos caracteristicamente directos. - o porto est fechado a cadeado.- Bom, aluguei um pouco de terreno a Askew. Preciso de ter acesso a ele e possuo a chave.- Nesse caso, avanemos - concordou Gerald, cujas feies se ilu minaram.- Est habituada a conduzir em declives? - quis saber o homem, falando-me directamente pela primeira vez.- Conduzi pelas estradas da montanha. Guio com todo o cuidado.- Bem, nesse caso faa-o com todo o cidado. Desagrada-me assumir a responsabilidade de a deixar descer por uma ravina. Tenha ateno. Existem alguns stios escorregadios - acrescentou, ao mesmo tempo que tirava um molho de chaves do bolso e escolhia uma delas.Regressei ao carro e pus o motora trabalhar. No queria que ele mudasse de opinio, nem que a influncia de Gerald se esvasse. Tinha conscincia da sua fadiga e da minha tambm. Nunca devamos ter tentado ir manso Draycote e fazer esta viagem num s dia. - Obrigada - agradeci, quando ele nos abriu os portes e ficmos a seu lado. - muito longe?- Cerca de cinco quilmetros. Basta subir a encosta e em seguida desc-la. Um vale com duas passagens estreitas. Muito privado, tal como os condes queriam.Esbocei um gesto de saudao pelo retrovisor e pensei nas suas lti mas palavras: "como os condes queriam". Como se estivesse a referir- se a geraes passadas e no a um homem que regressara a Inglaterra, decorridos tantos anos. A ltima imagem que captei pelo retrovisor, antes de descrevermos a primeira curva, foi a dele a fechar os portes e colocar29de novo o cadeado. Abrandei e quase parei, relutante em o perder de vista, como se ele fosse o derradeiro elo com o mundo exterior.- Segue - incitou Gerald.Comemos a descer e aquela beleza de um verde escuro ter-nos-ia imposto o silnco, mesmo se no estivssemos to cansados. Entre plantaes de rvores erguiam-se pedras cobertas de musgos e o som de gua em queda, como que de uma ou vrias cascatas, acompanhou-nos durante todo o percurso. Atravessmos algumas pontes que estremeciam perigosamente e com gua muito lmpida por baixo. Os ltimos raios de luz filtravam-se, por entre as rvores. Quase esperei que se me deparasse um pagode de sinos e a figura de um monge japons. Parecia uma cena inspirada numa aguarela oriental plena daquele calmo e musgoso verde com cada uma destas pedras colocadas pelo homem. Era possvel que um milhar de homens tenha levado um milhar de anos a criar tudo isto, crescendo aqui, naturalmente, nesta regio mais remota de Inglaterra, como um sonho de criana.O choque foi ainda mais intenso quando samos da plantao de larios e alcanmos o topo da subida. Estvamos no tecto do cu, quase, ainda que no totalmente, entre as nuvens. O terreno era abrupto, selvagem, quase estril. As colinas formavam um declive estreito at ao pasto verde, at beleza escura de um longo e bem delineado charco; notavam-se grandes marcas nas ravinas por onde os pedregulhos haviam rolado ao longo dos sculos e aqueles inconcebveis muros de pedra prolongavam-se, incansavelmente, nas bermas at s alturas, s nuvens, com a finalidade de delimitar a terra de um homem do outro e impedir que os carneiros se tresmalhassem. Como era possvel que seres humanos pudessem ter construdo linhas to rectilneas, na montanha abrupta e h quantas centenas de anos, sem qualquer outro instrumento que os guiasse para alm do seu prprio olhar?Nada havia para ver, nada excepto a fora do terreno que nos envolvia. Em todo este local secreto apenas havia carneiros que pastavam junto aos charcos e o estreitocaminho ladeado de pedras, subindo e descendo em meandros que pareciam no mais acabar. Poderia ter oferecido este aspecto quando da chegada dos romanos, mas apesar da proximidade desta regio com a fronteira da ocupao romana em Inglaterra, o Muro de Adriano, pensei que este talvez fosse um dos lugares secretos, onde jamais alguma legio penetrara.- Segue - repetiu Gerald, porque eu parara mais uma vez impulsivamente, quase chocada. - No devemos estar muito longe. Deus do cu! Que deserto perdido! Ainda nem sequer vi uma cabana de pastor.Continuei, devagar, ao longo do ngreme caminho. Descidos cerca de dois quilmetros para alm da crista, uma mata de btulas brancas, com uns escassos restos verdes de primavera pendentes dos ramos, ladeavam o caminho. Neste ponto a estrada tornou- se menos abrupta e os muros, 30 arruinados e com brechas em muitos lados, tinham sido abandonados tal como se desmoronavam. Quando nos entranhmos mais naquela descida pelo matagal, recebemos a sombra das colinas. Por fim, uma nuvem cobriu-as desvanecendo-as da nossa vista. Observei a nuvem a rolar como avalanche silenciosa. O pequeno lago escureceu. Se a nuvem descesse mais, seramos apanhados por ela. Gerou-se um repentino frio, apesar do aquecimento do carro estar ligado.Foi nessa altura que o vi: aquele alto espectro branco de um co que se deteve um pouco por baixo das btulas e, de seguida, se nos atravessou na frente. Travei. Quer se tivesse tratado de ervas daninhas, hmidas, sob os pneus, ou apenas devido travagem brusca, o automvel derrapou um pouco e guinou para o lado, deslizando com excessiva velocidade pela vertente, rumo curva seguinte, com as rodas bloqueadas. Tentei o que me era possvel, aliviando o travo, em louco exerccio de volante ao fazer a curva e levando o carro a endireitar-se. Raspmos no muro com o pra-lamas traseiro e ouvi algumas pedras a rolarem. Consegui controlar o carro, travei ligeiramente, e finalmente, parmos. Virei-me para trs sem ter dito uma s palavra a Gerald; o co atravessara a estrada e quase desaparecera no matagal, assemelhando-se a um veado em fuga.Decorreram uns momentos antes que Gerald se encontrasse em estado de falar.- Deus do cu, Jo! - exclamou por fim. - O que te deu? Passa-se algo errado com o carro? Virei-me de novo para Gerald. - Foi o co. No o viste... o co saiu de entre as rvores mesmo nossa frente. Por pouco no o esmaguei!- O co? Que co? No vi nenhum co. O que andaria um co a fazer por aqui sozinho? Que espcie de co?Sacudi a cabea e apercebi-me, de sbito, de que tinha de disfarar o tremor das minhas mos ao volante. - No era um cozinho, Gerald. Era um co enorme, de cor clara, com pernas altas. Deves t-lo visto!Gerald demorou muito a responder; tirou mais um cigarro da cigarreira e acendeu-o. Era-lhe impossvel dissimular o tremor das mos; mas o mesmo resultava de um motivo diferente do meu. Sabia que no me acreditava; nada tinha visto.- Devo ter passado pelo sono, minha querida Jo! No. De facto, no vi o co. Sigamos caminho, est bem? Comea a escurecer. - Pronunciara as palavras com uma extrema bondade. Jamais comentaria o que quer que pensasse que me atravessara o esprito, naqueles segundos em que eu jul gara ter visto o co. Estava disposto a conceder-me o benefcio da dvida, ou, pelo menos, a no me pr mais em questo. Contudo, tornara- se igualmente impossvel de acreditar que, neste ponto da viagem, to prxima do fim e num local como este, Gerald tivesse passado pelo sono. Os meus olhos tinham visto o que os dele no tinham. Tambm isto era difcil de acreditar.31Prosseguimos viagem e a estrada no tardou a situar-se ao nvel da gua e aqui torneava um enorme monte de entulho, que quase chegava ao lago; o vale abria-se. Avistmos seguidamente a casa, a cerca de dois quilmetros. Nenhum de ns falara durante esse espao de tempo. Voltei a ligar os limpa-vidros, porque o nevoeiro tombara, de facto, sobre ns e pairava, semelhante a chuva. A casa aparecia, desaparecia e voltava a aparecer, enquanto o nevoeiro se movimentava na nossa frente; era um monte em pedra de fabulosos e estranhamente belos contornos, recortado no crepsculo. Desejava que Gerald falasse; comecei a pensar que talvez tudo isto no passasse, realmente, de imaginao.F-lo e as suas palavras reflectiram o meu prprio nervosismo, mas pelo menos, via o que eu via. - Sentir-me- ia melhor, se houvesse uma luz - observou. - Presumo que tenham electricidade. - Recordei-me de que no tinha avistado postes nem cabos elctricos, mas no me referi ao facto. Gerald estava mais nervoso do que eu alguma vez o vira.- Ainda no caiu a noite.- Mas j se sente.O leito do vale alargou-se mais medida que nos aproximvamos da casa; viam-se prados, onde o gado pastava e as pastagens mais altas e magras eram reservadas aos carneiros e aos cordeiros recm-nascidos. volta da casa erguia-se um bosquedo de velhos carvalhos e btulas, semeados com os primeiros verdes primaveris e com a relva em redor, cortada rasa pelo gado. O pequeno lago adelgaava-se nas proximidades dos muros de uma espcie de jardim exterior, um jardim escuro e semeado de plantas e sebes que se tinham tornado selvagens por descuido. A berma do fio de gua perdia-se numa pequena floresta de canios.Por fim avistou-se uma luz no rs-do- cho da casa, mas desapareceu imediatamente, como se algum tivesse corrido um reposteiro a toda a pressa. - Espero que tambm tenhas visto - observou Gerald. - E pareceu-me luz eldrica. Talvez, afinal, tambm haja gelo... - Ultrapassmos uma cerca para gado e os primeiros muros que se destinavam a delimitar o jardim propriamente dito. Pouco restava dele; enormes aglomerados selvagens de rododendros e loureiros estendiam-se sob os carvalhos e as btulas. Se alguma vez tinham existido canteiros nas clareiras, os mesmos haviam cedido lugar erva comprida onde oscilavam agora milhares de narcsos, exuberantes, selvagens e minsculos, enfraquecendo com os anos, mas encontrando sempre um novo territrio para se renovar. Deparmos bruscamente com um largo relvado repleto de ervas daninhas, em frente da casa. Caminhos meio ocultos levavam ao lago e floresta de rododendros. - Bom. aqui que o caminho acaba e, portanto, devemos ter chegado a Thirlbeck - comentou Gerald. - E... sim, Deus do cu! um espectculo digno de se ver.Tratava-se de uma pea magnfica de arquitectura Tudor, anexada a uma tosca torre em pedra que devia ter sculos de existncia. Presumi que, 32 na sua maior parte, teria sido construda na poca da rainha Isabel, quando os nobres, at mesmo nessas regies remotas, comeavam a sentir alguma tranquilidade e segurana, deixando de se fechar em castelos e fortalezas. Era uma casa com janelas, sinal de abastana nesses tempos, janelas altas e gradeadas de ressalto. A construo era simtrica com excepo da torre e, de cada lado da ombreira, havia dois arcobantes; dispunha de dois andares encimados por um friso de pedra trabalhado e enfeitado com o que pareciam ser animais herldicos. Tinha dimenses perfeitas: no era demasiado grande e a altura era proporcional sua largura. Havia apenas trs degraus de acesso entrada, um modesto ndice no meio de tanto esplendor. Tratava-se de uma grande casa de campo, sem pretenses a palcio. Dava a sensao de que o construtor tivera sempre em mente que as suas origens firmemente enraizadas naquela torre em pedra arruinada que, outrora, deveria ter servido de refgio a todos os habitantes do solar, homens e animais, nos tempos das invases da fronteira. Na sua prpria e graciosa estrutura ainda havia muito do primitivismo da Esccia, do outro lado do esturio de Solway; a pedra oferecia o mesmo tom de ardsia da torre, como se soubesse onde se situava a sua fora.- E. pensar que est aqui h tanto tempo e ningum parece saber ou importar-se com a sua existncia... - comentei num sussurro.Tnhamo-nos concentrado a banquetear o olhar no que conseguamos distinguir no meio da crescente escurido em que os contornos eram cada vez mais esbatidos. E, nesse momento, a porta abrira-se. Uma luz surgiu nos degraus e cerca de uma dzia ou mais do que nos pareceram figuras enormes avanaram na direco do carro, silenciosamente e a uma velocidade fulminante. Segundos depois, os ces cercavam o automvel. "No so, afinal, mais do que oito, embora parecessem mais", pensei. Plantaram-se no local, perfeitamente imveis, os maiores ces que eu vira at ento. Presumi que se se pusessem de p, mediriam cerca de um metro; fitavam-nos com as enormes cabeas assentes nos compridos pescoos, espessas sobrancelhas e os focinhos cobertos de pelos longos e hirsutos. Caudas compridas e finas enrolavam-se sobre os lombos robustos mas elegantes.- J era de esperar - observou Gerald num sussurro. - Estes so, indubitavelmente, os ces dos Birkett.No fizemos qualquer tentativa de movimento e os ces mantinham-se imveis e estranhamente calmos, fixando-nos intensamente com aqueles olhos velados por espessas sobrancelhas. Parecera-nos que decorrera um tempo interminavel, antes que uma outra figura descesse os degraus, um homem alto e magro, de ombros ligeiramente curvados, as mos enfiadas nos bolsos e o ar de algum que raramente se apressa na vida. Ao v-lo aproximar-se, Gerald correu o risco de baixar o vidro da janela alguns centmetros.- seguro, Robert?33- Referes-te aos ces? - replicou este, dobrando-se at ficar ao nvel dos nossos rostos. - Deus do cu, Gerald! No passam de cachorros inofensivos. Ainda bem que conseguiram chegar antes da noite cair. Avistei os faris do automvel no cume da encosta. O caminho atravs de Uskdale no empreendimento para os tmidos. Este motorista no tem, porm, um ar tmido e representa uma grande melhoria comparativamente ao que te vi... foi em Itlia? Como ests Gerald? bom ver-te. Foste muito amvel em aceitar o convite. Venham! Venham! Garanto que os ces no so perigosos. Apenas sero maadores por se mostrarem demasiado afectuosos. Permitam que d uma ajuda com as malas. Ficaro os dois, presumo?Robert era na realidade um homem encantador, tal como Gerald me afirmara. Falava com o -vontade de quem tem uma dzia de criados e quartos sempre preparados, o que seria impossvel, a julgar pelo descuido visvel no jardim. Despertou-me, no entanto, simpatia ao reagir, como se a minha vinda fosse totalmente esperada e bemvinda. Dera a volta at ao porta-bagagens do automvel, antes de me dar tempo a sair do banco. Os ces afastaram-se, silenciosamente, para me dar passagem. Robert tirou-me as chaves da mo e abriu o fecho da mala do carro. Os enormes ces mantinham-se a nosso lado, as cabeas pareciam chegar-me altura do ombro; quatro deles avanaram, curiosos, para farejar as malas tiradas. Mesmo sob aquela luz plida, tomei conscincia daquela curiosa mistura de cabelo prateado, que outrora devia ter sido muito louro e do rosto bastante moreno com sobrancelhas pretas, num rosto marcado por rugas verticais e, no entanto, muito atraente. Os olhos claros, cinzentos ou verdes, ainda o ignorava.- Gerald parece demasiado paralisado para nos apresentar. Sou Robert Askew.- Joanna Roswell, Lord Askew - repliquei. - Trabalho no Hardy's e Mr. Stanton e eu fomos fazer um trabalho de avaliao esta manh. Conduzo-lhe, muitas vezes, o automvel. Pensmos que... bom, espervamos que eu pudesse ficar em Kesmere. A estao est no incio e deve haver quartos.- Nem pensar nisso. Temos bastantes quartos aqui. com o maior prazer que a receberemos. No me passaria pela cabea afastar Gerald de uma das suas comodidades... se me permite que a descreva desta maneira... - respondeu, acompanhando as palavras com um sorriso, sem me dar azo a sentir-me ofendida.- um privilgio ser... uma das comodidades de Gerald. Somos amigos desde a minha infncia...Detive-me, porque ele voltara a pousar as malas no cho, no meio dos ces e fitava-me com uma estranha intensidade.- Disse Roswell, no foi? Roswell... parente do artista Jonathan Roswell?- Sou filha dele. Conhece-o, Lord Askew?34- Conheci-o. Foi, no entanto, h muitos anos. Devem ter... bom, devem ter passado cerca de trinta anos, desde a ltima vez que o vi. Tornou-se, sem dvida, famoso, a partir dessa altura. Mas no vive em Inglaterra, pois no? Li algures... onde que vive, agora?- No Mxico - sorri, satisfeita. Havia to poucas pessoas que pareciam ter conhecido o meu pai.Lord Askew correspondeu ao meu sorriso. - E a sua me... - deteve- se repentinamente. - Que falta de tacto a minha. Desculpe. Ela morreu naquele desastre de avio. Fiquei chocado ao ler o nome dela na lista. Peo-lhe que me desculpe - repetiu.Inclinou-se para pegar nas malas e senti que estava realmente pertur bado com a sua distraco. - Se me der as chaves, encarrego-me de arru mar o carro, depois de tomarmos uma bebida - acrescentou. - Por este lado a iluminao escasseia e, embora na frente reine um ambiente respeitavel, os trilhos do lado das traseiras constituem desafio para um tractor. Nesse momento Gerald saiu fatigado do automvel e os ces foram cheir-lo de imediato. - Bem-vindo a Thirlbeck, Gerald - prosseguiu, dirigindo-se-lhe, aps o que utilizou um tom diferente quando falou para os ces. - Ulf, Eldir, Thor, Oden... estejam quietos! - Os animais apressaram-se a obedecer.Seguimo-lo. Eu ficara apenas com a mala de mo e os nossos dois casacos. Ergui os olhos na direo da casa. As portas duplas estavam abertas para dentro e havia mais luzes acesas. Sem que me fosse necessario distinguir-Lhe as feies, soube de imediato que a mulher cuja silhueta se recortava na ombreira, era bonita. Exibia a segurana da beleza nas linhas recortadas do corpo. Do pequeno lago chegava uma brisa fresca, que se lhe colava num moldar das suas formas. O cabelo era comprido, negro, com laivos de azul reflectidos pela luz que a iluminava por detrs. Assemelhava-se a algo capturado e transplantado daqueles bosques de btulas, uma criatura, recortada a preto e branco, cujas mos, de uma inconcebvel delicadeza, eu j conseguia divisar e admirar. Era o gnero de mulher que tem os ps igualmente bonitos.Subimos os degraus e, ento, a mulher apresentava-se de rosto meio voltado para a luz. Bonita, sim. Lord Askew parou.- Carlota. Quero apresentar-te Miss Joanna Roswell. Esta a Condessa de vila, Miss Roswell. E este, Carlota, o meu amigo Gerald Stanton. Carlota disse algo num sussurro. Gerald admirava-a com um ar de agrado. A Condessa sorriu, conhecedora do efeito que nele produzira e a que estava habituada.- Faam favor... ambos devem sentir-se cansados depois da viagem. muito dura a montanha, no acham? - Expressava-se quase sem sotaque, mas a existir um, supus que seria espanhol. Indicou-nos o caminho at ao hall. O vestido, de cintura subida e mangas compridas, com um decote pronunciado que revelava belos seios, era de um tom champanhe35 claro e no branco, como eu, de incio julgara. Alguns ces ladeavam- na em silncio; assemelhavam-se, nesse momento, a criaturas sadas de uma tapearia medieval. A mulher enquadrava-se estranhamente neste cenrio. Seguimo-la atravs de mais duas portas duplas que abriam para um espa oso e belo hall, quase sem mobilirio, mas tornado acolhedor pela riqueza dos painis que tinham a altura de dois andares. Os embutidos da balaustrada da escadaria, que se dividia e separava em dois lanos at uma galeria superior, eram marcados e elaborados. O local contava apenas com a iluminao de alguns candeeiros elctricos e o tecto, embutido e travejado, quase se perdia nas sombras. Um aroma a flores chegava-nos de uma enorme jarra cheia de narcisos, colocada sobre uma comprida mesa em carvalho. Dois fogos ardiam em duas lareiras situadas em chamins opostas. Pouco mais havia para alm de duas cadeiras altas e embutidas em carvalho, umtapete de seda e esta graciosa criatura, que esboou um gesto na direco da porta aberta.- Ali arde o fogo... e h as bebidas. O Robert lembra-se de que aprecia martinis, Mr. Stanton... convidou. Ao avanar, tomei conscincia de duas coisas: que Gerald mencionara a beleza da amante de Robert Birkett e que o enorme co branco surgido como um fantasma diante do automvel, no bosque de btulas, o co que Gerald no vra, pertencia raa destes animais ali presentes.36CAPTULO IIEra a grandeza aliada ao comeo da decadncia. Sentmo-nos na biblioteca e Gerald bebia o martini exactamente como gostava - a Condessa era perita nisso - e senti um aperto no corao ao avistar aquela agoirenta mancha de humidade a um canto da enorme sala. excepo da parede da lareira e da grande alcova oblonga com janela, estava mobilada com estantes de mgno com portas de vidro facetado. Haviam sido provavelmente construdas, algures em meados do sculo dezanove, e por detrs dos vidros distinguia-se o brilho empoeirado das encadernaes. Por debaixo das janelas, havia os monstros enormes de horrveis radiadores em ferro, que emanavam algum calor. Os reposteiros em veludo por cima deles eram carmesim, que comeavam a desbotar para um branco rosa nas pregas; os estofos das cadeiras e dos sofs estavam quase no fio, os padres de flores datavam de h cinquenta anos e adquiriam um tom cinzento uniforme. Eu no estava a participar na conversa; Gerald explicava a maneira como viramos parar montanha, em vez de atravessar Kesmere. Vagueei pela sala, de copo na mo, agora que a viagem terminara, bebendo um martini igual ao de Gerald. Havia um nico jarro no topo de uma parte das estantes e tentei examin-lo de mais perto, mas a sala estava apenas iluminada por dois apliQues metidos na chamin da lareira e dois candeeiros, bastante vulgares, de p; o jarro perdia-se nas sombras. Regressei lentamente at junto da minha cadeira, dei a volta sala e apercebi- me, com uma sensao de desapontamento, que por debaixo do canto onde se encontrava a mancha de humidade, os livros expostos na prateleira apresentavam-se tambm com as mesmas manchas; as lombadas de um velino plido exibiam um mancha igual e horrvel. Interroguei-me sobre se resistiriam, caso algum lhes pegasse. Contudo, no era esta a ocasio adequada para o fazer. Lord Askew devia ter estado a observar os meus passos.- Lamento, mas esto fechados chave - informou. - Terei de perguntar onde meteram as chaves. Mas talvez algum saiba delas - acrescentou depois, com um encolher de ombros.37Um erguer de sobrancelhas de Gerald indicou-me que no me metesse onde no era chamada. A sala continha outras coisas para alm dos livros. Apesar do seu tamanho, estava a abarrotar. Dispersas, entre os sofs e as poltronas, de molas gastas e usadas, sem arranjo destinado a proporcionar-Lhes conforto, havia algumas das peas de mobilirio mais bonitas que tinha visto na minha vida. "Sobretudo francesas", pensei. Lus XIV e Lus XV, mesas marchetadas, escrivaninhas e bureauxplats, at mesmo duas naravilhosas cmodas de frente bojuda, colocadas desajeitadamente de costas uma para a outra, uma pequena e delicada tricoteuse feita de placas em porcelana, praticamente face a face e empurrando uma secretria alta cujo trabalho de embutidos se assemelhava a uma sinfonia em madeira. Tudo se encontrava disposto como peas de qualquer loja de antiqurio, sem ligao nem espao para brilharem, um sonho de coleccionador, um pesadelo de guarda se se tivesse presente a combinao fatal da crescente humidade com as grandes salamandras em ferro. Pensei que o leilo de praticamente qualquer das peas bastaria para obter o dinheiro necessrio ao arranjo da zona onde a humidade se infiltrara pela parede ou do telhado onde faltavam as telhas, ou ainda onde o cobre ou couro apresentavam falhas. Sob os nossos ps, servindo de almofadas aos grandes ces que se mantinham deitados volta, havia tapetes, na sua maioria persas, mas conclu que o principal, colocado diante da lareira e aquele que se encontrava na iminncia de arder com algumas fagulhas ocasionais, era sem dvida Aubusson. Para onde quer que olhasse, avistava beleza. Um par geminado de espelhos de talha e molduras ovais douradas, algumas cadeiras de talha dourada atadas por um fio, de modo a que ningum se sentasse nelas inadvertidamente. O forro de damasco dos assentos era velho e usado. No conjunto, era uma sala capaz de enlouquecer algum ante a ideia de ver os seus tesouros expostos no salo do Hardy's, um leilo que, na minha opinio, mereceria ser classificado de "muito importante" nos catlogos, atraindo compradores do mundo inteiro. Comecei a impacientar-me. O que mais havia nesta casa? E porque que ningum soubera da existncia destas peas aqui? As grandes coleces no se faziam na sombra, nem com o desconhecimento dos antiqurios. Tendo em considerao, porm, a histria de Gerald quanto origem da famlia de Askew, dada a localizao e o isolamento deste vale escondido nos confins da Inglaterra, o que poderia, afinal, s ter chegado aqui, sem qualquer registo e sem que algum soubesse? O prprio Hardy's apenas iniciara o registo em livros, de forma rigorosa e detalhada, aproximadamente em 1820. Tudo isto poderia ter sido o resultado de qualquer rpida aquisio, quando o fluxo dos emigrantes franceses invadira a Inglaterra para escapar Revoluo; os livros do Hardy's registavam algumas vendas sob a simples meno de "Propriedade de um Nobre Francs". Interroguei-me sobre se existiria algum recibo de venda das coisas que me rodeavam. Quem quer, porm, que tivesse comprado estes belos objectos, no o fizera atravs de um agente38nico ou do Hardy's; o resto do mundo das artes saberia algo disso. Comecei a entender, cada vez mais circunstanciadamente, as implicaes entre o convite que Askew dirigira a Gerald e o seu regresso casa, onde no tinha posto os ps desde o final da guerra. O pensamento bastou para me fazer afluir o sangue ao rosto e esquecer a fadiga. Voltei ao meu lugar junto lareira, mais interessada em escutar a conversa.As chamas da lareira emitiam sombras encantadoras na madeira talhada da grande cornija e recortavam o oval suave do rosto da Condessa, as silhuetas deitadas dos grandes ces, um de cada lado da cadeira de Lord Askew, e os outros to prximo dele quanto os espaos entre os mveis o permitiam; estendido a todo o comprimento, cada um daqueles animais devia medir uns dois metros. Pareciam extraordinariamente satisfeitos, como se estivessem na presena do dono e, no entanto, Askew s chegara h uma semana. Esta enorme matilha pertencia, certamente, casa; ningum viajaria pelo mundo com eles. Pensei no assunto, enquanto a conversa prosseguia minha volta: lugares, Rapallo, Marbella, Ocho Rios, Gstaad, referncia a amigos e conhecimentos comuns. Eu no participava na conversa, mas era-me indiferente. De sbito, tal como os ces, senti-me contente por estar ali.Estranhei quando vi a Condessa estremecer e inclinar-se mais sobre a lareira. O vestido fino no se adequava, certamente, quela casa; mas quem que alguma vez arranjava vestidos apropriados a casas inglesas sem aquecimento? Askew tambm se apercebera do gesto e ps-se imediatamente em p, deitando mais algumas achas na lareira. Enquanto falava, dirigiu-lhe um sorriso, um daqueles seus caractersticos meio sorrisos.- Minha pobre Carlota. . : o sol est muito longe, no verdade?No acrescentou mais nenhuma palavra, mas a Condessa pareceu recon fortada com elas. O olhar que trocaram era a sua forma de comunicarem. Achei que Carlota andaria pelos quarenta anos, mas era uma mulher imbuda da suavidade da beleza internacional, cuja idade se torna difcil de avaliar. "Decerto ama-o, ou no estaria aqui junto dele e longe do sol", conclu.Nessa altura a porta abriu-se e um homem manteve-se na ombreira, sem avanar. - Mrs. Tolson deseja que o informe de que os quartos esto preparados, milorde. Destinou o quarto da Mulher Espanhola para a jovem senhora - anunciou.Olhei de relance para a Condessa, pensando sobre se no se trataria de qualquer comentrio insolente que se lhe destinava, mas incapaz de acreditar que tal coisa lhe pudesse ser dita na presena de Lord Askew, ou que a sua prpria dignidade de mulher o permitisse. Nenhum deles reagiu; porm, com qualquer ndice de fria; a Condessa mostrou- se mesmo indiferente, como pouco lhe interessasse onde eu iria dormir. A Mulher Espanhola citada no era, obviamente, ela, o que todos compreenderam.- Ah, sim? - respondeu Askew, franzindo um pouco o sobrolho, enquanto reflectia. - No o mais confortavel, pois no?39O homem encolheu ligeiramente os ombros. Em nada se assemelhava a um criado. Era alto e de compleio robusta, com farta cabeleira preta, polvilhada de prata. Tinha ombros largos e levemente curvos, os braos pendentes. Vestia calas de flanela e um casaco de tweed, tornando-se difcil divisar-lhe os olhos por detrs das lentes grossas dos culos; possua rosto moreno, comprido, algo melanclico, um rosto fechado vinda de estranhos. Calculei mais uns anos do que o conde, mas parecia forte como uma rocha e gigantesco, em comparao.- No h outra soluo, milorde - respondeu. - o mais seco, assim de improviso. Fica razoavelmente prximo da casa de banho que Mr. Stanton usar. No tem gua quente, mas era totalmente impossvel conseguir gua quente em qualquer dos outros quartos, assim de repente. insistiu, . com rpido e acusador olhar na minha direco. Eu viera causar problemas. No era o motorista que esperavam e para o qual tinham certamente preparado um quarto muito mais confortvel na ala da casa reservada criadagem. - Apesar de tudo, acendi as lareiras e h trs borrachas de gua quente na cama. Diria que est confortvel. Aquele quarto bastante seco. Mandei levar para l as malas da senhora e as de Mr. Stanton j esto no seu quarto. Deseja mais alguma coisa, milorde?Era a mais curiosa mistura de familiaridade e respeito, que me fora dado presenciar. No me restavam dvidas de que este homem era o responsvel pelo governo da casa, como tambm no estava em questo qualquer falta de respeito pelo proprietrio titular dela. Tratava-se quase de uma relao entre tutor e alun