O Psicanalista No Tribunal de Família - Possibilidades e Limites - Hélio Cardoso Miranda Júnior

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    HLIO CARDOSO DE MIRANDA JNIOR

    O psicanalista no Tribunal de Famlia:Possibilidades e limites de um trabalho na instituio

    Tese apresentada ao

    Instituto de Psicologia daUniversidade de So Paulopara obteno do ttulo de

    Doutor em Psicologia.

    rea de concentrao:Psicologia Clnica

    Orientadora: Profa. Dra.Mriam Debieux Rosa

    So Paulo2009

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    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARAFINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na publicaoBiblioteca Dante Moreira Leite

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    Miranda Jnior, Hlio Cardoso.O psicanalista no tribunal de famlia: possibilidades e limites de

    um trabalho na instituio / Hlio Cardoso Miranda Jnior; orientadoraMiriam Debieux Rosa. -- So Paulo, 2009.

    238 p.Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Psicologia.

    rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Instituto de Psicologia daUniversidade de So Paulo.

    1. Psicanlise 2. Direito 3. Psicologia forense 4. Famlia I.

    Ttulo.

    RC504

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    Nome: MIRANDA JNIOR, Hlio Cardoso.

    Ttulo: O psicanalista no Tribunal de Famlia: Possibilidades e limites de umtrabalho na instituio

    Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo

    de Doutor em Psicologia.

    Aprovado em: ___/___/_____

    Banca Examinadora

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio:_____________________Assinatura:___________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio:_____________________Assinatura:___________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio:_____________________Assinatura:___________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio:_____________________Assinatura:___________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio:_____________________Assinatura:___________________

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    DEDICATRIA

    Para minha famlia,

    sobretudo para meus pais

    e

    para Camille e Janice.

    Alguns nomes permanecem,

    Clio GarciaJeferson Machado Pinto

    Mriam Debieux Rosa

    pois, mesmo compondo uma srie,como todos os nomes compem,

    conseguem deixar nelasua marca singular.

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    AGRADECIMENTOS

    minha famlia, que soube tolerar o isolamento necessrio realizao de uma pesquisa e

    tentou contribuir na sua elaborao, sobretudo Janice e Camille.

    minha orientadora, Profa. Mriam Debieux Rosa, que aceitou o desafio desta pesquisa e

    conseguiu unir a rdua tarefa da orientao ao constante incentivo ao trabalho, sempre com

    disponibilidade e humor.

    A PUC Minas, que incentivou essa pesquisa com licena remunerada de trs anos por meio do

    Programa Permanente de Capacitao Docente.

    Aos colegas da PUC Minas que, em muitos momentos, auxiliaram na resoluo de questes

    acadmicas e administrativas derivadas de minha dedicao a esta pesquisa. Agradeo

    especialmente a Carla Derzi, Cristina Marcos e Flvio Dures, pois coordenamos juntos o

    curso de especializao Clnica Psicanaltica na Atualidade e, elegantemente, eles me

    permitiram um ano de afastamento completo das atividades do curso para me dedicar

    pesquisa.

    Ao Tribunal de Justia de Minas Gerais, que autorizou a utilizao dos casos apresentados

    nesta pesquisa e que, mesmo no possuindo um incentivo institucional especfico pesquisa,

    constitui o terreno discursivo no qual se insere a articulao que aqui exponho.

    Aos colegas da Central de Servio Social e Psicologia do Frum Lafayette, em Belo

    Horizonte, que sempre me apoiaram no percurso da pesquisa e, principalmente, queles quelutam para manter a qualidade e a tica do trabalho jurdico com as famlias. Agradeo,

    sobretudo, a Cleide Rocha Andrade, de quem admiro o trabalho e cuja palavra tem a fora e a

    coragem da palavra amiga.

    Ao pesquisador e amigo Sidney Shine, pelo incentivo e pelas amplas ponderaes nos curtos

    espaos de tempo entre um caf e outro.

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    Aos estagirios que me acompanharam no Frum Falayette e que muito ajudaram a construir

    este trabalho em diferentes pocas: Grazielle Paola, Gilsiane A. Ribeiro Braga, Hugo Rangel

    Bata Vieira, Ely Fernandes Silva, Nazira Peixoto Barbosa e Aline Rabelo Cunha Silva.

    Ao Professor Patrick Guyomard, que me recebeu como aluno em seu seminrio na Universit

    Paris 7 Denis Diderot, Frana, durante quatro meses para ampliar as articulaes conceituais

    dessa pesquisa e CAPES (Coordenao de Aperfeioamento do Pessoal de Ensino Superior)

    que permitiu, com a concesso de bolsa de estudos, essa experincia em Paris, onde pude

    buscar muitas outras referncias de pesquisa e desfrutar da riqueza do convvio com outros

    pesquisadores.

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    O verdadeiro problema no estudar como a vida humana se submete s regras elasimplesmente no se submete o verdadeiro problema saber como as regras se adaptaram vida.

    Malinowski

    O Verbo no simplesmente para ns a lei onde nos inserimos para portar, cada um de ns, acarga da dvida que faz nosso destino. Ele abre para ns a possibilidade, a tentao de onde possvel nos maldizermos, no somente como destino particular, como vida, mas como oprprio caminho onde o Verbo nos conduz, e como encontro com a verdade, como hora daverdade.

    Lacan

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    RESUMO

    MIRANDA JNIOR, H.C. O Psicanalista no Tribunal de Famlia: Possibilidades e

    limites de um trabalho na instituio. 2009. Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    Esta pesquisa tem como campo de investigao a aplicao da prtica psicanaltica fora da

    clnica stricto sensu (extenso). O seu eixo norteador a interface do Direito com a

    Psicanlise e seu foco de ateno a insero do psiclogo psicanalista nos Tribunais de

    Justia para prestar servios vinculados s Varas de Famlia. Procura-se verificar a prtica

    desse profissional em termos de sua coerncia com os conceitos fundamentais da psicanlise

    e, portanto, com uma prxis que questiona os ideais sociais, em uma instituio que o

    convoca a trabalhar a partir do discurso normativo. Para compreender o trabalho do psiclogo

    / psicanalista em uma perspectiva clnica, procurando definir seus principais conceitos

    operadores, utilizou-se a noo de cena como articuladora dos dois discursos: o jurdico e o

    psicanaltico. A cena jurdica explicitada em seus parmetros discursivos e compreendida

    em uma leitura antropolgica sobre a sua instituio. A cena psicanaltica abordada tendo

    como conceitos principais inconsciente, fantasia, desejo e demanda. Tanto a cena jurdica

    quanto a cena psicanaltica so vinculadas fundamentalmente s questes da famlia para, emseguida, explicitarem-se os conceitos fundamentais e os orientadores da prtica possvel do

    psicanalista no Tribunal de Famlia. Nesse percurso, faz-se uma leitura da percia judicial

    conforme as elaboraes de Michel Foucault para propor uma prtica diferenciada de acordo

    com as formulaes de Freud e de Lacan sobre o desejo e a demanda. Para responder

    questo sobre a possibilidade de ocupar a posio do psicanalista e intervir nos casos

    atendidos em Varas de Famlia, utilizou-se o estudo de caso de alguns processos judiciais

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    encaminhados Central de Servio Social e Psicologia do Frum Lafayette (Belo Horizonte,

    Minas Gerais) e atendidos pelo prprio pesquisador, haja vista sua insero na instituio

    como Psiclogo Judicial. O critrio para a escolha dos casos foi a presena de conflito

    familiar institudo no qual se tentou a interveno pelo vis da escuta analtica. Concluiu-se

    pela possibilidade de interveno em alguns casos, dentro dos limites impostos pela

    instituio e pelo lugar que o psicanalista pode ocupar na interface desses discursos.

    Palavras-chave: psicanlise, direito, norma, psicologia jurdica, famlia.

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    ABSTRACT

    MIRANDA JNIOR, H.C. The psychoanalist in Family Court: possibility and limit of his

    practise an institution. 2009. Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia, Universidade de

    So Paulo, So Paulo, 2009.

    The following research has as an investigation field the application of the psychoanalythical

    practice outside the clinic strict sense. Its guiding axis is the interface of the law and the

    psychoanalysis, and its focus of attention is the insertion of the psychoanalist psychologist in

    the Law Courts, in order to render services linked with the Family Court. It is intended to

    verify the practise of such professional in terms of his coherence with the fundamental

    concepts of psychoanalysis and, thus, with a praxis which questions the social ideals, in an

    institution which convokes him to work based upon the normative discourse. In order to

    inderstand the work of this psychologist / psychoanalist from a clinical perspective. Aiming at

    defining his main operating concepts, a notion os scene as an articulation joint of two

    discourses: the juridical and the psychoanalythical ones. The juridical scene is made explicit

    in its discoursive parameters and from an anthropological interpretation of its institution as

    well. The psychoanalythical scene is broached from the concepts of the unconscious, fantasy,

    desire and demand. Both the juridical scene and the psychoanalythical onde are fundamentally

    linked with the family questions in order to. Soon after, make esplicit the fundamentally

    concepts and the orientations of the possible psychoanalists practise in the family court. In

    this course, an interpretation of the judicial skill was made according to Michel Foucault, in

    order to propose a differentiated practise from the Freuds and Lacans formulations about

    desire and demand. To answer the questions about the possibility of intervention in the cases

    taken to the Family Court, from the psychoanalists standpoint. The cases os some judicial

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    lawsuits which were taken to the Central de Servio Social e Psicologia do Frum Lafayette

    (Center of Social and Psychology Service of Lafayette Forum), in Belo Horizonte, Minas

    Gerais, and taken care of by the reseacher himself, were studied, taking into consideration his

    insertion in the institution as a judicial psychologist. The criterion for the choice of the cases

    was the presence of instituted family conflict in which it was intended an intervention based

    upon analythical listening. The conclusion was for the possibility of intervention in some

    cases inside the limits imposed by the institution and by the place the psychoanalist may

    occupy in the interface of these discourses.

    Key words: psychoanalisis, law, norm, juridical psychology, family.

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    Listas de Siglas

    CF Constituio da Repblica Federativa do Brasil

    CC Cdigo Civil

    CPC Cdigo do Processo Civil

    CP Cdigo Penal

    CPP Cdigo do Processo Penal

    CFP Conselho Federal de Psicologia

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

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    Sumrio

    Introduo 14

    1 A cena jurdica 22

    1.1 A lei, demasiado humana 22

    1.2 A famlia na cena jurdica 29

    1.2.1 A famlia 29

    1.2.2 O Direito de Famlia 34

    1.2.3 A formalizao / institucionalizao de um conflito 48

    1.2.4 A prova pericial 51

    1.2.5 O psiclogo judicial 53

    1.2.6 O psiclogo judicial no Frum 56

    1.3 A cena jurdica e o teatro social 57

    1.3.1 Em torno da cena jurdica institucionalizada 57

    1.3.2 O conflito familiar encenado juridicamente 60

    2 A cena psicanaltica 65

    2.1 A cena em psicanlise 65

    2.2 A cena psicanaltica e a famlia 85

    2.2.1 Conjugalidade 88

    2.2.2 Filiao 99

    3 O psicanalista no Tribunal de Famlia 110

    3.1 A palavra entre escritos, ditos e dizeres 110

    3.1.1 Psicologia e percia 111

    3.1.2 A verdade: discurso jurdico / discurso cientfico 114

    3.1.3 O exame, a verdade e a norma jurdica 118

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    3.2 O psicanalista na cena 127

    3.2.1 O psicanalista, a psicanlise e o problema do

    mtodo na interface 129

    3.2.2 Palavra e verdade em psicanlise 139

    3.2.3 Algumas propostas de trabalho 144

    3.3.3 O discurso institucional e o psicanalista 153

    4 Estudos de casos 160

    4.1 O uso da cena jurdica 160

    4.2 O lao sexual 168

    4.2.1 Pai e me, homem-mulher 171

    4.2.2 Um homem e suas filhas 176

    O enigma do objeto de desejo de um homem 176

    O abuso sexual como meia-verdade 179

    4.2.3 O casal como Um 186

    4.3 Encontros e desencontros entre pais e filhos

    4.3.1 Ideal e Ser: a mestria das imagens e dos significantes 192

    Constituir um pai e uma me 195

    4.3.2 Demanda e ideal entre pais e filhos 201

    O dinheiro e a demanda 201

    Dar o que no se tem 204

    Uma mulher e sua filha: o Ideal e o segredo 206

    4.4 Da cena psicanaltica cena jurdica: lugar e funo do

    relatrio na interface 2095 Concluso 217

    Referncias bibliogrficas 226

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    Introduo

    Muito se tem produzido recentemente sobre a interface Direito, Psicologia ePsicanlise. Alm das proximidades discursivas, h que se lembrar de que entre aqueles

    chamados pelas instituies judicirias a trabalharem nessa interface, compondo equipes

    tcnicas ou exercendo a funo de perito, esto tambm os psicanalistas.

    Porm, pouco se produziu at o momento sobre a prxis do psicanalista na instituio

    judiciria. Ademais, tal produo ainda carece de fundamentao adequada em muitos

    aspectos e, talvez por isto, no consiga convencer plenamente que a utilizao da psicanlise

    nessa interface possa no se reduzir a um mero instrumento terico de interpretao dosfenmenos, o que desvirtua sua potencialidade questionadora, cujo fundamento est na noo

    de desejo e no seu mal-estar inerente.

    Em vrios trabalhos anteriores, a preocupao que nos guiou foi a de destacar a prtica

    do psicanalista nessa interface, tentando compreender as possibilidades e limites do trabalho

    na instituio judiciria que trata das questes de Direito de Famlia1. A proposta de pesquisa,

    delineada a seguir, tem como foco essa questo.

    Direito, Psicologia e Psicanlise

    A Justia moderna tende a absorver, cada vez mais, contribuies de diversos campos

    do saber. A interface psicologia e direito, apesar de no ser recente, foco de pesquisas e

    publicaes no Brasil h pouco tempo. Os psiclogos chamados a trabalhar nessa interface

    esto prestando servios ao judicirio na forma de percias, trabalhos de acompanhamento,

    orientao, entre outros.

    Historicamente, a primeira demanda que se fez psicologia em nome da Justia

    ocorreu no campo do exame e da psicopatologia. A cincia mdica desde cedo foi chamada a

    se posicionar sobre questes de direito por meio da atividade do exame. Conforme Foucault

    (1993), a psiquiatria, desde suas origens, encontra-se justamente nesses interstcios

    discursivos do saber que articulam subjetividade, direito, moral e poder. O campo em que

    primeiro essa funo surge o da criminologia. Os psiclogos, neste mesmo esteio, eram

    chamados a fornecer um parecer pericial no qual, pelo uso neutro dos instrumentos e

    tcnicas de avaliao psicolgica, emitiam um laudo no qual informavam instituio

    1Alguns textos sero indicados no decorrer deste trabalho.

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    judiciria, via seus representantes, um mapa subjetivo do sujeito diagnosticado. O objetivo era

    melhor instruir a instituio para tomada de decises supostamente mais fundamentadas e,

    portanto, mais justas. Os profissionais que executavam esse tipo de trabalho, geralmente

    realizavam a avaliao a partir da idia de uma subjetividade individual descontextualizada e

    objetivada; em outros termos, reificada. Nesse sentido, podemos dizer que, nas primeiras

    dcadas do sculo XX, a cincia psicolgica serviu como mais uma das tcnicas de exame.

    Um exemplo dessa viso centrada na psicopatologia e na criminologia pode ser encontrado no

    livro Manual de Psicologia Jurdica, de Mira Y Lpez (1945), cuja primeira edio de

    1936.

    Esse tipo de avaliao psicolgica continua a ser realizado hoje, geralmente com

    procedimentos aperfeioados e com postura mais crtica. esse trabalho pericial (ou deexame/avaliao) que responde mais diretamente demanda prpria da instituio jurdica,

    pois est a servio da produo de uma verdade que auxilie a tomada de uma deciso judicial.

    Desde os seus primrdios, a psicanlise tambm foi chamada a participar da busca da

    verdade jurdica. Vale registrar as observaes de Freud (1906/1980), sobre os limites dessa

    aplicao. Sua argumentao, justamente a respeito da rea criminal, tem como base a idia

    de que o mtodo psicanaltico, apesar de ter como objetivo intrnseco a investigao, tem

    particularidades que dificultam sua aplicao aos objetivos judicirios. Apesar disso, apsicanlise continuou a ser utilizada nessa interface, o que podemos constatar pelo prprio

    Freud em texto de 1930 intitulado O parecer do perito no caso Halsmann (FREUD,

    1930/1980).

    As prticas atuais

    O trabalho do psiclogo vinculado ao campo do direito e da Justia cresceu em termosquantitativos ao longo das ltimas dcadas. Isso pode ser verificado na participao dos

    psiclogos no trabalho com as crianas e com os adolescentes, desde as dcadas de 70 e 80,

    em instituies como a Febem e a Funabem e, mais recentemente, sua insero em programas

    e projetos vinculados proteo aos direitos deste pblico em rgos do Poder Executivo 2.

    A partir de 1988, poca da promulgao da Constituio Federal, a legislao,

    absorveu e caucionou o discurso cientfico-psicolgico e estabeleceu como necessrio, em

    2Em Belo Horizonte marcante a participao de psiclogos e psicanalistas no Programa de Liberdade Assistidae no Programa de Prestao de Servios Comunidade, nos quais so acompanhadas as execues de medidassocioeducativas aplicadas pelo Poder Judicirio ao adolescente autor de ato infracional. Podemos citar tambmos Servios de Orientao Sociofamiliar, os Conselhos Tutelares, entre outros.

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    muitos casos, a participao do psiclogo no mbito judicirio. Um exemplo disso o

    Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), de 1990, que veio afirmar de forma incisiva a

    necessidade da presena do psiclogo na lida com as questes prprias da rea. (arts. 150 e

    151) Com isso, registra-se um reconhecimento social importante para a psicologia e a

    concomitante absoro de psiclogos nos Tribunais de Justia por concurso pblico. Alguns

    estados brasileiros, como So Paulo, absorveram psiclogos no Tribunal de Justia por meio

    de concursos pblicos antes mesmo da aprovao do ECA. Esses trabalhos pioneiros foram

    muito importantes para a efetivao e a transformao da prtica do psiclogo nessas

    instituies.

    Na Resoluo n 014/00, do Conselho Federal de Psicologia, regulamentada pela

    Resoluo n 02/01, que definiu o ttulo profissional de Especialista em Psicologia Jurdica,podemos encontrar tambm, alm das definies sobre o trabalho de avaliao caracterstico

    da percia, outras atribuies dessa especialidade relacionadas ao atendimento e assistncia

    psicolgica. Tal Resoluo do CFP est de acordo com os artigos do ECA.

    Recentemente, a Lei n. 11.698/2008 que modificou os artigos 1.583 e 1.584 do

    Cdigo Civil referentes guarda de crianas e instituiu a guarda compartilhada, tambm

    menciona que para estabelecer as atribuies do pai e da me e os perodos de convivncia

    sob guarda compartilhada, o juiz, de ofcio ou a requerimento do Ministrio Pblico, poderbasear-se em orientao tcnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. (art. 1.584 3)

    A inovao da definio do lugar do psiclogo judicial presente no ECA e a nova

    demanda que a se criou, juntamente com o fortalecimento da rede de proteo da criana e do

    adolescente por meio dos Conselhos Tutelares e da maior participao do Ministrio Pblico,

    suscitaram questes referentes ao exerccio da funo pericial exigida anteriormente.

    Tanto a Resoluo do CFP citada quanto a redao do ECA e a modificao legal dos

    artigos 1.583 e 1584 do Cdigo Civil favorecem a colocao do psiclogo na situao de umaencruzilhada, como afirmam Ramos e Shine (1994) e com a qual concorda Denise Silva

    (2003), entre a tica do cuidado (ideal teraputico) e a lgica da Justia (produo da

    verdade). Sua funo oscila entre limitar-se tarefa de avaliar o indivduo e a famlia ou

    intervir no conflito familiar e, assim, transcender o dualismo certo/errado, ganhador/perdedor,

    inocente/culpado esperado pelo Judicirio.

    A partir dessas questes, os psiclogos passaram a discutir a chamada psicologia

    jurdica no campo da famlia, da criana e do adolescente para tentar definir sua sustentao

    terica, sua funo social e suas principais prticas. Hoje, h literatura ampla sobre o tema,

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    porm ainda pouco convergente. Como comum ao campo cientfico brasileiro, muitas

    prticas e teorizaes ainda so locais, no divulgadas para um frum de debates.

    Os autores os tericos e os profissionais implicados no campo do direito de famlia se

    dividem em, basicamente, trs posies a respeito dos pontos citados acima.

    Um primeiro grupo defende que a prtica do psiclogo junto s Varas de Famlia tem

    carter pericial, no mantendo uma distncia muito grande em relao percia propriamente

    dita. Nesse grupo se inserem mais explicitamente os psiclogos que utilizam testes para a

    avaliao psicolgica. Um segundo grupo, em geral influenciado pela psicanlise, defende

    que o trabalho do psiclogo no pericial, devendo se pautar pela escuta da singularidade e

    pela interveno na dinmica familiar. Nesse grupo tambm podem ser includos os

    psiclogos com formao em teoria sistmica, presentes tambm na literatura que defende ainterveno no conflito. O terceiro grupo oscila entre os dois primeiros. Os autores defendem

    a prtica em seu carter pericial, mas procuram delimit-la em funo de peculiaridades do

    campo e do exerccio da psicologia, em um esforo para indicar as particularidades da percia

    psicolgica. Em tal grupo podem se encontrar autores de perspectivas e orientaes diversas,

    sejam de cunho estritamente clnico-psicolgico, seja de cunho social.

    A questo de pesquisa

    Os posicionamentos dos autores relativos bibliografia pesquisada no texto citado se

    distinguem em relao direta com as diferenas de compreenso sobre o objeto, o objetivo, o

    foco de ateno do trabalho e a prpria organizao da instituio.

    Avaliar (investigar) e intervir continuam a ser nomes dos polos de oscilao do

    trabalho. A questo em quais lugares epistemolgicos se assentam essas duas possibilidades.

    Nossa posio situa-se no segundo grupo e a questo central nesta pesquisa ,portanto, verificar a possibilidade de trabalho do psicanalista em uma instituio jurdica no

    trato com as questes do direito de famlia na interface entre a demanda institucional e a tica

    que orienta a prxis do psicanalista.

    A pergunta que inicia a discusso baseando-se no posicionamento citado : pode-se

    afirmar que o psicanalista nesse lugar institucional no executa uma percia?

    Se a resposta for a de que o psicanalista executa uma percia, ser preciso questionar o

    uso da psicanlise para a produo de um saber normatizante em meio ao biopoder, quer

    dizer, em meio s tcnicas de controle dos corpos e das subjetividades, das quais a psicologia

    faz parte no entendimento de Foucault (2005). Roudinesco (2003, p. 87) tambm aponta a

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    utilizao da psicanlise nessa mesma vertente pelas mais diversas correntes poltico-

    ideolgicas durante o sculo XX, entre elas a dos prprios psicanalistas que enxergaram no

    complexo de dipo um modelo psicolgico capaz de restaurar uma ordem familiar

    normalizante na qual as figuras do pai e da me seriam determinadas pelo primado da

    diferena sexual. Assim, cada filho era chamado a se tornar o rival de seu pai, cada filha a

    concorrente de sua me. Para ela, quando a psicanlise se encerra nessa leitura do complexo,

    arrisca-se a se transformar em um procedimento de percia que merece a hostilidade a ele

    reservada (p. 90).

    Portanto, quando, nas primeiras dcadas do sculo XX, a famlia torna-se objeto de

    poltica de controle centrada na preveno das anomalias sociais e psquicas a fim de garantir

    o desenvolvimento de seus membros, a psicanlise comps o projeto profiltico juntamentecom a pedagogia, a medicina (em especial a psiquiatria) e a psicologia. Donzelot (1980)

    chamou os trabalhadores especializados neste campo de tcnicos da relao. J nas dcadas

    de 60 e 70 surge uma terminologia tcnica, relacionada noo de parentalidade, de origem

    anglfona, a partir da qual se avaliava a qualidade de ser pai e ser me, a faculdade de exercer

    bem tal funo. Para Roudinesco (2003), tal terminologia indica o fim da configurao

    romanesca e mtica que alimentara o discurso sobre as relaes entre os homens e as

    mulheres, entre os sexos e os gneros, entre o destino e o sujeito durante muitos sculos,produzindo um universo funcionalista de onde fora evacuado todo o sentido do trgico (p.

    157).

    Sabe-se que, no rigor de sua proposta, a psicanlise confronta as idealizaes e as

    psicologizaes do indivduo moderno. Contra toda forma de conhecimento que chamado de

    cincias humanas, Jacques Lacan ope sua noo do sujeito representado no liame entre os

    significantes, cujo carter material e contingencial no pode ser desprezado. Entretanto,

    sabemos tambm que qualquer teoria, inclusive a psicanlise, pode servir para explicar ejustificar formas de controle e de exerccio do saber-poder.

    Por outro lado, retornando questo que inicia nossa discusso, se a resposta for a de

    que o psicanalista no executa uma percia, devemos nos perguntar ento o que ele faz, pois

    ao final de seu trabalho, que em geral tem um tempo delimitado, emite um laudo como

    qualquer outro psiclogo no mesmo lugar, submetido ao mesmo discurso, e, assim, fornece ao

    juiz um saber escrito que, como documento com valor de prova, compor os processos

    judiciais, influenciando as atitudes posteriores dos envolvidos no conflito e, talvez tambm, a

    deciso judicial a ser tomada.

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    O judicirio palco de histrias e cenas familiares. Ali, o sofrimento que,

    psicanaliticamente, advm do mal-estar inerente cultura, encontra uma forma particular de

    se expressar e de demandar alvio. Mas no um palco passivo, pois, na verdade, fornece uma

    linguagem, um discurso, que tambm ajuda a constituir essa famlia. Porm, para o

    psicanalista que recebe uma famlia a ser escutada (avaliada?), a dimenso do trabalho

    poderia se reduzir s idiossincrasias desse discurso articulado pela norma? Como considerar o

    registro do conflito, do pulsional, do eu que no senhor de si, no seio da normatividade

    engendrada pelo biopoder?

    Os principais textos existentes sobre o assunto utilizam conceitos como o de

    entrevistas preliminares e retificao subjetiva para nomear as possibilidades de interveno

    no conflito familiar. Mas como entender a retificao subjetiva sem fazer referncia transferncia? Qual a possibilidade de manejo da transferncia em um trabalho institucional?

    A demanda do sujeito que fala dirigida a quem? Seria possvel desloc-la para uma posio

    de questionamento acerca do desejo?

    Considerando essas questes, o desafio a que nos propomos neste texto verificar a

    possibilidade de adjetivar como psicanaltica uma prtica vinculada ao exerccio da escuta no

    mbito dos processos judiciais em direito de famlia.

    Para buscar uma resposta a tal desafio, fundamento-me em minha insero comopsiclogo judicial no Tribunal de Justia de Minas Gerais, Frum Lafayette em Belo

    Horizonte, desde 1994, trabalhando com processos judiciais em direito de famlia.

    O ponto central de trabalho so as questes de famlia que, inseridas no discurso

    jurdico, esto a demandar uma deciso ou uma legitimao. Tais questes se transformam em

    processos judiciais que so tomados como casos. Para realizar a interface entre os dois

    campos, direito e psicanlise no mbito da famlia, utilizamos a noo de cenada forma como

    esboado no percurso abaixo:O captulo 1, A Cena Jurdica, introduz o leitor no mundo jurdico por meio de um

    percurso sucinto pelas idias de norma e regra, presentes em todas as sociedades e apropriadas

    na nossa por um corpo de conhecimentos especfico que o direito. Indicam-se as concepes

    sobre o direito na modernidade e contextualiza-se a famlia no mbito do direito positivado -

    das leis escritas e legitimadas socialmente - para permitir compreender no que se constitui um

    processo judicial em direito de famlia. Expe-se tambm o trabalho do psiclogo nas Varas

    de Famlia em Belo Horizonte em seus procedimentos bsicos. Por fim, prope-se uma leitura

    do processo judicial como cena social, como montagem discursiva que organiza os fatos e os

    valora com fins de obter a soluo de um conflito e a manuteno da ordem social.

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    O captulo 2,A Cena Psicanaltica, se prope a articular teoricamente a noo da outra

    cena, a cena do inconsciente, constatada pela psicanlise em sua prtica e teorizada com base

    em conceitos como complexo de dipo e fantasia. Nesse captulo, trata-se tambm da cena

    psicanaltica e a famliapara propor uma leitura das relaes familiares luz da noo de

    cena inconsciente. esta a cena familiar que se abre ao psicanalista quando ele se coloca

    escuta dos sujeitos que compem a famlia.

    por esse caminho que podemos propor novas maneiras de compreender a cena

    familiar em sua relao com a norma e com o desejo. As chamadas novas configuraes

    familiares demandam essa reflexo. Hoje, como exemplo dessas novas configuraes

    familiares, alm das famlias chamadas reconstitudas, cujos laos e alianas se expandem em

    direes diversas, h famlias chamadas homoparentais, cuja emergncia traz em seu bojoquestes sobre, por exemplo, a identificao e a filiao. Encontramos tambm as famlias

    construdas sobre relaes diretas com a cincia, nas fecundaes in vitro, no esperma

    congelado e colocado em testamento ou nos vulos cedidos de uma mulher para serem

    fecundados por um homem e colocados em outra mulher para que, no nascimento, a criana

    seja entregue a uma terceira pessoa que o encomendou; esta ltima, juridicamente, a me da

    criana. Roudinesco (2003) d vrios exemplos em seu texto.

    No captulo 3, O Psicanalista no Tribunal de Famlia, explicitam-se as questescrticas sobre a posio pericial do psiclogo na rea de famlia tendo por base Foucault e

    Lacan e se propem as bases metodolgicas para o trabalho com os casos no mbito jurdico a

    partir da posio do psicanalista na escuta e no manejo da transferncia em meio s cenas que

    se superpem. Isso significa abordar a questo da chamada psicanlise aplicada e

    compreender que, se no est simplesmente no uso da teoria a diferena do trabalho do

    psicanalista com o trabalho pericial, ela s pode ser localizada na posio do psicanalista

    frente ao sujeito que fala. Esta assero encontra-se embasada nas proposies de Lacanacerca da estrutura da experincia analtica e o ponto desenvolvido tambm neste captulo.

    Tais bases fundamentam tambm a leitura terica dos casos.

    O captulo 4 apresenta a exposio dos casos escolhidos para este trabalho. Como o

    interesse central o de verificar a possibilidade de sistematizar a prtica do psicanalista na

    instituio jurdica, os casos foram escolhidos por representarem conflitos familiares que

    indicavam a necessidade de interveno. Em cada um deles, se discutem as possibilidades e

    os impasses da interveno no mbito jurdico.

    No captulo 5 retomamos o percurso feito e retiramos dele as concluses possveis,

    tanto com relao s possibilidades do trabalho quanto com relao aos impasses desta

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    experincia. Nesse captulo tambm procuramos indicar outros pontos que merecem novas

    pesquisas.

    Empreender este trabalho importante para se colherem desta interface, alm de uma

    resposta possvel sobre a prtica do psicanalista na instituio jurdica, questes que

    movimentem ambos os campos, problematizando conceitos e aplicaes conceituais que no

    respondem mais realidade atual. Acreditamos que enfrentar tal desafio andar no fio da

    navalha da interface, j que ela exige muito do pesquisador. Porm, tambm indica a

    possibilidade de bons frutos.

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    Captulo 1

    A cena jurdica

    As instituies judicirias e o discurso jurdico sero tomados aqui como parte do

    cenrio social que auxilia a sustentar o lao que mantm a sociedade humana. Nesse sentido,

    elas se constituem como cena, como ritualizao de aspectos fundamentais da realidade

    humana que sustentam a convivncia em sociedade. Sociedade esta que no existe sem o

    intercmbio e sem a regra para o intercmbio.

    Para isso, empreendemos um percurso sobre o discurso jurdico e a formalizao da

    realidade que ele promove ao solucionar conflitos e indicar um dever-ser. A cincia que

    sustenta tal discurso em nossa cultura o Direito e nela fomos buscar as fontes para

    compreender o formato judicial de resoluo dos conflitos de famlia judicialmente. Temos a

    clara noo de que o fizemos de forma esquemtica, cotejando textos importantes e

    recortando o corpo de conhecimentos jurdicos grosseiramente. Porm, no h meio de

    contextualizar a famlia no mbito jurdico sem nos arriscarmos dessa forma. Ademais, talvez

    o texto possa incitar a curiosidade do leitor para aprofundar-se em questes especficas.

    Para aqueles que no so operadores do direito, o percurso sobre a formalizao do

    conflito no mbito jurdico pode ser penoso devido ao vocabulrio especfico e lgica

    prprias que movimentam este discurso. Contudo, um percurso necessrio para que

    possamos compreender a famlia no Tribunal e a proposta sobre a atuao do psicanalista

    convocado por esse discurso. Alm do mais, este percurso demonstra o esforo de rigor e

    racionalidade dos representantes deste discurso que, apesar disto, no consegue capturar

    plenamente o movimento da vida em suas determinaes. Na verdade, a vida cria outra

    situao nova aps cada nova norma. O constante fracasso da racionalidade, depois de cada

    sucesso, talvez o fundamento daquilo que apaixonante no discurso jurdico e que sustentao debate poltico inerente a este discurso.

    1.1 - A lei, demasiado humana

    No h grupo humano que no possua regras. Isto um fato. Para muitos filsofos,

    juristas, psiclogos e psicanalistas justamente a enunciao de regras que nos faz distintos

    dos grupos de outros animais. Alguns animais possuem um nvel de organizao curioso emseus grupos, mas nenhum deles, pelo que se sabe at hoje, criou as regras que segue, ou

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    modificou-as a partir de uma atividade mental ou um ato de vontade. Alm disso, nenhum

    deles possui uma forma de transmisso da regra pela linguagem.

    Pensar a origem do direito cogitar sobre as regras que ordenam a convivncia desde

    tempos dos quais possumos apenas resqucios de um quebra-cabea no qual faltam muitas

    peas.

    Para muitos autores, desde que o grupo humano estabeleceu normas de convivncia

    pelo costume, pela autoridade ou pela escrita, surgiram os rudimentos do que hoje nossa

    sociedade nomeia como direito3. Regras de aliana com grupos rivais ou inimigos, regras de

    convivncia entre os pertencentes ao mesmo agrupamento, regras de parentesco e matrimnio

    (que tambm servem para a aliana com outros grupos), regras sobre domnio e posse, regras

    para diferenciar crianas de adultos, regras sobre as trocas sociais e o comrcio, sobre aherana, o uso do trabalho alheio, regras sobre os crimes e as punies... uma extensa lista.

    Quanto mais se tornava complexa a sociedade humana, mais regras foram necessrias

    e mais claras elas precisavam ser. Com isso, tornou-se necessrio, em organizaes sociais

    como a nossa, a criao de normas sobre como se fazem as normas - a legitimidade do ato de

    legislar - e tambm sobre como se julgam as transgresses e os conflitos - a legitimidade do

    ato de julgar.

    O fato que a necessidade de possuir regras bem estabelecidas, que permitissem astrocas serem realizadas nos grupos humanos e tambm os julgamentos, encontra-se, hoje,

    descoberta em diversas fontes histricas. Exemplos conhecidos so o Cdigo de Lipit-Istar,

    vigente na Sumria em 1900 a.C.; o Cdigo de Bilalama, da Babilnia de 1970a.C.; o Cdigo

    de Ur-Namu, de 2.050 a.C.; e um outro, da sociedade babilnica, mais conhecido, o clebre

    Cdigo de Hamurabi, de cerca de 1.750 a.C.4. Isso para no falar de outras leis constituintes

    do discurso judaico-cristo: os Dez Mandamentos, a Lei de Talio, etc.

    Mesmo em sociedades tribais, as normas que regem o grupo so fundamentais. Trsestudos clssicos muito conhecidos podem ser citados para demonstrar isso: Malinowski

    (2003), que estudou a submisso lei e ordem para as sociedades selvagens; Mauss

    (2003), com o Ensaio sobre a ddiva, no qual estuda a regra que, nas sociedades arcaicas,

    obriga a troca de presentes, a circulao das coisas entre as pessoas 5 e, por fim, Lvi-Strauss,

    com seu texto Estruturas Elementares do Parentesco (1982), no qual prope a formao das

    alianas em sua relao com o tabu do incesto.

    3

    Ubi societas, ibi jus no h sociedade sem direito nem direito sem sociedade.4Cf. compilao feita por Nascimento (2004).

    5 O autor afirma que visava a atingir, de certo modo arqueolgico, concluses acerca da natureza dastransaes humanas, antes da instituio dos mercadores e da inveno da moeda.

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    tambm digno de registro que as leis, as normas, estiveram ligadas, desde cedo, a

    fatores msticos e religiosos. Conceder autoridade a algum investia o lder de uma aura

    divina e, em algumas sociedades, tal investidura foi fundamental para a unio em torno de sua

    imagem, em torno do exerccio do poder. Ademais, conforme Mauss (2003), o ritual religioso,

    como o prprio nome diz, um acontecimento carregado de regras que visa, muitas vezes, ao

    cumprimento de uma outra regra de troca entre os homens e as divindades.

    A norma em seu sentido amplo regula as aes e as condutas, diminui o poder de

    todos em benefcio, teoricamente, tambm de todos. Porm, preciso que alguns sejam

    investidos de maior poder para exercer as funes de governar, orientar, administrar, julgar.

    As razes da escolha do lder sempre variaram muito: idade, inteligncia, descendncia, fora

    fsica, etc. So muitas as histrias e seus desfechos; entretanto, em todas elas esteve presente anoo de realizao da justia. As leis no tm eficcia duradoura se no permitem manter a

    idia de justia.

    E a justia, a realizao de um justo, de uma medida, necessria mesmo

    considerando o conflito entre a lei rigorosa e o uso legalizado, entre o desvio tolervel - pois a

    lei no espera que todos vivamos de acordo com as normas ideais - e o desvio que gera a

    reao da sociedade ou de uma instituio, como afirma Bohannan (1966); ou entre aquilo

    que pode ser transgredido sem se tornar pblico e a necessidade de punir o que se torna dedomnio pblico, como destaca Malinowski (1926/2003). Em torno da realizao da justia se

    criou, na sociedade ocidental, a cincia do Direito.

    A palavra direito formou-se da juno latina entre dis (muito, intenso) e rectum

    (reto, justo), donde disrectume, depois, directum, que significa, ento, muito reto e muito

    justo. Curiosamente, directum do latim popular e tambm se relaciona ao verbo dirigere

    (dirigir, ordenar, endireitar), donde se deduz o sentido do que, sendo reto, segue uma s

    direo, ou seja, tudo que conforme a razo, a justia e a equidade. No latim clssico,utilizava-se a palavra ius (ou jus), provavelmente originada do snscrito is, relativa ao

    recinto sagrado onde se ministrava a justia. O jusromano enfatizava a idia de proteo e

    salvao, idia que faz do direito uma faculdade e no uma norma obrigatria6.

    Nosso direito pertence linhagem jurdica romano-germnica, ou seja, o direito

    romano - Direito de Roma, que no separava o direito em ramos diferenciados - mesclado s

    contribuies dos povos brbaros que dominaram as regies do Imprio Romano na poca de

    6 O que segue sobre a histria do Direito tem por base: NASCIMENTO, W. op.cit.; BITTAR, E.C.B. eALMEIDA, G.A. Curso de Filosofia do Direito- 4ed. So Paulo: Atlas, 2005; FIZA, C. Direito Civil: cursocompleto - 9 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; FERRAZ Jr., T.S . A cincia do direito - 2 ed. So Paulo:Atlas, 1980; SILVA, De Plcido. Vocabulrio Jurdico- 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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    sua decadncia. No perodo feudal, a Alta Idade Mdia, o Direito no se encontrava

    sistematizado; predominavam o Direito Cannico para as questes internas da Igreja,

    instituio que se firmou e se unificou naquele perodo, e os costumes locais para dirimir os

    conflitos em geral. Foi um perodo caracterizado tambm por uma tradio oral no Direito,

    pois ainda no havia o direito escrito, e pelas ordlias, termo que designa as provas por meio

    das quais os indivduos solucionavam conflitos e produziam a verdade da justia. Alguns

    exemplos so os duelos e jogos divinos, os juramentos, a prova pelo fogo, a prova de bebidas

    amargas, a prova da gua fria, etc.

    Na Baixa Idade Mdia dominaram os glosadores, juristas que tomaram por base os

    textos do Imperador Justiniano e deram-lhe um tratamento metdico, desenvolvendo uma

    tcnica especial de abordagem de textos pr-fabricados e aceitos por sua autoridade. Dessaconfrontao entre o texto estabelecido e o seu tratamento explicativo nasceu a dogmtica

    jurdica. O texto era a prpria encarnao da razo e o trabalho dos juristas era o de

    harmonizao na elaborao de uma concordncia, alguns mtodos, dos quais o mais simples

    era a subordinao (hierrquica) de autoridades. Da o carter exegtico de seus propsitos.

    O direito que nos interessa o direito nascido no sculo XVI, quando o pensamento

    jurdico dos glosadores comeou a sofrer crticas, sobretudo acerca da falta de

    sistematicidade. Naquele perodo a sociedade ocidental estava s voltas com a consolidaodas naes e com o problema da submisso dos povos a um soberano e, depois, a um Estado,

    o Estado Nacional Absolutista. Outros acontecimentos compuseram o mesmo perodo e foram

    marcantes para o movimento em direo modernidade. De forma resumida, tal poca foi

    marcada por certa pacificao na Europa, pelo surgimento do mercado, da indstria, do

    comrcio ampliado, dos bancos e da circulao monetria, das grandes navegaes, da

    urbanizao, da criao das universidades e das Escolas de Direito, pelo Renascimento e o

    estudo dos clssicos e pela nfase na racionalidade, com o incremento da atividade cientfica. a partir da, com as leis escritas, que vai se instituir com mais clareza a diferena entre o

    direito subjetivo o fato de algum considerar que tem um direito, a faculdade de exigir

    proteo de um interesse em nome de uma lei, ou seja, o jus romano citado antes,

    compreendido como a fruio e o gozo do que nos pertence ou do que nos foi dado e o

    direito objetivo a soma de preceitos, regras e leis, com as respectivas sanes, que regem as

    relaes entre os homens em sociedade, promovem o reconhecimento deste direito pelos

    outros homens e cuja caracterstica dominante a coao social. Todo direito de algum

    implica a obrigao de outrem em respeit-lo e encontra respaldo para isto na proteo social

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    e na coao social. Implica tambm um titular do direito, chamado sujeito do direito, e um

    objeto do direito, no qual incide sua fruio ou gozo a partir de uma relao jurdica.

    Com a secularizao do direito e a consolidao do Estado, a atividade legislativa se

    intensificou e a Justia se tornou mais centralizada com a criao dos tribunais. Os juzes se

    profissionalizaram e o direito se tornou mais patrimonialista, individualista e racional. Os

    sistemas de prova das ordlias, baseado em duelos e jogos divinos, foram substitudos por

    outros baseados em meios racionais de prova.

    Vamos destacar trs roupagens que o pensamento jurdico assumiu na sua proposta

    de se apresentar como cincia a partir da: o Jusnaturalismo, a Escola Histrica e o

    Positivismo.

    Do Jusnaturalismo podemos tambm destacar trs verses fundamentais que renemas diversas concepes sobre o direito natural: a lei ditada por uma vontade divina; a lei

    conatural aos seres animados, guisa de instinto; e a lei ditada pela razo, ou seja, a idia de

    que o Direito um conjunto de princpios bsicos cuja fonte a natureza humana, sendo que

    as caractersticas de tal natureza podem ser descobertas por meio da observao racional.

    Nesse sentido, o direito um conjunto de normas logicamente anteriores e eticamente

    superiores s do Estado. Hoje, as idias fundadoras desses direitos se encontram, por

    exemplo, na defesa de direitos individuais como os de vida, liberdade, dignidade e dosdireitos patrimoniais que asseguram a existncia do homem.

    A maior contribuio do jusnaturalismo moderno ao direito privado foi o conceito de

    sistema. A partir da sistematizao das normas, que pressupe a correo e a perfeio formal

    de uma deduo, a jurisprudncia passou a possuir o carter lgico-demonstrativo de um

    sistema fechado. A reduo das proposies a relaes lgicas um pressuposto da

    formulao de leis naturais, universalmente vlidas, com as quais toda a cincia da poca se

    via implicada a partir do projeto da descoberta dos elementos simples e de sua composioprogressiva - o que indica o projeto de uma ordenao exaustiva. De acordo com Foucault 7

    (apud FERRAZ JR. 1980, p. 25), tal projeto se associa a um mtodo de estabelecimento de

    identidades e diferenas por aproximaes sucessivas. Tal reduo aplicada ao direito

    conferiu a este uma dignidade metodolgica especial.

    Com o Jusnaturalismo moderno, a cincia do Direito rompe com o procedimento

    dogmtico fundado na autoridade, mas no com o carterdogmtico, que na verdade tentou

    aperfeioar dando-lhe a qualidade de sistemaconstrudo em nome da razo. Sistema no s

    7Foucault, M.Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.

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    conforme o rigor lgico da deduo, mas instrumento de crtica da realidade do direito posto

    em nome de padres ticos contidos nos princpios reconhecidos pela razo.

    Tal sistema ganha a qualidade da contingncia com a Escola Histrica. Os

    representantes dessa escola questionavam a crena ilimitada na razo humana presente entre

    os jusnaturalistas. Para eles, era preciso compreender a cincia jurdica como cincia

    histrica, donde a dogmtica jurdica como histria do direito, que tem sua essncia dada pela

    Histria8. Dessa escola originou-se o pandectismo, movimento que de dedicou pesquisa dos

    Pandectas ou Digestodo Imperador Justiniano, compilador dos textos romanos. Na Frana

    destacou-se a Escola da Exegese, que se constituiu por meio da discusso do Cdigo de

    Napoleo de 1.804 advogando a codificao das normas - emanadas do povo - sem deixar

    espao ao direito natural. Na Inglaterra destacou-se a Escola Analtica, que tambm advogavaa codificao das leis emanadas do soberano.

    Acrescente-se a esses movimentos a jurisprudncia dos interesses, que defende uma

    perspectiva sociolgica e elege o interesse como mola propulsora do direito. Isso significa

    enfatizar o carter concreto da aplicao da norma ao caso especfico, em contraposio

    qualidade lgico-abstrata que caracterizava a nova concepo sobre direito que tomava fora -

    o Positivismo - que, nascido do prprio Jusnaturalismo em sua perspectiva mais radical,

    passou a confront-lo e contradiz-lo.O positivismo jurdico foi uma reao contra o jusnaturalismo, do qual manteve

    apenas o conceito de sistema. Resumidamente, pode-se dizer que o movimento de codificao

    do direito, poca coincidente com o apogeu do positivismo, teve como principal objetivo

    organizar o caos do direito no escrito (natural e consuetudinrio) e oferecer ao Estado um

    instrumento de controle da vida em sociedade, fundamentalmente visando segurana da

    sociedade burguesa.

    A denominao positivismo no unvoca. Designa um movimento amplo quecongrega autores divergentes, inclusive. De qualquer modo, podemos sintetizar a concepo

    que sustenta o positivismo: o reconhecimento da impossibilidade de atingir as causas

    imanentes e criadoras dos fenmenos, o que leva, ento, a aceitar os fatos e suas relaes

    recprocas como nico objeto possvel da investigao cientfica. Nesse sentido, o positivismo

    jurdico procura se restringir compreenso da norma e do sistema jurdico no qual ela est

    inserida. Seguindo a trilha aberta por Comte, o positivismo jurdico pretendeu negar toda a

    metafsica e teleologia da liberdade e da vontade, dando preferncia s explicaes causais e

    8Ferraz Jr. (1980) comenta que a Histria defendida por esta escola acabou se tornando mais uma estilizaosistemtica da tradio pela seleo abstrata das fontes histricas. (p. 29).

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    ao determinismo. Ele afastou tambm as referncias sociologia, histria e antropologia

    visando a fornecer uma melhor compreenso lgico-sistemtica do direito. Da que o que no

    pode ser provado racionalmente no pode ser conhecido.

    Nessa perspectiva, o sistema normativo constitui uma totalidade formal que tende a

    fechar-se sobre si mesma, na qual as lacunas aparentes devem sofrer correo, no ato

    interpretativo, pela reduo de determinado caso lei superior na hierarquia lgica.

    Como sistema textual, o direito, assim, refere-se ao que foi validado e se encontra

    registrado nas leis escritas, podendo ser alterado de acordo com procedimentos especficos.

    Conforme Bobbio (2000), para o positivismo, numa perspectiva radical, s h o direito

    estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referncia a valores ticos. O

    maior expoente dessa tendncia foi Hans Kelsen9.Esses trs eixos, ou roupagens do Direito, como diz Ferraz Jr. (1980), no esgotam a

    riqueza histrica e filosfica desta cincia. As tendncias atuais e os debates em torno das

    posies filosficas e polticas podem ser acompanhados nos livros que serviram de

    referncia no percurso empreendido at aqui.

    Interessa agora contextualizar a famlia, no sem antes registrar algumas linhas sobre o

    direito civil no Brasil.

    No Brasil, o direito se organizou a partir das Ordenaes Filipinas de Portugal, um

    cdigo datado do sculo XV (aproximadamente 1.603) que representou poca uma reao

    contra o direito cannico. No sculo XIX, Portugal organizou seu Cdigo Civil, mas o Brasil

    manteve intacta a parte relativa ao Direito Civil das Ordenaes. Somente no final desse

    mesmo sculo, empreendeu-se no Brasil a tarefa de compilar um Cdigo Civil, cujo expoente

    maior foi Clvis Bevilqua. H quem entenda, como Orlando Gomes (2003) e Leite10(apud

    Fachin, 1999), que o Cdigo Civil de 1916, elaborado num perodo de transio, temcaractersticas monarquistas, escravagistas, paternalistas e reflete a diviso da sociedade

    brasileira entre a elite e os pobres ainda no proletarizados. Sua elaborao foi realizada por

    uma classe mdia composta por burocratas e militares subservientes elite agrria e

    aristocrtica, portanto com um cunho bastante conservador. Isso se percebe pela nfase na

    livre iniciativa e a falta de inovaes de fundo social. Gomes (2003) acrescenta que os

    interesses da elite agrria eram coincidentes com os da burguesia emergente, porm no se

    9Voltaremos a citar este autor nos captulos seguintes devido s articulaes que outros pesquisadores propementre algumas de suas teses e a teoria psicanaltica. Cf. KELSEN, H. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre:Fabris, 1986.10LEITE, E.O. Tratado de Direito de Famlia: origem e evoluo do casamento. Curitiba: Juru, 1993.

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    toleravam certas ousadias. O mesmo autor afirma que o Cdigo reflete tambm um

    privatismo domstico, denunciado na preponderncia do crculo da famlia despoticamente

    patriarcal, mesmo que contenha elementos de tolerncia e afetividade. O prprio Bevilqua

    afirmara que o direito brasileiro era um direito afetivo, pois continha predisposies

    inspiradas em causas sentimentais.

    No ano de 2002 entrou em vigor o novo Cdigo Civil e ele ser a referncia ao

    abordar a famlia no que vem a seguir.

    1.2 - A Famlia na Cena Jurdica

    1.2.1 - A Famlia

    Etimologicamente, a palavra famlia provm do latim famulus, que significava o

    conjunto de empregados de um senhor na Roma Antiga. Porm, sob esse significante,

    famlia, pode-se descrever um extenso leque de formas de organizao social, modos de

    relao e ideais de realizao pessoal que se encontram registrados ao longo de toda a histria

    humana.

    Linton (2000) oferece uma definio interessante, pelo seu carter universal: unidadescooperativas intimamente entrelaadas e internamente organizadas que ocupam lugar

    intermedirio entre o indivduo e a sociedade total de que ele faz parte. Para o mesmo autor,

    h tambm a expectativa de que essa unidade seja o centro principal dos interesses e da

    lealdade daqueles que a ela pertencem e que tm obrigao de cooperar entre si, auxiliar-se

    mutuamente e colocar os interesses de seus membros acima de interesses estranhos. Alm

    disso, ele cita que esperado que a interao das personalidades dentro da famlia seja ntima

    e contnua, por meio de laos de afeio e de interesse.Nessa definio no aparece a questo das alianas matrimoniais e de filiao,

    secundrias imagem protpica de adultos dividindo tarefas, gerando crianas e cuidando

    delas. secundrio justamente porque h uma enorme variedade de formas de organizao e

    de modos de relao pessoal que regulam as alianas matrimoniais, a filiao, a autoridade

    parental e os papis sexuais. Os exemplos colhidos por inmeros pesquisadores do conta da

    diversidade quase pitoresca das muitas possibilidades de se organizar para acasalar, cuidar de

    crianas e transmitir a herana.

    Para considerar esses registros em uma mnima universalidade, pode-se compreender

    famlia como um grupo humano unido por laos de parentesco e/ou alianas sexuais que

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    convive e se auxilia mutuamente para a satisfao das necessidades bsicas de sobrevivncia.

    Tal definio extremamente restrita para o que se conhece e se nomeia hoje como famlia,

    mas uma tentativa de produzir uma imagem que rena toda a diversidade que os

    pesquisadores j encontraram sob a forma de famlia. Essa imagem, a de adultos convivendo

    com crianas ou adolescentes sob certas regras, prototpica de qualquer grupo organizado.

    Toda criana advm de uma cpula11e, com raras excees antropolgicas, para sobreviver

    deve ser cuidada durante algum tempo por um adulto. Ao ser cuidada por um adulto, essa

    criana inserida em um universo simblico de regras, lugares, alianas, deveres, obrigaes

    e direitos no qual, em geral, permanecer e se reproduzir no acasalamento.

    No cabe, no escopo deste texto, uma histria das formaes familiares e de sua

    variedade, histria que acompanha as transformaes dos modelos de organizao social. Hliteratura extensa sobre o tema12. Interessa-nos compreender que a famlia com que lidamos

    hoje, mesmo no possuindo uma definio nem um formato nicos, possui certa configurao

    que, mesmo em transformao, permite aproximaes didticas.

    Para considerarmos coerentemente a famlia no interesse deste trabalho, destacaremos

    dois temas relevantes para compreend-la: as alianas (casamento e parentesco) e a criao

    dos filhos, temas que repercutem diretamente no provimento da sobrevivncia e na regulao

    da sexualidade. A partir da, focalizaremos a forma conhecida como famlia nuclear, cujomodelo o dos pais biolgicos convivendo com os filhos em um ambiente particularizado.

    A denominada famlia nuclear surgiu no sculo XIX a partir de formas variadas e de

    sistemas de parentesco mais amplos, de acordo com as regies, as tradies, os meios sociais

    e culturais. A Revoluo Industrial e a urbanizao j haviam interferido na organizao e no

    funcionamento das famlias europeias, estabelecendo inclusive diferenas importantes entre a

    populao rural e a urbana e entre as classes sociais. Para alguns, os filhos eram numerosos e

    se transformavam rapidamente em mo-de-obra na luta pela sobrevivncia. Para outros, osfilhos eram criaturas a serem investidas de proteo para a formao de herdeiros.

    Aos poucos, com a interferncia crescente do discurso mdico e do Estado, as regras

    de aliana, as prticas sexuais e o cuidado com as crianas tenderam a se homogeneizar, pelo

    menos discursivamente. Por isso, a famlia nuclear passa a ser louvada como clula social,

    tanto por libertrios quanto por conservadores, e tendeu a absorver todas as funes da

    11 importante lembrar, desde j, que hoje a cincia j permite no haver cpula.12

    Para citar algumas, mais conhecidas: ENGELS, F. A origem da famlia, da propriedade privada e do

    Estado. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1982. LVI-STRAUSS, C. A famlia. Porto Alegre, VilllaMartha, 1980; POSTER, M. Teoria crtica da famlia. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; BADINTER,E. Um amorconquistado. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; LINTON, R.op.cit.

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    regulao social. Centro de uma moralidade natural e princpio do Estado, ainda hoje a

    famlia oscila entre exigir a submisso de seus membros s determinaes familiares e inseri-

    los em uma organizao social que passa a ter o desempenho individual como medida.

    Foi justamente o fortalecimento da noo de indivduo autnomo que instituiu, a partir

    da revoluo industrial e da organizao social liberal e democrtica, o statuscomo fruto de

    uma competio regulada por normas universais e padronizadas, o que fez da famlia na

    sociedade ocidental uma instituio de formao do futuro indivduo por meio da disciplina

    uma instituio com funo distinta daquela em vigor na poca da patronagem e da herana

    caractersticas da sociedade aristocrtica. Conforme Casey (1992), a criana e o adolescente

    passam ento a ser preparados para a competio social por meio do conhecimento e da

    autorregulao, formao na qual passa a ter papel crescente a escolarizao incentivada peloIluminismo. Isso justificou, ento, a interveno cada vez maior do Estado no seio da famlia

    fundamentalmente a famlia pobre: a criana passa a ser o capital mais precioso do Estado.

    Nesse percurso, a famlia se torna o grupo autnomo e ntimo, a clula social, mas

    passa a ser constituda por indivduos e no membros, como destaca Perrot (1999). Espaos

    privados, valorizao das diferenas individuais e demanda por tratamento igualitrio, no

    sentido de direitos e deveres, crescem paulatinamente. Da que, progressivamente, os

    indivduos recorram Justia contra as determinaes familiares. Da tambm que tendam adesaparecer progressivamente as leis que concediam privilgios de herana ou autoridade aos

    primognitos.

    Pode-se destacar a um movimento paradoxal: a famlia fecha-se sobre si mesma na

    intimidade ao mesmo tempo em que aceita a regulao da sexualidade pelo discurso mdico e

    busca a legitimao do Estado tanto para sua constituio quanto para o reconhecimento de

    direitos individuais no prprio seio da famlia.

    Um processo histrico semelhante ocorre no Brasil do sculo XIX: a famlia volta-sesobre si mesma num processo de interiorizao (intimidade), e a rua passa a ser vista como

    lugar perigoso ou indevido, viso que acompanha a crescente urbanizao brasileira. De

    acordo com Costa (1989), tal processo sofreu um forte incremento com a absoro do

    discurso mdico-higinico pelo Estado e a sua aplicao populao. Este tipo de discurso foi

    muito poderoso no Brasil em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, sendo caracterizado

    por uma tentativa de normatizar o comportamento dos indivduos segundo concepes

    mdicas sobre a higiene corporal e mental. O cuidado com os filhos e a nfase na sua

    educao passam a ser sinais de afeto, de amor.

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    O modelo idealizado de famlia hoje , em geral, o de um grupo que conta com a

    presena de adultos, genitores da criana, dividindo as tarefas polticas e econmicas de

    manuteno de uma unidade chamada lar e cuidando de seus filhos com afeto, o que implica o

    amparo material e moral, alm de permitir-lhes certa autonomia e o desfrute de bens de

    consumo. Os filhos, nesse modelo, seguiriam as determinaes parentais e procurariam se

    inserir socialmente pela via da educao e do trabalho, mantendo o vnculo de afeto com seus

    pais e prestando-lhes auxlio na velhice. Evidentemente, apenas um modelo. A realidade

    muito distinta, pois os fatos no se encaixam na imagem.

    Tanto a concepo de famlia modificou-se com o tempo quanto a concepo dos

    papis e funes de cada um de seus membros em relao aos aspectos econmicos,

    religiosos, sexuais, afetivos, sociais. Apesar de refletir um modelo idealizado, a legislaotende a se modificar para acompanhar as mudanas sociais.

    Perdeu-se a clareza quanto aos papis sociais a serem desempenhados pelos membros

    adultos. A entrada das mulheres no mercado de trabalho como fora produtiva e renda

    necessria para a economia domstica, e a luta pelos direitos individuais femininos levaram o

    homem a deixar de ser o chefe da famlia, o cabea do casal, e a mulher deixou de

    necessitar da aprovao do marido para se representar socialmente no trabalho ou na gesto

    de seu patrimnio. A diviso de tarefas na qual ao homem cabia o domnio pblico daprofisso e mulher o domnio domstico, centrado no cuidado da casa e na educao dos

    filhos, tambm cedeu lugar a outras concepes e necessidades, apesar de as tarefas

    domsticas ainda serem delegadas em grande parte s mulheres, tanto quanto o

    acompanhamento da educao formal dos filhos.

    Tambm os papis sexuais, antes mais demarcados, perderam fora. As mudanas de

    atitude e de concepo sobre a sexualidade advindas da interveno da cincia em sua

    vertente higienista e preventiva, alm do aparecimento da plula anticoncepcional e dadisseminao do controle da natalidade, modificaram as relaes de gnero e colocaram na

    pauta do dia-a-dia para os casais o planejamento familiar e a reivindicao de satisfao

    sexual. Tambm se tornaram mais comuns os casais homossexuais, hoje chamados

    homoafetivos. O exerccio da sexualidade, antes vinculada a regras prescritivas mais

    definidas, foi ganhando espao na vida das novas geraes, incentivado pela cincia e pela

    mdia.

    No seio das famlias, a criana e o adolescente gradativamente ganham espao

    privilegiado. Tal processo histrico se relaciona s mudanas relativas ao lugar que eles

    ocupam na sociedade. Aris (1978) indica que a partir do final da Idade Mdia, cada vez mais,

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    a famlia passa a se organizar em torno da rotina das crianas. Elas, progressivamente,

    ocupam posio de representar o futuro da famlia e passam a ser objeto de valorizao

    crescente. Isso se relaciona s concepes burguesas de ascenso social; pedagogizao /

    escolarizao das crianas, que destacou a infncia como perodo de vida importante como

    preparao para o futuro e com caractersticas prprias; e Medicina que, por meio do

    higienismo e da preveno, destacou o valor desse perodo particular de vida para a

    construo do futuro cidado saudvel e produtivo. O Estado, absorvendo esse discurso sobre

    a infncia, passa a intervir na famlia por meio de polticas especficas em nome da proteo

    s crianas e aos adolescentes e, por extenso, da proteo da prpria sociedade, da nao

    significante de destaque na poca em que tal discurso tomou maior relevncia. O mesmo

    processo pde ser verificado no Brasil, com as suas particularidades, por Del Priore (1991).Em trabalho anterior (MIRANDA JR., 2000), acompanhamos como esses discursos,

    munidos de concepes psicolgicas sobre o desenvolvimento infantil, interferiram na

    construo dos textos legais destinados infncia e adolescncia no Brasil.

    Todos estes discursos e processos afetam a sociedade, mas devemos convir que as

    concepes sobre famlia so distintas entre as classes econmicas e as regies culturais. As

    questes acerca dos papis econmicos, sexuais e intergeracionais, tanto quanto suas funes

    se modificam dependendo de fatores sociais variados, como afirma, por exemplo, Kallas13

    (apud PEREIRA, 2004). A legislao, contudo, tende a refletir as concepes dominantes em

    certa poca, lugar e economia.

    A diversidade de formas de organizao familiar em nossa complexa sociedade deixa

    entrever que continua no ser possvel encontrar umadefinio de famlia. Contudo, o direito

    precisa estabelecer definies e estas, por meio das leis e da doutrina, permitem explicitar os

    interesses e os discursos hegemnicos na atual sociedade. Ao estabelecerem legitimaes

    sobre as relaes familiares, o direito e a justia tornam claros os interminveis jogos depoder que atravessam e so atravessados pelas mudanas sociais.

    Entretanto, apesar da existncia dos modelos ideais e de sua reproduo, pode-se

    afirmar que, em funo dos processos sociais expostos anteriormente, a famlia hoje se

    assenta em bases menos rgidas e, portanto, mais transitrias e tambm mais imprevisveis.

    Diversos estudos tomam a famlia por objeto, tanto para caracterizar as formas

    familiares (em nomes como monoparentais, reconstitudas, homoafetivas, etc.) quanto para

    caracterizar as relaes que se estabelecem nelas entre os indivduos que a compem de

    13KALLAS, M.L. Do outro lado do muro: da instituio comunidade. Um estudo da famlia de baixa renda. In:______. Debate social: famlia ontem, hoje e amanh. Rio de Janeiro: CBICISS/PUC Rio, 1990.

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    acordo com suas prprias caractersticas (hetero ou homossexual, crianas, adolescentes, pai,

    me, avs, etc.)14.

    1.2.2 - O Direito de Famlia

    A regulao do matrimnio e do parentesco sempre foi um dos principais temas das

    regras do que hoje se nomeia como direito de famlia. A variao de tais normas em termos

    histricos e culturais muito ampla. Como exemplo, pode-se citar a possibilidade ou a

    exigncia de npcias entre parentes, o repdio ao companheiro e o divrcio, o dote noiva ou

    da noiva, so temas recorrentes nas legislaes comparadas. Pode-se destacar como pontos

    comuns nesses estudos, de acordo com Nascimento (2004), a necessidade da realizao de umcontrato ou de um pacto de carter pblico, quer dizer, que inclua testemunhas do ato de

    aliana realizado. Envolta em mstica prpria, a formao de uma famlia geralmente

    acompanhada de um carter tambm religioso, conforme a proximidade entre as normas e o

    elemento religioso nas sociedades e, mais ainda, a proximidade entre o elemento religioso e a

    famlia.

    Vamos localizar a formalizao da legitimao jurdica da famlia em nossa

    organizao social iniciando pelas definies e contextualizaes sobre a famlia no discursojurdico. A parte relacionada famlia no Cdigo Civil e o Estatuto da Criana e do

    Adolescente (Lei 8.069/90) sero nossas principais referncias.

    O Direito Privado o direito que regula as relaes jurdicas entre particulares, que

    organiza juridicamente os interesses de ordem individual15. Nele se insere o Direito Civil, que

    regula os direitos da personalidade (nome, estado, etc.), o direito das coisas e bens, das

    obrigaes, da famlia e das sucesses. No sentido subjetivo dos direitos, podemos dizer que odireito civil regula duas ordens de direito: as patrimoniais e as pessoais. O Direito de Famlia

    um ramo do Direito Civil, apesar de aquele envolver o interesse pblico de forma mais

    direta que outros campos deste. A concepo jurdica de famlia, que sustenta o ordenamento

    no direito civil, pode ser encontrada no art. XVI 2 da Declarao Universal dos Direitos

    Humanos (1948): A famlia o ncleo natural e fundamental da sociedade e tem direito

    14Ver, por exemplo, o livro de Fres-Carneiro, 1999.15O que se segue tem por base as seguintes referncias: SILVA, De Plcido, op. cit. ; DINIZ, M.H. Curso deDireito Civil Brasileiro- 21 ed. So Paulo: Saraiva, 2006 v. 5; WALD, Arnold. O novo direito de famlia-15 ed. So Paulo: Saraiva, 2004. Citaremos a referncia especfica somente quando considerarmos necessrio.

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    proteo da sociedade e do Estado. Tal concepo se reflete no art. 226 da nossa

    Constituio Federal.

    O direito de famlia constitui o complexo de normas que regulam a celebrao, a

    validade e os efeitos do casamento, as relaes pessoais e econmicas da sociedade conjugal e

    tambm a sua dissoluo, a unio estvel, as relaes entre pais e filhos e o vnculo de

    parentesco. Abrange ainda os institutos da tutela e da curatela, de carter protetivo e

    assistencial. Tais normas regem as relaes pessoais, patrimoniais e assistenciais entre

    cnjuges ou conviventes, filhos e pais, tutelados e interditos. Cabe destacar que, de acordo

    com a doutrina, o direito de famlia no tem contedo econmico a no ser indiretamente,

    pois cuida de interesses superiores aos do indivduo. Esse aspecto incitou doutrinadores a

    sugerirem sua incluso no campo do Direito Pblico; afinal, sobressai a importncia doelemento social e tico que constitui a famlia no papel intermedirio entre o Estado e o

    indivduo. Por esse mesmo motivo, o direito de famlia exercido, idealmente, menos no

    interesse individual de cada um dos membros do que em favor do interesse comum da famlia,

    que superior como realidade autnoma, pois a solidez da famlia influi no desenvolvimento

    e na vitalidade do prprio Estado.

    Pelo mesmo motivo, a maioria das disposies em direito de famlia tem reflexos

    importantes na vida social. Da no admitirem modalidade. Por exemplo: quem reconhece umfilho no pode fazer um reconhecimento condicional. Neste sentido que Diniz (2006) afirma

    que a maioria das normas em direito de famlia so cogentes, quer dizer, de ordem pblica,

    nas quais a autonomia da vontade sofre muitas limitaes. Os vnculos so estabelecidos e os

    poderes outorgados mais para impor deveres que criar direitos.

    Alm disso, o direito de famlia menos universal que outros campos do direito, pois

    implica os valores e a ideologia dominante de cada poca, o que inclui as tradies e as

    crenas religiosas tambm dominantes. Apesar disso, o direito de famlia influencia todos osramos do direito pblico e do privado16.

    Historicamente, somente a Constituio de 1934 incorporou um captulo dedicado

    famlia. A Constituio do Brasil outorgada por D. Pedro I, em 1824, e a primeira

    Constituio da Repblica de 1981 no possuem um captulo sobre a famlia. De l at os dias

    atuais houve mudanas importantes nas concepes sobre casamento e separao, culpa,

    16No Direito Civil: direito das obrigaes (alienao de bens, etc.), direito das coisas (hipoteca legal), direito dassucesses. No Direito Pblico: direito constitucional, direito tributrio (isenes, etc.), direito administrativo(remoo de cargos pblicos, etc.), direito previdencirio (penses alimentcias), direito processual (suspeio do

    juiz, etc.), direito penal (crimes contra o estado de filiao, etc.).

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    guarda, visitas, etc. Tais modificaes e incrementos legislativos demonstram a mudana nos

    costumes e nas concepes morais da sociedade brasileira.

    De forma esquemtica, pode-se dizer que o direito de famlia possui quatro tpicos

    que renem seu contedo: o direito matrimonial, o direito convivencial (unio estvel e

    concubinato), o direito parental (relaes de parentesco, filiao, adoo, poder familiar,

    alimentos) e o direito assistencial (guarda, tutela, curatela, proteo ao menor). Para Diniz

    (2006, p. 5), importante destacar que o casamento ainda poder ser considerado o centro de

    onde irradiam as normas bsicas do direito de famlia, apesar de a legislao atual proteger a

    famlia no matrimonial.

    A definio de famlia, em termos do direito brasileiro, complexa e varia de acordo

    com o critrio adotado pela legislao que a define. Tais critrios permitem inferir o sentidotcnico do termo em cada situao prevista, mas no configuram uma definio comum ou

    universal de famlia. Diniz (2006) cita cinco critrios das legislaes para a definio de

    famlia: sucessrio, alimentar, da autoridade, fiscal e previdencirio. Em cada legislao, o

    termo famlia abranger mais ou menos indivduos de acordo com determinantes histricos e

    sociais das mais diversas ordens. Como exemplo, podemos citar a diferena entre o critrio

    alimentar, na qual figuram como pertencentes famlia os ascendentes, descendentes e

    irmos; e o critrio da autoridade, que se aplica apenas s relaes entre pais e filhos.A mesma autora extrai de todas essas definies um sentido tcnico de famlia no

    direito: o grupo fechado de pessoas, composto dos pais e filhos, e, para efeitos limitados,

    de outros parentes, unidos pela convivncia e afeto numa mesma economia e sob a mesma

    direo. (DINIZ, 2006 p. 5). Para ela, famlia significa uma possibilidade de convivncia

    marcada pelo afeto e pelo amor, o ncleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. o

    instrumento para a realizao integral do ser humano e possui os seguintes caracteres:

    biolgico, como agrupamento natural; psicolgico, pois possui um elemento que liga osmembros - o amor familiar; econmico, relativo ao auxlio mtuo; religioso, porque um ser

    eminentemente tico ou moral formado pela influncia crist na sociedade ocidental; e

    poltico, por ser a clula da sociedade.

    Os princpios que orientaram a atual concepo jurdica de famlia, ainda segundo

    Diniz (2006), so: a) a afeio como fundamento bsico da vida conjugal, o que faz da

    extino da affectiouma justificativa legtima para a ruptura da unio; b) a igualdade jurdica

    dos cnjuges e dos companheiros no que atina aos seus direitos e deveres, o que modificou

    principalmente a posio de submisso jurdica da mulher; c) a igualdade jurdica de todos os

    filhos, proibindo-se denominaes diferenciadas, como filho legtimo, ilegtimo, natural, etc.;

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    d) o pluralismo familiar, expresso na Constituio Federal de 1988 (art. 127), que, mesmo

    mantendo a diferena entrefamlia, que se refere ao conjunto de pessoas unidas pelos laos do

    matrimnio e da filiao, ou seja, os cnjuges e a prole, e entidade familiar, a comunidade

    formada pelos pais que vivem em unio estvel, ou por qualquer dos pais e descendentes,

    abriu a possibilidade de conferir legitimidade jurdica a diversas formas de famlia, inclusive a

    chamada famlia monoparental ou unilinear; e) a consagrao do poder familiar, que

    substituiu o poder marital e o paterno, antes denominado ptrio poder, pela categoria de

    autoridade parental, o que quer dizer que o poder-dever de dirigir a famlia exercido

    conjuntamente por ambos os genitores; f) a liberdade, relacionado escolha da forma de

    organizao da vida familiar, incluindo o planejamento familiar; g) o respeito da dignidade da

    pessoa humana, relacionado ao pleno desenvolvimento de seus membros, principalmente dacriana e do adolescente.

    Convm registrar tambm que a famlia objeto de preocupao das legislaes que

    tratam prioritariamente da criana e do adolescente. No prembulo da Conveno

    Internacional sobre os Direitos da Criana (ONU, 1989), ratificada pelo Brasil no Decreto n.

    99.710/99, define-se a famlia como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para

    o crescimento de todos os seus membros, em particular, as crianas. Termos semelhantes

    podem ser encontrados no art. XVI da Declarao Universal dos Direitos Humanos, j citada.No difcil perceber a estreita relao entre essas concepes e os modelos ideais

    citados anteriormente: o indivduo livre, igual, que forma a famlia a partir de laos afetivos

    (de amor) e fornece (ampara) o novo indivduo nascido em seu seio no exerccio de seu

    direito ao desenvolvimento de suas potencialidades.

    Trataremos agora dos vnculos jurdicos relativos ao direito de famlia.

    O casamento se compe de um vnculo e um ato jurdico que legitima este vnculo. Oacasalamento, a formao de um casal, independe do ato jurdico, mas este ato, reconhecido

    pela coletividade, que torna legtimo o vnculo estabelecido e gera direitos e deveres. A

    natureza do ato jurdico do casamento discutida por muitos autores. Alguns o aproximam de

    um contrato, cuja caracterstica a bilateralidade que cria obrigaes; outros admitem a

    natureza contratual, mas indicam ser um contrato de natureza particular, pois ato que

    implica a sujeio a normas de ordem pblica e necessita da interveno da autoridade

    pblica. Justamente por estas ltimas caractersticas, h autores, como Wald (2004), que no

    admitem a natureza contratual, conceituando-o como ato jurdico complexo e solene que faz

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    do casamento uma instituio qual, diferentemente dos contratos, no se aplicam as normas

    gerais referentes ao direito das obrigaes.

    O casamento como ato jurdico dividido entre casamento civil e religioso, sendo que

    o casamento religioso pode ter efeito civil. (CF art. 226, 2). Tal ato jurdico implica

    definies sobre sua preparao e celebrao, alm da habilitao dos proponentes. H

    mesmo casos nos quais se necessita autorizao especfica.

    O casamento como vnculo conjugal forma a sociedade conjugal. O vnculo se desfaz

    em casos de morte, sentena anulatria ou declaratria de nulidade (possibilidade que tema

    de discusses e debates doutrinrios por englobar diversas situaes17) e divrcio. J a

    sociedade se desfaz quando ocorre a separao judicial.

    A sociedade conjugal que compe a famlia implica a unidade de nome, que significaa possibilidade de os cnjuges assumirem o sobrenome um do outro (CC 1565); a unidade de

    domiclio, que o dever recproco de coabitao questionada a sua obrigatoriedade por

    alguns autores, como Fachin (1999); a unidade de nacionalidade, que faz com que um cnjuge

    adquira a cidadania do outro; e a unidade patrimonial, que implica a escolha do regime de

    bens do casal (separao, comunho parcial e comunho universal). Este ltimo item indica a

    necessidade de regular o aspecto econmico do casal, que ponto de contato entre o direito de

    famlia e o direito dos contratos18

    .Os cnjuges tambm passam a ter deveres recprocos: a mtua assistncia; sustento,

    guarda e educao dos filhos; fidelidade fsica (relaes sexuais exclusivas) e moral

    (lealdade); respeito e considerao mtuos. A violao de qualquer deles pode dar ensejo

    separao judicial.

    Interessante destacar tambm os pactos (ou convenes) antenupciais. Nos

    documentos registrados em escritura pblica, que lhe confere a solenidade e a publicidadenecessrias, os nubentes tm a liberdade de estabelecerem clusulas extras para a sociedade

    conjugal, desde que no atentem contra as disposies absolutas da lei e que realizem o

    casamento posteriormente. Aqui se destaca o aspecto contratual do casamento. Exemplos de

    clusulas: obrigar os cnjuges a educarem os filhos segundo determinados princpios

    religiosos; obrigar o marido a fixar desde logo o domiclio do casal.

    17 Causas como ignorncia a respeito de crime anterior ao casamento, defeito fsico irremedivel, que incluiproblemas relativos s relaes sexuais entre os cnjuges, diferenas de religio, condutas sexuais (prostituio ehomossexualidade), declaraes falsas sobre filiao, etc.18Nesse sentido, tambm a possibilidade de formao de sociedade comercial entre os cnjuges (CC 977).

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    A separao judicial uma das formas de trmino da sociedade conjugal (CC art.

    1.571), podendo ser amigvel ou litigiosa, sendo que a primeira segue o procedimento

    especial de jurisdio voluntria (arts.1.120 a 1.124 do CPC) e a litigiosa, o rito ordinrio.

    Cada um dos tipos de separao possui parmetros prprios, como prazos, motivos e efeitos

    no que tange penso alimentcia, guarda dos filhos, uso do sobrenome, etc.

    A separao litigiosa pode ser dar por vontade de um dos cnjuges ou motivada por

    ato de um dos cnjuges que implique grave violao dos deveres do casamento e torne

    insuportvel a vida em comum. (CC art. 1.572). Assim, o Cdigo manteve a noo de culpa

    pela separao, apesar de todas as crticas que foram feitas a esta noo ao longo do tempo.

    A questo da culpa pela separao ainda motivo de debates entre juristas, pois implica

    efeitos questionveis nas relaes familiares.O art. 1.573 do CC indica hipteses que podem caracterizar a impossibilidade da vida

    em comum: adultrio (que tambm crime previsto no CP, art. 240), tentativa de morte,

    sevcia ou injria grave, abandono voluntrio do lar conjugal durante um ano contnuo,

    condenao por crime infamante e conduta desonrosa. A apreciao sobre a injria grave ou a

    conduta desonrosa bastante relativa. Considera-se como casos indiscutveis, de acordo com

    Wald (2004, p. 145), a embriaguez habitual, o uso imoderado de txicos, a prtica de crimes,

    a vida desregrada, o homossexualismo, a perverso sexual e outros. fcil perceber quemesmo nesses casos indiscutveis, a presena de avaliaes morais e preconceitos no so

    incomuns. Wald (2004) acrescenta que h deveres conjugais no previstos na lei, mas

    ditados pela moral conjugal (p. 143), que podem ser motivo da separao. Entre eles

    podemos destacar o chamado dbito conjugal, o direito de exigir do outro a satisfao sexual.

    A separao judicial convertida em divrcio aps decorrido um tempo previsto na

    lei. H tambm previso legal para o divrcio direto, consensual ou litigioso, o qual tambm

    possui alguns parmetros legais em relao ao tempo. O divrcio extingue o vnculo conjugale as pessoas divorciadas podem se casar novamente. Se na separao conjugal pode haver

    reconciliao, que desfaz a separao do ponto de vista jurdico, os divorciados, se quiserem

    voltar a estar juntos, devem se casar de novo. A histria do divrcio no Brasil d conta das

    dificuldades inerentes nossa cultura a respeito da concepo sobre a indissolubilidade do

    vnculo conjugal. Ponto curioso: o divrcio pe fim afinidade de parentesco na linha

    colateral, mas no na linha reta contnua, ou seja, um homem divorciado, por exemplo, pode

    se casar com a irm de sua ex-mulher, m