O romance de introspecção no Brasil: o lugar de ALBERTINA BERTHA

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Dissertação de Mestrado em Letras (FAEDRICH, 2010).

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

O ROMANCE DE INTROSPECO NO BRASIL: O LUGAR DE ALBERTINA BERTHA

Anna Faedrich Martins

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Teoria da Literatura do Departamento de Letras da Pontifica Universidade Catlica do Rio Grande do Sul para obteno do ttulo de Mestre em Letras. Orientador (a): Prof. Dr. Ana Maria Lisboa de Mello

Porto Alegre 2009

DEFESA DE DISSERTAO DE MESTRADO BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________ Prof. Dr. Ana Maria Lisboa de Mello

__________________________________________________ Prof. Dr. Mrcia Ivana de Lima e silva

__________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Arajo Barberena

Dedico este trabalho aos futuros leitores de Albertina Bertha, sendo este um convite para a apreciao de sua obra.

AGRADECIMENTOS

minha orientadora, professora Dr. Ana Maria Lisboa de Mello, por me acompanhar, orientar e incentivar, h tantos anos, em todos os meus passos na vida acadmica (e no-acadmica). Aos professores que compem esta Banca, professora Dr. Mrcia Ivana de Lima e Silva, que me acompanha desde a graduao em Letras na UFRGS, e professor Dr. Ricardo Arajo Barberena, que esteve presente na Defesa do Projeto de Dissertao, contribuindo com a sua leitura e sugestes para este trabalho, agradeo a presena generosa. s secretrias do PPGL da PUCRS, Isabel Cristina Pereira Lemos e Mara Rejane Martins do Nascimento, pela presena carinhosa e pela ajuda constante. minha famlia, cuja presena me amadurece e me fortalece para vencer as barreiras. Aos amigos, que sempre do um colorido a mais na minha vida, em especial, o Roger Cards Juv, que leu, revisou e acompanhou todo o processo de realizao deste trabalho, a Juliana Santos, que contribuiu imensamente para a minha pesquisa, e a Joseane Camargo, amiga de muitos anos, que est presente nos momentos importantes. Ao apoio institucional do CNPQ, que me concedeu bolsa de estudos durante os dois anos de Mestrado.

SUMRIO

INTRODUO ............................................................................... O ROMANCE DE INTROSPECO NO BRASIL................................... 1.1 A formao do romance de introspeco no Brasil .......................................... 1.2 Intercmbio dialtico entre luz e sombra: a literatura de introspeco, a histria da literatura e o discurso subjetivo circunscrito esfera da memria... 1.3 O caso Albertina Bertha ................................................................................... 2 A ESCRITA DO EU NA FICO DE ALBERTINA BERTHA ............... 1

10 13 13 27 44 60 60 72 83

2.1 A expresso da subjetividade em Exaltao ..................................................... 2.2.1 O Mal-do-sculo romntico e o Decadentismo ................................................. 2.2.2 Aproximaes entre Exaltao e Assuno ......................................................

2.2 Dilogos possveis do romance de Albertina Bertha .................................................. 72

3

MODOS DE REPRESENTAO DA VIDA PSQUICA EM EXALTAO ............................................................................

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CONCLUSO .................................................................................. 103 BIBLIOGRAFIA............................................................................... 106

APNDICE ...................................................................................... 111

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RESUMO

O presente estudo pretende verificar a expresso da subjetividade na fico de Albertina Bertha, mais especificamente, no romance lrico e de digresses filosficas Exaltao, publicado em 1916. Dessa forma, verificam-se os processos subjetivos e as tcnicas narrativas de apresentao da conscincia, bem como a filiao da autora na vertente do romance de introspeco no Brasil, situando-a dentro da literatura brasileira atravs dessa modalidade. Intencionamos coloc- la numa linhagem, em correlao com outros romances de int rospeco, verificando como essas obras repercutiram no Brasil as rupturas com o Realismo, o dilogo dos escritores brasileiros com as estticas do final do sculo XIX, sobretudo a simbolista, qual o significado do espao nas narrativas e sua relao com processos subjetivos e quais os procedimentos de linguagem que sero retomados por outros escritores brasileiros nas narrativas de explorao da subjetividade. Alm disso, este trabalho visa contribuir com a elaborao de uma histria ainda inexistente do romance de introspeco no Brasil.

Palavras-chave: Albertina Bertha; Exaltao; Introspeco

ABSTRACT

This study intends to verify the expresssion of the subjetivity in Albertina Berthas fiction, more specifically, in the lyric novel with philosophical digressions Exaltao, published in 1916. In this way, we verify the subjective processes and the narrative techniques of presentation of the conscience, as well as the affiliation of the author in the slope of the novel of introspection in Brazil, situating her inside the Brazilian literature through this kind. We intend to put them in correlation with another novels of introspection, which reverberated in Brazil the ruptures with the Realism, and the dialogue among the Brazilian writers with the esthetics of the ending of the 19th century, especially the simbolic, in which the meaning of the space in the narratives and its relations with the subjectives processes and which procedures of language will be retaken by others Brazilians writers in the narratives of subjective exploration. Also, this work intends to help in this way to the elaboration of a history of the novel of introspection in Brazil.

Keywords: Albertina Bertha; Exaltao; Introspection

Il faut entrer en soi-mme arm jusquaux dents. Paul Valry (In: Monsieur Teste, p.125)

INTRODUO

Este trabalho oriundo de um contexto de pesquisa sobre o romance de introspeco no Brasil, que iniciou em 2007 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O projeto encontra-se em sua etapa final, e vem sendo realizado, desde o ano de 2008, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, com apoio do CNPq. As reas de concentrao do projeto so: Literatura Brasileira, Literatura Comparada, Teoria da Literatura, Teorias do Imaginrio e Histria da Literatura. O ttulo do projeto de pesquisa Espaos circunscritos e subjetividade: a formao do romance de introspeco no Brasil (1888-1930), e o recorte temporal permite a sua concluso em 2010, tendo em vista uma continuidade nos estudos sobre as narrativas de explorao da subjetividade, atravs da renovao do projeto e da extenso no recorte temporal. O estudo focado na formao dos romances da linhagem da introspeco, bem como na visibilidade a autores negligenciados pela crtica literria brasileira. Tambm realizada a reviso de obras j consagradas na literatura brasileira, tal como mostram alguns de nossos estudos j concludos, os quais inserem O Ateneu (Raul Pompia) e Dom Casmurro (Machado de Assis), por exemplo, na construo da vertente introspectiva do romance, avaliando ambas obras como momentos privilegiados da narrativa de imerso na subjetividade. Albertina Bertha, carioca, nascida em 1880, um dos escritores que atualmente so pouco conhecidos. Entretanto, muitos so os documentos a que tivemos acesso que comprovam que, na sua poca, ela contara com o reconhecimento do pblico e da

crtica, principalmente depois da primeira publicao de Exaltao (1916). No apenas documentos, textos jornalsticos ou comentrios de diversos tipos, mas, especialmente, o nmero de reedies desse primeiro romance comprova a notoriedade da autora no final do sculo XIX. Atravs de uma pesquisa realizada na cidade natal da autora, junto Biblioteca Nacional, Fundao Casa de Rui Barbosa, Academia Brasileira de Letras bibliotecas Rodolfo Garcia e Lcio de Mendona e ao Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conseguimos resgatar algumas de suas obras e alguns estudos crticos sobre estas. Sobre Albertina Bertha encontramos o estudo crtico de Almachio Diniz, Meus dios e meus afetos (1922); a dissertao de mestrado em Letras, pela Universidade Federal de Pernambuco, 1999, de Auristela Oliveira Melo da Silva, A mulher no limiar do sculo XX em "Exaltao" de Albertina Bertha, orientada pela prof. Dr. Luzil Gonalves Ferreira; a tese de doutorado de Andr Luiz dos Santos, Caminhos de alguns ficcionistas brasileiros aps as Impresses de Leitura de Lima Barreto, orientada pela prof. Dr. Rosa Maria de Carvalho Gens, UFRJ, 2007. A dissertao de Silva tem enfoque no papel exercido pela mulher na sociedade do sculo XX, a insero da escritora Albertina Bertha nesse contexto e o reconhecimento de uma voz predominantemente feminina, que se pretende ativa na sociedade vigente, nos romances da escritora carioca. Silva associa figura de Bertha uma porta- voz do grito de liberdade das mulheres de sua poca. J a tese de Santos resgata trs autores pouco estudados pela crtica, Albertina Bertha, Domingos Ribeira Filho e Enas Ferraz, a partir da leitura de Lima Barreto enquanto crtico literrio. Santos dedica um captulo autora e sua obra, tendo, o primeiro subcaptulo, o enfoque na recepo e na repercusso de sua obra literria, e, o segundo subcaptulo, em uma leitura do romance Exaltao. Encontramos estudos sobre a autora, tambm, no livro de Lima Barreto, Impresses de leitura (livro de crticas), na obra Escritoras brasileiras do sculo XIX, organizado por Zahid Muzart, assim como menes sobre a autora em alguns dicionrios de literatura. Contamos, tambm, com a contribuio de Juliana Santos, integrante do projeto de pesquisa, que trouxe de Portugal alguns documentos importantes para a elaborao desta dissertao, tal qual a cpia da quinta edio do

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romance de Albertina Bertha. Alm disso, encontramos um livro escrito pela bisneta de Albertina Bertha, Beth Stockler, A volpia de Voleta, livro dedicado bisav. O nosso objetivo investigar e dar visibilidade autora e sua obra, as quais foram apagadas pela historiografia e a crtica literria brasileiras. Visamos investigar a nossa hiptese de que o motivo pelo qual existe a excluso dos romances da linhagem da introspeco nas histrias da literatura encontra-se na temtica da subjetividade e no recorte esttico. Dessa forma, pretendemos sair da parfrase hermenutica e contribuir para a construo de uma fortuna crtica sobre a autora Albertina Bertha, uma vez que existem poucos estudos e materiais sobre o tema aqui proposto, como pudemos observar ao realizar um levantamento acerca de dados sobre a escritora carioca e sua obra literria. Assim, responderemos questes como por que, ainda hoje, a literatura da linhagem da introspeco sombra nos discursos sobre a produo literria brasileira, bem como o motivo que leva os historiadores a tais selees e recortes e, ainda, como e a partir de quais conceitos se constri o cnone literrio. Iniciaremos, portanto, pela pergunta guia dos nossos estudos que pretende responder o que , afinal, uma histria da literatura. Este estudo pretende, tambm, verificar a expresso da subjetividade na fico de Albertina Bertha, mais especificamente, no romance lrico e de digresses filosficas Exaltao, publicado em 1916. Dessa forma, verificam-se os processos subjetivos e os procedimentos de linguagem nas narrativas de explorao da subjetividade, bem como a filiao da autora vertente do romance de introspeco no Brasil, situando-a dentro da literatura brasileira atravs dessa modalidade. medida que as nossas perguntas so respondidas e que a nossa hiptese justificada, conhecemos melhor a autora e descobrimos o seu lugar na literatura brasileira, trazendo uma pequena contribuio para a historiografia literria do Pas.

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1 O ROMANCE DE INTROSPECO NO BRASIL

1.1 A formao do romance de introspeco no Brasil

No h caminho mais obscuro para o homem do que aquele que o leva para si mesmo. Herman Hesse

O estudo sobre a expresso da subjetividade em romances brasileiros, tal como os procedimentos de linguagem nessas narrativas de explorao e mergulho no Eu, levanos necessidade primeira de conceituar o termo introspeco. A etimologia latina do termo introspeco vem do radical introspectum e significa a ao de olhar para o interior. 1 Segundo The Internet Encyclopedia of Philosophy,

Introspeco o processo pelo o qual algum vem a formar crenas sobre suas prprias condies mentais. Ns poderamos formar a crena de que outra pessoa feliz tendo por base a percepo por exemplo, percebendo/observando o seu comportamento. Mas uma pessoa no tem que observar seu prprio comportamento para determinar se feliz. Preferivelmente, algum faz essa determinao no movimento de introspeco. Quando comparadas com outras crenas que ns temos, as crenas que adquirimos atravs da introspeco parecem epistemologicamente especiais. [...] Ainda que o termo introspeco signifique literalmente olhar para dentro (do latim spicere, que significa olhar, e intra, que significa para dentro), se a ao introspectiva deveria ser tratada analogicamente por olhar isto , se introspeco uma forma de percepo interior discutvel. 2

1

INSTITUTO ANTNIO HOUAISS DE LEXICOGRAFIA. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 1640. 2 Traduo nossa. No original: Introspection is the process by which someone comes to form beliefs about her own mental states. We might form the belief that someone else is happy on the basis of perception for example, by perceiving her behavior. But a person typically does not have to observe her own

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Introspeco a reflexo que a pessoa faz sobre o que ocorre no seu ntimo, sobre as suas experincias. Em psicologia, significa a anlise de si com vistas a estudar a sua prpria pessoa; observao e descrio do contedo da prpria mente. Dessa forma, a expresso do mundo interno e do prprio comportamento esto presentes em Exaltao, atravs da apresentao da conscincia da personagem principal, Ladice. Notamos que, ao final do sculo XIX, surge a tendncia de revelar o funcionamento da conscincia ( moda de douard Dujardin, Joris Karl Huysmans, depois Andr Gide, Virginia Woolf, Marcel Proust), que dar origem a tcnicas narrativas novas. O autor francs Gustave Flaubert, em Madame Bovary (1856), j renovara o discurso literrio, na medida em que inseriu na narrativa o discurso indireto livre, o recurso que permite narrar diretamente os processos mentais da personagem, descrever sua intimidade e colocar o leitor no centro da sua subjetividade. Les lauriers sont coups (1887), de Dujardin, representa uma ruptura com as tcnicas tradicionais, pois explora o estado de alma de seu protagonista atravs do monlogo interior, tcnica pertine nte literatura de introspeco. A partir de Dujardin, surge a preocupao com a ambiguidade terminolgica do termo monlogo interior, que, de acordo com Dorrit Cohn, 3 tem designado fenmenos muito distintos. Cohn4 observa diferenas sutis entre os monlogos interiores, por exemplo, de Dujardin e James Joyce. Em 1922, Joyce publica o romance Ulysses, que revela ter origens na experincia simbolista em muitos aspectos, entre os quais o uso do monlogo interior. 5 Segundo Cohn, o monlogo em Ulysses o monlogo interior citado 6 , e o

behavior in order to determine whether she is happy. Rather, one makes this determination by introspecting. When compared to other beliefs that we have, the beliefs that we acquire through introspection seem epistemically special. [...] Though the term introspection literally means looking within (from the Latin spicere meaning to look and intra meaning within), whether introspecting should be treated analogously to looking that is, whether introspection is a form of inner perception is debatable. Disponvel em http://www.iep.utm.edu/i/introspe.htm, acessado em 25/04/2008. 3 Dorrit Cohn, terica n orte-americana, publica em 1978 um livro no qual analisa as tcnicas de apresentao da conscincia. Entre as tcnicas apresentadas, existem alguns neologismos da autora, que julga os termos existentes insuficientes para designar diferentes procedimentos de linguagem. 4 COHN, Dorrit. Transparent Minds. Narrative modes for presenting consciousness in fiction. Princeton: Princeton University Press, 1983. 5 Nota-se que James Joyce, segundo o cnone ps-joyceano, considerado o precursor do monlogo interior, com uma notvel exceo a novela Les lauriers sont coups, de Dujardin. Cohn afirma que os crticos tm sugerido termos como monlogo tradicional e solilquio silencioso para citaes de pensamento que aparecem em novelas pr-joyceanas.

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monlogo em Les lauriers sont coups o monlogo interior autnomo. A grande diferena entre os dois, poucas vezes percebida, uma diferena estrutural: no primeiro, o contexto narrativo presente, j que o monlogo est sempre em torno da narrativa em terceira pessoa; no segundo, h a ausncia de um contexto narrativo. O monlogo interior citado uma tcnica completamente estabilizada na metade do sculo XIX. Nos primeiros romances, aparecia em ocasies excepcionais, depois de introdues autorais elaboradas, numa voz claramente audible. 7 Nota-se, assim, uma preocupao do autor em deixar claro que aquilo um monlogo. Depois, a tcnica passou a ser utilizada de forma mais natural, com ou sem sinais explcitos. Em Ulysses, a narrao e a voz figural, conforme Cohn, coincidem num ponto em que s uma inspeo minuciosa pode determinar o que monlogo de Bloom e o que relatrio do narrador, 8 ou seja, o contexto de terceira pessoa, porm, o discurso ntimo no separado de seu contexto, nem por frases introdutrias, nem por sinais grficos, sendo, assim, um discurso contnuo. Anatol Rosenfeld, em Reflexes sobre o romance moderno, observa as transformaes dos romances no incio do sculo XX. Considera que, diferentemente do discurso de Flaubert e de Balzac, em que o narrador est distanciado, o monlogo interior permite que a personagem se deixe levar pelo fluxo de conscincia, rompendo assim com as convenes realistas:A tentativa de reproduzir este fluxo de conscincia com sua fuso dos nveis temporais leva radicalizao extrema do monlogo interior. Desaparece ou se omite o intermedirio, isto , o narrador, que nos apresenta a personagem no distanciamento gramatical do pronome ele e da voz do pretrito. A conscincia da personagem passa a manifestar-se na atualidade imediata, em pleno presente, como um Eu que ocupa totalmente a tela imaginria do romance. Ao desaparecer o intermedirio, substitudo pela presena direta do fluxo psquico, desaparece tambm a ordem lgica da orao e a coerncia da estrutura que o narrador clssico imprimia sequncia dos acontecimentos . 96

Cohn julga que o uso dos termos monlogo e interior redundante, pois ambos exprimem a ideia de interioridade, silncio, falar a si mesmo. Por isso, quando se refere a essas tcnicas, ela substitui o termo interior por citado ou narrado, conforme a tcnica utilizada na narrativa. 7 Mantemos o termo original do ingls audible, que siginifica audvel, visvel, aparente. 8 Ibid., p. 62. 9 ROSENFELD, Anatol. Texto/ contexto: ensaios. 2 ed. So Paulo, Perspectiva: Braslia, INL, 1973, p. 83-84.

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A diferena que Cohn aponta entre o romance de Joyce e o romance Crime e Castigo, de Dostoievski, o uso de sinais explcitos. Crime e Castigo , tambm, um texto em terceira pessoa, entretanto, ele separado por marcas, as quais Cohn chama de inquit formulas, isto , marcas como ele pensou... ele sussurrou... ele pensou. 10 O texto introspectivo de Dostoievski apresenta, por sua vez, uma pontuao elaborada e considerado, pela terica norte-americana, um texto descontnuo e fragmentado:Ali, em algum lugar bem no canto da parede, embaixo, o papel se descolara e estava rasgado: no mesmo instante ele comeou a meter tudo naquele buraco, atrs do papel: Coube! Tudo fora do alcance da vista, e a carteira tambm! pensava com alegria, soerguendo-se e lanando um olhar estpido para o canto, para o buraco ainda mais alargado. Nisso estremeceu, todo tomado de pavor: Meu Deus sussurrou em desespero , o que est acontecendo comigo? Por acaso est escondido? Isso l jeito de esconder?. verdade que ele nem chegara a contar com os objetos: pensara que s houvesse dinheiro, e por isso no tinha preparado um lugar de antemo. Mas agora, do que estou contente agora? Isso l jeito de esconder? A razo est me abandonando de verdade! Sentou-se exausto no sof, e no mesmo instante um calafrio insuportvel tornou a sacudi-lo. Puxou maquinalmente o sobretudo de inverno dos tempos de estudante, que estava numa cadeira ao lado, quente mas j quase em farrapos, cobriu-se com ele, e mais uma vez o sono e o delrio se apoderaram simultaneamente dele. Caiu no sono. 11

O romance moderno brasileiro herdeiro das metamorfoses do romance no final do sculo XIX e incio do XX, uma vez que as obras da tradio ocidental so as precursoras de procedimentos estticos que repercutiram no Brasil mais tarde. Essas estticas romanescas repercutiram no Brasil, bem como se constata o dilogo dos escritores brasileiros com as estticas do final do sculo XIX, sobretudo a simbolista, e as tcnicas utilizadas para a expresso da subjetividade nas narrativas de 1888 a 1930, entre as quais a obra de Albertina Bertha se encontra. 12

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No original: he thought... he whispered... he thought. Traduo nossa. DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. Trad. Paulo Bezerra. So Paulo : Editora 34, 2001, p. 104. 12 O nosso projeto de pesquisa encontra-se em sua etapa final. Foi realizado um estudo sobre a fico brasileira do perodo de 1888 a 1930, tendo como ponto de partida o romance O Ateneu, cuja data de publicao marca o incio da nossa investigao. Por uma questo de delimitao e de tempo, a pesquisa encerra seus estudos no ano de 1930, dcada em que algumas obras ficaram margem por estarem em descompasso com o movimento modernista de 22. O corpus selecionado para a nossa pesquisa consta de obras precursoras dos procedimentos narrativos de autores brasileiros posteriores, os quais tambm

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Com a publicao dO Ateneu, de Raul Pompia, inicia-se, no Brasil, um marco nos estudos de narrativas de explorao da subjetividade. No romance, o narrador em primeira pessoa vive a experincia da clausura e da solido em um espao fechado propcio introspeco o internato. Srgio, o protagonista do romance, vive no internato escolar experincias decisivas para a sua formao interior, que, junto ao desabrochar da memria, busca a autocompreenso. Segundo Merquior, o romance moderno, que ele denomina impressionista, privilegia a anlise psicolgica em detrimento da narrativa centralizada nas peripcias exteriores. E essa tendncia introspectiva do romance resvala para o lirismo. Assim, podemos aproximar os gneros no que se refere ao uso da linguagem simblica, ao teor religioso ou filosfico dos temas e ao tom intimista. A literatura de cunho ntimo, confessional e subjetiva, aquela que mais se aproxima do leitor, pois est centrada no sujeito, fala de um Eu que desnuda toda sua vida, revela-se, estabelecendo, assim, um elo perfeito entre autor e leitor. As narrativas de introspeco so compostas por diferentes gneros literrios, entre eles a autobiografia, 13 o romance autobiogrfico, a narrativa epistolar, o dirio ntimo, o dirio ficcional e a autofico. Muitos autores utilizam-se dessas estruturas escrita diarstica, epistolar, confessional como estratgia literria, como o caso do romance epistolar, inaugurado por Choderlos de Laclos, em Les liaisons dangereuses (1782). Segundo Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, 14 a narrativa epistolar uma tcnica literria que consiste em desenvolver a histria principalmente atravs de cartas, ou de conjuntos de cartas, normalmente trocadas entre duas ou mais personagens, relatando uma histria que se vai configurando pela articulao desses vrios testemunhos, embora tambm sejam usadas entradas de dirios e notcias de jornais. O auge de popularidade deste gnero foi no sculo XVIII, declinando no sculo XIX. Percebemos, ento, que o

pretendemos estudar, na continuidade desta pesquisa. Autores como Cornlio Penna, Cyro dos Anjos, Graciliano Ramos, Lcio Cardoso, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles formam uma histria do romance de introspeco no Brasil. Essas obras privilegiam, comumente, o desdobramento do sujeito em si mesmo, o desencadeamento da memria e o mergulho no psiquismo. 13 Considerando a ideia de Mikhail Bakhtin (1997) de que a autobiografia um ato literrio, ou seja, um ato estetizado, na medida em que o autor objetiva o seu Eu e a sua vida num plano artstico. 14 REIS; LOPES, Dicionrio de narratologia, 1994.

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objetivo desta tcnica ao ser criada era dar maior realismo a uma histria. Como exemplos de romances epistolares, temos tambm: Os sofrimentos do jovem Werther, Goethe (1774), Dracula, Bram Stoker (1897) e Gente Pobre, Dostoievski (1846). Em Machado de Assis, o gnero epistolar apresenta-se sob a forma do conto, como podemos observar em Ponto de vista, em que a troca de cartas a tcnica de construo narrativa adotada pelo escritor. O Dirio de um louco um dirio ficcional, pois Nikolai Ggol utiliza a tcnica do dirio como estratgia literria. J Machado de Assis utiliza a escrita diarstica como estratgia em Memorial de Aires e a autobiografia ficcional em Dom Casmurro, por exemplo. Existe, tambm, a possibilidade de entrecruzamento desses gneros, como o faz Lcio Cardoso em Crnica da Casa Assassinada, romance composto por cartas, testemunhos, confisses, depoimentos, dilogos, livros de memrias e dirios. 15 interessante observar que no dirio tambm no existe a distncia entre o presente e o passado, como existe na autobiografia. 16 Quando falamos em autobiografia, a definio primeira que nos recorre que o biografado (pessoa que est tendo a vida contada na biografia) o prprio autor, procedendo o levantamento da sua prpria existncia. Diferenciando-se, assim, da definio de biografia, que tambm pressupe a descrio de fatos reais ou verdadeiros, no entanto, trata sobre a vida de algum que no a de quem est escrevendo. Philippe Lejeune, em El pacto autobiogrfico, seu famoso estudo de 1975, aponta para os problemas tericos da autobiografia e versa sobre suas possveis definies, revelando a complexidade desse gnero. A autobiografia pressupe a veracidade dos fatos, o compromisso com a realidade. Lejeune mostra a falibilidade do real, mesmo que o gnero autobiogrfico estabelea um pacto de autenticidade. A relatividade dos acontecimentos, da verdade em si, bem como a literariedade do texto, so alguns pontos a serem discutidos no decorrer do trabalho do terico.

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Lcio Cardoso nasceu em Minas Gerais em 1913 e morreu em 1965. Crnica da Casa Assassinada foi publicado em 1959. Entre as obras do autor, destacam-se A Luz no Subsolo (1936) e O Enfeitiado (1954). 16 Cf. PRADO BIEZMA, Javier del; CASTILLO, Juan Bravo; PICAZO, Mara Dolores. Autobiografa y modernidad literaria. Cuenca: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Castilla -La Mancha, 1994.

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Lejeune 17 aponta para as possveis definies de autobiografia. Para o estudioso, uma definio plausvel seria a seguinte: relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, colocando nfase em sua vida individual e, em particular, na histria de sua personalidade. 18 Portanto, o pacto autobiogrfico consiste na identidade entre autor, narrador e personagem principal, e essa identidade suscita problemas numerosos, conforme as consideraes de Lejeune. Dessa forma, o terico francs aponta para os elementos que a definio proposta de autobiografia pe em jogo, pertencentes a quatro categorias diferentes: 1. Forma de linguagem: a) narrao; b) em prosa. 2. Tema tratado: vida individual, histria de uma personalidade. 3. Situao do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador. 4. Posio do narrador: a) identidade do narrador e da personagem principal; b) perspectiva retrospectiva da narrao. 19 Essas categorias restringem o gnero autobiogrfico. Para Lejeune, est bem claro que, para esse gnero ser considerado como tal, preciso que haja, em primeiro lugar, o pacto autobiogrfico, e, em segundo lugar, que seja um relato retrospectivo, sobre a histria de uma personalidade e escrito em prosa. Assim, Philippe Lejeune mostra que os gneros vizinhos (memrias, biografia, novela pessoal, poema autobiogrfico, dirio ntimo, autorretrato ou ensaio) no cumprem essas quatro condies que a autobiografia pe em jogo. As memrias no cumprem a segunda categoria enumerada pelo terico: o tema tratado em memrias no a vida individual, a histria de uma personalidade (2). A biografia, por sua vez, no tem a identidade entre o narrador e a personagem principal (4a). O poema autobiogrfico no uma narrao em prosa, por isso no se enquadra nas categorias que Lejeune julga necessrias para o gnero autobiografia (1b). O autorretrato e o ensaio no cumprem com as exigncias (1) e (4b), no so narrao em prosa e, assim como o dirio ntimo, no tm perspectiva retrospectiva.

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LEJEUNE, Philippe. El pacto autobiogrfico. In: DOBARRO, ngel Nogueira (org.). La autobiografa y sus problemas tericos. Barcelona: Antropos, 1991, p. 47-61. 18 No original: relato retrospectivo en prosa que una persona real hace de su propria existencia, poniendo nfasis en su vida individual y, en particular, en la historia de su personalidad. ( Ibid., p.48, traduo nossa). 19 No original: 1. Forma del lenguaje: a) narracin; b) en prosa. 2. Tema tratado: vida individual, historia de una personalidad. 3. Situacin del autor: identidad del autor (cuyo nombre reenvia a una persona real) y del narrador. 4. Posicin del narrador a) identidad del narrador y del personaje principal; b) perspectiva retrospectiva de la narracin. (Ibid., p. 48, traduo nossa).

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O caso do romance autobiogrfico, tambm chamado autobiografia ficcional ou novela pessoal, interessante de se observar, uma vez que o pacto estabelecido entre narrador e personagem. O Eu que narra o Eu que age, porm o autor no faz parte do pacto. o que Grard Genette (s/d) denomina narrativa autodiegtica, em seus estudos narratolgicos; narrativa na qual a identidade do narrador e da personagem principal coincide, atravs do discurso em primeira pessoa. O narrador protagonista, conta a histria e faz parte dela. Bons exemplos na literatura brasileira que elucidam esse gnero vizinho da autobiografia so os romances em que o narrador autodiegtico, isto , conta a sua prpria histria atravs do olhar da personagem: O Ateneu, de Raul Pompia, Memrias Pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis. Alm de narrativas longas, como o romance, tambm encontramos, por exemplo, o conto O Enfermeiro, de Machado de Assis, em que existe o pacto entre o narrador e a personagem: Procpio o enfermeiro personagem principal que conta a sua prpria histria com intuito de se autojustificar. Neste tipo de narrativa, o pacto estabelecido o romanesco (pacto novelesco), em que a natureza fictcia do livro est indicada na pgina do ttulo e a narrao autodiegtica atribuda a um narrador fictcio. 20 H, tambm, outro tipo de pacto: o pacto zero. aquele pacto indeterminado em que no s a personagem no tem nome, como o autor no prope nenhum tipo de pacto, nem o autobiogrfico, nem o romanesco. Segundo Philippe Lejeune, 21 as identidades entre autor, narrador e personagem principal, na autobiografia, podem coincidir sem que a primeira pessoa seja empregada. A segunda e a terceira pessoas tambm podem aparecer em autobiografias, porm so casos mais raros. Nas autobiografias religiosas antigas, de acordo com Lejeune, o autobigrafo chama a si prprio de servo do senhor, demonstrando certa forma de humildade e empregando, assim, a terceira pessoa. Alm da humildade, existem tambm os casos de orgulho, que Lejeune exemplifica com os Comentrios de Csar, ou alguns textos do General De Gaulle. O terico aponta, tambm, para a possibilidade de escrever sobre a prpria vida chamando-se de tu. Tal possibilidade tem sido posta em prtica por Michel Butor, por exemplo, em La modification, ou por Georges Perec em Um homme qui dort.20 21

Cf. LEJEUNE, 1991, p. 54. Ibid., p. 49.

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Philippe Lejeune faz uma reflexo sobre a questo da identidade assumida do autor, do nome prprio e do uso de pseudnimo. O uso do pseudnimo simplesmente uma diferenciao, um desdobramento do nome, que no muda em absoluto a identidade. 22 Lejeune afirma que a autobiografia no um jogo de adivinhanas23 e, por isso, o pacto deve ser estabelecido claramente: o pacto autobiogrfico uma afirmao no texto desta identidade, e nos envia em ltima instncia ao nome do autor sobre a capa do livro. 24 O terico afirma que a ident idade do nome entre autor, narrador e personagem pode ser estabelecida de duas maneiras: implicitamente, atravs dos ttulos que no deixam dvidas de que a primeira pessoa nos remete ao nome do autor (Histrias de minha vida; Autobiografia; etc.) ou pela seo inicial do texto, na qual o narrador se compromete com o leitor a se comportar como se fosse o autor, de tal maneira que o leitor no duvida de que o eu remete ao nome que est na capa do livro, mesmo que o nome no se repita ao longo do texto; e de maneira explcita, quando o nome do narrador-personagem coincide com o nome do autor na capa do livro. 25 Definir a autobiografia com uma frmula clara e total, conforme observa Lejeune, seria um fracasso. Por isso, o terico afirma que a autobiografia se define a esse nvel global: um modo de leitura tanto como um tipo de escritura, um efeito contratual que varia historicamente. 26 Ele aponta para a relatividade desses tipos de definies e prefere que seu estudo seja antes um documento de estudo (a tentativa de um leitor do sculo XX de racionalizar e explicitar seus critrios de leitura) do que um texto cientfico. Reconhece os pontos fracos de seu estudo, apontando para um balano negativo, que estaria relacionado a certos pontos que permanecem difusos ou insatisfatrios. Entretanto, ressalta os pontos positivos, num balano otimista, em que a grande tnica da questo perceber a autobiografia como um gnero contratual, indo alm das estruturas aparentes do texto, colocando em questo as posies do autor e do leitor.

22

No original: es simple mente una diferenciacin, un desdoblamento del nombre, que no cambia en absoluto la identidad. (Ibid., p. 52, traduo nossa). 23 No original: la autobiografa no es un juego de adivinanzas. (P. 52, traduo nossa). 24 No original: el pacto autobiogrfico es la afirmacin en el tex de esta identidad, y nos enva en to ltima instancia al nombre del autor sobre la portada. (Ibid., p. 53, traduo nossa). 25 Cf. Ibid., p. 53. 26 Ibid., p. 60.

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Javier del Prado Biezma, Juan Bravo Castillo e Mara Dolores Picazo escrevem sobre a histria da autobiografia no Ocidente e a modernidade literria, refletindo, a partir do estudo de Lejeune, sobre as diferenas conceituais entre a autobiografia e o dirio:

[...] ou seja, enquanto o autobigrafo abrange seu passado com um nico olhar e empreende sua reconstruo como um conjunto harmonioso, de ixando de lado tudo aquilo contingente e acidental, adotando unicamente as linhas gerais de conduta, o diarista escreve dia a dia, seu projeto no tem nada de concertado e, consequentemente, a perspectiva que nos oferece permanece sempre com os ps no cho. O dirio, assim, adoece dessa faculdade fundamental, a imaginao, a nica capaz de pr ordem e organizar, e que, ademais, distribuindo sombras e luzes, vai direito ao essencial, ilumina e d a uma obra, e tambm a cada uma de suas frases, seu acabado e esplendor. Ora bem, se a autobiografia apresenta uma estrutura muito mais slida e uma forma mais concludente, evitando as reiteraes excessivamente prolixas e a disseminao do dirio ntimo, e ste, pelo contrrio, supera aquela pela sua maior fiabilidade, sua verossimilhana, devida fundamentalmente a que o tempo no pde alterar nem deformar na memria os fatos referidos. 27

Georges Gusdorf, filsofo e epistemlogo francs, afirma que o dirio ntimo, enquanto ato de escrita, poderia ter coincidido com o nascimento do texto literrio, porm foi no Romantismo que esse gnero foi integrado na literatura, uma vez que nesse perodo que a subjetividade ganha valor literrio. Dessa forma, Gusdorf demonstra que o dirio ntimo manifesta uma atitude antropolgica, em que os escritores do eu correspondem problemtica existencial encontrada no centro da escrita ntima. 28 Pode-se estabelecer uma diferenciao entre dirio ntimo e dirio ficcional, mesmo percebendo que esses tipos de definies so consideradas relativas, desnecessrias do ponto de vista literrio e que no existe uma nica frmula clara e27

Traduo nossa. No original: [...] es decir, mientras que el autobigrafo abarca con una sola mirada su pasado y emprende la reconstruccin de ste como un conjunto armonioso, dejando a un lado todo lo contingente y lo accidental, adoptando nicamente las lneas generales de conducta, el diarista escribe da a da, su proyecto no tiene nada de concertado y, por consiguiente, la perspectiva que nos ofrece siempre permanece a ras de tierra. El dia rio, por conseguiente, adolece de esa facultad fundamental, la imaginacin, la nica capaz de poner orden y organizar, y que, adems, distribuyendo sombras y luz, va derecha a lo esencial, ilumina y da a una obra, y tambin a cada una de sus frases, su acabado y esplendor. Ahora bien, si la autobiografa presenta uma estructura mucho ms slida y una forma concluyente, evitando las reiteraciones excesivamente prolijas y la diseminacin del dirio ntimo, ste, por el contrario, la supera por su mayor fiabilidad, su verismo, debido fundamentalmente a que el tiempo no ha podido alterar ni deformar en el recuerdo los hechos referidos. BIEZMA; CASTILLO; PICAZO, 1994, p. 238-239. 28 GUSDORF apud DUMAS, 1994, p.125.

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total. Entretanto, percebe-se que h uma distino entre o dirio ntimo de uma pessoa comum, o de um escritor ou algum famoso que no foi escrito para ser publicado, o de um escritor consciente de sua publicao, e o dirio ficcional, em que o autor se utiliza dessa tcnica diarstica como estratgia literria. Catherine Dumas aponta para a problemtica literria do dirio ntimo, observando que, na literatura contempornea, a delimitao a respeito da ficcionalidade de cada uma dessas prticas de escritas do Eu um tanto equivocada:Se verdade que existe uma problemtica literria do dirio ntimo, ela torna-se ainda mais flagrante numa contemporaneidade em que o autor, ao escrever um dirio, sabe partida que este ser publicado, assumindo a publicidade das suas ditas confidncia s e mesmo da sua publicao ainda em vida.29

Essas narrativas de explorao da subjetividade tm em comum a busca do autoconhecimento, o voltar-se para si mesmo, o mergulho no Eu, a anlise das experincias vividas por um sujeito. Esse mergulho introspectivo pode ser feito atravs do prprio autor, das suas experincias vividas e narradas, ou pode ser feito atravs da subjetividade de uma personagem fictcia. Na maioria dos casos de introspeco, quem narra quem age, isto , o Eu que narra (sujeito) o Eu que age (objeto), independente da identidade entre autor e narrador. Assim acontece na literatura confessional: confisses, memrias, dirios, etc. Para Georges Gusdorf, a literatura do Eu fenomenolgica, e no ontolgica. Trata do homem curioso de si e curioso dos outros; um observador mais ou menos imparcial de uma espcie da qual se considera representante. 30 Ao centrar no Eu, o escritor reagrupa os momentos de disperso da prpria vida para buscar uma nova coerncia, para descobrir um sentido ou um motivo da existncia, isto , uma unidade. 31 De acordo com Gusdorf, nunca somente escrever sobre aquilo que eu sou, mas tambm sobre aquilo que eu quero ser. 32 Assim, o filsofo acrescenta que quem

29 30

DUMAS, 1994, p.125-126. Traduo nossa. No original: [Lhomme] curieux de soi et curieux des autres; observateur plus ou moins impartia l de cette espce dont il se considre lui-mme comme un reprsentant. GUSDORF, Auto-bio-graphie : Lignes de vie 2., 1990, p.225. 31 Cf. GUSDORF, 1990, p. 226. 32 Traduo nossa. No original: il ne sagit pas seulement de ce que je suis, mais ensemble de ce que je veux tre, ibid., p. 226.

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escreve se aprova ou se desaprova, no uma testemunha indiferente, e essas motivaes, geralmente, no so evidentes para quem escreve. Outro motivo que move o escritor do Eu a escrever sobre si, para Gusdorf, a descoberta de que a realidade prpria problemtica, e por no se expressar de maneira transparente, leva certas pessoas a investig-la. So pessoas com tendncia introverso e ao exame de conscincia, que Gusdorf relaciona com uma no conformidade com o mundo social ao redor; pessoas de um nvel cultural bastante elevado; pessoas com um tonnement dtre, uma inquietude de ser; indivduos que buscam um sentido vida, na contramo do movimento natural da existncia, que levaria para fora, para os outros. interessante ressaltar que a literatura de introspeco mais abrangente que a escrita confessional, uma vez que existe a possibilidade de narrativas no apenas em primeira, mas tambm em terceira pessoa. Nesse caso, o Eu que narra no o Eu que age. Podemos observar os romances de Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Perto do corao selvagem, em que o narrador de fora, em terceira pessoa, aproxima-se da personagem numa relao tnue, dificultando a diferenciao entre ambos (narrador e personagem), pois o narrador se apaga para dar espao personagem e, muitas vezes, adota a sua linguagem, fundindo-se com a conscincia narrada. Outra estratgia literria nas escritas de si e de introspeco, muito utilizada por autores contemporneos, o uso da autofico; entretanto, n otamos que, no Brasil, ainda h poucos estudos literrios sobre o gnero. Serge Doubrovsky percebe uma lacuna nos estudos de Lejeune e, a partir disso, escreve sobre a autofico, afirmando que todo o contar de si ficcionalizante. Autofico um neologismo criado por Doubrovsky, em 1977, seguido de seu romance Fils, a fim de exemplificar o conceito criado acerca do gnero. O terico francs escreve em resposta a Philippe Lejeune e seu famoso estudo, Le pacte autobiographique, de 1975.

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No romance Fils, de Doubrovsky, existe a coincidncia entre o heri e o autor do romance, eliminando assim a possibilidade de polifonia e de perspectivas narrativas diferentes:How are you? Massieds. Me lve, affux des collgues. Prsentation, Professor Doubrovsky. Bain de foule, je serre des mains. Anonymes, um peu sourd, noms jentends mal. Je tends le bras. Franais de service. Role se retourne. Comment que a spelle? D comme Dsir. V comme Victor. Pour Y, jai jamais su. Pour K, non plus. Mon K se decline. 33

. Sbastien Hubier, ao analisar as literaturas de cunho ntimo, observa que o pacto mais apropriado para a autofico o pacte oxymorique; assim, aponta para as vantagens desse pacto e da escrita autoficcional:Um dos privilgios da autofico, fundado sobre um pacte oxymorique, seria ento a possibilidade de falar, por ela, de si mesmo e dos outros sem nenhuma forma de censura, de entregar todos os segredos de um eu varivel, polimorfo, e de se afirmar livre finalmente de ideologias literrias aparentemente defasadas. Ela oferece ao escritor a oportunidade de experimentar a partir de sua vida e de sua ficcionalizao, de ser ao mesmo tempo ele mesmo e um outro. 34

Madeleine Ouellette-Michalska tambm observa que a autofico um gnero hbrido em que se misturam fico e realidade, o imaginrio e o real, a certeza e o pode ser, enviando, assim, uma mensagem contraditria: sou eu e no sou eu, verdade e no verdade. 35 Dessa forma, enquanto o paradoxo da autobiografia, para Lejeune, que a autobiografia deve executar seu projeto de uma sinceridade impossvel, atravs de instrumentos habituais da fico, o paradoxo da autofico que havendo identidade entre autor, narrador e personagem principal, o texto ficcional estabelece com o leitor

33

Optamos por manter a verso original, sem traduzi-la, devido mistura da lngua inglesa e francesa na citao. A personagem do livro um francs e a narrativa ora se passa na Frana, ora nos Estados Unidos, onde ele trabalha como professor. Ficaria difcil traduzir toda a citao para o portugus sem perder o conflito da personagem face sua lngua estrangeira e sua lngua materna, esta ltima a lngua pela qual temos acesso aos seus pensamentos. DOUBROVSKY, 1977, p.104. 34 Traduo nossa. No original : Lun des privilges de lautofiction, fond sur un pacte oxymorique , serait donc quil est possible de parler, par elle, de soi-mme et des autres sans aucun souci de censure, de livrer tous les secrets dun moi changeant, polymorphe, et de saffirmer libre enfin didologies littraires en apparence dpases. Elle offre lcrivain lopportunit dexprimenter partir de sa vie et de la mise en fiction de celle -ci, dtre tout la fois lui-mme et un autre . (HUBIER, 2003, p.125). 35 Traduo nossa. No original : Cest moi et ce nest pas moi , cest vrai et ce nest pas vrai. OUELLETTE-MICHALSKA, 2007, p. 71.

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um pacto autobiogrfico e referencial. Sendo assim, o texto lido uma expresso da verdade e da autenticidade; entretanto, a autofico o gnero hbrido e ambguo, que oscila entre o autor e o outro ficcional. Philippe Gasparini aborda as estratgias da ambiguidade nas narrativas de autofico. O terico observa que so textos que se apresentam algumas vezes como romances e outras vezes como fragmentos de autobiografia. Segundo Gasparini, o leitor sempre fica com a dvida: este o autor que reconta a sua vida ou a personagem fictcia?. Dessa forma, os romances autoficcionais tm dupla recepo: ora ficcional ora autobiogrfica. Gasparini faz uma reflexo sobre o contexto em que o novo termo autofiction apareceu. Para ele, nos anos 70 e 80, a crtica desprendeu-se do dogmatismo estruturalista. Assim, a teoria da recepo, a lingustica pragmtica, o estudo da intertextualidade e do paratexto, os ensaios de Wolfgang Iser e Umberto Eco sobre o ato de leitura conduziram revalorizao do leitor, considerao da obra no mais como um texto fechado, mas como um suporte de comunicao em que as potencialidades so atualizadas pela interpretao do receptor. Contudo, Gasparini aponta que de outro lado existe o trabalho de Lejeune, sobre a autobiografia, que marcou a questo excluso do discurso referencial do campo literrio. 36 Dessa forma, surge o novo conceito de autofico, criado por Doubrovsky, que mescla o romance, discurso ficcional, e a autobiografia, discurso referencial. Para Doubrovsky, a escrita da autofico uma escrita literria, em que existe uma identidade onomstica perfeita entre autor-narrador-heri e, tambm, uma importncia decisiva em acordo com a psicanlise. O termo autofiction relativamente novo nos estudos literrios. Percebe-se que, desde que Doubrovsky nomeou este gnero, ele tem ganho muita fora na literatura francesa. Entretanto, o fenmeno da autofico anterior conceituao e criao do neologismo doubrovskiano. Exemplo disso Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, provavelmente o primeiro exemplo de autofico na literatura universal.

36

GASPARINI, Est-il je?, 2004.

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1.2 Intercmbio dialtico entre luz e sombra: a literatura de introspeco, a histria da literatura e o discurso subjetivo circunscrito esfera da memria

Todas as relaes fixas, imobilizadas, com sua aura de ideias e opinies venerveis, so descartadas; todas as novas relaes, recm-formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo o que slido desmancha no ar, tudo que sagrado profanado [...]. Karl Marx Queremos dizer a verdade e, no entanto, no dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade verdade e, no entanto, o descrito outra coisa que no a verdade. Thomas Bernhard

Ao investigar o processo criativo de histrias da literatura, buscamos respostas para questes que nos intrigam desde o incio do projeto sobre a formao do romance de introspeco no Brasil: por que, ainda hoje, a literatura da linhagem da introspeco sombra nos discursos sobre a produo literria brasileira? Por que existe essa lacuna nas histrias da literatura brasileira? O que leva os historiadores a esse tipo de seleo e de recorte? Como e a partir de quais conceitos se constri o cnone literrio? O que , afinal, uma histria da literatura? Para Marisa Lajolo, 37 a histria da literatura o tercius que pode dialetizar o impasse entre a histria e a literatura, ela organiza a literatura, uma vez que sustenta e d sentido a um conjunto de obras agrupadas ao longo do tempo, baseando-se em critrios intra e extraliterrios:

Desdobramento de antigas bibliotecas, bibliografias ou registros de autores e obras, a histria da literatura costuma traduzir-se em obras que (com menos ou mais requinte) apresentam a literatura como continuum de autores e obras que, ao sucederem-se no tempo, agrupam37

LAJOLO, Marisa. Literatura e histria da literatura: senhoras muito intrigantes. In: MALLARD, Letcia et aL. Histria da literatura ensaios. Campinas: Ed da Unicamp, 1994, p. 19-36.

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se em conjuntos (maiores ou menores; fixos ou instveis; consentidos ou polmicos...) que encontram sustentao e sentido em diferentes instncias, intra ou extraliteratura.

Como critrios intraliterrios, entendem-se os recortes estticos, a exemplo da literatura de introspeco nosso objeto de estudo. Como critrios extraliterrios, incluem-se os recortes polticos e sociais, tais quais a literatura do ps-guerra ou os romances sociais. De acordo com David Perkins, 38 uma histria da literatura se constri atravs de um enredo, que o discurso feito sobre uma determinada produo. Assim, os historiadores da literatura podem condenar escritores e obras, podem defender estilos no apreciados e podem, tambm, ser motivados por um conjunto de emoes diferentes: qualquer que seja o enredo imposto aos eventos, o simples fato de serem organizados em forma de narrativa pode, ele mesmo, preencher o desejo. 39 Tendo em vista a conscincia do desejo que motiva e d vida a uma histria da literatura, a nossa questo : at que ponto a inteno organizadora subjacente ao processo de escrita de uma histria da literatura justifica as suas omisses e nfases? Mais especificamente: no intercmbio dialtico entre luz e sombra, por que a literatura de introspeco sombra constante nesse tipo de discurso? Embora, muitas vezes, a nossa expectativa enquanto leitores de histrias da literatura brasileira seja a de um discurso absoluto e neutro, podemos perceber que os discursos presentes no so totalizantes, mas sim discursos comprometidos de seus narradores/historiadores. 40 Por esse motivo, avaliamos o processo de criao narrativa das histrias da literatura como objeto dinmico e, para tal estudo, apoiamo- nos na teoria sistmica luhmanniana, abordada por Heidrun Krie ger Olinto. Analisamos, assim, a efemeridade dos modelos e, por conseguinte, a sua parcialidade. Para esta ltima, apoiamo-nos na teoria narrativista de David Perkins. Outros estudos complementam a anlise das questes aqui levantadas, como a problemtica da memria levantada por Hugo Achugar; os apontamentos de Nelson Vieira sobre o hibridismo, o cnone e a38

PERKINS, David. Histria da literatura e narrao. Cadernos do Centro de Pesquisas Literrias da PUCRS, Porto Alegre, v. 3, n. 1, mar. 1999. Srie Tradues. 39 Ibid., p. 7. 40 Chamaremos de historiador quele que escreve e organiza uma histria da literatura. Por vezes, ser chamado tambm de narrador, conforme nos prope Perkins.

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questo da excluso; as reflexes de Maria Lucia Dal Farra sobre o narrador ficcional; e, por fim, a construo de uma nova histria da literatura a partir de vises mltiplas e complementares, conforme prope Paulo de Medeiros. Ao tratar de histrias da literatura, devemos sempre considerar que elas no so totalidades permanentes e sim objetos dinmicos, pois encontram-se sob o signo da contingncia. Conforme aponta-nos Heidrun Krieger Olinto, 41 situam-se na zona das incertezas, num constante processo de redefinio. O historiador, por sua vez, exerce um ofcio difcil, consciente da impossibilidade de abranger uma totalidade face ao seu objeto no-palpvel e plural. As histrias podem (e devem) sempre ser repensadas; pelo carter dinmico que possuem do conta de fenmenos de transio sem permanncia. 42 Uma vez publicada a histria da literatura, existe a possibilidade de surgirem novas fontes, novos documentos histricos; o historiador em contnua pesquisa e busca pode descobrir um documento indito uma carta, um ba, um vestgio e, a partir dessas novas pesquisas, reformular a sua hiptese. Aquilo que era estabelecido como verdade, atravs do discurso do narrador-historiador e que na poca da publicao desta histria ele acreditava ser verdade muda, revelando assim o dinamismo deste trabalho. Por isso, Heidrun Olinto afirma que a histria da literatura est articulada em torno de uma teoria da observao, pois esta no postula distines seguras e irreversveis. No existem, assim, processos de observao originrios e finais. Um historiador pode afirmar, por exemplo, que no existia a Arcdia Romana, at que outro historiador encontre um fac-smile comprovando que esta existia, como aconteceu no caso de Antonio Candido. 43 O processo de escrita de histrias da literatura torna-se, assim, contnuo e circular, um historiador pode desmentir o outro, ou achar documentos e dados que comprovem algo novo e inesperado at ento. Este processo circular funciona como se41

OLINTO, Heidrun Krieger. Voracidade e velocidade: historiografia literria sob o signo da contingncia. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). Histrias da literatura: teorias, temas e autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003, p. 23-34. 42 Ibid., p. 22. 43 Antonio Candido afirma, baseado em documentao da poca, que existiu uma filial da Arcdia Romana em Minas Gerais, contradizendo Clado Ribeiro de Lessa e Carlos Rizzini, que desmentiam a existncia dela. O artigo de Candido, publicado em 1993, encontra-se em: CANDIDO, Antonio. Os poetas da Inconfidncia. IX Anurio do Museu da Inconfidncia, Ouro Preto, v.3, p. 130-137, 1993.

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as histrias tivessem prazo de validade; depois de decorrido um determinado tempo, uma nova informao pode tirar a validade daquilo que j estava postulado. Da a velocidade e a voracidade, que Heidrun define muito bem, sob as quais as histrias da literatura so escritas. Os fenmenos no so universalizveis e fixos; a solidez de um discurso pode desmanchar-se de uma hora para outra, na velocidade em que as coisas se transformam. O historiador no exerce um trabalho esttico e permanente, ele est sempre aberto a novas relaes, num exerccio constante de criao de novas hipteses, colocando sob suspeita os juzos cristalizados e as verdades absolutas. Ao repensar a histria da literatura, estamos repensando o passado, e conscientizando-nos de que o nosso objeto est inserido na perspectiva da mobilidade. Marisa Lajolo observa a escrita atual de histrias alternativas, qualificando-as como solidrias, medida que somam-se s histrias tradicionais, reajustam detalhes, iluminam recantos, abrem brechas, alteram significados. 44 Entretanto, a autora aponta que essas histrias proscrevem, por ingnua e enganosa, a reconfortante hiptese de que agora, sim, te(re)mos uma histria de verdade! No. No temos e nunca teremos, sendo assim, em questes de histria, talvez no haja verdades nem mentiras. 45 Essa perspectiva da mobilidade e do constante processo de redefinio serve- nos de conforto, na medida em que torna possvel e vivel a iluminao sobre a literatura de introspeco at hoje obnubilada nos discursos sobre a produo literria brasileira. Uma vez identificada a repetio de um discurso que exclui esse tipo de produo literria da linhagem da introspeco , o historiador, a partir da teoria da observao e diante do dinamismo de seu trabalho, abre-se a essa nova relao, podendo, assim, repensar a histria da literatura e escrever uma nova, elegendo um novo recorte, de acordo com os seus desejos e a sua inteno organizadora. Algumas histrias da literatura pretendem, sem recorte temporal, dar conta da totalidade da produo literria no Pas. O resultado de tamanha pretenso pouco satisfatrio, pois a inteno de um discurso totalizante pura iluso do historiador literrio ingnuo. Dessa forma, o que ns temos so manuais de literatura, que tentam

44 45

LAJOLO, op. cit., p. 24. Idem.

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abordar uma totalidade en passant, constituindo, assim, inevitavelmente, um cnone literrio pessoal e sem critrios claramente definidos. Lajolo observa queao eleger como seu objeto ou a anlise das formas de produo da Idade Mdia, ou o estudo da iconografia bblica, ou o exame filolgico de antigos cantares damor ou mesmo os depoimentos de um moleiro acusado pela Inquisio, o escritor da histria historiador chamado recorta, seleciona, elege. A constituio destes textos (como legtimos) e a excluso dos outros (como falsos): dialeticamente, cada um com cada outro e todos entre si correspondem viso (fragmentada) do real que possvel construir-se em diferentes momentos.46

Muitas vezes o historiador no tem conscincia dos critrios utilizados no processo de seleo e de recortes que ele mesmo faz. Esse tipo de historiador considerado por Perkins como ingnuo, uma vez que a inteno organizadora de sua escrita dada de forma intuitiva, baseada em histrias anteriores. Perkins afirma que

as histrias da literatura so feitas a partir de histrias da literatura. No apenas suas classificaes, mas tambm seus enredos so derivados de histria s anteriores na mesma rea. Uma histria literria pode ser uma mmese precisa do passado somente se todas as histrias literrias que ela ecoa tambm o so. A autoridade de um historiador da literatura se baseia em outras autoridades as quais no so, de fato, menos autorizadas que a atual. 47

O terico observa que qualquer narrativa parecer incompleta e, de certa forma, arbitrria, 48 entretanto, preciso que o historiador reflita sobre seus movimentos, sobre os processos pelos quais obteve as suas classificaes e, principalmente, justific- los especificamente em sua histria, estabelecendo, assim, um pacto de honestidade com o leitor, que estar consciente das bases das escolhas feitas pelo historiador. Perkins prope uma histria da literatura enquanto narrativa, pois esta pode preencher os critrios essenciais da narrativa por descrever e com frequncia descreve46 47

Idem, grifo nosso. PERKINS, op. cit., p. 45. 48 Ibid., p. 4.

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a transio, atravs do tempo, de um estado de coisas a outro diferente, e um narrador nos conta essa mudana. 49 Dessa forma, partindo da noo do terico sobre a existncia de um narrador da histria (narrativa) da literatura, pode-se analisar a composio subjetiva desta histria, uma vez que est circunscrita esfera da memria deste narrador e coloca a franqueza e a convico daquilo que narrado em constante suspeita, evidenciando um discurso que no inabalvel. A presena de um sujeito enunciador revelada atravs do interesse e das escolhas que ele faz ao longo de sua narrativa. A definio do heri, isto , a entidade que sofre a transio, o fio condutor, a atitude partidria, as omisses, as nfases, a inteno organizadora de uma histria da literatura, a classificao, a taxonomia, os desejos conscientes e inconscientes, as motivaes e as emoes so alguns aspectos, apontados por Perkins, que evidenciam a subjetividade subjacente s histrias da literatura. Tais aspectos comprovam a impossibilidade de um discurso neutro, acrtico, apartidrio e inocente. Para Perkins,A histria da literatura , e talvez deva ser, escrita atravs de metforas de origem, emergncia da obscuridade, desconsiderao e reconhecimento, conflito, hegemonia, sucesso, deslocamento, declnio e assim por diante [...]. Na medida em que a histria narrativa da literatura esse meu ponto de vista conformada pelo desejo, devemos suspeitar de sua plausibilidade como descrio do passado.50

Desse modo, o terico coloca em xeque a descrio do passado de uma histria narrativa da literatura conformada pelo desejo. Contudo, por outro lado, Perkins observa que a narrativa da histria da literatura no pode ser considerada fico, pois ao escrever uma histria da literatura no se pode deixar o enredo prevalecer sobre a histria, como acontece no caso do romance. Assim, mesmo que exista uma variedade na produo das narrativas dos mesmos eventos, a estrutura dos eventos deve ser fiel ao passado. H uma diferenciao entre a construo de uma histria da literatura e a de um romance, que no pode ser ignorada. Perkins considera que ser a narrativa do passado seletiva e lacunar no significa que seja falsa51 , ou seja, um historiador no inventa, por exemplo,49 50

Ibid., p. 1. Ibid., p. 7. 51 Ibid., p. 9.

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as fontes que utiliza para fazer a sua narrativa, elas existem, so dados concretos e datados. Ao abordarmos o narrador da histria da literatura, tomaremos o cuidado de no consider- lo um narrador ficcional, embora apresentemos aqui as reflexes de Maria Lucia Dal Farra. Ao tratar de fico, Farra 52 observa que o autor tem a sua face apagada dentro da narrativa e que o narrador ser sempre uma mscara criada, adotada e mantida pelo autor. 53 A estudiosa aponta que devemos levar em conta, no romance, aquilo que Wayne Booth54 denomina de autor- implcito, 55 uma vez que cabe ao autorimplcito emprestar ao narrador uma viso menos ou mais restrita, contando com a deficincia ou a amplitude desse ponto de vista para conseguir determinado efeito. 56 Ao considerar o narrador da histria da literatura um ser no-ficcional, no podemos ignorar que este tambm apresenta uma viso restrita, circunscrita esfera da memria e que, assim como o narrador ficcional, ele tira partido disso, provocando uma falha, na lembrana, que possa permitir o equvoco ou qualquer alterao que possibilite as finalidades da estria. 57 Enquanto narrativas, as histrias da literatura constituem um narrador, este o autor da histria, o sujeito enunciador responsvel pela estruturao e composio da obra. A diferena entre os narradores da no- fico e da fico que na obra ficcional o narrador no fundamentalmente o prprio autor. No romance, podemos considerar a existncia de um narrador e de um autor- implcito. O autor- implcito , por sua vez, uma imagem do autor real criada pela escrita, que comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo, do espao e da linguagem. As reflexes de Maria Lucia Dal Farra esto muito prximas s de David Perkins, uma vez que Farra considera que a tica do universo nascer do confronto entre a luz e a sombra, isto , entre o ponto de vista do narrador e os seus pontos de52 53

FARRA, Maria Lucia Dal. O narrador ensimesmado. So Paulo: tica, 1978. Ibid., p.20. 54 BOOTH, Wayne C. The rhetoric of fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961. 55 Wayne Clayson Booth (1921-2005), crtico literrio estadunidense, em A retrica da fico, ensaio de 1961, denomina a categoria do autor-implcito. Segundo Booth (1961), o autor de um romance no desaparece completamente, mas se mascara atrs de uma voz narrativa ou de uma personagem. Assim, o autor-implcito uma imagem do autor real criada pela escrita, pode-se consider-lo uma espcie de segundo eu [second self], diferente da personalidade do escritor real. 56 FARRA, op. cit., p.23. 57 Idem.

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cegueira. Na teoria narrativista, proposta por Perkins, o narrador pode manipular o leitor, medida que ilumina aquilo que lhe convm, atravs, por exemplo, da organizao dessa histria e da seleo de seu cnone literrio, e utiliza tambm a sombra naquilo que, consciente ou inconscientemente, quer deixar de lado, a fim de desviar os possveis olhares, por algum motivo implcito e subjetivo qualquer. Ao recuperar dados atravs de argumentos trazidos pela memria, o narrador constri um discurso ambguo e feito de lacunas, o qual revela seu perfil e suas intenes, no estabelecimento daquilo que ele quer impor como verdade. Dessa forma, as consideraes de Farra fazem-se pertinentes ao nosso estudo, pois a autora chama a ateno para aquilo que o narrador no enxerga ou levado a no enxergar, colocando sob suspeita o seu discurso: quando se considera o ponto de vista do narrador, deve-se levar sempre em conta, ao mesmo tempo o que ele v e o que ele no v, 58 ou seja, as luzes e as sombras subjacentes ao seu texto. Uma histria da literatura uma histria de vida e de morte, pois ela se estabelece a partir da relao entre memria e esquecimento, aquilo que o historiador/narrador preserva e mantm vivo na sua histria, e aquilo que ele esquece e/ou esconde. Tal excluso pode ser consensual e negocivel atravs de um acordo/pacto, por isso importante saber o locus da enunciao, isto , qual o lugar de onde o narrador fala e para onde ele fala, bem como identificar os conceitos com os quais este narrador trabalha. Hugo Achugar 59 aborda essa questo como uma problemtica da memria, onde a relao entre a memria e o esquecimento (lacuna) uma questo de poder: esquecimento consensual ou no e memria eleita ou no supe o tema do poder. 60 Achugar observa que a memria se exerce e se avalia sempre a partir de uma posio ou a partir de um posicionamento em relao ao poder e autoridade.61 O autor de uma histria da literatura encontra-se num espao de poder, ele tem o poder de escolha; selecionando o seu cnone literrio, por exemplo, ele pode influenciar os seus leitores a partir das suas escolhas particulares, escolhas estas que no so arbitrrias. O58 59

Ibid., p. 25. ACHUGAR, Hugo. A escritura da histria ou a propsito das fundaes da nao. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). Histrias da literatura: teorias, temas e autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003. p. 35-60. 60 Ibid., p. 42. 61 Idem.

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historiador exerce poder ao iluminar certos dados do passado, a partir da sua seleo, mantendo-os vivos na memria coletiva. A recuperao da memria revela a valorizao do passado, e esta feita sob a tica do narrador, que pode excluir ou preservar, no intercmbio dialtico entre luz e sombra:

o carter mltiplo e diverso com que os passados so evocados est motivado pela pluralidade dos sujeitos que realizam a reconstruo de seu prprio passado, assim como do passado dos outros. Nesse sentido, a reflexo sobre o passado coletivo ou sobre os passados coletivos est estritamente ligada problemtica da memria.62

Da a ideia de que existem histrias da literatura, existem verdades (e no verdade, no singular) porque a historiografia, conforme Heidrun Olinto 63 , escreve-se no plural. Trata-se de uma prtica sem veredictos finais, mas de propostas alternativas e reversveis. 64 Cada narrador, mesmo que escreva a sua histria a partir de outras histrias da literatura, revelar interesses prprios e as suas paixes, a partir do seu conhecimento, determinando assim, o carter subjetivo e flutuante do trabalho do historiador. o que Heidrun Olinto denomina como a pluralidade de narrativas particulares. Ao analisar uma histria da literatura devemos sempre estar atentos ao que ela nos sugere, nos indica e nos ilumina, pois esta uma narrativa particular, escrita por um sujeito ideolgico que est inserido em um espao social e temporal. Nelson Vieira 65 prope o hibridismo e a alteridade como estratgias para repensar a histria da literatura e o passado do Brasil. A partir dessas ticas, podemos entender como e por que certas culturas e obras esto excludas na histria literria:[...] em relao ao cnone literrio e aos caminhos novos para reconhecer as expresses das culturas e das identidades mltiplas que existem no Brasil, as ticas de hibridismo e alteridade servem como penetrantes modos de investigao, ou estratgias, porque nos ajudam a examinar o processo heterogneo de intercmbio cultural e ao mesmo tempo a redescobrir dimenses multiculturais frequentemente esquecidas.6662 63

Ibid., p. 40. OLINTO, Heidrun Krieger. Interesses e paixes: histrias de literatura. In: ____. Histrias de literatura. As novas teorias alems. So Paulo: tica, 1996, p. 5-45. 64 Ibid., p. 5. 65 VIEIRA, Nelson H. Hibridismo e alteridade: estratgias para repensar a histria literria. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). Histrias da literatura: teorias, temas e autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003, p. 95-114. 66 Ibid., p. 96.

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O hibridismo, como estratgia, permite o reconhecimento crescente de grupos, vozes ou subculturas. Sendo assim, pensar uma nova histria da literatura sob a tica do hibridismo consiste em trazer memria cultural aquilo que estava esquecido, sob sombras no discurso histrico. Inclui-se agora na histria, a partir desta nova proposta, o que estava excludo, reconhecendo-se os diferentes brasis existentes, a coexistncia de identidades, culturas e histrias mltiplas. O cannico permanente e a hierarquia imposta at ento so desconstrudos, dando nfase s culturas esquecidas, buscando uma histria da literatura representativa da redemocratizao cultural brasileira que possibilitam uma nova configurao dessa histria. 67 A partir dessas consideraes feitas por Vieira, comeamos a esclarecer as nossas questes a respeito das constantes sombras nos discursos sobre a produo literria no Brasil: o estudo sobre a expresso da subjetividade em romances brasileiros, tal como os procedimentos de linguage m nessas narrativas de explorao da subjetividade e de mergulho no Eu, uma lacuna nas histrias da literatura brasileira. No Brasil do sculo XIX, o discurso nacional e nacionalista um discurso forjado e ufanista, que assume a ideia de que ns estamos erigindo a nao. Desse modo, h um engrandecimento nacionalista que colabora para a construo da nao inventada, desenhada, e essa memria preservada o elemento fundante de uma nao, e que oculta, em favor da sua inteno primeira, aquilo que no vai erigir a nao, instaurando, assim, um imaginrio do Brasil. Dessa forma, podemos afirmar que a histria da literatura um discurso fundador e que, no caso do Brasil, a fundao da nao, a independncia, se deu atravs da palavra, diferentemente de outras naes latino-americanas em que as fundaes ocorreram pela s armas, ou seja, pela guerra. No entanto, interessante observar que Machado de Assis, em 1873, j afirmava que a independncia intelectual um processo longo, assim a fundao de uma nao atravs da palavra no to simples como pode parecer: Esta outra independncia no tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; no se far num dia, mas pausadamente,67

Cf. Vieira, 2003.

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para sair mais duradoura; no ser obra de uma gerao nem duas; muitas trabalharo para ela at perfaz- la de todo. 68 Machado de Assis, prestigiado crtico e poeta, em resposta ao pedido de notcias sobre a atual literatura brasileira, feito por Sousndrade 69 , traz bons argumentos sobre o instinto de nacionalidade na atual literatura brasileira: poesia, romance, todas as formas literrias do pensamento buscam vestir-se com as cores do pas, e no h negar que semelhante preocupao sintoma de vitalidade e abono do futuro. 70 O crtico questiona a necessidade de um discurso nacionalista, de idealizao da paisagem local e do ndio como heri brasileiro para criar uma literatura mais independente. Segundo Machado, obras como a de Baslio da Gama e Duro 71 quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira.72

Machado considerado um crtico genial para sua poca, pois ele contribui com uma viso privilegiada da situao do Pas e, principalmente, para onde estava caminhando a literatura brasileira. Sem excluir a perspectiva da gerao indianista, o carioca reconhece nesta um assunto possvel, e defende a possibilidade de fazer literatura sem falar de ndios e de palmeiras, isto , sem tratar do assunto local, uma vez que no so esses os elementos que definem a qualidade de brasileiro:

Compreendo que no est na vida indiana todo o patrimnio da literatura brasileira, mas apenas um legado, to brasileiro como universal, no se limitam os nossos escritores a essa s fonte de inspirao. Os costumes civilizados, ou j do tempo colonial, ou j do tempo de hoje, igualmente oferecem imaginao boa e larga matria de estudo. [...] Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se s vezes68

ASSIS, Machado de. Notcia da atual literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade. Obra completa. Vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p. 801. 69 Joaquim de Sousa Andrade (1833-1902), mais conhecido como Sousndrade, poeta e escritor brasileiro, pediu para Machado de Assis um texto sobre a atual literatura brasileira, pois ele se encontrava na Europa h muito tempo. Machado de Assis escreve sob encomenda, e o artigo publicado na revista nova-iorquina Novo Mundo, em maro de 1873. 70 Idem. 71 Baslio da Gama (1740-1795), autor de O Uraguai, e Santa Rita Duro (1722-1784), autor de Caramuru, so considerados os precursores da poesia brasileira. 72 Ibid., p. 802.

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uma opinio, que tenho por errnea: a que s reconhece esprito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata limitaria muito os cabedais da nossa literatura.73

Dessa forma, levantamos, e defendemos, a ideia de que a excluso dos romances da linhagem da introspeco encontra-se na temtica da subjetividade e no recorte esttico, sendo que, segundo Antonio Candido 74 , a literatura brasileira tornou-se, no sculo XIX , lugar de debate de um pas que se queria autnomo. Assim, podemos dizer que, nas histrias da literatura brasileira, existe um intercmbio dialtico entre luz e sombra: h luz nos recortes polticos e sociais, baseados em critrios extraliterrios, e h sombra nos recortes estticos, sustentados por critrios intraliterrios, uma vez que esses elementos ficam em segundo plano. Candido, principalmente na sua obra Literatura e Sociedade, afirma que o Brasil, nessa poca, no tem uma Histria consolidada, no tem espao na Sociologia, na Filosofia, nem na Histria. Observa, assim, que a literatura brasileira s adquire conscincia da sua realidade aps da Independncia, instaurando-se, ento, uma conscincia de autonomia e rompendo os laos com Portugal:Era preciso mostrar que tnhamos uma literatura, exprimindo caractersticas que se julgavam nacionais; e para lhe dar validade era preciso tambm provar que o meio j a vinha destilando antes, graas ao poder causal que l e atribuam os h pressupostos romnticos. [...] Num pas sem tradies, compreensvel que se tenha desenvolvido a nsia de ter razes, de aprofundar no passado a prpria realidade, a fim de demonstrar a mesma dignidade histrica dos velhos pases. Neste af, os romnticos de certo modo compuseram uma literatura para o passado brasileiro, estabelecendo troncos a que se pudessem filiar e, com isto, parecer herdeiros de uma tradio respeitvel, embora mais nova em relao europia.75

Dessa forma, a literatura tornou-se lugar de debate sobre a identidade do pas e, desde ento, a crtica tem privilegiado obras literrias com esse carter social, que discute a especificidade nacional, revelando o vcio de discurso nacional que se instaurou no passado.

73 74

Ibid., p. 803. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. 75 Ibid., p. 178-179.

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O enfoque sociolgico no d conta da complexidade das narrativas de introspeco, por isso a melhor sada ignor- las. A leitura crtica feita a partir da relao entre literatura e sociedade no d conta dos recursos narrativos e dos procedimentos presentes na literatura dessa linhagem fluxo de conscincia, monlogo interior, tcnicas de apresentao da conscincia das personagens, subjetivao do conflito social do heri, etc. O romance Exaltao faz parte da histria das narrativas de expresso da subjetividade, uma vez que Albertina Bertha recupera, nessa obra, a subjetividade. A autora contribui, tambm, para a histria do romance brasileiro, j que introduz na sua fico questes estruturais e tcnicas de mergulho na interioridade do sujeito, tcnicas que estaro presentes nas narrativas contemporneas, como por exemplo o uso do monlogo interior e a aproximao da voz narrativa em terceira pessoa conscincia da personagem. fundamental ressaltar que todas as obras que privilegiam o mergulho no sujeito, na conscincia, com marcas das inovaes do Simbolismo, tm o dado social, porm projetam sua repercusso na interioridade do sujeito. Os seguidores unilaterais do vis sociolgico, muitas vezes, acusam a literatura da introspeco de alienada, alheia sociedade e histria do Pas. Entretanto, tal acusao ingnua e equivocada, uma vez que o dado social est presente nessas narrativas. Alm disso, ele no serve apenas de pano de fundo ou de pretexto para o enredo, o dado social repercute na interioridade do sujeito, e atravs dessa interiorizao temos acesso a ele. Dessa forma, acreditamos que o grande problema desses enfoques a tentativa de unilateralidade. Mesmo pecado cometido pela literatura romntica e pelas histrias nacionais unificadas, em que a ideia de nao homognea est subjacente. Sem excluir essas leituras, consideramos que o ideal seria ampliar o escopo das anlises, deixando de lado uma viso limitada e unilateral, e abrindo espao para novas estratgias, como prope Nelson Vieira, para repensar a histria da literatura e o passado do Brasil.

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Contribuem, tambm, para a nossa hiptese, as ideias dos crticos norteamericanos John Fletcher e Malcolm Bradbury76 sobre o romance moderno de carter simbolista. Conforme os autores observam, o romance modernista, herdeiro de todas as transformaes do final do sculo XIX e incio do XX, pe em evidncia questes como

as complexidades de sua prpria forma, como representaes de estados ntimos da conscincia, com um sentimento de desordem niilista por trs da superfcie ordenada da vida e da realidade, e com a libertao da narrativa diante da determinao de um oneroso enredo.77

Alm disso, o romance modernista insere, no discurso ficcional, a discusso sobre a prpria criao literria e torna-se mais prximo da vida ao desvelar a sequncia desordenada do pensamento, do tempo, bem como a complexidade do psiquismo humano. Fletcher e Bradbury afirmam, no ensaio O romance de introverso, que o romance moderno, de carter simblico, torna-se mais potico, e aponta fortemente para a repercusso da sociedade e da vida na interioridade do sujeito, o que levaria a crtica literria brasileira a dar menos ateno a esse tipo de romance nos estudos literrios. A narrativa moderna, de acordo com os tericos, liberta a narrativa romanesca da priso do realismo tradicional e, com isso, dessubstancializa o mundo material para tornar a prpria conscincia humana em um objeto esttico, ou, tambm, para explorar as capacidades da arte:O romance moderno torna-se, assim, o romance da conscincia refinada, foge s convenes da apresentao dos fatos e da narrao da histria, dessubstancializa o mundo material e o pe em seu devido lugar, transcende as limitaes e simplicidades vulgares do realismo, de modo a servir a um realismo superior. O romance moderno o romance mais livre, e sua liberdade a liberdade no s de ser mais potico, mas tambm mais verdadeiro em relao ao sentimento da vida. [...] Esse um filo do romance modernista, mas ao seu lado podemos ver a evoluo de outro: o romance que foge do realismo material no para transmitir a conscincia ou o sentimento da vida com maior intensidade, mas para explorar a pobreza da realidade e as capacidades

76

FLECHTER, John & BRADBURY, Malcolm. O romance de introverso. In: BRADBURY, Malcolm & MACFARLANE, James (org.). Modernismo: Guia Geral. So Paulo: Cia das Letras, 1989. 77 Ibid., p. 321.

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da arte, da perspectiva e da forma que se encontram no espao entre os dados e o objeto criativo. 78

Paulo de Medeiros 79 faz uma reflexo sobre a possibilidade de substituir a escrita de uma histria da literatura de um ponto de vista unificado e centralizador, para uma histria escrita atravs de vises mltiplas e complementares. Essa mudana na organizao de uma histria da literatura permite que vrios autores faam parte deste trabalho, evitando, assim, a viso unilateral e particular de uma conscincia individual, que se coloca como rbitro do cnone nacional. As reflexes de Paulo de Medeiros sintonizam-se com o que estamos discutindo aqui desde o incio, que reconhecer a multiplicidade de eventos de um momento histrico e, na medida em que vrios autores escrevem uma histria da literatura, em grupo, permitir eliminar a noo de que o historiador expressa um contedo uniforme. Cada historiador traz construo desta histria um sistema diferente, contribuindo com a sua particularidade, condicionada pelas leis de sua histria especfica, para um conjunto de vises heterogneas, uma rede de interligaes e interrelacionamentos, articulando vozes numa condio complementar, sem a necessidade de combater uma em prol da outra. Essa prtica desmistifica a questo da construo de uma histria como articulao linear, teleolgica e dialtica. Ao inserir a histria literria dentro do quadro da memria cultural, Paulo de Medeiros contribui para as nossas reflexes, pois coloca a histria literria em paralelo com a memria cultural, revelando que ambas se articulam em um terreno movedio, reconhecendo que nosso objeto um objeto dinmico, carente de ajustamentos e atualizaes:O que me interessa mais, no entanto, inserir a histria literria dentro do quadro da memria cultural, pois a memria cultural, mais facilmente do que a histria literria tradicional, sujeita a um constante ajustamento. Embora certos elementos permaneam, outros so esquecidos e adicionados conforme a necessidade dos grupos a lembrar ou esquecer certas caractersticas. E, do mesmo modo que indivduos refazem as suas memrias dependendo de informaes78 79

Ibid., p. 334. MEDEIROS, Paulo de. Sombras: memria cultural, histria literria e identidade nacional. Cadernos do Centro de Pesquisas Literrias da PUCRS, Porto Alegre, v. 10, n. 1, set. 2004.

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adicionais que adquiram, ou de perspectivas novas que os motivem a reinterpretar eventos no passado, assim tambm a memria cultural pode ser ajustada, o que implicaria talvez uma reconceitualizao mais fcil do cnone.80

Feitas tais consideraes sobre o intercmbio dialtico entre luz e sombra na construo de histrias da literatura, ressaltamos a nossa preocupao com a escrita de parte de uma histria da literatura, lanando uma viso sobre o romance de introspeco no Brasil 81 , atravs de vises mltiplas e complementares, assim como prope Paulo de Medeiros. Um grupo de pesquisadores vem, em conjunto, escreve ndo tal histria, de maneira que o ponto de vista unificado e centralizador est sendo substitudo por vises complementares e heterogneas. O heri desta histria foi selecionado a fim de preencher uma lacuna ainda existente na crtica e histria literrias do Brasil. Tal lacuna revela o ponto de cegueira desses narradores at ento, uma vez que a crtica literria brasileira d menos ateno a esse tipo de romance nos estudos literrios, privilegiando os romances de carter social, que servem de instrumento para o debate do Pas. A iluminao que est sendo feita sobre o romance de expresso da subjetividade revela o perfil dos nossos narradores/historiadores, que se identificam na escolha de um cnone, priorizando, tambm, a recuperao de obras que no foram estudadas. Essa memria recuperada no deixa de ser fruto de uma relao de poder, e tambm est sujeita ao ajustamento, num processo dinmico de construo. O projeto de elaborao de uma histria do romance de introspeco no Brasil constitui vrios narradores; essa multiplicidade de vises permite a cada indivduo refazer a sua memria, a partir de informaes adicionais e novas perspectivas que, conforme Medeiros, motivem a reinterpretar eventos no passado, podendo-se assim, ajustar a memria cultural de modo que possa implicar uma reconceitualizao do cnone. A delimitao do perodo a ser estudado, que inicia em 1888 e termina em 1930, j implica a ideia de que no damos conta de uma totalidade. At mesmo esse recorte80 81

Ibid., p. 12. Este projeto est sendo realizado, atualmente, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. O projeto de pesquisa iniciou no ms de maro de 2007 e denominado Espaos circunscritos e subjetividade: formao do romance de introspeco no Brasil (1888-1930), orientado pela professora Ana Maria Lisboa de Mello, com apoio do CNPq.

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particular no pode ser visto em sua totalidade, o que justifica as possveis lacunas que podero estar presentes na obra. Assim, conclumos que ser um historiador antes de tudo ser algum capaz de encarar o desafio de um trabalho difcil, que elaborar uma histria da literatura com humildade. A humildade a qualidade primordial para o incio desse trabalho, pois ningum pode impor a sua histria como algo definitivo e completo. O historiador que possui essa qualidade consegue compreender a relatividade deste processo e a sua prpria limitao. Muito mais importante do que tentar construir uma histria globalizante e permanente, dar-se conta desta impossibilidade, e elaborar um estudo que contribua para a historiografia literria brasileira, estabelecendo, desde o incio, uma relao sincera entre narrador e leitor, na qual as hipteses e os caminhos a serem percorridos durante a narrativa estejam claros e explcitos no discurso. Dessa forma, a nossa dissertao contribui para a elaborao desse projeto maior, uma vez que iluminamos a autora Albertina Bertha 82 e a sua produo literria, bem como a reflexo feita sobre os motivos pelos quais ainda existe essa lacuna na histria e crtica literrias brasileiras.

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interessante ressaltar que este projeto maior de pesquisa no se limita ao resgate de obras negligenciadas pela crtica e que no integram, por sua vez, o dito cnone literrio; estudam-se, tambm, obras j consagradas na literatura brasileira, tal como mostram alguns de nossos estudos j concludos, os quais inserem O Ateneu (Raul Pompia) e Dom Casmurro (Machado de Assis), por exemplo, na construo da vertente introspectiva do romance, avaliando ambas obras como momentos privilegiados da narrativa de imerso na subjetividade.

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1.3 O caso Albertina Bertha

Le sujet dont je parle quand je parle est-il le mme que celui qui parle ? Jacques Lacan Lauteur (matriel) dun rcit ne peut se confondre en rien avec le narrateur de ce rcit; les signes du narrateur sont immanents au rcit,et par consquent parfaitement accessibles une analyse smiologique;mais pour dcider que lauteur lui-mme (quil saffiche, se cache ou sefface) dispose de signes dont il parsmerait son ouvre, il faut supposer entre la personne et son language un rapport signallique qui fait de lauteur un sujet plein et du rcit lexpression instrumentale de cette plnitude: ce quoi ne peut se rsoudre lanalyse structural: qui parle (dans le rcit) nest pas qui crit (dans la vie) et qui crit nest pas qui est. Roland Barthes

Albertina Bertha de Lafayette Stockler nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 7 de outubro de 1880 e faleceu, na mesma cidade, em 20 de junho de 1953. Por sua biografia no ter sido documentada, poucas so as informaes que temos a respeito de sua vida pessoal. Filha do Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira e de D. Francisca de Freitas Coutinho Lafayette, pertencia a uma importante famlia da poca, o que no impediu que sua biografia fosse ignorada. Em Retratos de famlia, Francisco de Assis Barbosa realiza uma entrevista com Albertina Bertha, em que ela fala sobre a vida de seu pai, o Conselheiro Lafayette. Atravs desse depoimento, temos acesso voz de Albertina, que nos narra momentos de sua vida em famlia e nos permite uma maior aproximao. Sobre seus pais, Bertha afirmava:Papai era um pantesta explica D. Albertina Berta. Amava a natureza. Ia sempre fazenda passar tempos, mas no levava vida de fazendeiro. Queria descansar, montar a cavalo, caar, pescar e nada mais. Mame era moa de finssima educao. Estudara na Inglaterra. Recebia muito bem. Nossa casa estava sempre cheia de gente. Tnhamos todos os dias convidados para o jantar. Mame dava s filhas

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educao inglesa. s vezes, papai dizia: Chica, voc quer fazer dessas meninas rapazes.83

Albertina Bertha foi educada por uma professora alem, formada pela Escola Normal de Berlim, que o pai mandara buscar especialmente para a sua educao, preocupado com a qualidade e o refinamento da formao da filha. Albertina aprendeu lnguas, estudou Esttica e Filosofia, entretanto, sem se distanciar de casa, como era o costume nas famlias abastadas brasileiras. Teve filhos e foi casada com o republicano histrico Alexandre Stockler Pinto de Menezes. De acordo com Beth Stockler, Albertina tinha marido e filhos. No sabia o que era solido, embora buscasse o silncio das tardes para conviver com seus personagens, sozinha, longe do ritual da casa. 84 Romancista e ensasta, a obra de Albertina Bertha composta por cinco volumes 85 : Exaltao (romance, 1916), Estudos 1 srie (ensaio, 1920), Voleta (romance, 1926), E Ela Brincou com a Vida (romance, 1938) e Estudos 2 srie (ensaio, 1948). Participou, tambm, da vida jornalstica, colaborando ativamente na imprensa carioca, em jornais como O Jornal, Jornal do Comrcio, O Pas, O Malho, A Noite, e em revistas como a Panplia, publicao literria dedicada s mulheres. Albertina Bertha foi admitida como Membro da Academia de Letras de Manaus e, conforme Adalzira Bittencourt, 86 a autora pertenceu a inmeros grmios culturais de seu tempo.87

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BARBOSA, Francisco de Assis. Lafayette Rodrigues Pereira visto por D. Albertina Berta. In: ______. Retratos de Famlia. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954, p. 135. 84 STOCKLER, Beth. A volpia de Voleta. Em memrias de amor. Niteri, RJ: Muiraquit, 2004. 85 Nelly Novaes Coelho (2002), em O dicionrio crtico de escritoras brasileiras, e Zahid Muzart (2004), em