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Fato Típico - out/dez 2009

Ano I - n. 3 - out/dez 2009 ISSN 1984-9583

Edição Especial

O SistemaPenal emDebate

O SistemaPenal emDebate

Fato Típico - Goiânia, ano I, n° 3, out/dez 20092

Ano I - n. 3 - 2009

Fato TípicoRevista do Núcleo de Persecução Criminal daProcuradoria da República em Goiás (PR/GO)

EntrevistaChefe da PR/GOMarco Túlio de Oliveira e Silva

Coordenador do Núcleo de Persecução CriminalMarcelo Ribeiro de Oliveira

Conselho EditorialDaniel de Resende SalgadoWladimir Ferreira LimaViviane Sousa Lima Ribeiro de OliveiraThais Lopes Lanza Monteiro

ColaboraçãoMartha Izabel de Sousa Duarte

Produção jornalística(projeto gráfico, diagramação, reportagens e fotos)Ascom da PR/GOAldo RizzoCristiane BochiJoanatha MoreiraAmilson Machado (fotos)

RevisãoCelso Luiz Correia

EndereçoAvenida Olinda, Quadra “G”, Lote 2, Park Lozandes,Goiânia/GOCEP 74884 120Fone: 62 - 3243-5400E-mail: [email protected]

Tiragem1.000 exemplares

Expediente

0604

1008

Sistema Penal

Sociedade Fragilizada

“Os cidadãos estãoencarcerados”

“Só o réu tem direito, avítima é um detalhe”

Congresso

Élcio Arruda

Cláudio Fonteles

Nesta edição

13Américo Bedê

ISSN 1984-9583

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“Ampla defesa não écheque em branco”

Paulo Baltazar

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Reconstrução daverdade

Marcello Miller

14Imagens e Opiniões

Por um Sistema Penalmais rigoroso

Impressões sobreo Congresso

15Doutrina

“Garantismo PenalIntegral”

Alexandre Camanho

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EDITORIAL

Ilustríssimo leitor,

Esta edição é especial. Especial tanto peloconteúdo, quanto pela originalidade.Resultado da conjugação de vários

esforços, revela-se um legítimo instrumentoinstitucional, para a produção de reflexõesacerca de questões, ao mesmo tempo, árduase relevantes.

A Procuradoria da República em Goiás, nosdias 14 e 15 de setembro, realizou o eventointitulado “O Sistema Penal no Estado Social eDemocrático de Direito”.

O foco do evento consistiu na discussão sobreos reflexos que valores, a princípio,legitimadores do sistema penal têm produzidono contexto social contemporâneo.

Nesse ponto, algumas distorções foramverificadas. Princípios jurídicos surgidos duranteo Iluminismo, em defesa dos cidadãosfragilizados pelo poder absoluto do Estado,hoje, têm funcionado como poderososmecanismos de defesa da impunidade.

A Ampla Defesa, direito de todo acusado,ganhou o significado de defesa absoluta,ilimitada, desmedida. Fortalece-se o acusado eenfraquece-se a sociedade.

A criminalidade, agora, desprovida dotradicional viés da simplicidade e daprecariedade, materializa-se por meio de umainteligente e logisticamente estruturadaorganização de indivíduos ávidos pelomonopólio de bens que, a priori, sãotitularizados por toda a coletividade.

Expandem-se as consequências das atividadescriminosas, ao passo que, em decorrência deuma ideologia manipuladora, critica-se ocrescimento do intervencionismo do direitopenal brasileiro.

A distinção entre acusado inocente e acusadocriminoso parece ter perdido o sentido, a valia.Interpretam-se, nesse contexto, os direitos egarantias processuais, não mais como institutosjurídicos de proteção contra eventuaiscondenações injustas, mas como regalias de quegozam os verdadeiros criminosos.

Se lealdade remete à idéia de boa-fé e de sensode responsabilidade pelos próprios atos, então,a deslealdade impera no universo dos indivíduosque, em razão de veementes indícios, são levadosa juízo pela prática de infrações penais.

Conformar-se com a deslealdade e aceitar todaessa inversão de valores é, em realidade, umaforma inescusável de abandono das própriasconquistas do Estado Democrático de Direito.É um mergulho desprotegido em um perturbadormar de anomalias jurídicas e sociais.

Nessa perspectiva, ansiamos, sim, provocar odescontentamento. Arraigar o sentimento demudança, para a formulação de propostasinovadoras e tentadoras que possibilitem aoportuna transformação e relegitimação dosistema penal.

Thais Lopes Lanza Monteiro

Participantes do congresso assistem às palestras noauditório da Procuradoria da República em Goiás

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Sistema Penal:uma busca pelo equilíbrio

CONGRESSO

A retórica do equilíbrio pautou ocongresso “O Sistema Penal noEstado Social e Democrático de

Direito”. O evento foi realizado nos dias 14 e15 de setembro no auditório da Procuradoriada República em Goiás (PR/GO). Com seispalestras e pré-lançamento de livro, o resultadoé o avanço nas discussões de dois interessesenvolvidos na relação da causa penal: o dasociedade (representado pelo MinistérioPúblico) e o do imputado.

Nessa linha, a Escola Superior do MinistérioPúblico da União (ESMPU) promoveu, pelosegundo ano consecutivo, o evento em Goiânia.Idealizados pelo procurador da RepúblicaDaniel de Resende Salgado, o congresso desteano e o do ano passado (PerspectivasRelegitimadoras do Sistema Penal) contribuírampara uma reflexão na busca por uma novainterpretação do Sistema Penal.

“Temos hoje uma interpretação muito pautadano Iluminismo, é preciso mudar essa visão daexistência do Estado opressor e partir para uma

concepção do Sistema Penal como instrumentode defesa da sociedade”, pontua Daniel Salgado.

O perfil do público do evento são de operadoresdo Direito, estudantes e representantes dediversas instituições (Ministério Público Federal,Justiça Federal, Polícia Federal, PolíciaRodoviária Federal, Ministério Público Estadualetc.). Com mais de 150 participantes, ocongresso teve a participação de renomadospensadores do Direito, como o palestrante e ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles.

Na abertura dos trabalhos, o chefe da PR/GO,Marco Túlio de Oliveira e Silva, alertou que “osdireitos da sociedade estão relegados”. O públicoseria, ao longo dos dois dias de discussão,alertados pelos palestrantes sobre essa inversãode valores, em que os interesses individuaissobrepõem aos da coletividade.

“Nós precisamos resgatar valores de seriedade,honestidade, não ter medo de decretar prisãopreventiva aos autores do colarinho branco.Precisamos também entender que a sociedadebrasileira é que está fragilizada. O individuo jáesteve muito fragilizado, porém, hoje não estátanto”, alerta Cláudio Fonteles.

A interpretação atual do Sistema Penal étendenciosa sob a ótica da Ditadura (de 1964 adécada de 1980). “Há um exagero interpretativohoje da doutrina e de algumas jurisprudênciasem relação aos direitos fundamentais, analisadosem uma única perspectiva”, explica um dospalestrantes e juiz Federal no Espírito Santo,Américo Bedê Freire.

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Ponderação

O equilíbrio almejado está na base doGarantismo, que é a busca pela justa puniçãodos culpados e a absolvição dos inocentes. “Nãopodemos ser tão libertários, mas também nãopodemos ser tão lei e ordem, tem-se quetrabalhar no meio, na ponderação”, considera oprocurador da República Daniel Salgado.

Para ele, é preciso romper a visão do SistemaPenal como, somente, instrumento de contençãodo poder punitivo. “É necessário interpretar osistema como instrumento de legítima defesa dasociedade, como instrumento de busca por umapacificação social, ao viabilizar medidas maisinvasivas e modernas de investigação, de formamais ampla, pois, muita vezes, o que se estádefendendo é a sociedade daquele indivíduo quepode pôr em risco o próprio Estado”.

As temáticas discutidas durante o congressocontribuíram para essa nova visão do SistemaPenal. O evento foi aberto com a palestra doex-procurador-geral da República CláudioFonteles: “O Mito do Estado Policial e a Visão

O Congresso foi aberto pelo Chefe da PR/GO, Marco Túlio de Oliveira e Silva (centro). A mesa foi compostaainda por (da esquerda para a direita): Carlos Antônio (Superintendente da PF/GO), Roberto Carlos de Oliveira(Juiz Federal), Larissa Martins (Defensora Pública Federal) e Marcello Wolff (Procurador da República)

Anacrônica dos Direitos Fundamentais”. Comessa introdução, o congresso desmitificouconceitos e iniciou a busca por novos paradigmasno sistema penal.

Nessa perspectiva, o procurador Regional daRepública Alexandre Camanho de Assis falousobre o “Estado Desorganizado contra o CrimeOrganizado”. Conceitos como justiça, verdade,cidadania, dignidade e coletividade foramdiscutidos. O debate avançou com asapresentações do juiz Federal Élcio Arruda (DoMinimalismo ao Laxismo Penal), do procuradorda República no Rio de Janeiro MarcelloParanhos de Oliveira Miller (Juizado de Instruçãoe Sistema Acusatório), do juiz Federal José PauloBaltazar Junior (Provas Circunstanciais eLavagem de Dinheiro) e do juiz Federal AméricoBedê Freire Júnior (Lealdade Processual).

O evento foi encerrado com o pré-lançamentodo livro “Garantismo Penal Integral”. Organizadopelos procuradores da República BrunoCalabrich e Eduardo Pelella e pelo procuradorRegional da República Douglas Fischer, a obraé composta por 17 artigos e 22 autores.

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Sociedade Fragilizada

A opressão sofrida pela pessoa durante aDitadura Militar no Brasil gerou uma“superproteção” aos direitos individuais

em detrimento dos direitos coletivos. Nessarelação desproporcional, o Sistema Penal é tidocomo uma maneira de proteger o indivíduo contrao braço opressor do Estado e não como uminstrumento legítimo de defesa da sociedade.

Nessa inversão lógica, são construídos mitos sobuma visão anacrônica dos direitos fundamentais.Para discutir esse tema, o congresso teve apresença do ex-procurador-geral da RepúblicaCláudio Fonteles. “Claro que o Brasil não viveum Estado Policial. O país é um EstadoDemocrático. No meu juízo, nota-se um avançomuito grande no serviço policial. O modelo depolícia que temos substituiu atos de truculênciapor atos de inteligência”, disse acreditar Fonteles.

A visão prática e moderna do ex-procurador-geral da República pautou sua apresentação naabertura do Congresso. Inicialmente, clamou opúblico pela busca da verdade, para depoisexplicar o anacronismo como a limitação emdefinir no presente usando critérios do passado,ignorando o contexto.

“Os critérios anacrônicos na interpretação dos

Direitos Fundamentais são ainda hojesupervalorizar a pessoa humana, o ‘eu’, emdetrimento da sociedade, do ‘nós’. Atualmente,acabou aquela máxima de o que é melhor parao Estado é melhor para a coletividade, ou seja,de que os governos só querem o nosso bem.Não é por aí, pois hoje a sociedade enfrenta ogoverno. Nisso, entra o Ministério Público, comodefensor da sociedade”, explicou.

Nessa lacuna, a atuação dos procuradores daRepública e promotores de Justiça é legitimada.“O Ministério Público é a voz da sociedadediante do Poder Judiciário, voz que jamais podese calar, comprometida diuturnamente com ademocracia”, destaca o palestrante.

Porém, ele não descarta a existência de uma“crise” no Sistema Penal. “Se virmos comoSistema Penitenciário, do homem cumprindopena, há sim uma tensão, até mesmo por umalheamento da sociedade como um todo para oproblema. Por outro lado, se enxergarmos oSistema Penal como mecanismo de aplicação dalei penal, acho que precisa de algumas correções,como tornar-se mais célere, pois não faz sentidouma ação penal durar um ano, dois anos, enfim,essas delongas dão a nós, brasileiros, umasensação de impunidade”.

Cláudio Fonteles durante palestra. Ele foi homenageado pelos procuradores da República (foto da página aolado). Presidiu a mesa o procurador da República Daniel Salgado (idealizador do Congresso - à esquerda)

Cláudio Fonteles

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O caminho para isso, na visão de Fonteles, seriamaior integração nos trabalhos da polícia,Ministério Público e Justiça. “A polícia faria ainvestigação criminal, o Ministério Públicotrabalharia junto, sem burocratização. Já na faseprocessual, poderia fazer, por exemplo, aconcentração de datas e atos processuais emuma ou duas audiências. Em seis meses, seriapossível resolver mais de 90% dos casos”.

“Outro ponto seria uma mudança dementalidades, tanto dos juízes quanto doMinistério Público e advogados. Temos que terpessoas mais objetivas, chega de blablablá eteorizações, é preciso uma mudança no ensinodo Direito, que é muito tradicional. É necessárioformar operadores do Direito com uma visãomais dinâmica, objetiva, dentro dessa visão desolução rápida, sem prejudicar o direito dedefesa e o contraditório”, orienta.

Na crítica à teorização do supérfluo, CláudioFonteles revela pouca paciência com orebuscamento que marca o mundo jurídico noBrasil. Ele, que ingressou no Ministério PúblicoFederal em 1973, chegou a ocupar o maiorcargo da instituição pelo período de 2003 a 2005.

A palestra motivadora do ex-procurador-geralda República marcou o Congresso. Em formade reconhecimento, ele foi homenageado peloMPF/GO com uma placa e um discursoproferido pelo procurador da República emGoiás Helio Telho Corrêa Filho.

Trechos do discurso em homenagem a CláudioFonteles proferido por Helio Telho:

Carioca, Cláudio Lemos Fonteles nasceu em 1946, noBairro da Tijuca, lugar em que passou sua infância epré-adolescência. Cursou Direito na Universidade deBrasília, no período de 1965/1969, onde conheceuÂngela, por quem se apaixonou, teve 4 filhos e estácasado desde 1971.

Fonteles entrou para o MPF em 1973. Fez-se Mestreem Direito pela UnB, em 1983. Iniciou sua carreiradocente lecionando inglês. Posteriormente, lecionouDireito Penal e Processo Penal, sua especialidade. Aotodo, foram 40 anos de magistério.

Atuou intensamente junto à Assembléia NacionalConstituinte com a finalidade de conferir ao MinistérioPúblico a configuração constitucional que ostenta nosdias de hoje.

Teve sua indicação para o cargo Procurador-Geral daRepública aprovada pela unanimidade dos membrosda Comissão de Constituição e Justiça do SenadoFederal, exercendo-o de 30 de junho de 2003 a 29 dejunho de 2005.

Soube não só respeitar a independência funcional decada procurador da República, mas efetivamenteapoiou-lhes as principais e mais importantes iniciativas.Investiu na concretização do exercício da funçãoinvestigatória do Ministério Público, dotando-o,inclusive, de ferramentas imprescindíveis para oenfrentamento da criminalidade organizada.

Aposentou-se das funções no Ministério Público em2008, mas não de seus ideais. Hoje dedica-se a projetosligados a comunidades pobres e também a um trabalhocom dependentes químicos.

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Cinco fatores legítimos paraexpansão do Direito Penal:

Durante palestra no Congresso, o juiz Federal Élcio Arrudaapresentou cinco fatores legítimos para a expansão doDireito Penal, porém, fez uma observação. “Não é umaexpansão sem qualquer limite, sem qualquer parâmetro.É uma expansão de acordo com a necessidade eparametrada. Não se busca o direito penal máximo”.Confira a explicação para cada um dos fatoresapresentados pelo palestrante:

1. Enfrentamento de novas realidades/demandas: “nóstemos a questão do terrorismo e do crime organizado,além do meio ambiente e daqueles crimes cometidos pelarede internacional de computadores que merecem umatutela mais efetiva. Essa nova realidade demanda umaexpansão do direito penal”, explica Élcio Arruda.

2. Interdependência e complexidade existentes nasociedade: “A abordagem clássica – relação de causa eefeito, chamados crimes materiais – tem-se reveladainsuficiente para fazer frente à criminalidade. A plataformaatual é em grande parte de crimes formais, crimes demera conduta, crimes de perigo presumido abstrato, que

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Na inversão lógica da interpretação doSistema Penal, “ vítima é um detalheno processo”. Quem afirma isso é o

juiz Federal em Rondônia Élcio Arruda. Duranteo Congresso, ele apresentou a palestra “DoMinimalismo ao Laxismo Penal – uma visãocrítica”. A apresentação foi pautada pela censuraaos defensores dessa linha de pensamento emque “só o réu tem direito” enquanto a sociedadefica à mercê da própria sorte.

O minimalismo penal, de acordo com opalestrante, é um movimento criminológico soba plataforma do chamado direito penal mínimo.Nessa perspectiva, prega-se uma obrigaçãoconstitucional de descriminalizar, com intençãode utilizar cada vez menos penas privativas deliberdade e o uso cada vez maior dossubstitutivos (mais conhecidos na prática jurídicacomo penas alternativas).

“O direito penal mínimo, em diversos aspectos,parece não ser mais desejado pela sociedade.Há motivos legítimos para isso, e a sociedadeclama por um direito penal mais alargado eexpressivo. A aplicação desvirtuada dominimalismo deságua no chamado laxismopenal”, alerta Élcio Arruda.

O laxismo é a aplicação desvirtuada do direitopenal mínimo. Seus adeptos postulam semprepela absolvição do agente, independentementedas circunstâncias, com aplicação da pena

Élcio Arruda

“Só o réu temdireito, a vítimaé um detalhe”

Élcio Arruda falou sobre o tema ““Do minima

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mínima ou absolvição, já que o agente é vítimadas condições sociais e econômicas. “Há umainversão nisso, a culpa pelo crime deixa de serdo criminoso, sendo jogada para a sociedade.Os laxistas defendem ainda que deve se buscarsempre alguma questão técnica no sentido deanular o processo”, desabafa.

Se não é interessante à sociedade, a quem interes-saria o laxismo penal? A resposta do palestranteé contundente: interessa ao crime organizado.“Vemos juristas de laboratórios, juristas de salão,que propõem soluções sem qualquercompromisso com a realidade. O que importa,dizem eles, é a intenção. É exatamente isso,laxismo penal é que tem feito, também, com quea sociedade postule por mais leis penais”, critica.

Essa ânsia social por mais regras é resultado deum clima pessimista espelhado pelos meios decomunicação, na construção de uma fábrica demedos, em que impera o sentimento decorrupção. O juiz Élcio Arruda explica que,justamente por isso há cinco fatores legítimos paraa expansão do Direito Penal (ver box).

“O crime organizado, na verdade, significa acorrupção do próprio poder público, da polícia,do Ministério Público, do Judiciário, doLegislativo, do Executivo. Paralisa-se o combateà criminalidade. O crime organizado advoga olaxismo penal justamente por isso, para que aleniência do sistema permita que os peixesgraúdos escapem. Os maiores sectários dolaxismo são do crime organizado e possuemlobby em todos os setores, inclusive noLegislativo”, denuncia.

Para o palestrante, o antídoto é a revitalizaçãoda sociedade, buscando fomentar a escola, otrabalho, a religião, a família e os órgãosassistenciais. “Direito, sim. Obrigação, também.Liberdade e igualdade, sim. Compaixão esolidariedade, também”, conclui.

imalismo ao laxismo penal – uma visão crítica”

são aqueles que bastam o risco do resultado para haver acriminalização”.

3. Relações sociais cada vez mais complexas: “Nasrelações cada vez mais interdependentes na sociedade,para que o direito de uma pessoa seja realizado, necessita-se do comportamento positivo de outro indivíduo. Sehouver omissão, o direito não é realizado. Nessaperspectiva, tem ganhado corpo a criminalização daschamadas omissões”.

4. Classes passivas: “São bolsistas, beneficiários deprestações públicas de todos matizes, exigindo um Estadoprovedor máximo. Porém, é incompatível com um EstadoMáximo um direito penal mínimo, dessa forma, surge ademanda de expansão do direito para atender essas novaspostulações estatais”.

5. Ineficiência dos mecanismos informais de combateao crime: “Esses mecanismos informais são a família, otrabalho, a religião, os órgãos assistenciais. Essasinstituições quando operam fazem com que muitaspessoas não ingressem na senda do crime. Porém, hoje,esses mecanismos caíram no descrédito, o que leva auma convocação do direito penal para fazer frente aosreclames sociais por segurança pública”.

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A moderna criminalidade é sustentadapelo tripé “lavagem de dinheiro”,“corrupção” e “crime organizado”. Essa

é a tese do juiz Federal e doutorando em DireitoJosé Paulo Baltazar Junior, do Rio Grande doSul, que ministrou a palestra “ProvasCircunstanciais e lavagem de dinheiro”.

“Onde há crime organizado vai haver corrupção.Ele só se perpetua quando há corrupção ou, nomínimo, tolerância por parte de agentes públicos,que recebem valores do esquema de corrupção.Tanto o agente público quanto o autor do crimeorganizado vão precisar lavar dinheiro, daí fechao tripé que sustenta a moderna criminalidade”,explica Baltazar.

A lavagem de dinheiro, como os crimeseconômicos e empresariais, não segue a linhada criminalidade tradicional (por exemplo, oroubo e o estupro), pois é difícil obter uma provadireta da ocorrência dos fatos. Nessaperspectiva, é preciso lançar mão de indícios,pois a prova corresponde a um mosaico. “Vocêpega uma informação aqui, outra ali, nessatentativa de reconstrução da verdade, que é oprocedimento de produção da prova”, analisa.

O juiz Federal pontuou ainda as três fases dalavagem de dinheiro: acumulação, dissimulação eintegração. A acumulação ou colocação é quandoo lavador tem o recurso oriundo do tráfico einveste esse dinheiro em imóveis ou depositanuma conta no Brasil ou no exterior. Adissimulação é a tentativa de desvincular osvalores de sua origem criminosa. Para isso, usam“laranjas”, contrabando de dinheiro, “malaspretas”, além de misturarem esses valores comdinheiro proveniente de atividade lícita.

A terceira fase é a integração ou reciclagem, queé o reingresso dos valores à economia lícita.“Então o lavador investe aquele dinheiro em umaatividade empresarial, aí ele passa a se colocarcomo um empresário”, revela.

Nessa nova criminalidade, de acordo com opalestrante, é preciso usar várias inteligências. “Énecessário que o Ministério Público se aproximeda Polícia, da Receita Federal, da FazendaEstadual, do Banco Central, e esses órgãosreunidos conseguirão interpretar uma prova queé mais complexa e chegarão a um resultadomelhor. Neste contexto, o Ministério Público temum papel fundamental de assumir a liderança desseprocesso e convocar essas instituições para umapersecução criminal eficiente”.

Na busca por essa eficiência, José Paulo Baltazarcria o “modelo funcional garantidor”, em que seteria uma justiça penal que alcançasse seusobjetivos, respeitando os direitos fundamentais.

Reconstruçãoda verdade naprodução de

provas O tema do juiz Federal José Paulo Baltazar Juniorfoi “Provas circunstanciais e lavagem de dinheiro”

Paulo Baltazar

O juiz Federal Leão Aparecido Alves presidiu a mesanas palestras de Paulo Baltazar e Marcello Miller

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A sociedade clama por um sistema dejustiça criminal mais rigoroso. Sob essapremissa, utilizando-se do Direito

Comparado, o procurador da República no Riode Janeiro Marcello Paranhos Miller ministroua palestra “Juizado de Instrução e SistemaAcusatório”, no segundo dia do Congresso.

Para ele, o Brasil deve parar de copiar modelosexternos como se fossem fórmulas mágicas pararesolver os problemas do Sistema Penal do país.Exemplo disso é a desnecessidade de se adotarum modelo caro e que não pode sergeneralizado, como os juizados de instrução, bemem voga na França. “Os franceses estãoabandonando este modelo”, alerta.

De acordo com o procurador, há um equívocona compreensão do conceito de juizado deinstrução. “No Brasil, a ideia de que o juizadode instrução seria muito parecido com o inquéritopolicial se popularizou. A definição é muito maisparecida com outro modelo que temos no nossosistema processual, que é o modelo do‘iudicium accusationis’, procedimento utilizadoperante o tribunal do júri”, destaca.

A solução na busca por um sistema acusatóriomais rigoroso, na opinião de Marcello Miller, élançar um olhar para o Direito Comparado. “Sefizermos isso, veremos uma noção massiva ecrescente do sistema acusatório e isso nãosignifica que a gente deve copiar, porquecopiamos mesmo, mas temos que entender queo Direito Constitucional e o Direito Processualse movimentam nessa direção”, conclui.

“Se os fatos mudaram, o direito também temque mudar. Vivemos hoje um tempo em que oDireito Civil mudou, o Processo Civil mudou, oDireito Comercial mudou. Será que só o DireitoPenal e o Direito Processual Penal têm quecontinuar no século XIX?”, lança a pergunta.

Por um sistema penal mais

rigoroso

O procurador da República (RJ) Marcello Millerdurante palestra

Prova indiciáriaNessa lacuna deixada pelo Sistema Penal, a provadireta não é mais possível, na maioria dos casos, namoderna criminalidade. Por isso, nas mudanças atuaise nas que virão, os indícios de crime serãofundamentais para o procedimento da produção daprova. Na lavagem de dinheiro, por exemplo, opalestrante detalha os três momentos de análise daprova indiciária.

O primeiro momento é o recebimento da denúncia combase em indícios do crime antecedente. “Não precisahaver prova plena do crime anterior, por exemplo, usa-se o crime de tráfico para que a Justiça receba adenúncia por lavagem de dinheiro, porém, é precisoter, no mínimo, indícios”, ensina.

O julgamento da ação penal é o segundo momento.Nesse ponto, será discutida se a prova é ou nãosuficiente. Para tanto, busca-se uma intersecção entreos crimes antecedentes e a existência de um patrimônioinexplicável, tipologia comum na lavagem de dinheiro.“Dinheiro não tem cheiro e não tem marca, são ativosanônimos. Não tem como vincular diretamente.Portanto, a prova aqui é por excelência indiciária”.

O terceiro momento é a devolução dos bens. Severificada a licitude das provas, haverá o perdimentoquando o réu for condenado. “Só por meio desseconjunto de indícios, conseguir-se-á a condenaçãopor lavagem de dinheiro. Dificilmente haverá provadireta de que os valores decorrem do ato de tráfico ouda corrupção”, finaliza.

Marcello Miller

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O Estado virou as costas para asociedade. Essa é a constatação doprocurador Regional da República

Alexandre Camanho de Assis. Sob o título “OEstado Desorganizado contra o CrimeOrganizado”, o palestrante alerta que “oscidadãos estão encarcerados e os bandidosestão soltos”.

“O Estado desorganizado é reflexo de umasociedade que se fragmenta cada vez mais,priorizando o indivíduo em detrimento dacoletividade. Porém, é o nosso papel rever isso,reavaliar e tentar redirecionar tanto o Estadoquanto as mentalidades de forma que passamos,sem desmerecer o indivíduo, a valorizar acoletividade social”, pontuou AlexandreCamanho de Assis.

Para ele, uma série de conceitos precisam serrevistos. “Justiça, verdade, cidadania, probidade,dignidade, coletividade, indivíduo, entre outros,transformaram num discurso comum e precisamser revalorados de forma que a gente caminhe

“Os cidadãos estão encarceradose os bandidos estão soltos”

para uma sociedade melhor”.

Na desorganização do Estado, só quem sebeneficia, de acordo com o palestrante, é obandido. Durante o debate, como exemplo disso,destacou a tensão entre o Ministério Público e aPolícia. Para o procurador Regional da República,as diferenças são inevitáveis, entretanto, “é omomento de perceber que esse fracionamentonão leva nenhum benefício ao aprimoramento doEstado, nem na melhoria das condições dasociedade e do cidadão em si”.

Nessa perspectiva, a sociedade vive numasituação de medo. “O cidadão comum procurase rodear de uma série de questões de segurançano seu cotidiano, hábitos que fazem com que eleusufrua cada vez menos a vida. Hoje o cidadãotem que voltar mais cedo para casa, porque anoite é do bandido. Ele tem que investir, comcustos milionários, na segurança de sua casa,porque o bandido está na rua e não foi preso,apesar de ter sido pedida a sua prisão, isso éuma inversão lógica das coisas”, conclui.

Alexandre Camanho de Assis aborda o tema “Estado desorganizado contra o crime organizado”. A mesa foipresidida por Déborah de Barros Amorim, delegada da Polícia Federal em Goiás

Alexandre Camanho

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O abuso da ampla defesa é deslealdadeno processo, vivemos uma crise devalores e a sociedade perdeu suas

referências. Essas três orações poderiam estardestacadas com aspas, pois são citações dopalestrante e juiz Federal Américo Bedê FreireJúnior, do Espírito Santo. Porém, o destaque ficapor conta de ocupar o topo da página. As frasesnão foram ditas em sequência, mas sim duranteuma hora de debates e discussão.

Optar por discutir “Lealdade Processual” noencerramento do Congresso foi uma decisãoestratégica, já que os conceitos obtidos durantetodo o evento puderam ser utilizados nasexplicações do palestrante. “É finalidade doprocesso que nenhum inocente seja condenado,mas também é finalidade que nenhum criminosofique impune”, pontua Américo Bedê.

Nessa busca pelo equilíbrio, o juiz Federal fazum desabafo: “a ampla defesa não é um chequeem branco”, numa tentativa de destacar que nãosão leais, em nome desse direito, pedidosprocrastinatórios no processo. “Chega dejuntada de documentos inúteis, diligênciasdesnecessárias, embargos declaratóriosinfundados e repetitivos”.

Numa relação entre a ampla defesa e adeslealdade processual, Américo Bedê destacaque esse direito é importantíssimo, mas temlimites. “O direito de um acaba quando começao direito do outro, essa frase é clássica e todo

“Ampla defesanão é chequeem branco”

mundo tem noção disso. A ampla defesa vaiesbarrar no direito da vítima, que é a grandeesquecida no Direito Penal”, alerta.

A vítima, de acordo com ele, é quem sofreu como crime e é quem o Estado deve proteger. “Muitasvezes a gente vê que medidas aparentemente deampla defesa têm como único objetivo atrasar oprocesso, tentar uma prescrição, medidas quebuscam evidentemente que o culpado não fiquecondenado”, lamenta.

O palestrante explica que o direito fundamentaldo indivíduo é de primeira dimensão e precisaser protegido, mas há um segundo direitofundamental que é o da sociedade. Para ele, épreciso encontrar um equilíbrio entre essesdireitos no processo. “Nessa busca, é óbvio queo réu tenha ampla defesa, como o MinistérioPúblico também tenha o direito de acusar, masambos têm que ser exercidos com lealdade”.

Lealdade que é definida, na palestra, como agirde acordo com os valores da ética e moral. “Alealdade você consegue definir quando a pessoatem um comportamento dentro das regras dojogo. Ela pode discutir a sua pena, a suacondenação e até mesmo não querer sercondenada, mas essa vontade o Estado tem queevitar se a pessoa for culpada”, finaliza.

Américo Bedê abordou o tema “(Des)lealdadeprocessual”. Presidiu a mesa o procurador daRepública Marcelo Ribeiro de Oliveira (à esquerda)

Américo Bedê

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NOTÍCIAS

Confira algumas opiniões e veja imagens doCongresso “O Sistema Penal no EstadoSocial e Democrático de Direito”.

“A Escola Superior do Ministério Público da Uniãoestá de parabéns mais uma vez, ao proporcionaraos membros e servidores do próprio MPU e apessoas de outras atividades, mas que operam odireito ou virão a operar num futuro breve, comono caso dos acadêmicos, o contato com assuntosrelevantes da área.

O ano passado, esta Escola realizou outroCongresso importantíssimo que durou quatro diase que ainda hoje muitos dos conceitos e reflexõespropostas continuam em minhas memórias”, JoséLindenor Chaves, delegado de Polícia Civil/GO.

“Cumprimentar o procurador da República DanielSalgado e todos que contribuíram para o sucessodeste Congresso. Levo o conhecimento adquiridona expectativa de novas oportunidades departicipação nos eventos promovidos pelaESMPU. Parabéns aos organizadores”, PatríciaMorais – advogada.

“Foi uma honra participar do Congresso, houvegrandes autores, grandes professores, juízes,procuradores da República, delegados, advogados.O evento foi um sucesso no sentido de começar amostrar que o Poder Judiciário e o MinistérioPúblico estão preocupados sim com o SistemaPenal”, Américo Bedê Freire, palestrante.

Imagens eopiniões sobreo Congresso

Opinião

Fato Típico - out/dez 2009 15

No encerramento do Congresso, osorganizadores do livro “GarantismoPenal Integral” (Editora Podivm, 436

páginas) fizeram o pré-lançamento da obra comum debate que convergiu com toda a reflexãorealizada nos dois dias de evento. De DouglasFischer, Bruno Calabrich e Eduardo Pelella, otítulo é composto de 17 artigos e 22 autores. Aobra não tem direito autoral e nem quaisquervantagens pecuniárias aos articulistas.

Das opiniões expostas durante o pré-lançamento, podem-se tirar duas conclusões:primeira, que as bases do garantismo sãoabsolver os inocentes e promover a justa puniçãodos culpados, porém esta segunda parte foinegligenciada no Brasil. A segunda conclusão éque o garantismo nada tem a ver comimpunidade, mas é a aplicação responsável dodireito, mudando o foco de como devem servistos os Direitos Penal e Constitucional.

O procurador Regional da República e Mestreem Direito Douglas Fischer, representando osorganizadores e articulistas do livro, concedeu aentrevista ao lado, logo após o encerramento doCongresso, no dia 15 de setembro de 2009.

O que é ser garantista?No Brasil, tem-se desenvolvido apenas um lado dogarantismo penal, como se garantismo fosse apenas aproteção dos direitos fundamentais e individuais dosréus e acusados no processo penal. O que defendemosno livro, isso com base em uma profunda pesquisanos trabalhos do pai do garantismo penal (Luigi

Livro “Garantismo Penal Integral”é pré-lançado no Congresso

aplicada plenamente no país.

Por que o livro é dividido em artigos de autores detodo o Brasil?A história desse livro tem uma peculiaridade. Há algumtempo escrevo sobre essa questão e digo que no Brasiltemos um garantismo hiperbólico monocular. Émonocular porque só enxerga os direitos fundamentaisdo réu e hiperbólico porque é aplicado de uma formaampliada, desproporcional. No livro, fizemos ocontraponto, o garantismo tem que ser integral, nemhiperbólico e nem monocular. Em março deste ano, oscolegas Bruno Calabrich e Eduardo Pelella deram asugestão de escrevermos um livro. Depois deamadurecer a ideia, chegamos a conclusão de que umlivro com vários textos teria maior resultado, pois aintenção é justamente o direcionamento para a macro-criminalidade moderna. Procuramos autores de todo opaís, juízes, procuradores, advogados. A obra éeclética.

Qual o público-alvo do livro Garantismo Integral?Nosso público é o mais amplo possível. Minhapreocupação inicial foi atingir os estudantes. Porém,o livro também deve ser lido pelos aplicadores doDireito e oxalá se a obra chegar à Suprema Corte(Supremo Tribunal Federal - STF).

Ferrajoli), é que o conceito nada mais é do que a visãodo Direito Constitucional aplicada no Direito Penal eno Direito Processual Penal. Nisso, é importantedistinguir que o garantismo penal não implica única eexclusivamente a proteção dos direitos fundamentaisdos réus, que têm de ser protegidos. No entanto, háoutras classes de Direitos Fundamentais reconhecidasexpressamente pelo professor Luigi Ferrajoli (os dacoletividade), porém não desenvolvidas aqui no Brasil.Por isso escrevemos essa obra e chamamos de integral,porque percebemos que a teoria não está sendo

(Da esquerda para a direita): Eduardo Pelella, BrunoCalabrich, Marcelo de Oliveira (presidiu a mesa) eDouglas Fischer, durante pré-lançamento do livro

Doutrina

Fato Típico - Goiânia, ano I, n° 3, out/dez 2009