O Tempo e o Lugar das Ciências da Educação. Prof. Albano Estrela

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O Tempo e o Lugar das Ciências da Educação Mil novecentos sessenta e oito foi o ano de todas as convulsões estudantis, nos Estados Unidos da América, na Europa. Se o Maio de 68, em Paris, é o acontecimento emblemático para a maioria dos europeus, talvez o não seja para os italianos, tal a amplitude e a intensidade dos movimentos operados nas suas universidades. Movimentos que assumiram características próprias, que mudaram o rosto das instituições e alteraram a perspectiva que a sociedade tinha da sua universidade. E, sempre que assim acontece, é o indivíduo, aquele indivíduo que vive à margem da convulsão social, o que mais directamente sofre as consequências da tragédia que fermenta no seio da mudança que se quer revolução. Exemplo entre os exemplos é, para mim, o do professor de literatura italiana que pontificava numa das grandes universidades de Itália. Especialista de Dante, a sua competência era por todos reconhecida - na sua aula, sempre cheia, nos seus livros, obras de referência, aquém e além-fronteiras. Dante era a razão de ser da sua vida - nele, encontrara a beleza, a espiritualidade, a profundidade, que faz do homem um ser de eleição. E era essa a

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O Tempo e o Lugar das Ciências da Educação. Oração de sapiência proferida na sessão solene de abertura do ano lectivo de 1998/1999, da Universidade de Lisboa.

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O Tempo e o Lugar das

Ciências da Educação

Mil novecentos sessenta e oito foi o ano de todas as convulsões estudantis, nos

Estados Unidos da América, na Europa. Se o Maio de 68, em Paris, é o acontecimento

emblemático para a maioria dos europeus, talvez o não seja para os italianos, tal a

amplitude e a intensidade dos movimentos operados nas suas universidades.

Movimentos que assumiram características próprias, que mudaram o rosto das

instituições e alteraram a perspectiva que a sociedade tinha da sua universidade. E,

sempre que assim acontece, é o indivíduo, aquele indivíduo que vive à margem da

convulsão social, o que mais directamente sofre as consequências da tragédia que

fermenta no seio da mudança que se quer revolução. Exemplo entre os exemplos é,

para mim, o do professor de literatura italiana que pontificava numa das grandes

universidades de Itália. Especialista de Dante, a sua competência era por todos

reconhecida - na sua aula, sempre cheia, nos seus livros, obras de referência, aquém e

além-fronteiras. Dante era a razão de ser da sua vida - nele, encontrara a beleza, a

espiritualidade, a profundidade, que faz do homem um ser de eleição. E era essa a

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mensagem que transmitia aos que o escutavam, aos que o liam. No meio das ondas

tumultuosas da crise estudantil, continuava ele a vogar no doce embalo do seu discurso

perfeito. Até ao dia em que a sua aula foi invadida por uma multidão de jovens

ululantes. Na fila da frente, os alunos que ainda ontem o escutavam atentamente e que,

agora, o interpelavam sobre o sentido do seu discurso - porque continuar a falar do

passado, quando toda a Itália soçobrava na convulsão social? Ele tenta explicar que

Dante é de todos os tempos e conhecer a sua obra é penetrar no que o homem tem de

essencial, portanto, de eterno. Interrompido, vaiado, abandona a sua cátedra e refugia-

se em casa, a cismar no que havia falhado. Dois, três dias depois, suicida-se - o seu

mundo tinha acabado.

O seu mundo tinha acabado e, com ele, o mundo da pedagogia tradicional que o servia.

Pedagogia construída a partir de uma comunidade de solidões: solidão do professor,

enclausurado no seu saber e na sua autoridade de mestre, solidão do aluno, prisioneiro

da palavra magistral do seu professor. Pedagogia do ensino de conteúdos e do controlo

da sua aquisição por aqueles a quem ensinados eram. Pedagogia redutível ao discurso

lógico-didáctico do que sabe e, portanto, ensina - e cuja capacidade profissional era

comprovada pela capacidade reprodutora daquele que o ouve, o lê. Pedagogia da

verificação do erro, do desvio à norma instituída pelo sistema, pelo professor. E, por isso,

Pedagogia da vigilância do comportamento social e intelectual do aluno.

Esta foi a situação que perdurou durante séculos: o acto educativo, fechado em si

próprio, autojustifica-se e alheia-se do mundo exterior que o torna possível e do

conhecimento científico que lhe poderia conferir uma inteligibilidade diferente. Situação

que dificilmente poderia subsistir, tão desajustada estava ao que ao ensino e à educação

a sociedade, hoje, exige. Papel determinante nesta mudança foi, sem margem de dúvida,

a constituição de um conhecimento científico dos fenômenos educativos. Constituição que

começa pela preocupação de aplicação, ao campo educativo, de princípios da Psicologia

e, mais tarde, da Sociologia. Constituição que passa, ainda, pela tentativa de criação de

uma ciência da educação - autónoma - e chega à elaboração de um conjunto de saberes

multidisciplinares, a configurarem, hoje, as Ciências da Educação. A título de

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exemplificação, e a fim de que o sentido histórico não se perca, queria referir o papel

pioneiro da Psicologia, enquanto ciência fundadora da Pedagogia Científica.

Como a Psicologia da Criança constituiu um dos primeiros campos de desenvolvimento

da Psicologia, coube à Pedagogia Infantil revelar essa influência e transformar-se, assim,

em actividade devidamente fundamentada. A "Pedagogia Científica" de Maria Montessori,

publicado em 1909, é o primeiro grande trabalho científico de Educação. Montessori traz

para a Pedagogia duas concepções essenciais ao seu pensamento: a do primado da

sensação, da percepção, na construção do conhecimento, e a de que o desenvolvimento

intelectual, sensorial e motor da criança não é uniforme, pois sujeito está a características

e mecanismos específicos de cada um dos períodos em que se estrutura a sua vida

psíquica. A primeira destas concepções terá, por sua vez, duas consequências decisivas -

, não só na Pedagogia Infantil, como, mais tarde, em toda a Pedagogia. Por um lado, o

educador, o professor e a sua palavra deixaram de estar no centro do acto educativo,

substituídos que foram pelos materiais didácticos, a manipular sensoriamente pelo aluno.

Por outro lado, o formalismo lógico-dedutivo do ensino tende a desaparecer, para dar

lugar a uma aprendizagem centrada no aluno, ou seja, naquele que pesquisa e, em

autonomia, constrói o seu conhecimento. Meio privilegiado utilizado: a actividade lúdica,

suportada pelo material didáctico e organizada sob a forma de jogo.

A outra noção central, a dos períodos sensíveis da vida psíquica da criança, trouxe para

a Educação uma perspectiva e uma necessidade nova: a de se cuidar, previamente, das

características do educando, fundamento e razão de ser de qualquer método de ensino.

Método que passa a constituir, enquanto instrumento organizativo da acção pedagógica,

um caminho seguro, de efeitos controláveis, por experimentáveis. Meio utilizado para se

proceder ao levantamento desses efeitos e proceder ao seu controlo: a observação.

Estamos, pois, perante um momento histórico, em que, pela via de uma metodologia

científica, foram introduzidos alguns dos grandes princípios da Educação Moderna, a

que as correntes construtivistas da Psicologia viriam a dar, posteriormente, um novo e

mais sólido fundamento: princípio do respeito pelo educando; princípio da participação

activa do aluno no acto educativo, nomeadamente, enquanto sujeito construtor do seu

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próprio conhecimento; princípio da motivação, ponto de partida para a elaboração de

metodologias de intervenção educativa.

Se a introdução da observação sistematizada em Pedagogia teve como finalidade, num

primeiro momento, o controlo científico da aplicação de princípios e procedimentos da

Psicologia, acabou, talvez sem o pretender, por constituir o acto fundador de uma

verdadeira Educação Científica, autonomizando a Pedagogia da Psicologia. Na realidade,

uma ciência começa sempre pela observação e assim também aconteceu com a Ciência da

Educação. Foi pela observação que se pôde detectar e concretizar um conjunto de

fenômenos que lhe eram específicos e não verificáveis noutras ciências humanas algo que

se passou a designar como o "irredutível pedagógico". De facto, a primeira Pedagogia

Científica, assim designada por Maria Montessori, acabou por dar lugar a uma outra

Pedagogia Científica, de segunda geração, autónoma e estruturada em princípios e

critérios próprios, que encontra o seu "discurso do método" na obra de Raymond Buyse,

em 1935, obra continuada, em muitos aspectos, na "Pedagogia Experimental" de Gaston

Mialaret.

Mas, se uma ciência não é apenas metodologia, também o é, e em muito. Por isso,

creio que se justifica continuar com o exemplo da observação e o que ela poderá

significar em termos de metodologia de investigação, quando aplicada à Educação.

Na observação tradicional, o observador deveria assumir uma posição de distanciarão,

isto é, a observação para ser rigorosa deveria desenvolver-se num quadro de

extraterritorialidade, pelo que o observador não deveria situar-se no território do

observado, mas para além dele. O observador deveria ser exterior ao observado, pois só

assim poderia apreender os seus fenómenos. O observador era, pois, alguém de neutro,

um ser puro, que não se deixava influenciar pela realidade do observado.

O rigor científico decorria, fundamentalmente, da rigidez desta posição, a qual assentava

nos três princípios constitutivos da estrutura paradigmática da ciência positivista: 1)

reversibilidade temporal; 2) estabilidade situacional; 3) ordem natural. Estes princípios

possibilitavam o estabelecimento de relações lineares entre causas e efeitos, o que

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cerceava o processo de observação ao levantamento de relações de fenómenos, nas

quais uns eram definidos como causas e outros como efeitos. Partindo-se, sempre, de

uma causa para um efeito, justificava-se essa relação pela sua repetição em situações

diferentes.

Esta foi a observação que Maria Montessori utilizou em Psicologia e esta foi também a

linha seguida, durante algumas décadas, na observação pedagógica. Observação que

conduziu, não só à manipulação experimental de novos métodos de ensino, como ao

estudo das variáveis, de diferente ordem, que o influenciam, dentro de linhas de pesquisa,

hoje denominadas de presságio-produto e de processo-produto (ou seja, o estudo dos

efeitos produzidos, respectivamente, pelas variáveis inerentes à pessoa do professor e

pelas variáveis relativas aos comportamentos de ensino).

A dificuldade em tornar significativos os comportamentos observados, nomeadamente

por desconhecimento das suas finalidades intrínsecas, levou uma parte dos observadores

a alterarem a sua posição, passando da distanciarão à participação, a fim de

apreenderem o significado relacionam implícito na situação observada. A crítica ao

reducionismo positivista e à sua pretensa objectividade e neutralidade levou à tomada de

consciência das interacções que se estabelecem entre observador e observado. O sujeito

observador e o objecto observado passaram a situar-se no mesmo território, único

processo de compreensão de um real complexo e irreversível. Essa posição

correspondia, pois, à perspectiva da «territorialidade observador-observado», e tinha

como principal quadro de referência o princípio da redução fenomenológica. Na sua

concretizarão, utilizaram-se técnicas de observação participante e de observação

participada. O quadro de trabalho em que assentam estas técnicas decorre, sempre, da

procura de articulação da «intenção-significado». Articulação, que, note-se, tem originado

um quadro amplo de variações interpretativas que, embora com suporte remoto em

Husseri, levaram a valorizar as abordagens holísticas e ecológicas e a criar novas

correntes, como o interaccionismo e a etnometodologia.

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Estas metodologias, que possibilitaram a formação de novas ciências do homem, na

primeira metade do século, como a Antropologia Social, com Boas e Malinowski,

encontraram também campo de aplicação na Psicologia Social e na Sociologia, de que a

escola de Chicago se tornou principal expoente e centro de irradiação - contribuindo,

assim, para o esbatimento de algumas fronteiras disciplinares. Embora se possa registar

um certo número de trabalhos precursores, só a partir dos anos setenta se começa,

realmente, a revelar o seu impacte - sempre crescente - na abordagem de fenômenos

educacionais, onde, aliás, é notória a sua fecundidade, levando à reformulação de velhas

problemáticas e à constituição de novos objectos de estudo. As etnografias da escola e

da sala de aula, os estudos da comunicação e da relação pedagógica, da indisciplina, do

"streaming", das culturas institucionais da escola e das culturas dos professores e dos

alunos, constituem, apenas, alguns exemplos de campos de investigação, que têm

conferido uma nova inteligibilidade à realidade educativa, enquanto realidade socialmente

construída e transformada pela significação que os actores conferem às situações em que

agem e interagem.

Se a abordagem predominante tem sido, como vimos, marcada pela pluralidade

fundadora das Ciências da Educação, ciclicamente surge a tomada de consciência de que

essa pluralidade se revela insuficiente para captar a especificidade própria do campo

educativo e pedagógico. Assim, estaríamos actualmente numa fase de transição que,

segundo o reputado investigador norte-americano Othaniel Smith, se caracterizaria por

"uma reforma sobre o modo de pensar o conhecimento pedagógico, por uma

reencontrada confiança nesse conhecimento e por uma tendência para pensar mais

objectivamente". E acrescenta, ainda, o autor: "Só agora começamos a ver que o ensino,

tal como o comportamento político ou económico, é um fenómeno natural, a estudar por

direito próprio". A constituição de saberes específicos ao campo educativo, que

progressivamente se foram estruturando, em ordem a uma definição conceptual e a uma

prática de investigação a eles inerente, como será o caso da Teoria e Desenvolvimento

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Curricular, a Avaliação Educacional, a Administração Educacional, a Didáctica, parecem

confirmar a possibilidade e a legitimidade dessa abordagem, por direito próprio feita. Por

outro lado, tendemos a esquecer que, se os fenómenos pedagógicos dependem de

características biopsicossociais dos sujeitos que os originam, estas dependem, por sua

vez, de fenómenos educacionais, pois não conhecemos homens, nem sociedades,

dissociados das formas e instituições educativas que estão na base da sua formação e do

seu desenvolvimento. Devemos sublinhar ainda que, se o campo educativo tem sido, até

aqui, predominantemente um campo de aplicação de conceitos e métodos de várias

ciências, ele também é, desde há algumas dezenas de anos, um elemento vivificador e

renovador dessas ciências - quando a perspectiva dedutiva da aplicação dá lugar à

perspectiva indutiva da construção do conhecimento e da teorização. Elemento vivificador

pelo alargamento dos campos temáticos, pela pluralidade das abordagens utilizadas, pela

variedade do conhecimento produzido. Veja-se, apenas como exemplo, a importância da

chamada "nova sociologia da educação" que, por influência do Instituto de Educação de

Londres, incrementou os estudos microssociológicos da escola e da sala de aula, através

de abordagens variadas. Se outros méritos não tivessem (e consideramos que os têm),

estes estudos contribuíram para o relançamento da discussão epistemológica e

metodológica, dentro das disciplinas fundadoras.

Em síntese: se a Psicologia e, logo a seguir, a Sociologia, desempenharam um papel

primordial na cientificação do fenómeno educativo, assistimos, sobretudo a partir dos

anos sessenta, a uma progressiva secundarização dessas ciências, nomeadamente da

Psicologia, a favor de outras ciências, que passaram a tomar a Educação como objecto de

estudo. Estamos a pensar na História, Economia, Demografia, Psicossociologia,

Antropologia, Etologia, Administração e Gestão. O que resulta, por um lado, de novas

temáticas e de novos problemas de ordem social, económica e política - a educação como

prática, note-se, foi-se alargando a vários domínios da vida social: educação permanente,

formação profissional, educação ambiental, educação familiar, educação para a saúde,

educação médica, levando à criação de saberes de interface disciplinar, acentuando a

vocação interdisciplinar das Ciências da Educação. Por outro lado, devemos sublinhar o

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desenvolvimento de técnicas e de instrumentos de investigação, alguns dos quais

marcadamente transversais a diferentes campos disciplinares.

E daqui resulta uma série de questões de carácter epistemológico, umas comuns às

várias ciências sociais, outras específicas das Ciências da Educação, a principal das quais

diz respeito à sua identidade. As Ciências da Educação terão uma identidade própria,

decorrente do seu campo específico, ou serão ciências "tout court", a operar tanto no

campo educacional, como no da saúde, do trabalho? Ou, por palavras diferentes: os

conceitos e as metodologias, que as caracterizam, estruturam-nas e identificam-nas

enquanto ciências específicas ou possibilitam a sua vincularão a um campo científico

diferente, no caso vertente, o da Educação? A designação de Ciências da Educação, por

plural, conferir-lhes-á um estatuto polissémico, com recorrência a uma

multirreferencialidade epistémica? Ou estaremos perante um falso problema, explicável

pela menoridade científica das Ciências da Educação, à procura de um estatuto específico

- o de uma Ciência da Educação, a situar-se para além da Pedagogia Científica e do seu

"irredutível pedagógico"?

A questão, que tanta polémica tem levantado, talvez não tenha a relevância que alguns

teóricos lhe pretendem atribuir, pois a investigação (e a intervenção educacional dela

decorrente) tem continuado a seguir o seu curso, colocando-se à margem de discussões

de carácter puramente filosófico ou epistemológico. E bastará folhear as dezenas e

dezenas de revistas especializadas nos mais variados campos da Educação, as

enciclopédias temáticas, as revisões periódicas do estado da investigação, para nos

apercebermos que as Ciências da Educação têm produzido um corpo que começa a ter

consistência de saberes, por sistematizados e metodologicamente orientados e

submetidos a critérios de validade internos e externos, critérios esses decorrentes dos

paradigmas utilizados na sua construção. Ora, essa constituição só foi possível porque a

investigação encontrou o seu principal suporte institucional nas universidades, centros

educativos por definição e natureza, universidades que, no entanto, têm manifestado

alguma relutância a abrir-se a áreas e a saberes que originam partilha de financiamentos

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e de poderes e que poderão vir a pôr em causa - directa ou indirectamente - algumas das

suas práticas, de que o episódio com que abrimos esta lição constitui alegoria evidente,

A segunda questão diz respeito à dificuldade de distinguir, no campo educativo, os

saberes científicos da sua imediata aplicabilidade, isto é, distinguir o que é da ordem da

ciência e o que é da ordem de uma praxeologia maximalizadora da acção.

A terceira questão, por sua vez, leva-nos a considerar que a inteligibilidade, conferido à

realidade educativa pela explicação e compreensão científicas, carece de ser

reinterpretada e ressituada à luz de uma reflexão filosófica, uma vez que toda a acção

educativa é orientada por fins e valores que pressupõem toda uma mundividência. Assim,

importa dar força a uma Filosofia de Educação, em que a reflexão ética e axiológica

ocupem um lugar central na construção de uma teoria metacientífica da Educação.

Uma palavra, ainda, a situar com mais precisão o tema desta fala: qual o tempo, qual o

lugar das Ciências da Educação em Portugal?

Primeiramente, penso que urge denunciar o uso e abuso que, delas, tantos têm feito.

Políticos, pais, professores, consideram-nas, simultaneamente, panaceia e causa de todos

os males de que enferma a Educação e, por consequência, a Sociedade. A confusão que

existe, em certos meios, entre Ensino, Educação, Ciências da Educação, Reflexão

Educativa, Investigação Educacional é tão evidente, que talvez não valha a pena determo-

nos na sua explicitação e consequente refutação. De qualquer modo, estamos perante

um fenómeno espantoso, que nós, os introdutores das Ciências da Educação em Portugal,

nunca supusemos possível, nos seus primórdios, ou seja, nos já longínquos anos de

setenta.

O fenómeno poderá, no entanto, ter várias explicações, a desorganização do sistema

educativo, operada a partir de 1974, a sobrepor-se a todas as outras - sistema

anquilosado, esse nosso, sem possibilidades de reconversão. Daí, as mudanças, as

reformas que surgiram nos dez, nos quinze anos que se seguiram. E foi nesse contexto

que apareceram as Ciências da Educação, trazidas pela mão dos que tinham obtido graus

e experiência, em países europeus ou norte-americanos. A sua acção passou a exercer-

se a níveis diversificados, com incidência no ensino universitário e, logo a seguir, no

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politécnica. Esse foi o seu lugar privilegiado, em finais dos anos 70 e na década de 80,

em ruptura com o conceito de Pedagogia, publicando, tanto em revistas nacionais, como

nas de outros países. Especialistas que, neste momento, integram perto de duzentos

doutores,. nas diversas áreas das Ciências da Educação.

Mas, além das dificuldades já referidas, várias outras têm impedido uma acção profícua

das Ciências da Educação, nomeadamente as que dizem respeito a dois sectores, a saber:

o da formação de professores e o da organização e gestão do sistema educativo. No que

se refere à formação, a dificuldade maior resulta do facto de os cursos de formação

serem geridos, nas universidades, por parceiros vários, quantas vezes envolvidos em

lutas de poder pessoal e de supremacia departamental. Lutas em que os pólos de

oposição se situam nos saberes ditos científicos e nos de cariz educacional (com as

práticas didácticas a oscilarem entre os dois). Ainda no campo da formação de

professores e de educadores, mas agora no âmbito dos cursos das Escolas Superiores de

Educação, convirá dizer que, se dificuldades existem, elas são de outra ordem, pois

resultam não só da carência de saberes científicos específicos, como da ausência de uma

investigação educacional minimamente institucionalizada.

Como foi dito, estrangulamentos vários têm também vindo a travar a acção das Ciências

da Educação (e dos seus especialistas), no âmbito da organização, da gestão e do

desenvolvimento do sistema educativo, áreas que, sendo do foro da decisão política, não

deveriam prescindir, no entanto, de estudos de base, que dessem elementos a uma

tomada de decisão mais esclarecida. O controlo que o Ministério da Educação tem

exercido nos últimos vinte anos é tão premente e tão asfixiante que não tem dado

margem à intervenção das Ciências da Educação, neste sector. Exemplo flagrante é, sem

dúvida, o da reforma que se disse curricular, delineado que foi por engenheiros e

operacionalizada por professores ao serviço da Direcção-Geral dos Ensinos Básico e

Secundário. O recurso a especialistas em desenvolvimento curricular ou à elaboração de

estudos científicos na matéria foi algo com que ninguém se preocupou. E esta situação

não é inédita, pois a ausência do recurso aos nossos saberes científicos continua a

verificar-se, nos tempos actuais: o sistema de educação está por avaliar, tanto na sua

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globalidade, como nos segmentos que o constituem; as alterações e as microrreformas

em curso continuam a ser implantadas sem estudos credíveis, que as justifiquem. A

qualidade e a prospecção - valores maiores e determinantes em Educação - reduzem-se a

palavras do discurso oficial ou, na melhor das hipóteses, circunscrevem-se aos gabinetes

afectos ao poder político e administrativo - talvez com duas ou três excepções, que não

queremos deixar de enaltecer, ou seja, os estudos em curso sobre a administração e a

gestão das escolas dos ensinos básico e secundário e alguns trabalhos de índole

científica, organizados ou patrocinados pelo antigo GEP e pelo Instituto de Inovação

Educacional. O que é pouco, muito pouco, temos de convir.

Como sair deste círculo em que nos fecharam e, por que não dizê-lo, em que deixámos

que nos fechassem? Como fazer para dar visibilidade à investigação que se

desenvolveu nos últimos quinze anos e que continua grandemente confinada aos fóruns

universitários, sem possibilidade de influenciar, directa e eficazmente, o nosso sistema

educativo? Evidentemente que muitas poderão ser as vias, mas uma está, realmente,

ao nosso alcance, universitários que somos: constituir, nas universidades que possuam

os recursos adequados, grandes institutos de Educação, em que a planificação, a

gestão, a avaliação, a educação comparada, o desenvolvimento curricular e a formação

ocupem o lugar a que têm direito, enquanto áreas de investigação e de aplicação.

Institutos que congreguem diferentes valências existentes nas várias unidades

universitárias, dotados dos meios necessários a um exercício pleno de uma autonomia

científica, pedagógica, administrativa e financeira. Institutos que se arvorem em

parceiros de outras instituições, públicas ou privadas - nacionais ou estrangeiras -, com

as quais possam dialogar, cooperar, gerir programas e projectos, realizar estudos e

prestar serviços. Institutos que, acima de tudo, possam intervir na Sociedade, a partir

do acervo científico que as Ciências da Educação, hoje, detêm. Evidentemente que a

constituição destes institutos e as actividades por eles desenvolvidas não deverão pôr

em causa a investigação e a formação científica, em curso nas diferentes unidades

orgânicas da universidade - deverão, sim, torná-las visíveis e rentabilizá-las no plano

social.

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O que nos falta para que este desiderato se possa cumprir? Talvez uma só coisa:

Vontade, ou seja... Coragem!

ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA

PROFERIDA NA SESSÃO SOLENE

DA ABERTURA DO

ANO LECTIVO DE 1998-1999,

DA UNIVERSIDADE DE LISBOA