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O TRABALHO COLABORATIVO ENTRE LICENCIANDOS E PROFESSORES:ELABORAÇÃO DE NOVAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DIANTE DO CURRÍCULOPAULISTA
Vânia Galindo Massabni
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (ESALQ) – USP
Eixo 02: Formação continuada e desenvolvimento profissional de Professores daEducação Básica
Financiamento: FAPESP
Introdução
É consensual, na pesquisa sobre formação docente, que formar bons professores é
um processo longo e complexo para o qual é necessário considerar o desenho e a
implementação de sistemas de formação inicial e o desenvolvimento profissional docente,
que valorize a reflexão e a identidade profissional (ZEICHNER, 1993; IMBERNÓN, 1994;
VAILLANT, 2009; FLORES, 2010), entre outros aspectos.
Conforme Flores (2010) a pesquisa sobre professores em formação tem indicado
que os estudantes se ressentem de uma formação que alie teoria e prática e, em
especial, advogam uma abordagem mais prática e um contato gradual com a escola
durante seus cursos. Embora possa se destacar, entre os futuros professores, um
discurso que valoriza o aspecto procedimental referente ao “como-fazer” em sala de aula,
ou até uma lista de receitas para ensinar, prevalece a complexidade das situações
educativas que restringem a efetividade de abordagens essencialmente práticas como
pressuposto da formação. De modo semelhante, professores em exercício não hesitam
em desvalorizar seus cursos de formação por serem excessivamente teóricos, sugerindo
que a profissão se aprende na “prática” (PIMENTA e LIMA, 2004).
Dimensionar o papel da teoria e a relação teoria-prática está entre os diversos
desafios a serem enfrentados pelos formadores de professores, até porque a formação
em contexto, com a vivência nas escolas, integra o futuro professor na comunidade de
professores, uma das fontes de aquisição de saberes docentes (TARDIF, 2002).
Diniz Pereira, em 1999, questionava o aparente consenso, também, em torno de um
currículo baseado no modelo de racionalidade técnica, os quais não tem sido capazes de
responder às necessidades da prática profissional dos professores. Segundo o autor
(DINIZ PEREIRA, 1999), as principais críticas atribuídas a esse modelo são a separação
entre teoria e prática, a priorização da teoria (sem o respectivo respaldo teórico para
interpretar e planejar as situações da prática, poder- se- ia completar), a ideia de que a
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prática é aplicação da teoria. Some-se, ainda a primazia do conhecimento específico da
área de formação, seja na Biologia, na Física ou no conhecimento da área de Letras, que
configuram uma disputa de territórios entre Bacharelado e Licenciatura, com valorização
destes conhecimentos como aparentemente suficientes para a formação de um (bom)
professor.
É preocupação presente, possivelmente, entre grande parte dos formadores de
professores, tornar a “imersão” do licenciando na escola um momento formativo com
vistas a análise, problematização e criação de novas práticas escolares, que se traduzam
em atendimento às necessidades dos educandos, com suporte teórico a respaldá- las.
Esta imersão tem como momento curricular privilegiado os estágios dos cursos de
Licenciatura. As dificuldades dos estágios vão desde a revisão de sua concepção, como
momento de aplicação da teoria aprendida no curso (PIMENTA e LIMA, 2004) à
dificuldade em propiciar aprendizagem da docência, que seja reflexiva, propositiva e
transformadora, a partir do modelo “clássico” de observação, participação e regência.
Imbernón (1994) sugere um papel mais ativo do professor no desenho e
reformulação de estratégias e programas de intervenção educativa, que oriente a
formação de professores no sentido de torna-los capazes de avaliar, individual e
coletivamente, a inovação, de possuírem destrezas básicas para desenvolver estratégias
de ensino, planejamento curricular, diagnóstico de necessidades e de avaliação e de
adaptar as tarefas de ensino na tentativa de atender a diversidade do alunado e do
contexto social. O autor questiona a possibilidade da formação inicial e continuada em
fundamentar este papel entre os professores, quando calcada na racionalidade técnica.
Nesta perspectiva, a separação da concepção da execução justifica atribuir aos
especialistas a capacidade de elaboração e, ao prático a exigência da aplicação de
formas de agir e soluções pensadas por outros para o seu próprio trabalho (PÉREZ
GÓMEZ, 1992). A nosso ver, todas estas prerrogativas de formação podem ser
desenvolvidas pelos professores em exercício, embora as condições objetivas de
trabalho possam comprometer as propostas de autonomia e renovação das práticas.
Assim, o presente estudo prioriza a vivência dos professores em um processo de
avaliação, individual e coletiva, da inovação proposta pela reforma curricular do estado de
São Paulo. Alinha-se a orientações que enfatizam a reflexão sobre a prática na formação
docente (ZEICHNER, 1993; MIZUKAMI et. al. 2002).
Os professores em exercício, cada vez mais, têm vivido a docência com a
intensificação da rotina deste trabalho (APPLE, 1995), em que diminuem- se as
oportunidades de reflexão, pois não há tempo nem lugar delimitado para que esta ocorra,
ainda mais quando se propõe que seja fundamentada teoricamente e discutida de forma
coletiva. Estas poderiam ser apoiadas por um processo de formação continuada. Porém,
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Wilson e Berne (1999) indicam que esta está pautada em cursos e outas atividades
pontuais, descontextualizadas e idealizadas e, provavelmente, carentes de sentido e
efetividade para os docentes. São propostas na forma de seminários, workshops ou
oficinas, pouco impactando a atividade profissional dos professores em sala de aula e
sem modificar modos de pensar e agir dos professores.
Pesquisas como as de Tam (2015) indicam que a formação no local de trabalho,
com formação de comunidades de aprendizagem, apresenta resultados promissores,
ainda mais quando fruto da parceria com um docente “mediador” do processo.
Os professores parecem estar enfrentando mudanças em sua profissão, entre elas
a maior regulação de seu trabalho nas proposições de reformas educativas que se
alinham às políticas de prestação de contas. Nestas políticas, os papéis e
responsabilidades dos professores definem-se menos em função de suas capacidades
para desenhar o currículo do que pelas suas competências para implementar o currículo
‘estandarizado’ e ensinar os alunos segundo as maneiras mais eficientes de aquisição da
informação (HOLLY, 2000), as quais se apoiam no uso crescente de testes que buscam
certificar sua competência enquanto profissional. A autora entende que, embora hajam
muitos aspectos da perspectiva técnica úteis ao desenvolvimento profissional (eficiência,
gestão, técnicas de apresentação, por exemplo), o predomínio de materiais e
procedimentos padronizados pode contribuir para o enfraquecimento do desenvolvimento
profissional dos professores e da sua mentalidade, pois vai perdendo sua capacidade
própria de atuar e tomar decisões, podendo tornar-se mais dependentes dos outros. No
entender do presente estudo, embora tais políticas tendam à padronização (de testes e
materiais didáticos, por exemplo), a diversidade sociocultural e a cultura particular de
cada escola desafia os professores a desenvolverem uma prática situada e ajustada às
necessidades encontradas.
Gimeno Sacristán e Pérez Gómez (2000) entendem o planejamento curricular
como competência dos docentes, o que não os impede de utilizar materiais produzidos
por outros para os seus próprios projetos. Assim, devem ter competência profissional e
autonomia para serem criadores de planos e não aplicadores, opção em que se
limitariam a produzir a ordem ou plano estabelecido ao qual apenas se acomodam, sem
discuti-lo, problematiza-lo e ressignificá- lo à luz de sua própria prática e dos valores e
conhecimentos profissionais que a sustentam. A docência caracteriza-se como uma
atividade profissional pouco autônoma quando há pouca dedicação a previsão e a
reflexão sobre as atividades a serem desenvolvidas. Os autores também relatam um
“intervencionismo pedagógico” na Espanha, uma vez que a política curricular tem a
tradição de oferecer orientações metodológicas aos professores, fabricantes de materiais
didáticos e critérios de avaliação da aprendizagem, fruto de um processo histórico em
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que o controle ideológico e burocrático do Estado é a premissa de ação, assim como a
pretensão de inovar a partir de documentos oficiais.
A pesquisa aqui relatada pressupõe a urgência de que os professores
compreendam os propósitos e fundamentos teóricos das inovações, incluindo a reforma
curricular apresentada (SÃO PAULO, 2010), para que se apropriem de um saber crítico
que os tornem participativos e comprometidos com a melhoria do ensino. O grande
desafio ao professor é tomar as decisões, pois os condicionamentos e controles externos
existem, mas não evitam a responsabilidade individual de cada docente em transformar o
currículo em experiência de aprendizagem significativa para os alunos.
Contexto e caracterização da pesquisa
O presente texto relata os resultados de um projeto de pesquisa sobre o impacto do
currículo paulista, proposto em 2008, na prática dos professores. Como recorte desta
pesquisa qualitativa mais ampla, realizada entre 2010 e 2014, abordaremos o processo
de formação desenvolvido em um grupo de estudos com professores em uma escola,
seus desafios cotidianos, aprendizagens identificadas, ressignificação da criação e
autonomia didática e possibilidade de articulação com os estágios dos alunos de
Licenciatura em Ciências Biológicas e Ciências Agrárias, que atende aos estudantes de
Engenharia Agronômica e Florestal da universidade sede do projeto.
O propósito foi, em princípio, desenvolver pesquisa conjunta entre professor da
escola e da universidade, opção de pesquisa coerente a ideia de se pesquisar com
professores e não sobre os professores, como valorizado por estudos educacionais
Estudos com esta ótica partem do princípio de valorização dos saberes dos professores e
da oportunidade de desenvolvimento profissional no local de trabalho.
A reflexão sobre as mudanças trazidas ao cotidiano docente foi viabilizada no
decorrer do processo analítico dos Cadernos do currículo, propostos para serem
utilizados pelos professores em sala de aula.
Formou-se, em uma escola, um grupo de estudos com 5 professoras de disciplinas
diferentes. Este participou, durante dois anos, da análise dos Cadernos (6º ao 9º ano)
para uso em sala de aula, os quais compõem o referido currículo. Foi desenvolvido em
colaboração com professores de uma escola pública estadual localizada em Piracicaba –
S. P., município com cerca de 350 mil habitantes situado a 160 Km de São Paulo, capital
do Estado de São Paulo. Todas as reuniões foram gravadas e transcritas, além de
registradas com eventuais anotações pessoais, para posterior análise. As análises dos
registros priorizaram a identificação dos momentos em que as falas revelavam “insigths”
do grupo ou de uma das participantes, bem como as implicações teoria-prática
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percebidas. Não foram feitas categorizações com vistas a apreciar o desenvolvimento
integral do grupo ao longo dos dois anos.
O grupo de estudos contou a seguinte formação: duas professoras experientes e
três novatas (uma delas coordenadora pedagógica da escola), pois tinham entre um e
cinco anos de profissão, de diferentes disciplinas: Matemática, Ciências, Língua
Portuguesa, Geografia e História. Consequentemente, a identidade e os laços com a
escola ainda estavam sendo criados pelas professoras mais recentes.
Alunas de Licenciatura, afinadas com a proposta de pesquisa, participaram das
reuniões, eventualmente. Todos os alunos de Licenciatura, organizados em grupos, foram
convidados a desenvolverem propostas pedagógicas interdisciplinares com as cinco
professoras envolvidas, como proposta de estágio.
O objetivo do estudo conduzido com o grupo é incentivar reflexões sobre o novo
currículo através da discussão de como são compreendidas as atividades propostas nos
Cadernos.
No momento em que o governo paulista implementou a reforma curricular, em 2008,
houve dificuldade em acomodar os estágios de licenciandos nas escolas. A justificativa, à
época, era de que a nova proposta pedagógica determinava com maior rigor o
andamento e práticas desenvolvidas na sala de aula, com modificações na prática
docente a que o professor deveria atender. Assim, as propostas de estágios dos alunos,
desenvolvidas na universidade em questão de forma a valorizar a criação e autonomia,
não cumpririam a sequencia e modelo de aulas proposto na reforma e presente no
material didático a ela vinculado, chamados Cadernos.
As determinações legais parecem ser instrumentos relevantes na tentativa de
modificação da prática docente e o Estado tem primado por atingir suas metas por meio
de determinações que se revelam propositivas para a prática e seu planejamento, com
menor margem de ação e criação do professor. Este aspecto foi percebido pelas
professoras mais experientes do grupo, que mostravam grande resistência à forma como
a reforma foi apresentada: por “pacote”, pois implementada de “cima para baixo”, sem
considerar a prática que já vinha sendo consolidada por elas. As professoras novatas, por
sua vez, buscavam compreender a mudança proposta, que reivindicava maior
participação do aluno na construção do conhecimento em um trabalho interdisciplinar,
sem aparentarem terem uma prática neste sentido. Por sua vez, as professoras
experientes indicaram, em reuniões, desenvolver práticas participativas, pautadas na
criticidade e com liberdade para avaliar possibilidades pedagógicas, embora
mantivessem a centralidade no papel do professor enquanto os Cadernos favorecem
uma prática centrada no aluno. A inflexibilidade da prática educacional proposta foi sendo
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abrandada com o decorrer da pesquisa, a ponto das professoras experientes aceitarem
com maior facilidade a proposta.
A forma de conceber o papel do aluno pode ser inferida pelas professoras, nas
reuniões, ao se discutirem as atividades dos Cadernos das quatro disciplinas. Estas
solicitavam que o estudante tome a iniciativa para propor uma ideia, analise uma
situação, busque informações em livros, discuta com colegas e escreva suas próprias
ideias. Neste sentido, inferiu-se que o aluno, na ideia de quem concebeu os Cadernos,
deva ser ativo em seu processo de aprendizagem, aspecto percebido mas cuja validade
pedagógica não estava clara enquanto potencial de aprender.
As discussões com os alunos de Licenciatura ocorreram na escola, com a presença
dos professores, e na universidade, como forma de fundamentar e apoiar a elaboração
do estudante. Como parâmetro, discutiu-se com os licenciandos a forma de ensino
centrada no aluno dos Cadernos e a interdisciplinaridade como um dos princípios do
currículo, indicando que se pode trabalhar estes princípios com autonomia, sem a
necessidade de “copiar” ou “seguir”, sem ajustes, a prática apresentada nos Cadernos.
Princípios de uma escola inclusiva, de práticas mais democráticas e menos
autoritárias, o cotidiano da escola e sua rotinização, foram temas que emergiram das
reflexões do grupo de professoras. A cada reunião, era solicitado que as professoras
respondessem perguntas relacionando as reflexões ao seu trabalho com os Cadernos. A
ideia do grupo foi pensar, a partir dos subsídios de leituras, reflexões e análises do
material didático, não apenas as qualidades e deméritos do currículo proposto, mas na
capacidade de cada docente desenvolver a si mesmo e a práticas educativas, que podem
se nutrir da avaliação da proposta.
Com a continuidade das reuniões, as professoras do grupo passaram,
espontaneamente, a fazer relação das leituras com o Currículo/ Cadernos, aspecto
ausente nas reuniões iniciais. Após a leitura de um dos trechos do texto de Dias- da-
Silva (1997), uma das professoras constata - e indaga - se a passagem não indica que
‘somos tratados como técnicos, porque cabe a gente apenas aplicar, corretamente, os
Cadernos’. Assim, foi discutida a perspectiva do professor como técnico e a idéia da
racionalidade técnica.
Nas discussões, todas as professoras do grupo se envolveram, mas o envolvimento
foi diferente, pois as experientes mostraram conhecer textos pedagógicos e
apresentaram suas opiniões e saberes, orientando espontaneamente as licenciandas.
Em especial, traziam uma visão longitudinal das passagens da carreira e de outros
projetos curriculares. As três iniciantes, incluindo-se a coordenadora, se voltavam para os
aspectos do ensino e aprendizagem em sala de aula e das dificuldades na relação
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professor- alunos. A percepção de dificuldades comuns e “dicas” de formas de agir
tornaram-se um ponto de integração entre as professoras da escola.
Análise dos Cadernos pelas professoras e reflexões sobre o currículo
As participantes anotavam em uma Ficha de Análise o que cada Situação de
Aprendizagem dos Cadernos propunha para o aluno fazer, a identificação do assunto e a
indicação se ele é usual na 5ª série. Solicitava-se observar a sequência adotada pelos
Cadernos, sendo registrado se a forma de abordagem do assunto era familiar à
professora, a inferência ao grau de dificuldade para os alunos e a indicação, pelo
material, da necessidade de explicação do professor, entre outras questões.
A docente de matemática expôs o que observava nos Cadernos de Matemática e,
pela discussão, notou que eram os que traziam de forma evidente uma organização
atípica da forma de trabalho com conteúdos escolares, em relação a tradicional
organização do livro didático. Por exemplo, dá uma sequência numérica acompanhada
de bolinhas correspondentes e pede ao aluno (7ª série/8 ano) para construir a fórmula
que rege a sequência numérica.
Segundo as professoras, há maneiras mais fáceis de resolver, sem “jogar” para o
aluno, que não teria base para responder da forma como proposto na atividade dos
Cadernos. Indagadas sobre como fazem com exercícios observados em um dos
Cadernos em que a proposta é que o aluno “crie a fórmula”, a partir dos dados, as
professoras relataram que os estudantes dificilmente conseguem fazer sem uma grande
ajuda delas, ou seja, quando explicam como se resolve, oferecendo um modelo de
solução, em uma “aula expositiva” com apoio no livro didático. Neste sentido, a base
intelectual da proposta é ferida, pois parte do pressuposto do aluno deduzir, em um modo
de interpretação pedagógica do construtivismo (MASSABNI, 2011). Tradicionalmente, no
tratamento dos conteúdos matemáticos, costuma-se apresentar um exercício modelo
e/ou fórmula para depois seguirem-se suas aplicações em diversos exercícios, que o
aluno é chamado a fazer.
Construir uma fórmula a partir dos dados exige raciocínio lógico, análise e reflexão
dos dados propostos, que consistem em um desafio cognitivo maior do que o aluno está
habituado ou tem prontidão segundo as professoras do grupo.
Em História, a sequenciação dos temas segue aquela já desenvolvida pela
professora, sendo que a forma, não o conteúdo em si, é algo diferenciado do comumente
trabalhados pelos professores da área, conforme a representante do grupo. A prática de ir
indagando os alunos e pedir exemplos do cotidiano já era utilizada pela docente,
conforme ocorre no tratamento do tema Contagem do Tempo dos Cadernos. Deste modo,
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até por ser professora experiente, a vigência dos Cadernos do currículo pouco impactou
sua prática. Por outro lado, representou desconforto por ser mais um ‘pacote’ do governo,
segundo dito, o que representava mais uma iniciativa de mudar o ensino através de
propostas prontas e pouco flexíveis em sua formulação e implementação.
Em Língua Portuguesa, os Cadernos apresentam textos de diferente natureza. A
professora afirmou que sentia a necessidade de substituir textos percebidos como
complexos ou irrelevantes para os alunos quando usados em aula. A professora também
pareceu confortável com o seqüenciamento e a metodologia propostos, mas indicou estar
se sentindo pouco valorizada com uma prática apresentada pronta a ela.
A maior critica aos Cadernos centrou-se na ausência de referência ao professor
durante as atividades propostas, aparentando que seu papel de mediador centrava-se
apenas em passar as tarefas, não em ensinar.
A abordagem do currículo nos estágio de Licenciatura
Foi sugerido aos alunos licenciandos que iriam realizar os estágios durante os dois
anos do projeto, como forma de exercitar a possibilidade de atender a proposta temática
de um currículo tal como o proposto, o atendimento dos conteúdos previstos nos
Cadernos ou aos temas que as professoras sugeriram que as possibilitariam ter apoio
para trabalhar com os Cadernos em sala de aula. A contextualização dos temas e
interdisciplinaridade eram a tônica, até porque os licenciandos de Ciências Biológicas
tiveram que trabalhar com as professoras de História, Língua Portuguesa, Geografia e
Matematica, além de Ciências que, embora atenda a formação da área, requer uma
abordagem interdisciplinar, em temas como meio ambiente e alimentação. Estes dois
temas foram escolhidos para o trabalho. Este formato dos estágios, aliado à observação
analítica da sala de aula para proposição das ações, facilitou a construção de uma prática
propositiva, em alternativa ao modelo de aplicação pouco recomendado (PIMENTA e
LIMA, 2004). Todos os alunos registraram suas impressões sobre o estágio em Diários
Reflexivos, apresentados junto com relatórios de disciplina, os quais foram lidos.
Exemplos de aulas desenvolvidas no âmbito do projeto:
1. Matemática e meio ambiente – equações de primeiro grau e sua aplicabilidade
Conforme relato das professoras, há dificuldade dos alunos em entenderem que a
equação traduz uma igualdade. Foram apresentados aos alunos cartões grandes, com
números e o “X” da equação. Em uma espécie de jogo, os alunos eram convidados a
indicarem quem era o X e como se chegava a ele, discutindo-se as respostas dadas,
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sendo, após, virado o cartão. Depois, demonstrou-se a aplicabilidade da equação de
primeiro grau na previsão de alagamentos da margem de um rio.
Matemática/Ciências – soma e subtração e educação para o consumo
Conforme relato das professoras, há dificuldade dos alunos em entenderem soma e
subtração mesmo na quinta série. Foi planejada uma aula com uma feirinha, com
embalagens de alimentos e produtos higiênicos, com preços, para compra (fictícia) pelos
alunos. Ao final, foi corrigida a soma de cada um, discutido descontos, consumo
responsável e alimentos saudáveis, pois estes não tiveram a preferência dos alunos na
compra.
2. Ciências/História – antígeno e anticorpo e sua relação com a falta de
imunidade dos indígenas na colonização
Conforme relato da professora envolvida, havia dificuldade dos alunos em
entenderem como muitos índios foram dizimados por doenças na época da colonização
do Brasil. Após recordarem o tema, desenvolveu-se a dinâmica da “chave e fechadura”,
com peças em EVA imitando a chave- antígeno e fechadura – anticorpo de modo similar
a atuação do sistema imunológico humano. Os alunos seguravam os antígenos que
índios supostamente teriam e só um deles, que tinham o anticorpo que se encaixava
perfeitamente, era o que conseguiria sobreviver,
3. Ciências (Meio Ambiente) e Língua Portuguesa
Foi proposto um trabalho com o rio local, que faz parte da cidade em que se localiza
a escola. Inicialmente, os licenciandos apresentaram a lenda do rio, lembrando sua
importância ao longo do tempo e trabalhou-se o sentido das lendas, além de solicitarem o
resgate desta importância com consulta aos avós e pais. A esta aula seguiram-se outras,
com mapas, exposição oral, leitura coletiva de um gibi sobre problemas ambientais com a
Turma da Mônica. Assim, trabalharam- se diversas linguagens (a interpretação de mapas,
com a localização do rio e da casa do aluno; a elaboração de redação; a história oral; os
quadrinhos) e, ao final do processo, a professora da turma pode contextualizar as formas
de expressão que intencionava trabalhar conforme solicitado nos Cadernos.
Considerações finais
De forma geral, o projeto promoveu a reflexão sobre o currículo proposto e apoiou
uma interpretação, com autonomia dos sujeitos envolvidos, do currículo. O grupo de
professores tornou-se um elo de apoio entre as professoras participantes, em especial
para as iniciantes. Tornou-se um espaço importante de coesão na escola, pois
professores experientes e novatos praticamente não tinham espaço para troca de ideias
e saberes, consolidado oportunidade de construção e desenvolvimento profissional. A
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participação do grupo de professoras na discussão dos trabalhos de Licenciatura e o
apoio aos alunos durante as aulas desenvolvidas, foi sendo compreendido como
fundamental para que o licenciando integrar-se ao universo profissional, com confiança
na proposição de inovações no trabalho educativo. O grupo de professores se desfez
após este estudo, tanto pela dificuldade em manter um horário extra para estas reuniões
quanto pela rotatividade docente entre escolas.
Os princípios do currículo proposto foram melhor compreendidos e questionados
prós e contras da interdisciplinaridade e protagonismo do aluno, pois, da forma como
apresentados, deixavam os alunos sem parâmetros de ação, além do que, segundo as
professoras, o tratamento interdisciplinar foi valorizado mas, conforme perceberam, torna
superficial a abordagem de determinados assuntos.
Quanto a visão do Currículo proposto, de uma critica superficial sobre a imposição
de um currículo pronto pelo governo possibilitou-se um reflexão sobre a prática e um
aprofundamento teórico para a compreensão de sua proposta pedagógica, que não foi
suficientemente apresentada nem explicada aos professores, que se identificaram em
um processo de racionalidade técnica, com desvalorização de seu papel no desenho
curricular e novas possibilidades de ação. De todo modo, as possibilidade abertas para a
construção/reconstrução local do currículo não afetaram a necessidade da escola em
cumprir os Cadernos. Também não parece afetar a visão governo do professor como
técnico, minando a confiança no próprio trabalho e o ânimo deles em propor mudanças.
Notou-se uma perspectiva interdisciplinar e de valorização do protagonismo do
aluno nos Cadernos, a qual foi proposta como critério para a elaboração de aulas nos
estágios de licenciandos recebidos por estas professoras. Além da resistência inicial ao
currículo, observou-se isolamento entre as professoras que, com a criação de um
ambiente de reflexão que conjugou leitura e discussão de textos e análise dos Cadernos,
cedeu espaço para uma rica troca de saberes e novas práticas.
O respeito aos saberes das professoras e a possibilidade de fazer de seu trabalho
objeto de pesquisa na linha do questionamento da prática discutido aqui a partir de
Imbérnon (1994) foi fator preponderante para elas percebessem o grupo como
oportunidade de desenvolvimento profissional. Este desenvolvimento foi notado quando
elas procuravam embasar pedagogicamente uma ideia ou questioná-la, quando
inicialmente ficavam na defensiva de sua prática ou na crítica ao currículo pautada
apenas em indignações e reclamações sobre a realidade. Outra evidencia esteve
presente quando afirmavam que nunca haviam pensado na necessidade de mudar ou
aprimorar tal aspecto da prática e passaram a ter a iniciativa de mudar a prática ou
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colocar uma ideia nova após alguma reflexão. Relevante na opção pelo novo foi a
observação do trabalho dos licenciandos, quando a atividades era bem sucedida.
Aliar a formação continuada em serviço e a formação inicial apresenta-se uma
possibilidade aprimoramento conjunto, com vistas não só a prática cotidiana, mas à
reflexão sobre o componente político da docência.
Recomenda-se investir nos professores e nos espaços conjuntos de formação na
escola e para a escola, aliando licenciandos, professores novatos e experientes, a fim de
que currículos e metodologias sejam pensadas em conjunto, apropriadas aos contextos
específicos e reconstruídos na própria escola. A colaboração e a participação na
pesquisa com a universidade foi fundamental para resgatar a autoestima das
professoras, abalada em um primeiro momento, com vistas ao apoio à autonomia
docente, fundamentando uma forma colaborativa avaliar – e por que não? - conceber
propostas pedagógicas no interior das escolas.
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