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O TRABALHO COM CHARGES NA SALA DE AULA Carla Letuza Moreira e Silva 1 “Democracia? É dar, a todos, o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um.” (Mário Quintana) RESUMO O presente trabalho é o resultado de pesquisa realizada durante o curso de especialização em Leitura e Produção Textual em Língua e Literatura, do Centro Universitário Ritter dos Reis e consiste em uma tentativa de, a partir de teorias apresentadas durante os estudos e outras leituras, contribuir para o debate em torno do uso do texto no ensino de Língua Portuguesa. Tendo como corpus a charge, um instrumento que utiliza o verbal e o não-verbal na aquisição de sentidos, o objetivo será o de analisá-la como pertencente a categoria “texto”, traçando seu perfil e a viabilidade de seu uso no processo de leitura e produção textual em sala de aula. Palavras-chave: texto, leitura, escrita, não-verbal, efeitos de sentido, história, memória INTRODUÇÃO Este estudo parte da experiência que consistiu na aplicação de leituras de charges em sala de aula entre os alunos da segunda série, do ensino médio, em uma escola da rede provada de Porto Alegre. Surge, então, a necessidade de compreender o porquê das charges suscitarem nestes leitores algo mais do que mero efeito informativo ou efeito humorístico. Considerando o momento atual, marcado pela diversidade de leituras, muitas vezes, em um mesmo ambiente como na Internet, a charge é um instrumento que utiliza a imagem para chamar a atenção do leitor e também não deixa de utilizar a linguagem com propósitos específicos e definidos pelo seu criador, deixando de ser neutra. Vemos isso na imprensa escrita e na televisiva, em que o foco está voltado ao que acontece na política e na economia, principalmente. Fica, então, a pergunta: quais as características primordiais das charges e como ela produz seus efeitos de sentido? Este trabalho foi dividido em quatro etapas. A primeira serviu para a constatação e reflexão sobre a visão que docentes e discentes possam ter das aulas de Língua Portuguesa (daqui em diante LP) e o que está sendo ensinado nas universidades e na sala de aula para fazer com que realmente haja uma sensibilização quanto a importância de trabalhar a linguagem em suas diferentes manifestações focalizando o trabalho com o não-verbal de forma mais profunda. Ainda neste capítulo, dar-se-á ênfase a uma identificação de diferentes tipologias textuais e seus recursos, tentando identificar a charge como pertencente a um universo leitor que constrói sentidos mediante determinada temporalidade, inserido em um processo histórico, que aciona a memória e como um material qualificado pela não neutralidade. A partir do segundo capítulo, o leitor poderá verificar a importância do trabalho com charges na sala de aula. Será feita uma abordagem sobre as diferentes constatações do que vem a ser “texto”, bem como a análise de charges no processo de aquisição de sentidos. O enfoque do trabalho textual 1 Mestranda do curso de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, na área de concentração em Teorias do Texto e do Discurso e especialista em Leitura e Produção de Textos em Língua e Literatura, pelo Centro Universitário Ritter dos Reis, Porto Alegre, RS. E-mail: [email protected].

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O TRABALHO COM CHARGES NA SALA DE AULA

Carla Letuza Moreira e Silva1

“Democracia?

É dar, a todos, o mesmo ponto

de partida. Quanto ao ponto

de chegada, isso depende de cada um.”

(Mário Quintana)

RESUMO

O presente trabalho é o resultado de pesquisa realizada durante o curso de especialização em Leitura e Produção Textual em Língua e Literatura, do Centro Universitário Ritter dos Reis e consiste em uma tentativa de, a partir de teorias apresentadas durante os estudos e outras leituras, contribuir para o debate em torno do uso do texto no ensino de Língua Portuguesa. Tendo como corpus a charge, um instrumento que utiliza o verbal e o não-verbal na aquisição de sentidos, o objetivo será o de analisá-la como pertencente a categoria “texto”, traçando seu perfil e a viabilidade de seu uso no processo de leitura e produção textual em sala de aula.

Palavras-chave: texto, leitura, escrita, não-verbal, efeitos de sentido, história, memória

INTRODUÇÃO

Este estudo parte da experiência que consistiu na aplicação de leituras de charges em sala de aula entre os alunos da segunda série, do ensino médio, em uma escola da rede provada de Porto Alegre. Surge, então, a necessidade de compreender o porquê das charges suscitarem nestes leitores algo mais do que mero efeito informativo ou efeito humorístico. Considerando o momento atual, marcado pela diversidade de leituras, muitas vezes, em um mesmo ambiente como na Internet, a charge é um instrumento que utiliza a imagem para chamar a atenção do leitor e também não deixa de utilizar a linguagem com propósitos específicos e definidos pelo seu criador, deixando de ser neutra. Vemos isso na imprensa escrita e na televisiva, em que o foco está voltado ao que acontece na política e na economia, principalmente. Fica, então, a pergunta: quais as características primordiais das charges e como ela produz seus efeitos de sentido?

Este trabalho foi dividido em quatro etapas. A primeira serviu para a constatação e reflexão sobre a visão que docentes e discentes possam ter das aulas de Língua Portuguesa (daqui em diante LP) e o que está sendo ensinado nas universidades e na sala de aula para fazer com que realmente haja uma sensibilização quanto a importância de trabalhar a linguagem em suas diferentes manifestações focalizando o trabalho com o não-verbal de forma mais profunda. Ainda neste capítulo, dar-se-á ênfase a uma identificação de diferentes tipologias textuais e seus recursos, tentando identificar a charge como pertencente a um universo leitor que constrói sentidos mediante determinada temporalidade, inserido em um processo histórico, que aciona a memória e como um material qualificado pela não neutralidade.

A partir do segundo capítulo, o leitor poderá verificar a importância do trabalho com charges na sala de aula. Será feita uma abordagem sobre as diferentes constatações do que vem a ser “texto”, bem como a análise de charges no processo de aquisição de sentidos. O enfoque do trabalho textual

1 Mestranda do curso de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, na área de concentração em Teorias do Texto e do Discurso e especialista em

Leitura e Produção de Textos em Língua e Literatura, pelo Centro Universitário Ritter dos Reis, Porto Alegre, RS. E-mail: [email protected].

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em sala de aula, algumas vezes, deixa a desejar, pois além de ser trabalhado de forma superficial, está em desacordo com o que se poderia despertar a mais no aluno. Portanto, nesta etapa será feita a sugestão de uma sondagem antecipada de cada turma com as quais o professor trabalhará no decorrer de todo ano. Parte-se do pressuposto de que os textos trabalhados em sala devem ser adequados a cada faixa etária e aos interesses dos educandos.

O Capítulo 3 do trabalho tomará como base as respostas dos alunos na pesquisa empírica para a constatação dos principais elementos de apreensão dos sentidos nas duas charges selecionadas e consciente trabalho com a tipologia textual. A esta altura talvez fique explícita a intenção de trabalho com o texto que alia o verbal e o não-verbal – a charge - e conseqüente adequação docente aos novos tempos e às novas leituras.

Na quarta e última parte, será relatada a experiência com alunos da 2ª série, do ensino médio, que trabalhou com questões dirigidas sobre duas charges diferentes, previamente selecionadas que contém o mesmo assunto - campanha de desarmamento. Nesta fase, os resultados terão como base as respostas escritas pelos alunos, anexadas no final do trabalho, bem como a constatação feita a partir da noção de texto enquanto construção de sentidos em processo.

Por fim, supõe-se que com o novo perfil da leitura, na atualidade, fica a idéia de que o professor também precisa estar a par destas transformações. Talvez a contribuição deste trabalho possa, além de dar ao texto novo gesto de interpretação, deixar vir à tona o debate sobre o trabalho com textos não-verbais como ponto de partida e estímulo ao trabalho do professor e à leitura e escrita do aluno em sala de aula.

O ENSINO DE GRAMÁTICA NA ESCOLA

Inicio o trabalho referenciando Neves (2003)2, que escreveu (de modo muito original) o que

muitos professores pensam e esperam das aulas Língua Portuguesa: Primeiras palavras sobre o “mundo” da gramática a) Um compartimento muito reservado Podemos imaginar que, se os professores de nossas escolas de 1º e 2º graus iniciassem suas aulas de gramática verbalizando o que têm em mente fazer, eles começariam por um convite mais ou menos nestes termos: Meus queridos alunos – ou, mais democraticamente, “criançada” – vamos começar a aula de gramática, vamos entrar no mundo da gramática, como dizem nossos “modernos” livros didáticos. E, se também verbalizassem os pressupostos do que realmente vão fazer, ainda diriam: É claro que, para entrar nesse mundo, precisamos sair do mundo da leitura e da interpretação e do da redação; afinal, precisamos sair do mundo da linguagem. A partir de agora, vamo-nos encher do espírito de sacrifício, vontade de vencer na vida, e vamos encarar os abomináveis exercícios que hão de testemunhar, lá em casa, que não descuramos da gramática, como os que, relaxando costumes, andaram por aí defendendo. b) Um compartimento muito complicado E continuariam: Meus alunos, nada de gramática normativa. Já se falou o suficiente, por aí, para que ninguém se ponha a destilar as abomináveis regras de boa linguagem. Seria bom se eu pudesse simplesmente ensinar gramática normativa, porque ela lhes daria as normas que lhes permitiriam falar bem, que é o que (eu acho, mas não digo) é meu dever fazer. Mas isso, não pode! Afinal, tenho ouvido em meus Cursos de Treinamento que saber a língua não é saber gramática. E mais: que gramática não é regra de bem-dizer. E, por isso, não sei bem o que faço aqui dando aulas de gramática. Se a ensino para que vocês saibam escrever bem e corretamente, mas se não posso dar normas, por que as aulas de gramática? Mas a gramática está no Programa e está nos livros didáticos. Vamos a ela... seja como for: apesar da pouca graça que tem, e, especialmente, apesar de eu não saber muito bem o que ela é.

O que é relatado acima, mesmo que com uma pitada de ironia, revela um estado de espírito que toma conta de muitos educadores das letras: angústia generalizada, tom de desabafo, revelando certa impotência no ensino. Diante do impasse de ensinar gramática, somente texto, ou gramática através do texto alguns acabam optando pelo que é tradicional (ou mais fácil), pelo que até hoje não deixou de aparecer em salas de aula de português: exercícios meramente estruturais sem encontrar outras saídas. O que tem sido feito nas aulas de português? O que e como ensinar LP na escola? Esse assunto não se esgota por aqui. O que se pretende é dar ênfase a um ensino mais consciente dos

2 Ver NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática na escola. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 8.

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objetivos da linguagem, um ensino que passe segurança ao professor, ao aluno, às famílias, nas escolas, sem fórmulas prontas ou mágicas.

Neves (2003) realizou uma pesquisa com seis grupos de professores de LP, em São Paulo, e constatou que a maioria deles “ensinam” gramática e que o ensino de gramática no ensino fundamental e no ensino médio não apresenta novidades. Quando perguntado aos professores “para que ensinam gramática?”, 50% dizem que para ter melhor expressão, comunicação e compreensão. Cerca de 30% se referem à normatização revelando que é necessária mais correção, conhecimentos de normas e regras, conhecimento do padrão culto, sendo que 1% cumpre o programa escolar. Quanto ao “uso” da gramática, muitos revelam que ela ajuda a “falar e escrever melhor”, sempre ligada ao sucesso na vida prática. Muitos desses dados se contradizem, pois, se utilizável na vida social, pouco do que se ensina serve para alguma coisa, senão para acertar exercícios em aula. O que é ensinado por estes professores não vai além da mera classificação de palavras e funções sintáticas que servem para desenvolvimento da capacidade de síntese e análise lingüística, além do domínio de terminologia.

No entanto, a que se deve esse desalento generalizado entre os professores quanto ao ensino de LP? Para responder a questão se faz necessária uma análise da conjuntura econômica-social. Na mesma pesquisa, Neves colocou em questão a pouca ou má formação do profissional por ganharem mal, trabalharem muito e em mais de uma escola, não disponibilizarem de tempo nem para atividades culturais, além da falta de respeito do governo, da sociedade e das famílias dos alunos. Já os discentes são vistos como indisciplinados, desatentos, dispersivos, sem dedicação e não sabem valorizar a oportunidade de aprender na sala de aula; e a instituição torna-se desqualificada. Mesmo com tudo isso, alguns docentes mostram vontade de acertar, de melhorar seu desempenho, o que lhe faltam são melhores condições pessoais e institucionais.

Sobre esse assunto, Bechara (1987) discute a educação lingüística em contrapartida à educação tradicional. Ele diz que a primeira requer uma reforma do currículo tradicional, justamente por trabalhar não mais a língua, mas a linguagem, esta faculdade que requer comunicação entre as pessoas em sociedade e não uma atividade meramente classificatória. Para que isso aconteça não depende apenas dos discentes e docentes da área, mas do governo federal e estadual com recursos e da sociedade e um foco voltado realmente ao resgate do hábito de ler/refletir/escrever entre os estudantes.

Além disso, Perini (1985, p. 19) comenta que há um desacordo no ensino gramatical na escola e acima disto existe uma “incoerência” e um “autoritarismo”. Existem contradições gritantes no ensino da gramática, e há falta de uma convivência pacífica diante destas contradições:

Uma formação gramatical intelectual sadia só pode ser atingida através de um exame racional e rigoroso do fenômeno da linguagem e da estrutura da língua, nunca através de princípios desconexos e, o que é pior, ministrados dentro de um esquema de autoridade. Mas isso pressupõe a existência de uma teoria gramatical que possa dirigir o esforço de análise e compreensão do funcionamento da língua.

Sobre o autoritarismo no ensino seria o ideal encontrar uma forma em um consenso de fazer “acontecerem” trocas na sala de aula e não imposições de conteúdos e outros. A educação lingüística quer colocar o aluno a par de uma cultura integral. Não só a disciplina de português é responsável nesse processo, mas todas as outras, por isso o professor deve estimular a leitura em todas as áreas de saber, em diferentes ideologias, oferecendo subsídios para que se tenham mais assuntos a comunicar a seus semelhantes e traduzi-los com maior precisão idiomática.

Nada melhor que fazer o aluno entrar em contato com a linguagem formal, informal e literária também através dos textos verbais e não-verbais. Através da leitura o aluno entra em contato não somente com a leitura da palavra escrita, mas com o universo que circunda, com o mundo, pois não lemos apenas livros, por exemplo, mas lemos tudo que nos rodeia o tempo todo, aliás, nascemos lendo. Observamos e tiramos conclusões sobre alguém que passa por nós apressadamente na rua, reagimos ao empurrão de alguém na rua, lemos olhares, somos persuadidos por outdoors, entendemos o mundo através de múltiplas leituras.

TEXTO X GRAMÁTICA?

Há tempos professores e estudiosos do ensino de língua portuguesa vêm acompanhando o debate em torno do ensino de leitura e gramática em sala de aula. De um lado aqueles que vêem a gramática como algo que deveria ser instinto nos bancos escolares, ficando com o estudo do texto; de

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outro, aqueles que voltam-se para o ensino de gramática aplicada aos textos como única maneira de melhorar a aprendizagem e o nível de leitura dos alunos.

“Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”, mas não podemos extinguir o estudo gramatical, pois se estaria deixando para trás séculos de história e de estudos sobre a linguagem, faculdade exclusiva do ser humano. Mas se deveria, urgentemente, repensar o estudo da gramática em sala de aula de maneira que professores possam “ensiná-la” e alunos compreendê-la e utilizá-la a seu favor e não somente como instrumento imprescindível para classificação em concursos vestibulares e outros, mas também como forma de resignificar dizeres. O objeto que contém gramática em uso é justamente o texto. É através dele que encontramos os efeitos da história, o trabalho dos sentidos e a materialidade lingüística.

Se analisarmos, compreenderemos que texto e gramática são interdependentes. O texto, em muitos casos, torna-se o caminho para o estudo da linguagem. Diante disso, então, como orientar os professores e os futuros professores para um trabalho consistente nesta área? Este trabalho não pretende dar fechamento a essa reflexão, mas abrir novas possibilidades de repensar a prática do ensino de língua na escola e na universidade. Para tanto, torna-se necessário saber o que vem a ser e o que foi texto no passado; também é preciso conhecer o que e como se está trabalhando na língua portuguesa nos livros didáticos, que, em muitas escolas, é um ou o único recurso para o ensino de leitura e língua hoje.

Sobre esse impasse Soares (2002, p. 19) afirma:

O estudo das línguas de diferentes culturas deixa claro, da mesma forma, que não há línguas mais complexas ou mais simples, mais lógicas ou menos lógicas: todas elas são adequadas às necessidades e características da cultura a que servem, e igualmente válidas como instrumentos de comunicação social. Não se pode dizer que o português seja “melhor”, mais “rico”, mais “expressivo”, mais “flexível” que o inglês ... É verdade que algumas línguas são funcionalmente mais desenvolvidas que outras: o inglês, por exemplo, é, atualmente, uma língua internacional, enquanto o português não o é; por outro lado, inglês, francês, alemão e várias outras línguas têm um sistema de escrita altamente sofisticado, que permite que sejam usadas tanto para uma conversação casual quanto para a redação de artigos científicos... No entanto, umas e outras são adequadas à cultura que servem.

Portanto, ensinar somente classificação de palavras e funções sintáticas não é algo que fará diferença na escrita e na fala dos alunos, muito menos trará alguma utilidade para as questões profissionais ou pessoais no imediatismo. O que importa é um ensino consciente do que se deseja alcançar com o ensino de língua portuguesa. Para que isso ocorra, não é necessário optar ou separar gramática de texto, apenas dar novo rumo ao estudo, trabalhar com mais tato e constante observância de objetivos em um ambiente de constantes trocas entre professor e aluno na sala de aula.

Nesse ponto, chamo a atenção para o ensino universitário. A preparação dos professores de letras poderia focalizar estratégias para contato e execução do trabalho com textos de forma didática (prática) e menos sistemática, pois, a licenciatura pode trabalhar debruçada no que será desenvolvido com os alunos essencialmente: no como; uma pós-graduação, por exemplo, pode ser uma opção para ampliar este “leque de opções teóricas”, inserindo as muitas teorias da área com maior afinco. Desta forma, pode-se constatar que a prática deve ter prioridade em detrimento de alguns estudos que apenas analisar a situação da educação fora de uma sala de aula “real”.

Ainda, de acordo com a vertente funcional da linguagem, o texto precisa estar presente na sala, não somente como figurante, mas como uma forma de organização da informação, da interação lingüística e da organização semântica3.

A NOÇÃO DE TEXTO

Dentro do contexto escolar, em que a prática de leituras, sem falar na escrita, está ficando cada vez mais escassa, vale analisar o que seria considerado “texto”. Durante algum tempo os estudos lingüísticos foram restritos à análise da palavra ou da frase. Este estudo foi conhecido como estruturalista. Com a necessidade de ir além, surgiu a Lingüística Textual, um ramo da lingüística que

3 Ver NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 2003. p. 50-64.

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tem como objeto de investigação o texto. Surgiram, então, nos anos de 1960, na Europa, as gramáticas textuais, criadas para preencher algumas lacunas da gramática da frase. Para melhor situar, a gramática textual passou a trabalhar com o enunciado inserido em um contexto e não apenas com frases isoladas. Assim, passou-se a considerar que a competência textual4 do falante é essencial, pois um texto não é apenas uma seqüência de enunciados, e o falante deve ser capaz de perceber coerência (textualidade).

O conceito do que vem a ser texto, na Lingüística Textual, sofreu modificações com o tempo e sofre de acordo com cada corrente teórica. De maneira geral, pode-se dizer que o texto foi considerado “a) uma unidade lingüística (do sistema) superior à frase; b) sucessão ou combinação de frases; c) cadeia de pronominalizações ininterruptas; d) cadeia de isotopias; e) complexo de proposições semânticas”, segundo Koch, 19955.

Para que o texto deixe de ser considerado uma estrutura acabada, pois se sabe que não se trata disso, torna-se importante verificar o que é texto de um ângulo pragmático. Deste ponto de vista entende-se texto como uma seqüência de atos de fala e também como um fenômeno puramente psíquico resultante de processos mentais, como prega a corrente cognitiva.

No geral, o texto não é algo que se apresenta totalmente pronto, mas em fase de planejamento, de construção:

Poder-se-ia, assim, conceituar o texto como uma manifestação verbal constituída de elementos lingüísticos intencionalmente selecionados e ordenados em seqüência, durante a atividade verbal, de modo a permitir parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com práticas socioculturais. (KOCH apud KOCH, 1992, p. 20 ).

Portanto, o texto é a representação da língua em uso e é a partir disso que se constroem os/outros sentidos. Diferentemente de um conto, uma charge, por exemplo, constrói-se a partir de elementos verbais e não-verbais, de discursos diversos, sem deixar de (re)construir sentidos. Texto é construção de sentidos, os quais podem ser produzidos a partir de elementos verbais e não-verbais e nos mais diferentes suportes. Sendo texto um instrumento que favorece o cognitivo na construção de sentidos, podemos então chamar uma charge “texto”?

TIPOLOGIA E CARACTERÍSTICAS TEXTUAIS

Que tal o professor exceder limites e trabalhar com textos diferentes dos tradicionais (narrações, descrições, histórias, comentários)? Talvez, durante muito tempo, o texto publicitário não tenha feito parte do universo de leitura em sala de aula pela sua carga crítica, desafiadora e, muitas vezes, irônica. Gibis e revistas não possuíam contexto adequado ao “clima” da escola. No novo século, existem novas visões sobre a leitura e a escrita. Com a velocidade das informações, a leitura tomou novo perfil. Mas uma das muitas e diversas maneiras de conhecer o “mundo” continua sendo a leitura. No entanto, não basta a televisão, a revista e a Internet sem envolvimento, análise e reflexão, não basta “ver” sem “enxergar”.

O universo textual é muito vasto! Para possível identificação de alguns textos veiculados nos meios de comunicação, seja na Internet, jornal, revistas e/ou escola, e interpretá-los da melhor maneira possível, é necessário identificá-los.

Observe-se, no Quadro1, algumas reflexões gerais feitas a partir dos diferentes tipos de textos encontrados nos diferentes meios de comunicação:

4 Competência textual é a capacidade do indivíduo em verificar o que faz com que um texto seja um texto, delimitar textos e diferenciar

textos. 5 Ver KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto: construção de sentidos. Organon, Porto Alegre, v. 9, n. 23, p. 19-25, 1995.

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QUADRO I

Texto verbal

(textos que trabalham com a escrita e a oralidade)

Conto (fadas, popular, maravilhoso), lenda (sobrenatural, histórica, naturalista), fábula (apólogo, parábola, alegoria), piada,

poesia, música, publicitário, dissertação (artigo, informativo, técnico, editorial, entrevista, crônica, crítica)

Texto não-verbal

(textos que têm como base essencialmente a imagem visual)

História em quadrinhos (narrações), foto, charge, publicidade, ilustrações, pintura

Texto verbal e não-verbal

(textos que contêm a escrita e a imagem como complementares)

Charge, tira, história em quadrinhos, outdoor, publicitário

Cada texto possui características marcantes, alguns com caráter científico que sobrepõe ao figurativo; outros utilizam a ilustração como fonte de partida e ainda há aqueles que defendem um ponto de vista. Por isso, um mesmo texto pode conter linguagem verbal e não-verbal especificamente ou simultaneamente, sendo uma característica mais relevante que outra em cada situação. O Quadro 2 traz uma análise mais específica de textos e seus elementos característicos:

QUADRO II

TIPOLOGIA LINGUAGEM RECURSOS PERSONAGENS

Charge Verbal + não-verbal

Coloquial

Ironia, imagens, figuras de linguagem, humor,

intertextualidade, crítica

Humanos

Animais

Objetos

Publicitário Verbal + não-verbal

Coloquial, formal

Ironia, imagens, humor, intertextualidade, crítica, polissemia, ambigüidade,

implícitos x explícitos, pressupostos

Humanos

Animais

Objetos e/ou não revelados

Fábula Verbal

Coloquial

Ironia, imagens, figuras de linguagem, uso do fantástico,

maravilhoso e-ou ficcional

Animais humanizados

Dissertação Verbal

Formal, técnica, informativa

Ironia, imagens, figuras de linguagem, dados, exemplos,

intertextualidade, crítica

Humanos ou somente um assunto e possui

fonte

Poesia Verbal Efeitos de sentido, estética e estilo, função poética, literária, narrativa,

descritiva e-ou dissertativa

Nós e o que nos rodeia: “tudo”

Percebe-se, na análise dos quadros acima, que os textos têm suas peculiaridades e, dependendo de seus elementos predominantes deve ser o seu trato. Por exemplo, não se pode utilizar uma charge com mesma finalidade de uma poesia. Uma charge tem pontos de contato com assuntos dissertativos e com a história, com discursos outros e com a imagem, mas fica devendo quanto à linguagem literária, pois, além de ser verbal, faz parte de outro estilo de leitura, e os seus sentidos,

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muitas vezes, fazem parte de outro universo. É uma forma de expressão diferente e, talvez, controlada. Mesmo assim, existe uma riqueza muito grande nos dois tipos de texto: um traz a crítica, outro traz a arte. Esta diferença pode fazer parte, por exemplo, de uma mesma aula, servindo de exemplificação e para a diferenciação dos diferentes tipos de texto.

Diante da nova era, a retextualização que vêm ocorrendo em diversos suportes propicia a categorização/tipologização de textos? Seria conveniente “encaixotar” os textos de acordo com suas características ou desenvolver a competência da leitura/escrita vinculada a um universo textual totalmente heterogêneo e renovado? Fica aqui mais uma reflexão.

OS TEXTOS NA SALA DE AULA: O QUE O JOVEM ALMEJA?

Eis aqui uma das frases que mais se ouve ultimamente “os jovens de hoje não querem nada com nada”, mas, pensando bem, os jovens de hoje são diferentes daqueles de trinta ou mais anos atrás. Talvez alguns adultos não estejam conseguindo acompanhar a realidade dos “novos” jovens. Uma grande diferença educacional de hoje com outros tempos é a presença maciça da informática. Os jovens não usam apenas a leitura de determinados textos como antes, eles têm um universo “iconizado” a sua frente, o modo de ler mudou, em conseqüência, as formas de ensinar deveriam mudar também, ou apenas atualizarem-se.

Imagine um jovem lendo um livro. Agora mude seu foco para uma tela de computador. O que se restringia a leitura da palavra, hoje, focaliza a palavra, a imagem, a interação virtual (impessoal), os multimeios (visores, câmeras, fotos), tudo “lincado” (relacionado), “iconizado” (multiplicidade ambientes, diferentes funções), interativo (chat, mail) em uma página, em um ambiente apenas. A leitura mudou seu perfil e o que vemos são profissionais e adultos desatualizados e até com medo das máquinas que aparecem a aparecerão com maiores recursos que as atuais. A pesquisa é feita pela Internet rapidamente e, em algumas realidades, pouco se tem usado as enciclopédias. A carta foi substituída pelo e-mail, e o correio pela rede mundial de computadores. Diante dessas adversidades, como tratar dos textos na sala de aula?

UMA SUGESTÃO DE SONDAGEM

Por esses tantos motivos, antes de trabalhar os textos na aula de LP é importante que cada docente investigue seus alunos quanto a gostos, interesses e recursos. Focalizando essas mudanças reais, foi aplicado um questionário contendo 17 questões sobre aspectos pessoais, leitura e tipologias textuais em alunos da rede privada da 2ª série, do ensino médio, com alunos na faixa de 15 a 17 anos. Ao todo foram respondidos 33 questionários, no ano de 2003, sendo que para uma mesma pergunta os alunos poderiam dar mais de uma resposta.

Segundo os alunos, eis o que eles mais gostam de fazer em horários de folga:

1. Sair/conversar com os amigos 18 alunos 2. Ouvir música 11 alunos 3. Usar computador, Internet, Jogos e outros 6 alunos 4. Ler 6 alunos 5. Jogar bola 6 alunos 6. Dormir 6 alunos 7. Namorar 5 alunos 8. Ver televisão 4 alunos

Fonte: dados da pesquisa

Se observarmos as três primeiras constatações, podemos observar que os jovens preferem atividades interativas como o bate-papo com amigos e saídas com as turmas, gostam de curtir música (arte) e utilizar o computador em tudo que ele pode oferecer.

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Quando perguntado se eles gostam de ler, houve 8 respostas não e 26, sim, com as seguintes justificativas: “quando estou a fim ou inspirada”, “quando é algo interessante”, “quando pedido pela professora”, “quando forem textos pequenos”. Podemos perceber que ler ou estudar não são prioridades entre alguns dos jovens e vêm depois do uso do computador, mostrando justamente o novo perfil da leitura nos últimos tempos. Os jovens preferem interagir entre si a ler ou fazer qualquer atividade intelectual informal nesta fase.

A seguir podemos observar as respostas quanto aos textos que os alunos conhecem ou lêem com freqüência:

1. Letras de músicas 31 alunos 2. Artigos de revistas e jornais 27 alunos 3. Reportagens de jornais e revistas 26 alunos 4. Quadrinhos 18 alunos 5. Poesias 14 alunos 6. Anúncios publicitários 12 alunos 7. Charges 10 alunos 8. Romances (livros) 10 alunos 9. Narrações/ histórias 9 alunos 10. Contos 7 alunos 11. Cartuns 4 alunos 12. Lendas 3 alunos 13. Tiras 3 alunos 14. E- mails 1 aluno 15. Fábulas 1 aluno 16. RPG 1 aluno

Fonte: dados da pesquisa

Dentre os tipos de textos que eles mais gostam, temos as letras de música em primeiro lugar,

o que mostra um resultado positivo quanto ao que eles responderam na Tabela 1. Com isso, também podemos observar que talvez a segunda e terceira respostas da tabela acima (2) mostram os tipos de textos que foram utilizados com a turma em questão. Trabalhar textos em sala de aula é um constante desafio, e trabalhar mais uma tipologia textual do que outras restringe muito o universo de leitura dos jovens. O importante é diversificar para diferenciar e explorar o que há de diferente na área das letras, pois, em algum momento da vida deste seres, eles irão deparar com o uso da norma padrão.

Este desafio imposto aos educadores da área das letras existe há muito tempo e que não requer uma “fórmula” de tratamento, mas de adequação ao público alvo e a constante análise de objetivos. Basta abrir meia dúzia de livros didáticos, de diferentes séries, e constatar que em muitos o objeto é alvo da aplicação de conteúdos gramaticais tipo: “Retire do texto substantivos, adjetivos,...”; trabalho com vocabulário; ou retirada de respostas prontas para as questões de compreensão e interpretação do livro ou daquelas criadas pelo professor; debate ou leitura dinâmica para atualização de um tema específico; ou para produção de novos textos com base em um primeiro, entre outras utilidades.

Algo está sendo esquecido nos bancos escolares quando se trata de ler textos. Leitura não é mera decodificação de símbolos ou forma de aumentar vocabulário. Ler textos não serve apenas para o estudo da língua materna. Ler textos é apreender seus múltiplos sentidos, para então passar ao entendimento de sua organização interna, interativa e semântica. Não é qualquer texto que serve para qualificar a leitura dos alunos. Como escolher o melhor material para trabalhar em sala de aula? Como trabalhar este material com os alunos?

Para esta pesquisa foram analisados alguns livros didáticos de Língua Portuguesa do ensino fundamental e constatada a dura realidade no trato com textos. Esse assunto renderia um novo trabalho, pois a precariedade dos recursos nas escolas públicas e a carência de material de qualidade é um dos obstáculos para o processo de ensino/aprendizagem. De maneira geral, o texto é constantemente tratado como objeto de apontamentos e de consulta como se ele não estivesse inserido em um contexto e não pudesse, dentro de seus limites, ser melhor abordado e explorado.

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Não existe uma receita pronta, existem tentativas de acerto no trabalho com textos. Muitas, se bem analisadas e preparadas pelo professor, podem dar certo. Somente o mestre tem conhecimento de seus alunos, das expectativas deles, por isso, dependendo do perfil de cada turma, deve ser o trato com o texto. Nada adianta debater o mau uso se não oferecermos novas alternativas de trabalho. O segredo talvez esteja em explorar ao máximo cada texto no que ele pode nos oferecer.

Trabalhar textos tornou-se algo mecânico e quase uma obrigação nas aulas de português. O debate não cessa por aqui, mas há alguns que combatem o uso do texto como atividade gramatical. O texto, sem dúvida, deve ser recurso do professor de língua portuguesa e dos demais professores na escola, mas qual é a maneira mais eficaz de utilizá-lo com os alunos?

A utilização do texto como exercício gramatical é a maneira mais fácil e prática de abordagem de um texto. Ele pode servir como mero objeto de estímulo às questões de classificação de palavras ou análise sintática. Quanto mais simples melhor. Desta maneira não há “utilização” (ele perde sua utilidade) do recurso, há o “uso” sistemático, mecânico, que acomoda o aluno. Ele escolhe ou encontra as palavras, reescreve-as e busca acertar mais dessa vez que na vez passada, os exercícios de sala de aula, como o professor almeja. Diferente disso se deve ter consciência de que o texto possui um nível de expressão e outro de conteúdo. Que ele possui organização semântica (transitividade – nível frasal; coesão – nível das relações/argumentos) e não mera organização estrutural de palavras e seus sentidos. Faz-se necessário mostrar ao aluno o processo de construção de um texto, relações, processos, seqüenciações, junções, argumentação, repetições e referenciações.

Sempre que o professor precisa de um tema para debate em sala ele utiliza o texto. Depois da leitura silenciosa e oral, o texto serve para ser discutido, ou seja, discutido o assunto e não como o objeto faz para dar enfoque ao assunto em especial. Superficialmente o texto vai desempenhar o papel de estimulador do senso crítico de persuasão. Ao contrário deste enfoque, pode-se trabalhar o texto como sendo a organização da interação, pois ele envolve uma situação real de fala, sendo que o falante precisa tomar seu lugar em relação ao interlocutor e à interlocução.

Texto é estímulo à produção textual: escreva um texto narrativo a partir de uma descrição, texto dissertativo a partir de uma narração e vice-versa; escreva outro texto com base no primeiro e assim por diante. Ao produzir um texto o aluno precisa saber como organizar a informação. Ainda existe a tendência de se cobrar do aluno um texto com início, meio e fim, com registro formal e com coerência interna. Isso se faz apenas alertando para o problema e não indicando o caminho para construção de sentidos no texto. Independentemente de ler para debater oralmente ou para produzir textos, aí existe um trato superficial do objeto, como se o professor se desincumbisse de uma atuação direta e profunda do aprendizado do aluno.

Portanto, para o trato com texto aqui se pretende mostrar que o ensino está um tanto superficial, senão desinteressado da linguagem. Se não for por falta de gestos de leitura eficientes e bem orientados, como justificar o despreparo dos alunos na hora de escrever ou até de falar? É preciso ir além, aprofundar, tratar do texto com mais seriedade e afinco. Analisar o perfil do leitor, selecionar material e preparar a abordagem do texto com antecedência é algo básico, mas difícil para muitos profissionais por vários motivos. Extrair dele o que ele pode nos mostrar. Tentar esgotar os efeitos de sentido em suas margens, deixar o superficial de lado e realmente dar valor ao que temos de muito precioso que é a língua e o poder que ela pode comportar.

OS TEXTOS NÃO-VERBAIS

Muito se tem debatido sobre o uso dos textos nas aulas de Língua Portuguesa e é notória a presença de charges, cartuns, tiras e quadrinhos como estímulo visual na leitura e na aplicação de conteúdos gramaticais específicos na maior parte dos livros didáticos. Talvez, por estarmos na era da informatização, do visual, do virtual, a charge seja um “texto” que motive uma análise temporal, rápida e dinâmica, sem maiores detalhamentos quando do seu uso.

O trabalho com o não-verbal, que se propõe, traz uma preocupação quando da prática docente e discente de produção e incentivo a formação de “melhores leitores”. Crê-se que a leitura e a

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interpretação de textos não-verbais, especificamente da charge, em escolas, trará benefícios e incentivará o hábito de ler/escrever, além de auxiliar na manutenção de uma visão crítica do meio.

A simpatia dos alunos para com os textos “visuais” é inevitável, pois parece que a charge desperta ou possui atrativos a mais do que os da linguagem estritamente verbal; mas esta relação por vezes é dificultada pelas experiências de mundo que cada um traz ou não consigo. Para alguns ela traz o novo, para outros faz parte de suas condições de produção. O trabalho em sala de aula pode ser tão completo quanto aquele em que se utiliza somente o texto escrito (tradicional). Nasce aí, a primeira grande curiosidade pessoal que é a de conhecer mais a fundo o processo de construção de sentidos da charge, sua materialidade e o que acrescentam de concreto ao conhecimento do aluno e/ou educador.

UMA CHARGE É UM TEXTO?

Pode-se constatar que em provas de vestibulares, principalmente na área de redação, várias instituições de ensino utilizam os textos não-verbais como subsídio a mais para o debate de determinados temas, polêmicos ou não, funcionando como um objeto concreto para a produção textual. Além disso, estes “pequenos grandes” textos são atração a parte em revistas e jornais diariamente. Quem não abriu o jornal no final de semana e se deteve, nem que por alguns momentos, na leitura de tiras, quadrinhos e/ou charges? A imagem visual da charge, através de um processo interno de leitura e análise parece dizer e exigir algo a mais ao/do leitor.

Professores, historiadores, filósofos, psicólogos e outros estão, mais que em outros tempos, preocupados em esclarecer os problemas e dar soluções para os possíveis motivos de não-criticidade na escola. O que durante anos ficou restrito a pesquisadores e estudiosos das áreas da linguagem, hoje é de interesse geral. Muitos se habilitam a falar que o problema da leitura está na precária condição sócio-econômica das pessoas; outros dizem haver falta de interesse e/ou de preparo dos profissionais da área (professores) que, sem salários dignos, não conseguem manter seu aperfeiçoamento contínuo. Alguns acreditam que o hábito da leitura se dá desde o nascimento (leitura de mundo) e que um dos aspectos importantes a serem analisados em assíduos e bons leitores é o fato de terem contato com os livros desde a infância, sempre incentivados pelos pais.

Existe uma infinidade de estudos que analisam livros, poesias, crônicas, contos e outros tipos de textos como objeto simbólico de pesquisa em áreas diferentes da Lingüística. Particularmente, no caso da charge, não é freqüente o trato com esta tipologia textual, embora ela contenha os elementos essenciais para ser considerada enquanto processo de comunicação (texto), podendo ser verificada em suas formações discursivas, dentro de um contexto sócio-histórico-ideológico.

Na leitura de charges pode-se aplicar, como diz Koch, a “metáfora do iceberg: como este todo texto possui apenas uma pequena superfície exposta e uma imensa área imersa subjacente”. Portanto, a partir disso, o que interessará é desvendar “um jogo de linguagem”, ou seja, a heterogeneidade da charge, tudo que ela suporta explícita ou implicitamente, o que ela fala ou deixa de falar.

Inicialmente a justificativa para a análise da charge é sustentada pelo fato de pode ser considerada texto, conforme Koch (1995), pois “... texto é resultado da atividade verbal de indivíduos socialmente atuantes, na qual estes coordenam suas ações no intuito de alcançar um fim social, em conformidade com as condições sob as quais a atividade verbal se realiza” e, ainda, “Um texto passa a existir no momento em que parceiros de uma atividade comunicativa global, diante de uma manifestação lingüística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes de construir, para ela, determinado sentido.”

Essa abordagem inicial vai ao encontro da proposta de Orlandi (1998), que vê a interpretação como uma das formas de ligar a língua e a história na produção de sentidos, sem esquecer de situar a ideologia como parte do funcionamento da interpretação. No caso da charge, esta foi escrita em determinado contexto histórico-social e, possivelmente, pode revelar-se em sua discursividade. Vista deste ângulo, a análise da charge supõe a leitura da imagem e da escrita.

Partindo da visão de que texto é construção de sentidos, a charge pode ser considerada um texto? Por ser o objeto que alia o verbal ao não-verbal, teremos como ponto de partida o fato de ser o

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texto a unidade de sentidos em construção e não aqueles que estão ali previamente automatizados, prontos e construídos. Não tomemos o texto somente como o que está escrito no papel ou como o objeto de estudo gramatical, mas aquilo que se forma ao logo da leitura: a “construção de sentidos” 6. No caso a charge seria o texto que utiliza o verbal e o não-verbal na construção de sentidos.

O PROCESSO DE APREENSÃO DE SENTIDOS NAS CHARGES

Nesta fase do trabalho, feita a sondagem da turma, o debate e reflexão sobre o assunto das charges, serão observadas marcas textuais como coerência, coesão, ironia, intencionalidade e outros em sua relação. A partir da experiência leitora, a abordagem de tais recursos textuais será relatada conforme a experiência feita com os discentes do ensino médio selecionados.

A COERÊNCIA

A incoerência textual se dá quando o receptor não consegue perceber qualquer continuidade no sentido e arrisca uma opinião desfocada, ou mesmo não entende a quebra dos sentidos. No caso das charges estudadas (Figuras 2 e 3), podemos perceber pistas. Primeiramente percebe-se a presença de figuras específicas e logo parte-se para a leitura de falas ou de outras marcas presentes. Alguns destes textos apresentam somente as ilustrações dispensando a parte verbal, mas, neste caso, as charges em questão apresentam tanto uma parte verbal quanto uma não-verbal complementares no sentido o que dá certa coerência ou deslizamento de sentidos. No caso, a figura mostra concretamente ações, atitudes, expressões, gestos que auxiliam na produção de determinados sentidos. A parte escrita explica o que está ocorrendo e dá uma “pitada de pimenta” ao texto, pois além de ser um objeto de análise temporal, utiliza muito humor, sátira e/ou ironia. Portanto, existe coerência na charge se ela tiver os elementos que façam com que o leitor descubra sentidos possíveis em sua leitura, mas nem sempre eles apresentarão a apreensão de sentidos mesmos ou na mesma ordem, isso depende de experiências leitoras, de mundo e as próprias vivências de cada um. Neste sentido o encaminhamento que o leitor dá a interpretação do texto que não precisa ter necessariamente coerente, pois estamos diante de um processo de antecipação de sentidos e estes podem sempre ser outros.

O importante aqui é fazer com que os alunos percebam os elementos constitutivos de uma charge na maioria dos casos (ilustrações e escrita) e que uma faz com que a outra tome corpo, que tenha significação. Ficaria fácil demonstrar esse fenômeno se o leitor apenas olhasse para as figuras e fizesse sua leitura sem a parte escrita e vice-versa. Como seria sua interpretação do texto desta forma? Talvez faltassem alguns dados essenciais para que o assunto fosse abordado da mesma forma, pois se testarmos com a figura 2, o aluno veria apenas a cena de um bandido apontando o dedo para um policial. Com a escrita inserida existe a constatação de que o bandido está repreendendo o policial pelo uso de arma de fogo.

Por vezes a charge pode trazer o inesperado como a mudança de foco, um gesto diferente que faz a interpretação tomar outro rumo, mas isso depende da intenção do chargista.

A COESÃO

Ao ler/analisar uma charge, verificamos que a escrita está vinculada a imagem, em muitos casos. Uma é dependente da outra. Pode-se dizer que a imagem não sobreviveria sem a escrita e vice-versa. Isso depende do material, não é regra. Talvez, para alguns leitores, os sentidos poderão estão ali e não causam nenhuma surpresa. Para outro leitor que não tem as mesmas experiências leitoras do primeiro pode ser mais trabalhoso. A leitura de charges depende em muito do universo em que o leitor está inserido, suas experiências de mundo, leituras, pensamentos, sentimentos,... Nas charges das figuras 2 e 3, quem sabe, não existiria a mesma leitura se não estivesse ali a escrita indicando parte da construção de sentidos. Se não estivesse posta ali a figura, a leitura poderia se dirigir a outro enfoque. Portanto, coesão é a relação de dependência entre as imagens e a escrita em determinadas charges. É uma dependência para o/os sentido(s), para que a interpretação se mantenha. É como se o chargista 6 Expressão utilizada por Koch (1995) em seu artigo “O texto: construção de sentidos” do qual retiro o conceito de texto neste estudo.

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quisesse encaminhar o leitor. São os mínimos detalhes que mantém o leitor ligado em determinadas idéias e não em outras. São os detalhes do desenho e da escrita que dão uniformidade ao texto. Ele relaciona as partes e tem um todo organizado de sentido quando da sua compreensão.

A INTENCIONALIDADE

Kleiman (2000, p.92) reflete em torno da interação em um texto como sendo a atribuição de intencionalidade: “Processar um texto é perceber o exterior, as diferenças individuais superficiais, perceber a intenção, ou seja, atribuir uma intenção ao autor é chegar ao íntimo, à personalidade através da interação. É uma abstração que se fundamenta nas outras”. Com isso percebe-se que, em uma charge, esse processo se dá desde a escolha dos personagens ou elementos até a verbalização de determinados pontos de expressão.

Na charge a intencionalidade certamente é alvo do chargista e do leitor. Sempre que nos deparamos com esse tipo de texto nos perguntamos “O que ele quis dizer com isso?”. Isso significa dizer que esse texto não é neutro e não se preocupa com a censura.

Koch (2003, p. 20) comenta que

A pretensa neutralidade de alguns discursos (o científico, o didático, entre outros) é apenas uma máscara, uma forma de representação (teatral): o locutor se representa no texto “como se” fosse neutro, “como se” não tivesse engajado, comprometido, “como se” não estivesse tentando orientar o outro para determinadas conclusões, no sentido de obter dele determinados comportamentos e reações.

Entretanto, essa carga de sutilizas é percebida através da competência do leitor. Em alguns instantes pode ficar clara a intenção não só do chargista, mas do personagem da charge. Eis aqui o poder da linguagem. O homem cria formas de se comunicar com os semelhantes seja apelando para a visão, tato, gustação ou audição. Depende em muito do que o leitor vai entender da charge, que sentidos vai construir, onde ou até onde ele vai chegar?

Se por um lado existe a intencionalidade, na sua contraparte existe a aceitabilidade. Ou seja, quando duas pessoas se comunicam existe um esforço de ambas para se fazer entender, portanto, procuram “calcular” os sentidos do texto, partindo de pistas que ativem seu conhecimento de mundo, de situação. Assim, mesmo que um texto se apresente incoerente, aos poucos os elementos de coesão vão auxiliando para uma interpretação cabível para que se construa a textualidade. O leitor é orientado para uma determinada conclusão.

A intencionalidade na charge também está relacionada a um fato social de determinada época ou tempo. É um texto temporal, que pode não ser compreendido de um ano para outro. Corre o risco de ser esquecido de uma hora para outra. O que parece interessar é a crítica, é a oportunidade de fazer o leitor pensar e repensar a situação e, quem sabe, a sua vida.

A IRONIA

As charges são textos que possuem o recurso da ironia como sendo um traço muito forte. Talvez seja o que de melhor a charge pode trazer. É como se o produtor da charge quisesse tratar de um assunto sério com descontração e com deslizamento de sentidos.

Não são todos os leitores que percebem a ironia ou aquilo que a charge quer trabalhar com humor. Algo inusitado que pode dar sentido à produção de uma charge. No caso das duas charges analisadas aqui o engraçado é o bandido interpelar o policial, por exemplo. Onde está a lógica para estas ações? Está em justamente tratar disso com humor, em deixar um implícito, algo subentendido para servir de reflexão de acordo com o assunto do texto.

A INTERTEXTUALIDADE

Uma das exigências do ensino brasileiro é a prática interdisciplinar. Este fator de coerência visa criar um elo entre as diversas disciplinas ministradas na escola para o desenvolvimento de competências, habilidades e novos conhecimentos nos alunos. Vê-se a viabilidade de utilização da charge para auxiliar na relação entre as diversas áreas. Pretende-se, com nesta proposta, fazer olhar

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com novos olhos para o texto não-verbal (charge), visando trazer benefícios e a construção de novas perspectivas de leitura.

Além de manter contato entre assuntos/disciplinas, a charge reaviva a memória e a história. As charges têm esse recurso de fazer um “chamamento” a outros fatos, acontecimentos ou outros textos. Ao mesmo tempo está se lendo algo atual e produto do passado. Algo que pode plantar novas informações e interligar-se a informações conhecidas.

UMA EXPERIÊNCIA COM LEITURA DE CHARGES NA SALA DE AULA: RESULTADOS

O termo charge é francês, vem de charger, carregar, exagerar e até mesmo atacar

violentamente (uma carga de cavalaria). Este tipo de texto tem caráter temporal, pois trata do fato do dia. Dentro da terminologia do desenho de humor pode-se destacar, além da charge, o cartum (satiriza um fato específico de conhecimento público de caráter atemporal), a tira, os quadrinhos e a caricatura pessoal. A charge será alvo do estudo por trazer, em uma análise superficial, implícita a história e a presença do interdiscurso. Ela é o local escolhido pela ironia, metáfora (transferência), pelo contexto, pelo sujeito, para atuar. Por ser combativa, tem lugar de destaque em jornais, revistas e na Internet. Portanto, ampla poderá ser a leitura interpretativa por nela se constatar a presença da linguagem, da história e da ideologia. Observe as charges abaixo:

FIGURA 2

Fonte: Jornal O Nacional, junho de 1999, Passo Fundo, RS.

FIGURA 3

Fonte: Jornal O Nacional, junho de 1999, Passo Fundo, RS.

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As duas figuras acima são duas charges que têm como assunto a campanha de desarmamento do ano de 1999. Cabe lembrar que neste ano, 2004, também aconteceu a mesma campanha, em que as pessoas deveriam vender suas armas em troca de uma valor simbólico, entregando-as aos órgãos competentes.

Para constatar o processo de construção de sentidos das charges, os 33 alunos que faziam parte da 2ª série, do ensino médio, foram divididos em grupos e responderam as seguintes questões7, tendo como base as Figuras 2 e 3:

1. Façam uma descrição das charges, com o máximo de detalhamento possível.

2. Qual a importância das ilustrações nas charges?

3. Qual a importância da escrita nas charges?

4. Qual o objetivo das charges para vocês?

5. Você considera as charges um texto? Explique.

6. Todos os componentes do grupo interpretaram as charges da mesma forma? Todos entenderam a mesma coisa?

Alguns objetivos foram visados com a formulação das perguntas e conseqüente aplicação. Primeiramente procura-se trabalhar a compreensão das duas charges, as quais possuem mesmo tema e, também, verificar se os alunos, em grupos, identificam a relação entre a imagem e a escrita e ao mesmo tempo, conseguem expor suas opiniões a respeito do assunto (questões 1, 4 e 6). Ainda, poder-se-ia perceber o percurso de interpretação das charges e o contexto que o aluno “percebe” com o trabalho. Com as perguntas direcionadas à imagem e à ilustração (questões 2 e 3), procurou-se estabelecer a hierarquia das informações, ou a ordem de importância de ambas no texto. Já com a questão 5, existe a possibilidade de analisar a noção de texto para os alunos e a noção de que tipo de texto é a charge.

Resultados da questão 1: Façam uma descrição das charges, com o máximo de detalhamento possível.

Grupo 1

“Na primeira charge aparece um policial com uma arma e um bandido com com um “pé-de-cabra”. Dá a entender que o policial está com medo do assaltante; quer dizer que mesmo que o desarmamento ocorra, os bandidos sempre darão um jeito de se armar.

Na segunda charge aparece um policial desarmado e dois bandidos armados, o policial quer desarmar os bandidos; essa charge tem uma mensagem que é, por mais que a lei do desarmamento ocorra, os bandidos sempre estarão armados, isto é, o mercado “negro” continuará existindo sempre.”

Este grupo, ao mesmo tempo em que descreve o que vê ou lê em cada charge, interpreta as informações e traz a expressão “mercado “negro”” como uma demonstração de suas experiências de mundo, neste caso, algo que já faz parte de seu vocabulário e diz respeito ao assunto, mesmo não explícito na charge. Isso demonstra que, para se ler e entender a charge, é necessário lançar mão de informações contextuais e não se restringir apenas ao que se vê de concreto, mas àquilo que pode se perceber no contexto.

Grupo 2

1. “Um policial armado, aparentemente muito nervoso, apontando uma arma para o ladrão.

2. O policial pede para que os bandidos entreguem suas armas, e eles respondem que não são policiais. Uma crítica a campanha do desarmamento, na qual só os bandidos ficarão armados.”

Aqui o grupo descreve e consegue perceber algo mais: “Uma crítica a campanha do desarmamento, na qual só os bandidos ficarão armados”. Com isso, pode-se perceber que os alunos

7 As transcrições das respostas dos alunos às questões foi feita com algumas correções gramaticais.

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não fixam seus olhares apenas ao superficial, que é o contar um fato, mas perceber o que está nas “entrelinhas”, a função e a intenção de uma charge.

Grupo 3

“1º quadro – há um ladrão apontando o dedo para um policial parecendo nervoso com uma arma na mão.

2º quadro – um policial falando alguma coisa para ladrões com armas na mão.”

O grupo 3 limitou-se a apenas descrever o que via: as imagens simultaneamente, nos dois casos.

Grupo 4

“Quadro 1 – A figura apresenta um policial armado e o ladrão com um pé-de-cabra (que é considerado desarmado) ele questiona o desarmamento, dizendo que todos, até os policiais, devem ser desarmados. O Policial mostra insegurança no uso da arma, pois se só ele a usar, ele poderá ferir tanto o bandido quanto ele.

Quadro 2 – A figura mostra o contrário: policial desarmado e bandidos armados. Apresenta que policiais desarmados não têm autoridade nenhuma sobre bandidos armados e afirma que os bandidos não seguirão a campanha de desarmamento.”

O grupo 4, ao mesmo tempo que descreve o que vê, interpreta as charges. Utilizam os parênteses para fazer adendos: “(que é considerado desarmado)”, uma observação feita por notarem que um pé-de-cabra é uma arma branca e não tem a mesma potência de a arma de fogo usada pelo policial. Percebem a diferença com o outro texto quando dizem que na figura 2, quem aparecem armados são os bandidos.

Com as respostas dadas pode-se perceber que a maior parte dos alunos consegue interligar imagem e escrita, pois, ao mesmo tempo em que descrevem objetivamente as imagens (paráfrase), entendem a mensagem repassada por meio do texto, interagem com ela e retiram daí um sentido, uma explicação para a existência de um texto com o perfil da charge.

Resultados da questão 2: Qual a importância das ilustrações nas charges?

Grupo 1

“A imagem é fundamental pois expressa a fala, uma fala “perdida” não é a mesma coisa que com a imagem. A imagem dá a intenção a “fala”.”

Grupo 2

“As imagens facilitam no entendimento das charges juntamente com o texto.”

Grupo 3

“1º quadro - mostra o quanto os ladrões estão dominando os policiais de hoje.

2º quadro – também mostra o domínio dos ladrões em relação ao policiais, e ainda com deboche dos ladrões.”

Grupo 4

“Mostram o questionamento de um fato atual: o desarmamento. As imagens intensificam as falas.”

Das respostas acima, apenas a do grupo três explica novamente as charges. Os outros grupos falaram da estrutura do texto e sua composição: imagens + escrita. Perceberam que sem as ilustrações ficaria difícil a compreensão dos textos, o que significa que a leitura das ilustrações estabelece a coesão no conteúdo veiculado. Também é dito quando eles estabelecem a relação entre e escrita e a imagem (ver resultado da questão 3, grupo 2) que a imagem é a primeira coisa que eles lêem.

Resultados da questão 3: Qual a importância da escrita nas charges?

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Grupo 1

“A escrita da percepção a imagem, não é tão importante quanto a mesma, mais é importante para especificar o que “está acontecendo”.”

Grupo 2

“Nas charges, o que olhamos primeiro são as imagens, mas são os textos geralmente os mais importantes. As imagens facilitam o entendimento, mas sem o texto fica difícil o entendimento”

Grupo 3

“A escrita é usada nas charges para os diálogos entre os personagens e explicar os que está acontecendo nos desenhos.”

Grupo 4

“A escrita intensifica a figura e revela o verdadeiro sentido da charge.”

Alguns disseram que a escrita serve para explicar os desenhos, facilita a compreensão e que ela é realmente quem transmite mais confiança quanto às ilustrações. É ela quem dá o sentido a charge (grupo 4).

Resultados da questão 4: Qual o objetivo das charges para vocês?

Grupo 1

“As charges tem como objetivo “criticar” alguma situação que está ocorrendo na sociedade, através da forma cômica e irônica.”

Grupo 2

“As charges para nós trazem críticas positivas, geralmente ironizando problemas sociais da sociedade, fatos importantes... Os jovens geralmente preferem as charges por apresentarem desenhos e pouco texto, do que grandes textos em revistas e jornais.”

Grupo 3

“O objetivo das charges nos jornais, revistas e agora no tele-jornal é de crítica à sociedade e aos políticos que comandam o país.”

Grupo 4

“É uma forma crítica de mostrar a realidade, sendo às vezes satírica também.”

Ficam claros aqui, os recursos utilizados pela charge como crítica, ironia, deboche, sátira e humor na construção de seus sentidos. E, também, como foi comentado anteriormente no trabalho, estamos vivendo em uma nova era e as leituras estão se diversificando. Os próprios jovens percebem isso e afirmam que a charge é atrativa por não exigir deles uma leitura de textos grandes como os de revistas e jornais (ver grupo 2).

Resultados da questão 5: Você considera as charges um texto? Explique.

Grupo 1

“Sim, um pequeno texto que tem conteúdo bem definido e tem sentido. Possui “início, meio e fim”, possui uma mensagem que geralmente leva a reflexão, por isso achamos que pode ser considerado um texto.”

Grupo 2

“Não, pois um texto tem que ter introdução, desenvolvimento e conclusão e charge não precisa isso o leitor tem que entender e tirar suas próprias conclusões.”

Grupo 3

“Com certeza envolve textos, mas seriam inúteis sem as imagens que explicam a situação.”

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Grupo 4

“Sim, pois podemos observar a idéia principal contida na charge.”

Um grupo achou que a charge não é um texto. Os outros acharam que é, mas ambas respostas, negativas ou positivas, retomam a antiga fórmula de estrutura textual verbal com início, meio e fim. A imagem que eles têm de texto não é diferente da que se esperava. Muitos preferem “ver” a ler, preferem a visualização de imagens à leitura de letras. São alguns atrativos advindos da informática presentes nas novas formas de ler.

Resultado da questão 6: Todos os componentes do grupo interpretaram as charges da mesma forma? Todos entenderam a mesma coisa?

Grupo 1

“ Sim, como nós duas sempre fazemos os trabalhos juntas, temos uma linha de raciocínio bem parecida, além de que as charges que pegamos têm seu conteúdo explícito.”

Grupo 2

“Não, uns acharam que as figuras eram mais importantes que o texto e outros vice-versa, mas a verdade é que um completa o outro (os dois são importantes).”

Grupo 3

“Sim, trabalhamos em cima de um consenso.”

Grupo 4

“Não.”

Aqui as respostas se dividem. 50% concordaram com o grupo, 50% não. Talvez não possamos detectar o motivo do impasse, mas com certeza muito mais os alunos teriam para mostrar a respeito do processo de leitura das charges.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo pretendeu-se abrir debate em torno de novas perspectivas de trabalho com texto na sala de aula. Um trabalho que vai além de ensino de gramática na sala de aula, que focaliza muito o gesto de leitura. Não somente a leitura do texto escrito, mas do todo; trabalhar com as diferentes manifestações escritas, visuais, auditivas, acionando a memória, estimulando o senso crítico e a observação do mundo ao redor.

A aula de LP vai além de utilização de metalinguagem ou classificação nas estruturas da língua. É uma disciplina que deve existir para debater e por em prática verdadeiramente o sentido existência da linguagem. A gramática não pode ser extinguida assim como o trabalho com o texto não pode ser a única maneira de trabalhar a linguagem. Além disso, não é discutindo se o texto ou a gramática deve ser prioridade que haverá consenso entre os estudiosos, mas sim uma adequação do ensino às necessidades e à realidade de cada turma em cada escola.

Em um primeiro momento, foi constatado que trabalhar a leitura nunca deixou de ser no mínimo complicado na sala de aula. Por se tratar de um ambiente de trocas, foi-se o tempo em que somente professores transferiam o saber. Hoje, com avanços tecnológicos em todas as áreas, tem-se a viabilidade de utilização de meios eficazes e rápidos para a obtenção de novas informações. Os alunos demonstram isso muito bem quando interrompem o professor em uma aula para contar sobre o que descobriram na Internet. Assim, fica constatada a importância de utilização de charges nas aulas de LP enquanto um texto que aciona conhecimentos mais diversos e possibilita a interação aluno-professor-mundo.

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O texto precisa ser um recurso que suscite no aluno um “Q” a mais. Algo em que ele encontre sentidos, que chame sua atenção. A charge, por exemplo, pode cumprir essa função. Pode ser trabalhada com diversas finalidades e, através de seus elementos, tem-se acionadas a memória, verifica-se a presença da história e apura-se a observação de mundo. Os próprios alunos percebem isso, como se observa nas respostas às questões propostas na parte empírica. A maior parte dos grupos percebeu que a leitura não se restringe a do texto verbal, mas a do não-verbal simultaneamente. Perceberam, do mesmo modo, que uma parte depende da outra no processo de construção de sentidos. Não haveria sentido no desenho do chargista, como no caso, se não existisse a criação artística da cena na forma de desenho e vice-versa e que a charge pretende causar ironia/humor.

Portanto, pode-se fazer um levantamento das expectativas dos alunos do ensino médio e trabalhar com o assunto do momento, justamente por ser a charge um texto temporal. Mas para apreender seus novos sentidos e não ficar somente na descrição da cena e das falar ou explicações dos personagens é necessário uma carga de informações que podem surgir das experiências de mundo de cada um, das leituras que cada um faz, dos conhecimentos guardados e da memória reavivada.

Neste caso, as charges que falavam sobre a campanha de desarmamento do ano de 1999, conforme as fontes, foram trabalhadas neste ano, 2004, como uma iniciativa do governo numa tentativa de diminuir a criminalidade. O debate com os alunos foi caloroso e o assunto agradou a maioria. Foi dada ênfase a elementos como a coerência, coesão, intencionalidade, ironia e intertextualidade. Pode-se dizer, também, que a charge faz parte de um mundo de leitura que desperta no aluno sua curiosidade e atualiza-se a cada momento. Ela requer gestos de interpretação diferentes. Nela interagem a leitura sensorial (visão, tato, audição, olfato, gosto), a leitura emocional (desejos e preferências como referenciais) e a leitura racional (tem a ver com a capacidade de produzir e apreciar a linguagem). Os alunos trouxeram para a sala de aula sua bagagem de conhecimentos e puderam compor o quadro com seu ponto de vista e colaboração dos colegas em cada grupo.

Foi comentado que a charge eletrônica é uma realidade, pois a televisão mostra, o computador acessa e, em muitos casos, torna-se diversão garantida. Uma diversão interior, que envolve pensamento, sentimento, racionalidade. O ponto básico está em aprofundar a leitura no que a charge tem a nos dizer. Na superficialidade, ela pode perdurar por pouco tempo e corre o risco de ser esquecida. A charge precede a leitura da palavra, vai além. Diz a mais, constrói uma visão crítica do meio, trabalha elementos como a ironia, a sátira e a intencionalidade que são maneiras de ver o que acontece de certa forma e não de outra em seu processo de criação. É uma forma de fazer com que o aluno expressão seu ponto de vista e não aquele que se espera dele. Quanto a isso Mário Quintana comenta “O mais difícil, mesmo, é a arte de desler”, no sentido em que, muitas vezes, o professor espera do aluno algo que ele mesmo vê ou lê e não o que faz parte de sua realidade, do seu modo de pensar a vida. Pensemos que a charge é sempre e a todo momento construção de sentidos.

Verificou-se, portanto, a viabilidade e a importância de usar a charge como subsídio de leitura e produção textual nas aulas de LP. Ela trabalha o real e faz parte de um processo de construção de sentidos que vai além do decifrar de “sinais”. Percebeu-se que não há limites interpretativos além de, no caso abordado, não se restringir à mera imposição de ideologias, filosofias, críticas ou outros termos no sentido de serem alienantes. Há, no lugar, margens de sentidos, deslizamentos que podem acontecer de acordo com as condições de produção e do mundo de leituras de cada leitor. Lançar mão deste recurso que é a charge em sala de aula é dar a chance de o aluno adentrar outros universos, conhecer outros discursos, debater sobre sua realidade e ter novas maneiras de expressar uma opinião, estando atualizado com o que está acontecendo ao redor. Faz-se urgente, portanto, ampliar a noção de leitura, tendo em vista qualificar o processo da escrita continuadamente.

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