O Tratado Lockiano Da Identidade

51
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 1 Étienne Balibar O texto aqui reeditado – incluindo o original inglês, a tradução francesa clássica, bem como uma nova tradução, um dossiê de textos complementares e um Glossário dos principais termos teóricos empregados – é, incontestavelmente, um dos mais decisivos da filosofia moderna. É também um dos que introduzem com muita agudez não somente a questão das dificuldades da tradução, mas também a do papel que os problemas de língua, que o transporte de questões especulativas de um idioma para um outro, exercem na própria invenção teórica 2 . Trata-se do capítulo xxvii do Livro II do Ensaio Filosófico acerca do entendimento humano acrescentado a partir da 2ª edição (1694) à obra que Locke havia publicado em 1690 e que iria se tornar a referência, reconhecida ou não, de todas as grandes «teorias do conhecimento» e «ciências da experiência da consciência» na filosofia ocidental, desde os Novos Ensaios sobre o entendimento humano de Leibniz (que se apresentam como um «diálogo» com suas formulações) até o Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos de Condillac, a Crítica da Razão Pura de Kant, os Essays on the Intellectual Powers of Man de Reid, a Fenomenologia do espírito de Hegel e, mesmo, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência de Bergson e as Idéias orientadoras para uma fenomenologia de Husserl. O capítulo «On Identity and Diversity» se constitui praticamente em um ensaio dentro do ensaio 3 . Mais do que um acréscimo 4 destinado a responder, por um lado, às objeções que a crítica à idéia de uma alma substancial havia suscitado e, por outro, às dificuldades que, aos olhos do próprio autor, a argumentação do Ensaio introduzia, ele se desenvolve segundo uma ordem própria e propõe um conjunto de argumentos destinados a resolver o «problema da identidade pessoal» que podem ser isolados de seu contexto. Nesta condição, eles determinaram, até o presente, uma longa sucessão de debates – sobretudo na filosofia anglo- saxã, para cuja originalidade eles contribuíram fortemente 5 . No entanto, no que nos concerne, e ainda que tenhamos tirado proveito desta autonomia para destacar o tratado «Identidade e diferença» de uma retradução do conjunto da obra de Locke, à qual sem dúvida se deverá proceder algum dia 6 , não nos interessa tanto isolar a questão do «critério da identidade», 1 Prefácio a Étienne Balibar (apresentação, tradução e comentários). Identidade e diferença - a invenção da consciência. Paris: Seuil, 2000, p. 9-101. 2 Desejamos agradecer aqui a todos aqueles que, em um momento ou em outro, se dispuseram a enriquecer este trabalho com suas críticas e sugestões: Paulette Carrive, Yves Duroux, Françoise Kerleroux, Marc Parmentier, Jean-Michel Vienne e, particularmente, Geneviève Brykman, que releu e comentou o conjunto de nossa primeira versão. 3 Ou, como passaremos a nomeá-lo, um «tratado». O outro desenvolvimento comparável (esboço de um «Tratado das paixões») está no capítulo xxi do Livro II, Of Power, no centro do qual figura o conceito de uneasiness («mal-estar», «inquietude», ou mesmo «aflição» [souci]). 4 Por sugestão de seu amigo William Molyneux. 5 Ver levantamentos propostos por H. E. Allison, «Locke’s Theory of Personal Identity: a Re-examination», in Locke on Human Understanding, Selected Essays edited by I. C. Tipton, Oxford University Press, 1977, e por J. Baillie, «Recent Work on Personal Identity», in Philosophical Books 34, 1993, 193-206. 6 Ao concluir este trabalho, soubemos que M. Jean-Michel Vienne publicará proximamente, pela Librarie Vrin, uma nova tradução dos Livros I e II do Ensaio.

description

O capítulo «Sobre Identidade e diversidade», do Ensaio acerca do entendimento humano, de J. Locke, constitui-se praticamente em um ensaio dentro do ensaio. Mais do que um acréscimo destinado a responder, por um lado, às objeções que a crítica à ideia de uma alma substancial havia suscitado e, por outro, às dificuldades que, aos olhos do próprio autor, a argumentação do Ensaio introduzia, ele se desenvolve segundo uma ordem própria e propõe um conjunto de argumentos destinados a resolver o «problema da identidade pessoal» que podem ser isolados de seu contexto.

Transcript of O Tratado Lockiano Da Identidade

Page 1: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE1

Étienne Balibar

O texto aqui reeditado – incluindo o original inglês, a tradução francesa clássica, bem como uma nova

tradução, um dossiê de textos complementares e um Glossário dos principais termos teóricos empregados – é,

incontestavelmente, um dos mais decisivos da filosofia moderna. É também um dos que introduzem com muita agudez não somente a questão das dificuldades da tradução, mas também a do papel que os problemas de

língua, que o transporte de questões especulativas de um idioma para um outro, exercem na própria invenção

teórica2.

Trata-se do capítulo xxvii do Livro II do Ensaio Filosófico acerca do entendimento humano –

acrescentado a partir da 2ª edição (1694) à obra que Locke havia publicado em 1690 e que iria se tornar a

referência, reconhecida ou não, de todas as grandes «teorias do conhecimento» e «ciências da experiência da

consciência» na filosofia ocidental, desde os Novos Ensaios sobre o entendimento humano de Leibniz (que se

apresentam como um «diálogo» com suas formulações) até o Ensaio sobre a origem dos conhecimentos

humanos de Condillac, a Crítica da Razão Pura de Kant, os Essays on the Intellectual Powers of Man de Reid,

a Fenomenologia do espírito de Hegel e, mesmo, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência de Bergson

e as Idéias orientadoras para uma fenomenologia de Husserl.

O capítulo «On Identity and Diversity» se constitui praticamente em um ensaio dentro do ensaio3. Mais do que um acréscimo4 destinado a responder, por um lado, às objeções que a crítica à idéia de uma alma

substancial havia suscitado e, por outro, às dificuldades que, aos olhos do próprio autor, a argumentação do

Ensaio introduzia, ele se desenvolve segundo uma ordem própria e propõe um conjunto de argumentos

destinados a resolver o «problema da identidade pessoal» que podem ser isolados de seu contexto. Nesta

condição, eles determinaram, até o presente, uma longa sucessão de debates – sobretudo na filosofia anglo-

saxã, para cuja originalidade eles contribuíram fortemente5.

No entanto, no que nos concerne, e ainda que tenhamos tirado proveito desta autonomia para

destacar o tratado «Identidade e diferença» de uma retradução do conjunto da obra de Locke, à qual sem

dúvida se deverá proceder algum dia6, não nos interessa tanto isolar a questão do «critério da identidade»,

1 Prefácio a Étienne Balibar (apresentação, tradução e comentários). Identidade e diferença - a invenção da consciência. Paris: Seuil, 2000, p. 9-101. 2 Desejamos agradecer aqui a todos aqueles que, em um momento ou em outro, se dispuseram a enriquecer este trabalho com suas críticas e sugestões: Paulette Carrive, Yves Duroux, Françoise Kerleroux, Marc Parmentier, Jean-Michel Vienne e, particularmente, Geneviève Brykman, que releu e comentou o conjunto de nossa primeira versão. 3 Ou, como passaremos a nomeá-lo, um «tratado». O outro desenvolvimento comparável (esboço de um «Tratado das paixões») está no capítulo xxi do Livro II, Of Power, no centro do qual figura o conceito de uneasiness («mal-estar», «inquietude», ou mesmo «aflição» [souci]). 4 Por sugestão de seu amigo William Molyneux. 5 Ver levantamentos propostos por H. E. Allison, «Locke’s Theory of Personal Identity: a Re-examination», in Locke on Human Understanding, Selected Essays edited by I. C. Tipton, Oxford University Press, 1977, e por J. Baillie, «Recent Work on Personal Identity», in Philosophical Books 34, 1993, 193-206. 6 Ao concluir este trabalho, soubemos que M. Jean-Michel Vienne publicará proximamente, pela Librarie Vrin, uma nova tradução dos Livros I e II do Ensaio.

Page 2: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 2

quanto ressituá-la em seu contexto. E, com efeito, ao fazer da consciência (consciousness) o critério de

identidade pessoal (identity of person), Locke foi conduzido a revolucionar a própria concepção da

subjetividade, tanto em relação à idéia aristotélica de alma individual como «forma substancial» quanto em

relação à reivindicação cartesiana do «eu» existente e pensante. Esta revolução teórica – da qual ainda somos

tributários até mesmo em nossas críticas ao psicologismo, ao primado da consciência e ao imperialismo do

sujeito – é o momento decisivo da invenção da consciência como conceito filosófico, que tem em Locke o

grande protagonista. Por um lado, ela cristaliza suas diferentes implicações (possibilidade de uma experiência

interior com acesso direto à realidade mental, unificação da concepção clássica do tempo e da relação entre

consciência e responsabilidade). Por outro, ela já prepara o lugar onde, a partir de Hume, Kant e Hegel, vão se situar as críticas da consciência de si como efeito de uma «ficção» da imaginação, como «paralogismo» da

razão pura, ou como figura do eu «tornado estrangeiro a si mesmo». Neste sentido, no mesmo momento em

que Locke inaugura o que se tornou para nós a primeira modernidade filosófica, ele já prepara as condições de

abertura de uma segunda modernidade.

Nas páginas que se seguem, nos daremos três objetivos, para introduzir a (re)leitura do tratado de

Locke e do dossiê que o acompanha:

1. devolver à invenção da consciousness, do self e da self-consciousness sua força de novidade,

demonstrando inicialmente como, na língua filosófica francesa e apesar dos esforços de seu tradutor, ela foi

obscurecida pela atribuição a Descartes de uma paternidade fictícia7.

2. reinserir o tratado lockiano «Identidade e diferença» na trajetória da invenção européia da

consciência, da qual assinalaremos alguns episódios8;

3. indicar como a conjunção das questões da identidade pessoal e do conhecimento pela Mind de suas

próprias operações se situa neste Ensaio – que ela, em contrapartida, permite compreender melhor, em sua

economia geral e em sua articulação de todo (em particular, a dimensão moral e política).

i. um enigma de tradução: o «expediente» de pierre coste9

Acreditávamos que Descartes era o primeiro dos grandes «filósofos da consciência». A França –

mesmo expatriada na Holanda – tinha esta glória. E, disso, tínhamos a confirmação nas célebres controvérsias

que, até bem recentemente, opuseram intérpretes (Gueroult, Alquié) radicalmente discordantes no que se

refere ao sentido e às propriedades da «consciência» cartesiana, mas unânimes em ler, no coração da

«meditação», uma teoria da identidade da consciência e do sujeito. Acreditávamos, também, saber (como

7 A posição que defendemos sobre o assunto já foi esboçada por outros autores, em particular por Francis Jacques em seu prefácio à tradução do livro de Ryle, A Noção de espírito: «Mas, porque o autor se preocupa tão pouco em estabelecer, por uma identificação precisa do Cogito, uma imputação eqüitativa de responsabilidades? […] Pois, na realidade, se ele pretendesse apresentar a verdadeira figura histórica de seu adversário ele o teria podido, na pessoa de John Locke. Foi ele, e não Descartes, que prescreveu o exame minucioso dos estados e operações da consciência […] É o filósofo anglo-saxão […] que sustenta que o espírito pode ver ou olhar suas próprias operações à luz que elas emitem […]». 8 Para mais precisões sobre este ponto, cf. nosso artigo «Conscience», a ser publicado no Vocabulaire Européen des Philosophies, organizado por Barbara Cassin, Seuil-Robert. 9 As páginas que seguem foram objeto, em 1992, na Universidade de Paris I, de uma primeira exposição, nas jornadas de estudo «Traduzir filósofos», dirigidas por Olivier Bloch. Elas foram, em seguida, enriquecidas pelas observações de Catherine Glyn-Davies, cujo insubstituível estudo deve ser consultado: Conscience as consciousness: the idea of self awareness in French philosophical writing from Descartes to Diderot, The Voltaire Foundation, Oxford, 1990.

Page 3: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 3

repetem livremente os dicionários de filosofia) que ele foi o introdutor do próprio termo de consciência, nessa

acepção que se designa como metafísica, mas também como psicológica, transcendental, epistemológica (ao

preço de controvérsias bem conhecidas, quanto à equivalência e a compatibilidade destes termos), para

distingui-la da acepção dita «moral»10.

O primeiro ponto é decerto independente do segundo: não se poderia excluir absolutamente que

Descartes tenha concebido e, mesmo, colocado no centro de sua filosofia uma «coisa» que, só mais tarde,

identificamos àquilo que chamamos de consciência – desde que examinemos cuidadosamente o que distingue

suas teses das de Locke, ou de Kant, de Husserl, de Freud ou de Bergson. No entanto, a idéia de um conceito

anônimo ou pseudônimo é difícil de ser admitida: se Descartes houvesse elaborado uma doutrina da consciência e de seu caráter fundador, sem lhe dar um nome, ou fornecendo-lhe um outro nome, como o

saberíamos? Se ele houvesse enunciado sua doutrina da consciência por meio de uma terminologia múltipla,

comportando diversos equivalentes parciais, disjuntos ou não, onde estaria, então, a demonstração de sua

articulação sistemática? A menos que invocássemos esta tautologia: sendo a filosofia de Descartes

essencialmente a da consciência, o sistema completo dos conceitos cartesianos constitui-se em sua descrição…

Inversamente, a idéia de uma introdução, por parte de Descartes, do termo de consciência em filosofia

não implica que Descartes mereça a apelação de filósofo da consciência ou do primado da consciência11: é bem

possível, entretanto, que ela deva seu efeito de verossimilhança a uma leitura da filosofia cartesiana cuja

antiguidade e importância histórica seria fútil contestar, mas que seria útil verificar.

Descartes não é o «introdutor» ou o «inventor» da consciência. E duvidamos que se possa ver nele,

típica ou arquetipicamente, um «filósofo» (do primado) da consciência». Nem no sentido psicológico do termo (mas onde começam e onde terminam a psicologia e o psicologismo?), nem no sentido metafísico ou

transcendental. Esta desilusão, nós não a devemos, primeiramente, a uma argumentação filosófica (mesmo que

alguns trabalhos contemporâneos, inspirados em Lacan, em Canguilhem e em Wittgenstein, pudessem nos

preparar para isto), mas a um encontro filológico: o de Pierre Coste, tradutor em 1700 do Ensaio acerca do

entendimento humano de Locke. A tradução de Coste é, hoje ainda, a única completa em francês. Felicitemo-

nos, ao menos desta vez, por esse arcaísmo, já que ele reserva a cada estudante, a qualquer leitor francês do

Ensaio, a possibilidade de descobrir estas duas notas do tradutor, na página 264, a respeito do § 9 do capítulo

xvii do livro II12:

«(1) O moi [eu/mim] de M. Pascal me autoriza, de alguma forma, a me servir da palavra soi [si], soi-même [si mesmo], para exprimir o sentimento que cada um tem, em si, de que é o mesmo; ou, para dizê-lo melhor, sou forçado a isto por uma necessidade indispensável; pois não poderia exprimir de outra maneira o sentido do autor, que tomou a mesma liberdade em sua língua. As perífrases que poderia empregar nessa ocasião confundiriam o discurso e o tornariam, talvez, inteiramente ininteligível.»

10 Cf. art. Conscience (– réflexive) [philo. géné.], de F. Brémindy, in Les Notions philosophiques. Dictionnaire, volume organizado por S. Auroux, PUF, 1990, tomo I, p. 432-433. Ligeira nuance no Historisches Wörterbuch der Philosophie (art. Bewusstsein, por A. Diemer): «Der moderne Bewusstseinsbegriff ist nach allgemeiner Auffassung durch Descartes konstituiert […] vom Gewissensbegriff losgelöst […] und umgekehrt zum zentralen anthropologischen Begriff <geworden>.» Observa-se, de passagem, que a «confusão possível» das duas acepções é própria ao francês, já que os alemães têm Gewissen e Bewusstsein, os ingleses conscience e consciousness. 11 No sentido em que, por razões diversas, considera-se que Spinoza, Hegel, Comte, Nietzsche, Frege, Wittgenstein, Heidegger ou Cavaillès não o são. 12 Reproduzimos aqui a quinta edição revista e corrigida, MDCCLV, publicada em Amsterdã e Leipzig, por J. Schreuder e Pierre Mortier le Jeune (reimpressão de E. Naert, Paris, 1972) do Ensaio filosófico acerca do entendimento humano, «traduzido do inglês por M. Coste».

Page 4: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 4

«(2) A palavra inglesa é consciousness, que se poderia exprimir em latim por conscientia, si sumatur pro actu illo hominis quo sibi est conscius. […] E é nesse sentido que os latinos freqüentemente empregaram a palavra, como testemunha esta passagem de Cícero (Epist. Ad Famil. Lib. VI. Epist. 4.): Conscientia rectae voluntatis maxima consolatio est rerum incommodarum. Em francês, não temos, em minha opinião, senão as palavras sentimento e convicção, que respondem de alguma forma por essa idéia. Mas, em muitos lugares desse Capítulo, elas não podem exprimir senão de forma bastante imperfeita o pensamento de M. Locke, que faz depender de modo absoluto a identidade pessoal do ato do Homem quo sibi est conscius. Percebi que todos os raciocínios que o autor desenvolve a respeito dessa matéria se perderiam completamente, se eu me servisse, em certas passagens, da palavra sentimento para exprimir o que ele entende por consciousness, e que acabo de explicar. Após ter buscado, durante algum tempo, meios de remediar este inconveniente, não achei nada de melhor do que me servir do termo conscience para exprimir este ato. Eis porque cuidarei de imprimi-lo em itálico, afim de que o leitor se recorde de relacioná-lo sempre a esta idéia. E, para permitir que se distinga ainda melhor esta significação daquela que ordinariamente se empresta a esta palavra, veio-me ao espírito um expediente que pode inicialmente parecer ridículo a muitas pessoas, mas que estou certo de que agradará a outras; é o de escrever consciência em duas palavras unidas por um hífen, desta maneira, con-sciência. Mas, argumentar-se-á, esta é uma estranha licença, desviar uma palavra de sua significação habitual para atribuir-lhe uma que jamais lhe foi dada em nossa língua. Quanto a isto, nada posso responder. Choquei-me a mim mesmo com a liberdade assim tomada; eu talvez fosse um dos primeiros a condenar um outro escritor que tivesse recorrido a esse expediente. Mas eu estaria errado, parece-me, se, após ter-me colocado no lugar desse escritor, eu ainda pensasse ser possível proceder de outra maneira. É ao que espero que se pense, antes de decidir se agi bem ou mal. Confesso que em uma obra que não fosse, como esta, de puro raciocínio, tal liberdade seria completamente indesculpável. Mas, em um discurso filosófico, não somente se pode, como se devem empregar palavras novas, ou fora de uso, quando não se tem qualquer uma que exprima a idéia precisa do autor. Tomar-se de escrúpulos em recorrer à liberdade em tais casos seria aceitar alegremente perder ou enfraquecer um raciocínio; o que implicaria, em minha opinião, em uma delicadeza bastante imprópria. Isso quando se está reduzido, por uma necessidade indispensável, como é, acredito, meu caso nesta oportunidade. Percebo, por fim, que eu teria podido empregar sem tantos receios a palavra consciência no sentido em que M. Locke a empregou neste capítulo e alhures, já que um de nossos melhores escritores, o famoso Padre Malebranche, não hesitou em se servir deste mesmo sentido em diversas passagens da Recherche de la Vérité. Após haver observado, no capítulo VII do livro III, que é preciso distinguir quatro maneiras de conhecer as coisas, ele diz que a terceira é de conhecê-las por consciência ou por sentimento interior. Sentimento interior e consciência são, pois, segundo ele, termos sinônimos. Conhece-se por consciência, diz ele mais adiante, todas as coisas que não são distintas de si… Não conhecemos nossa Alma, diz ainda, por sua idéia, só a conhecemos por consciência… A consciência que temos de nós mesmos nos mostra a menor parte de nosso Ser. Eis o que é suficiente para fazer ver em que sentido empreguei a palavra consciência, e para autorizar seu uso.»

Façamos aqui uma primeira pausa. O texto precedente é o que encontram os leitores atuais. Ora, ele

foi submetido a uma elaboração bastante instrutiva. Na primeira edição de sua tradução13, a segunda nota de

Coste, idêntica até a frase «…por uma necessidade indispensável, como é, acredito, meu caso nesta

oportunidade», assim prosseguia:

«Acabo, de resto, de identificar uma Bíblia com a tradução de Genebra, em que se empregou a palavra conscience no sentido que acabo de destacar. É na primeira Epístola aos Coríntios, cap. VIII, vers. 7. Não há conhecimento em todos, pois alguns alimentam-se (dessas carnes de sacrifício) com consciência do ídolo, isso é, independentemente do que sentem, se acreditam neles mesmos que o ídolo a quem essas carnes são oferecidas é alguma coisa e lhes comunicou alguma virtude. Não relato este emprego para

13 Publicada no ano de 1700, em Amsterdã, por Henri Schelte, editor da Bibliotèque Universelle de J. Le Clerc, de quem voltaremos a falar.

Page 5: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 5

confirmar o uso da palavra consciência nesse sentido, pois sei que a versão de Genebra não tem qualquer autoridade em nossa língua, mas apenas para fazer ver a necessidade que é a nossa.»

O termo que os pastores de Genebra traduzem por consciência é o grego suneidêsis14, da que

voltaremos a falar (enquanto conhecimento traduz gnôsis). A partir da segunda edição de sua tradução15, Coste

suprime essa referência bíblica, que traz, a uma só vez, problemas semânticos (pois nos encontramos aqui na

fronteira de usos «cognitivos» e de usos «morais» de consciência) e problemas de autoridade teológica (o livro

deve ser difundido em país católico, a França), e introduz a referência a Malebranche – que conhecemos

atualmente e que apresenta outros problemas. Deveremos analisar esta retificação.

Passado o primeiro instante de admiração pelo estilo, e por essa «consciência» de tradutor e de

filósofo, torna-se claro que o texto – em suas duas sucessivas versões – comporta numerosas dificuldades, que

seria útil tentar elucidar. Por sua vez, a identificação dos elementos dessa elucidação mostra que estamos diante não só de um testemunho capital da formação do conceito de consciência na filosofia moderna,

apropriada para dissipar um certo número de confusões e mitos, mas também de um certo momento dessa

formação, cuja negligência ou esquecimento devem ser reparados, se queremos começar a construir uma exata

representação de uma invenção que não cessou de determinar nosso modo de pensar.

Esboçando a história dessa invenção, em contraponto ao Tratado de Locke, desejamos contribuir para

o reconhecimento do papel filosófico da tradução de filósofos: todo aquele que, nos últimos três séculos, fez

referência à consciência, foi tributário da decisão tomada por Pierre Coste, após a de Locke. Pretendemos

igualmente sublinhar – a partir de um exemplo privilegiado, mas que sem dúvida não é o único – a que ponto a

formação dos conceitos fundamentais de nossa tradição sempre resultou de um trabalho originariamente

transnacional sobre as línguas.

A primeira questão que se pode colocar na leitura da nota de Coste é a de saber porque ela intervém tão tardiamente. E, ao mesmo tempo, saber porque Coste não traduziu «consciousness» por conscience ou por

con-science antes do capítulo xxvii do livro II. As indicações que ele nos fornece deixam entender que, até esse

ponto, equivalentes parciais (tais como conhecimento, sentimento e convicção) podiam bastar, mas que se

tornaram a partir daí incompatíveis com a exatidão teórica (em uma obra de «puro raciocínio»). Elas sugerem

que esse momento é aquele em que certas tensões advindas da história do latim e do francês devem ser

resolvidas. Mas elas não explicitam o elemento novo que teria intervindo. Ora, esse atraso é tão mais

surpreendente que a palavra «consciousness» figura no texto de Locke desde o capítulo I do livro II do

Ensaio16, não de maneira episódica ou vaga, mas de forma sistemática e conceitual. É precisamente no § 19

desse capítulo que figura a caracterização de consciousness geralmente citada pela tradição anglo-saxã como

definição da consciência segundo Locke: «Consciousness is the perception of what passes in a Man’s own

Mind». Isso é: a «consciência» é a percepção daquilo que (se) passa no espírito de um homem; mas, também: é

14 Na versão moderna da escola francesa de Jerusalém, os tradutores empregaram aqui hábito, o que não deixa de criar uma disparidade com outras traduções de suneidêsis no contexto. Em inglês clássico, a versão dita «de King James» (1611) registrava em todas as passagens conscience (e não consciousness). 15 Publicada em 1729, por Pierre Mortier, em Amsterdã. 16 E, mesmo, se consideram-se os acréscimos da 2ª edição, desde o capítulo 3 (numerado como IV nas edições inglesas) do livro I (§ 20). Uma prova suplementar dessa sistematicidade é o acoplamento do substantivo consciousness e do adjetivo conscious, de tal forma que se, etimologicamente, o primeiro deriva do segundo, teoricamente o segundo remete sempre ao primeiro. Até mesmo quando introduzir con-sciência, Coste jamais traduzirá «conscious» por «consciente»: cf. abaixo o nosso Glossário, conscious, consciousness.

Page 6: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 6

o fato, para um homem, de perceber aquilo que (se) passa em seu próprio espírito (em um espírito que é o seu,

que lhe pertence como próprio, que é sua propriedade).

Porque Coste, manifestadamente advertido das exigências de uma tradução teórica (àquilo que ele

próprio afirma, o que haveria ainda a acrescentar?) e não recuando diante das novidades, traduz em II.i.1

«conscious to himself that he thinks» por «convencido nele mesmo que ele pensa»; em II.i.11 «it being hard to

conceive, that anything should think, and not be conscious of it» por «não é fácil conceber que uma coisa

possa pensar e não sentir que pensa»; «without being conscious of it» por «sem ter uma percepção atual»; em

II.i.19 a definição citada acima por «essa convicção não é outra coisa além da percepção do que se passa na

alma do homem17»; etc., antes de chegar, de súbito, em II.xxvii.9 a «pois que a con-sciência sempre acompanha o pensamento, e que é isto, que faz com que cada um seja, o que nomeia de si mesmo» por «since

consciousness always accompanies thinking, and ‘tis that, that makes everyone to be, what he calls self»?

O único elemento de resposta que possa fornecer essa localização precisa no contexto, entretanto

capital, é a conjunção, na mesma frase, dos dois termos teóricos fundamentais, que jamais se haviam

encontrado antes, mas que se tornam a partir daí correlativos: the self, the consciousness, o «si», a

«consciência». Antes desse § 9 do capítulo xvii, consagrado ao problema da identidade pessoal, de fato foi

questão de consciousness, mas não de self como substantivo. Coste «inventa», então, con-sciência no momento

preciso em que é forçado pela língua e pela matéria teórica a criar não apenas um, mas dois neologismos, um

de vocabulário, outro de sentido18. Pressentimos que essas duas criações extraordinárias estão estreitamente

ligadas em Coste, como elas estão em Locke, mas a significação completa desse indício só ficará visível mais

tarde.

Antes, porém, de nos engajarmos nessa via, é preciso buscar esclarecer os usos dos termos aqui

presentes, tanto em inglês quanto em francês e latim, isso é, nos diferentes ramos do colingüismo europeu19.

Coloquemo-nos na posição do tradutor, e comecemos pelo inglês. «O termo inglês é consciousness, que se

poderia exprimir em latim pelo de conscientia…» escreve Coste, o que prova que lhe foi preciso voltar ao latim

para compreender do que se tratava. Com efeito, e isso é capital para nosso problema, consciousness não é

apenas um conceito definido por Locke, mas, como palavra inglesa, um quase-neologismo, como demonstram

as melhores lexicografias existentes20. O único precedente (veremos que é capital) encontra-se na obra de

Cudworth, The True Intellectual System of the Universe, publicado em 167821. Locke estava, ao que parece,

17 É surpreendente que Coste não perceba a incoerência que essa «tradução» produz: a partir da segunda edição, o Essay de Locke comporta um Index final com uma rubrica consciousness que remete à «definição» de II.i.19 («consciousness, what»); Coste traduziu o index tal e qual, empregando con-sciência, e portanto fazendo alusão a uma passagem em que, no seu texto, a palavra não figura. 18 Havendo inventado o soi [si] para traduzir o self, e con-science para traduzir consciousness, Coste não foi, contudo, até o ponto de forjar um neologismo para self-consciousness. Por isso, no § 16 do Tratado, ele se contentou em retomar seu termo com-sciência, acrescentando, no entanto, uma nota: «Self-consciousness: expressiva palavra em inglês, que não se pode traduzir, em toda sua força, para o francês. Eu o assinalo aqui em favor daqueles que compreendem a língua inglesa.» 19 Empregamos o conceito de R. Balibar, Le Colinguisme, PUF, Collection Que sais-je, 1993. 20 Consulte-se, notadamente, o Oxford English Dictionnary (2ª edição, 1989), que define:

– por conscious: 1625 BACON Ess., Praise (Arb) 353 Wherin a Man is Conscious [MS and ed. 1612 conscient] to himself, that he is most defective. 1690 LOCKE Hum. II. I, If they say, That a Man is always conscious to himself of thinking […]

– por consciousness: 1678 CUDWORTH Intell. Syst. (1837) I.93 Neither can life and cogitation, sense and consciousness… ever result from magnitudes, figures, sites and motions. 1690 LOCKE Hum. Und. II.i § 19 Consciousness is the perception of what passes in a Man’s own Mind […]

21 Ver nosso Dossier. Ralph Cudworth, 1617-1688, cuja importância da obra se redescobre atualmente, foi Master do Christ’s

Page 7: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 7

perfeitamente consciente de inovar, no plano do conceito (senão da língua). A fórmula sempre citada como

definição intervém no curso de uma argumentação fundadora, dirigida contra a doutrina das idéias inatas. É

um elenchos que culmina na identificação do «pensamento» à «consciência do pensamento», já que sua

separação se contradiria a ela própria: «thinking consists in being conscious that one think» (II.i.19). Mais

ainda, ele distinguiu rigorosamente esse neologismo do conceito moral de conscience, que também é objeto de

uma definição22. Que obstáculos, lingüísticos ou conceituais, puderam dissuadir Coste de recorrer aqui ao

«expediente» ao qual, em certo momento, ele pensou para dar a dimensão da invenção de Locke?

Prossigamos nossa investigação, voltando-nos, dessa vez, para o latim, como o faz o próprio Coste.

Não poderíamos entrar em toda a lexicografia do termo conscientia23. Parece claro que o termo é ainda entendido a partir de scientia, isso é, como conhecimento ou saber no latim clássico. O prefixo cum designa

uma partilha ou comunidade que dá lugar seja à idéia de cumplicidade ou de conivência com outros, seja à

idéia de foro íntimo ou de segredo (o segredo sendo o saber que não se partilha senão consigo mesmo, pelo

qual não se responde senão a si mesmo). Daí a construção clássica sibi conscire, sibi conscius esse – traduzida

em inglês conscious to (with) itself (himself) – que não quer dizer «ser consciente de si», mas «estar

informado, alertado» de alguma coisa (alicujus rei) e que tem emprego sobretudo judiciário. Por outro lado,

desde a filosofia antiga, em particular sob a influência estóica, em Cícero e Sêneca, o domínio privilegiado de

aplicação desse saber que não se partilha senão consigo mesmo é a vida moral: os atos, as palavras, as

intenções cujo valor está em discussão. Conscientia ou conscientia animi é, pois, sinônimo de julgamento, de

estima de si e de instância dessa avaliação, que aprova ou condena, presta testemunho ou enche de remorsos

(conscientiae morsus). O jogo de desdobramento da pessoa (apoiado na metáfora da «voz» interior) é desencadeado: na conscientia, sou eu que me conheço e me julgo, ou que sou desvelado e julgado? Esse jogo é

amplificado pela casuística moral do cristianismo: a questão, então, sendo de saber se a «voz da consciência» é

natural ou sobrenatural, se ela emana de uma capacidade humana, de uma moralidade inata, ou se ela exprime

uma intervenção divina, uma advertência e uma graça que recebemos do Alto.

Traduzindo por conscientia o grego suneidêsis, toda a tradição cristã glosa e varia a frase de São

Paulo, Rom., 2, 15-16:

«…esses homens, sem possuir leis, se tomam eles próprios pela lei (nomon mè ekhontes heautois eisin nomos); eles mostram a realidade dessa lei inscrita em seu coração, como o provam o testemunho de sua consciência (summarturousès autôn tès suneidèséôs) e os julgamentos interiores de condenação ou de absolvição ao quais submetem suas próprias ações, [eles serão justificados] no dia em que Deus julgará as ações secretas dos homens (krinei o tehos ta krupta tôn anthrôpôn) segundo meu Evangelho24…» [trad. Bíblia de Jerusalém, 1956]

College e o principal expositor do «platonismo de Cambridge». Locke o havia reencontrado em Londres, em 1681. Ele tornou-se amigo de sua filha Lady Masham (ela mesma autora de ensaios filosóficos e correspondente de Leibniz), em cuja casa passou os últimos anos de sua vida. A vida e o elogio de Locke, escritos após sua morte por Lady Masham, encontram-se em sua carta a Jean Le Clerc, de 12 de janeiro de 1705 (Jean Le Clerc, Epistolario, vol. II (1690-1705), a cura di M. G. E m. Sina, Leo S. Olschki Editore, Florence 1991, p. 497-517). Sobre esta figura importante das letras européias, cf. Sarah Hutton, «Damaris Cudworth, Lady Masham: between Platonism and Enlightenment», The British Journal for the History of Philosophy, vol. 1, nº 1, 1993. 22 Essay, I.iii.8: «nothing else, but our own Opinion or Judgment of the Moral Rectitude or Pravity of our own Action». 23 Remeta-se, quanto à questão, ao artigo «conscience», a ser publicado no Vocabulaire Européen des Philosophes, op. cit. Ver também as reflexões de C. S. Lewis, «Conscience and conscious», Studies in Words, Cambridge University Press, 1967. 24 Estritamente aparentada às fórmulas de I Cor., 14,25 e 2 Cor., 5, 10, sobre a abertura dos segredos do coração no dia do Julgamento, que Locke tornará a base de seu desenvolvimento nos § 22 e 26 de seu tratado (cf. abaixo, Glossário,

Page 8: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 8

Agostinho havia identificado a conscientia com o homem interior (intus hominis, quod conscientia

vocatur, In Os., 45, 3), reduto secreto que o olhar de Deus atravessa, ou melhor: no qual já habita (Noli foras

ire, in teipsum redi: in interiore homine habitat veritas, De vera Rel., 39, 72). Jerônimo dirá que a centelha da

consciência depositada em nós, scintilla conscientiae, brilha mesmo nos criminosos e pecadores. Mas a

fórmula empregada por Coste (conscientia, si sumatur pro actu illo hominis quo sibi est conscius), que apela

logicamente por um complemento (alicujus rei), parece sobretudo de origem escolástica25. Ela remete à

definição de São Tomás (Summ. Theol., Ia, Q. 79, art. 13) que estabelece que a conscientia não é, sem dúvida,

ela mesma uma «potência intelectual», mas o ato correspondente à synderesis, potência de conhecimento dos

princípios práticos (isso é, da lei moral), quando esta se aplica a casos particulares, concretos26. Reencontraremos constantemente os termos de ato e de atual nos tradutores de Descartes e de seus

interlocutores para qualificar o «conhecimento» correspondente à conscientia. O importante, aqui, é a

insistência sobre o aspecto intelectualista da consciência (contra as doutrinas do sentimento, da

espontaneidade, do entusiasmo e da inspiração). São Tomás preocupa-se em reaproximar conscientia de uma

etimologia cum alio scientia para insistir quanto a seu caráter de ato do intelecto. Estamos no interior de uma

problemática racionalista, nos antípodas da idéia de um «instinto divino» à la Rousseau.

Seria então necessário, para explicar o sentido de consciousness de Locke tal como o compreende

Coste, identificá-lo como transposição de uma concepção escolástica de julgamento moral? Ainda que, no

fundo, isso também esteja presente, muitas são as razões que vão de encontro de uma gênese desse tipo. Locke

e Coste são protestantes27: em sua linguagem e formação, a «consciência» é, por um lado, uma inspiração

pessoal e uma afirmação da liberdade (após Lutero, que associava estreitamente o Gewissen e a Gewissheit, a consciência e a certeza, Calvino situa no centro de sua reivindicação da fé a adesão da consciência, enquanto os

anabatistas forjavam a objeção de consciência). Por outro lado, Coste traduz em um meio impregnado de

cartesianismo e de discussões sobre a doutrina cartesiana. Ele não pode, portanto, não levar em consideração

os textos franceses que está certo de que o próprio Locke leu. É neste aspecto que as explicações de sua nota

aparecem como mais confusas: porque se atribui ele um neologismo, se o termo «consciência», no sentido de

puro conhecimento de si, já existe? Porque acrescenta uma referência a Malebranche, aparentando só então

descobrir a autoridade dessa citação, se ela bastaria para resolver a questão28? Porque não menciona

Descartes?

ressureição) 25 O Thesaurus eruditionis scholasticae de B. Farber, publicado em 1571 e reeditado em 1696 (citado por Diemer, Hist. Wört. Der Phil., art. Bewusstsein) dá como segunda acepção de conscientia: is animi status quo quis alicujus rei sibi conscius est. 26 Os desenvolvimentos da escolástica procedem de Jerônimo, mas por efeito de um surpreendente quiproquó: acreditando ler em seu texto a palavra sunteresis, os copistas a interpretam, inicialmente, como um derivado de térésis («guarda»), em seguida como derivado de hairèsis («escolha»). Assim se forja uma palavra grega fictícia, a «syndérèse», que desempenha a função essencial de desdobrar a consciência em faculdade passiva (traço da criação divina) e faculdade ativa (operando após a queda). Tomás de Aquino e Boaventura formam, então, o «silogismo prático» do processo pelo qual a revelação ilumina nossas ações e as guia: 1. sunderesis, 2. conscientia, 3. conclusio. Trata-se de um esquema intelectualista fundamental, cuja influência está longe de desaparecer com sua justificação teológica (cf. Hist. Wört. Der Philos., art gewissen, por H. Reiner). 27 Eles pertencem à ala liberal do protestantismo europeu: cf., abaixo, as observações sobre o círculo de Jean Le Clerc. 28 Pode-se, evidentemente, supor que Coste inicialmente não pensou em citar Malebranche e que somente em seguida o descobriu, ou lhe foi sugerido que essa seria uma referência bem melhor do que a Bíblia de Genebra. Mas parec-nos pouco provável que Coste tenha ignorado os textos de Malebranche, não só em razão de sua notoriedade, mas por um motivo muito mais preciso: é que, em 1696, no momento em que ele se instala junto a Locke para trabalhar em sua tradução, Locke acaba de redigir uma crítica à Recherche de la vérité, na qual, como veremos, a terminologia do conhecimento de si desempenha um papel central. Assim, não restam dúvidas de que o confronto se produziu nos bastidores da tradução. A confirmação da estreita associação de Coste e Locke, na confrontação de Malebranche, é confirmada em Jean Deprun, La Philosophie de l’inquiétude em France du au XVIIIe siècle, Vrin, 1979, p. 193.

Page 9: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 9

A solução para essas dificuldades reside, antes de tudo, ao que nos parece, nas seguintes constatações:

1. À exceção de duas passagens, uma das quais duvidosa e outra adventícia, Descartes jamais emprega

a palavra «consciência» em francês nem, a fortiori, o adjetivo «consciente» ou a expressão «estar

consciente29». Além disso, ele emprega muito raramente conscientia e conscius esse em latim, as duas maiores

exceções constituindo-se nos textos – estreitamente aparentados – das Definitiones I e II (Cogitatio, Idea) na

Exposição Geométrica das Respostas às segundas objeções30 e do artigo I, § 9 dos Princípios da filosofia (em

nenhum dos dois casos os tradutores, Clerselier e Abade Piccot, cujo texto foi revisto por Descartes,

empregaram «consciência» ou «estar consciente»). Conscientia não figura nas Meditações, que serão, em

seguida, consideradas como fundadoras de uma teoria do sujeito consciente de si, notadamente nas análises da «coisa que pensa» das segunda e terceira Meditações, tanto quanto «consciência» não aparece no Discurso

sobre o método ou em As paixões da alma. Sem Descartes, não haveria em filosofia a invenção da consciência

(e, antes dela, da consciousness), mas isso não é tanto um feito seu, mas o resultado dos espinhosos problemas

que a interpretação de sua doutrina colocou.

2. «Consciência» foi, entretanto, introduzido em francês pelos discípulos imediatos de Descartes,

engajados nas controvérsias sobre o dualismo do corpo animal e do espírito, tanto quanto sobre os

fundamentos da metafísica: em primeiro lugar, ao que parece, por Louis de La Forge, editor em 1664 de

L’Homme e autor, em 1666, do Traité de l’esprit de l’homme31. Mas o termo foi objeto de uma definição

nominal no Système de philosophie do cartesiano Pierre-Sylvain Régis, publicado em 1690, mesmo ano do

Essay de Locke:

«Asseguro-me, pois, de que existo todas as vezes que conheço ou que acredito conhecer alguma coisa; e estou convencido da verdade desta proposição, não por um verdadeiro raciocínio, mas por um conhecimento simples e interior, que precede a todos os conhecimentos adquiridos, e que denomino consciência32».

Este duplo fato chama nossa atenção quanto a uma das direções em que se exerce a influência de Descartes e quanto à forma pela qual ela influencia a língua francesa. Mas, ao menos até o meio do século

XVIII, em sentido outro do que o moral, o termo «consciência» será aí pouco corrente e necessitará de

esclarecimento suplementar.

3. A grande exceção é Malebranche, para quem a noção de consciência é, de fato, primordial, e sobre

quem voltaremos em detalhes. Mas sua definição como «sentimento interior» é, em seu fundo, anticartesiana:

ela situa os filósofos diante da necessidade de uma tomada de posição. A consciência de Malebranche é o

conhecimento imperfeito que temos da alma («não sabemos de nossa alma senão o que sentimos se passar em

nós»). Esse pseudo-conhecimento sem dúvida «não é falso», mas é essencialmente confuso e exposto a todo

29 Cf. Carta a Gibieuf, 19-1-1642: «não o reputo senão á ameu próprio pensamento ou consciência». G. Rodis-Lewis (L’Œuvre de Descartes, Vrin, 1971, p. 240) comenta, em nota: « segundo uma nota manuscrita, ao passo que a edição Clerselier, talvez por escrúpulo de purista, omitiu «ou consciência». Encontra-se o termo, com essa acepção metafísica, em francês, apenas nas 3e Réponses, A.T. IX, 137, sobre os «atos intelectuais que não podem existir sem pensamento, ou percepção, ou consciência e conhecimento» (as duas últimas palavras traduzindo o termo conscientiae de A.T. VII, 176, é possível que Descartes tenha, ele próprio, acrescentado: «e consciência», na tradução de Clerselier).» 30 Cf. Dossier de textos em anexo. 31 La Forge (Louis de). Traité de l’esprit de l’homme (1666), in Oeuvres philosophiques, Edição apresentada por Pierre Clair, PUF, 1974. Cf. Geneviève Lewis. Le problème de l’inconscient et le cartésianisme, PUF, 1950. 32 Pierre-Sylvain Regis. Système de philosophie contenant la Logique, la Métaphysique et la Morala, Tome Premier […] p. 63 e seg. Mme. Monette Martinet observa que a obra de Régis foi redigida muitos anos antes de sua publicação. Cf. Dossier.

Page 10: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 10

tipo de ilusões. Malebranche bem sabe que, assim, ele destrói o próprio cerne do cartesianismo, para fins

teológicos e apologéticos (substituir o cogito por uma idéia do Verbo divino na posição de verdade primeira)33.

Ora, sobre esse ponto, a escolha de Locke (que, desde seus anos de juventude, conhece perfeitamente

bem o pensamento do grande oratoriano) é bastante clara: criticar Descartes diferentemente do que o fez

Malebranche. Sua consciousness não é uma idéia confusa, marcando um limite para o conhecimento e o

domínio de si. Ela é, ao contrário, um reconhecimento imediato, pela Mind, de suas operações sobre a «cena»

interior, campo indefinidamente aberto, de que é o autor e o espectador. A consciousness de Locke, diríamos,

hoje, não é «menos consciente» do que a cogitatio cartesiana, ela o é mais! Eis porque, sem dúvida, Coste não

pôde aceitar esse enorme precedente senão após uma longa hesitação, ao mesmo tempo em que não cessava de buscar inscrever essa diferença no cerne da palavra, através de um «expediente» gráfico que figura como um

traço mudo do conflito latente.

4. A contra-prova dessa situação nos é fornecida pelo exame dos textos de Leibniz: Leibniz toma, em

relação à concepção cartesiana do conhecimento, o partido inverso daquele que assumiu Locke: pelas idéias

inatas e contra a idéia de que o espírito possa inspecionar-se a si mesmo, ou se conhecer inteiramente por meio

de sua própria reflexão. O Discours de la métaphysique (1686) não emprega o termo, mas a correspondência

com Arnauld comporta diferentes referências à consciência (associada à «experiência interior», ao

«pensamento», à «reminiscência»)34. Aí ela aparece, entretanto, constantemente associada a uma noção bem

mais construída, na economia do sistema, e mais decisiva para o futuro: a de apercepção, que torna-se,

finalmente, a noção fundamental. (cf. o § 14 da Monadologia, 1714). É bem possível que, nesta decantação, a

leitura de Locke tenha desempenhado seu papel: no capítulo II.xxvii.9 dos Novos Ensaios, Leibniz, que relê o Essai na tradução de Coste, retraduz consciousness por conscienciosidade. Isto significa que ele recusa o

neologismo de Coste, para tentar situar a consciência no sistema das categorias da percepção35. A oposição

conceitual de Leibniz e de Locke, a oposição terminológica de Leibniz e de Coste manifestam que os dois lados

da metafísica cartesiana da «coisa que pensa» são, a partir daí, incompatíveis.

5. Será preciso esperar Condillac para que o termo de «conscience», mais uma vez apresentado como

inovação, seja definitivamente naturalizado. Mas este uso procede de Locke e, por conseguinte, de Coste. No

Essai sur l’origine des connaissances humaines, de 1746, expondo a «análise e geração das operação da alma»

(I.ii sv.), Condillac começa por estudar (I.ii.1) «a percepção, a consciência, a atenção, a reminiscência». No § 4,

ele escreve:

33 Cf. Jean-Pierre Osier, Apresentação do Traité de morale de Malebranche (1684, reed. Garnier-Flammarion, 1995): ao mesmo tempo em que transfere para o «sentimento interio» da alma as funções da alma e do corpo, Malebranche restitui a Deus a clareza do cogito e a suficiência ontológica de que é signo. 34 Cf. Leibniz, Discours de métaphysique et correspondance avec Arnauld, Introdução e Comentário de G. Le Roy, 5ª edição, Vrin, 1988 (em particular, Lettre XXVI de 9 de outubro de 1687, p. 180 e seg.). Ver, também, as análises de Martine de Gaudemar, Leibniz. De la puissance au sujet, Vrin, 1994. 35 Cf. Leibniz, Nouveaux Essais sur l’entendement humain, Introdução de J. Brunschwig, Garnier-Flammarion, 1966. A carta de Jean Le Clerc a Locke em 9 de abril de 1697 (Epistolario, ed. Cit., vol. II, p. 232) mostra que Leibniz já havia lido o Essay em inglês, redigindo algumas observações para os amigos do autor. Entretanto, o trabalho que o levou à redação do «diálogo» (no qual o ponto de vista de Locke é representado por citações ou resumos colocados na boca de «Filaleto») foi realizado em 1702-1703, a partir da tradução de Coste. Extremamente sensível às questões de idioma filosófico, Leibniz discute as traduções confrontando as etimologias francesa, inglesa e, mesmo, alemã (por exemplo, no caso de uneasiness: N.E., II, cap. 20, §6, onde Coste é denominado «o intérprete francês»). Os Nouveaux Essais mantiveram-se inéditos, durante a vida de Leibniz (a morte de Locke, em 1704, o tendo dissuadido de dar prosseguimento à disputa) e só serão publicados em 1765. A sugestão de retraduzir consciousness por conscienciosité permaneceu, pois, letra morta e jamais teve chance de se afirmar.

Page 11: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 11

«[…] como todos admitem, há na alma percepções sobre as quais ela não está desavisada [qui n’y sont pas à son insu]. Ora, a este sentimento […] chamarei consciência. Se, como pretende Locke, a alma não tem percepções das quais não tome conhecimento […] a percepção e a consciência devem ser tomadas como uma só e mesma operação. Se, ao contrário, o sentimento oposto fosse o verdadeiro, elas seriam duas operações distintas; e seria na consciência, e não na percepção, como supus, que começaria propriamente nosso conhecimento36.

Passando ao largo do conceito de consciência, Condillac – que não faz qualquer referência a Descartes

– vai introduzir a atenção (§5), que é um «plus de consciência» inerente a certas percepções, em relação a

outras. Ele se declarará contra a posição de Leibniz (mesmo que se utilize parcialmente de sua descrição das

«pequenas percepções»), alinhando-se com reservas à posição de Locke – retificando-a pelo estudo dos

fenômenos da vigília, da atenção mais ou menos viva, da memória e do esquecimento. Na continuação de Locke

e, por assim dizer, nas margens de seu texto, ele chega finalmente ao «sentimento de meu ser», ao

reconhecimento da permanência de um «ser que é constantemente o mesmo nós», à identidade do «eu de

hoje» e do «eu da véspera», que nada mais é do que a idéia do tempo derivada da sucessão de nossos

pensamentos. Oito anos mais tarde, no Traité des Sensations, ele ainda posterga a entrada em cena da «consciência». Ela só intervém no capítulo vi do livro I («Do eu, ou da personalidade de um homem limitado

ao odor»), após toda a gênese das faculdades concebidas como transformações da sensação pura. Citando, em

nota, Pascal («Onde está, pois, o eu, se não está no corpo nem na alma?»), ele escreve (§3):

«Os odores, dos quais a estátua não se recorda, não entram, portanto, na idéia que ela tem de sua pessoa […] Seu eu não é mais do que a coleção de sensações que ela experimenta e daquelas de que sua memória a recorda. Em resumo, é, ao mesmo tempo, a consciência do que ela é e a recordação daquilo que foi37.»

A consciência torna-se então, e igualmente em francês, o conceito unitário que recobre a percepção

das coisas, a do eu como multiplicidade interna de representações e a continuidade temporal de sua existência.

As formulações de Condillac serão retomadas pelos Ideólogos, e criticadas, de um lado, por Maine de Biran e,

de outro, por Victor Cousin. A dialética das concepções da consciência, «materialistas» e «espiritualistas», ou,

de um outro ponto de vista, «psicologistas» e «transcendentais», pode começar a se desencadear. Ela chegará

até nossos dias.

Antes de nos voltarmos para o texto do Essai de Locke, para avaliar as operações teóricas que deram

origem a esta notável translação, é preciso tentar compreender mais largamente o que foi, sobre o duplo plano das palavras e das idéias, essa invenção cujo ponto de chegada provisório acabamos de identificar.

ii. a invenção européia da consciência

A invenção da consciência mergulha suas raízes no encadeamento dos acontecimentos intelectuais

que inauguram a modernidade. Ela concerne todo o campo da teologia, da política, do pensamento moral e

36 Condillac, Essai sur l’origine des connaissances humaines, in Oeuvres philosophiques de Condillac, texto estabelecido e apresentado por Georges Le Roy, PUF, 1947, Volume 1, p. 11. Este parágrafo é copiado por Jacourt no artigo Conscience (Phil. Log. Métaph.) da Enciclopédia, que fornece a seguinte «definição»: «A opinião ou o sentimento interior que temos, nós próprios, daquilo que fazemos», e prossegue: «é o que os ingleses exprimem pela palavra consciousness, que só pode ser traduzida em francês por meio de uma perífrase.». Cf. C. Glyn-Davies, op. cit. 37 Oeuvres philosophiques de Condillac, op. cit., vol. 1, p. 239.

Page 12: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 12

filosófico, das letras38. Podemos concebê-la como um drama em múltiplos episódios, cujos protagonistas

pertencem ao mesmo tempo à cultura insular e à cultura continental, de lado e de outro do Canal. Eles se

exprimem em latim (lendo igualmente e, por vezes, reconstituindo o grego, mas não o árabe), em italiano, em

francês, língua da «República das Letras», em inglês e, a partir do século XVIII, em alemão.

Um primeiro episódio, cuja herança é bem visível em Locke, em sua maneira de nomear a consciência

e de identificar sua continuidade com a autonomia do «eu», corresponde aos debates suscitados pela Reforma

em torno da liberdade de consciência. Sua aquisição mais marcante reside na possibilidade de empregar a

palavra «consciência», não para designar uma faculdade da alma, ou o testemunho interior de um duplo do

sujeito, mas como outro nome de um indivíduo singular. Esta personificação metonímica permite qualificar as consciências em relação a suas ações e suas experiências: «uma nobre consciência», «uma consciência

esclarecida», «uma firme consciência», uma «consciência infeliz», etc.39.

Um outro episódio decisivo, preparado na época das Luzes pela radicalização do sensualismo em

teoria da gênese das faculdades intelectuais (Condillac), pelas análises concorrentes do natural e do artifício em

Diderot e em Hume, pela redefinição rousseauniana das relações entre homem privado e homem público,

levará, na era das Revoluções e das guerras européias, às psicologias do sentido íntimo (Maine de Biran) e às

divisões dialéticas da consciência de si (Kant, Fichte e Hegel).

Mas, no intervalo, tem lugar um longo momento de construção especulativa. De forma essencial, ele

procede do modo paradoxal pelo qual Descartes resolveu a querela do ceticismo. A afirmação da certeza

inscreve a garantia de verdade no coração do pensamento individual, mas sob a forma de uma identificação

entre a imediatez e a reflexividade, ou da presença a si e do saber de si do pensamento, onde se encontram enigmaticamente implicadas as distinções substanciais do finito e do infinito, da alma e do corpo, que não são

mais do que a outra face de uniões existencialmente indissolúveis. Esse paradoxo leva, rapidamente, ao

surgimento de um conflito, que faz da consciência ao mesmo tempo o conceito do «conhecimento de si» e do

«desconhecimento de si». A obra de Locke e a translação dos conceitos para o continente se situam no centro

desta tensão metafísica, que não encontrará solução antes da Dialética Transcendental kantiana. Se quisermos

entender toda a amplitude da questão, será preciso uma longa digressão.

Em vista da clareza de exposição, após a releitura dos textos essenciais de Descartes,

esquematizaremos o conflito da seguinte maneira: de um lado, os defensores de uma concepção afirmativa da

consciência, para quem esse conceito adquire um valor fundador, como reconhecimento de si pela alma; de

outro, os defensores de uma concepção negativa, para quem o conceito de consciência é igualmente

identificado, mas essencialmente como uma função de desconhecimento ou de equívoco. São essas as duas vias

fundamentais para a constituição de uma filosofia da subjetividade, que permanecerão durante muito tempo

38 A própria unidade destes planos poderá ser posteriormente analisada como campo de uma «consciência» coletiva, feita de uma multiplicidade de «consciências» individuais preocupadas com seu lugar no mundo e na história. Vem daí o jogo de palavras contido no título do livro de Paul Hazard, La crise de la conscience européenne (1680-1715), Paris, 1935, ao qual tentamos, em cereto sentido, restituir parte de suas condições de possibilidade. Encontrar-se-ão úteis análises na obra coordenada por R. Ellrodt, Genèse de la conscience moderne. Études sur le développement de la conscience de soi dans les littératures du monde occidental, PUF, 1983. 39 A metonímia é já corrente em Calvino: «Eu digo que esses remédios e alívios são muito pobres e frívolos para consciências confusas, e abatidas, afligidas e assustadas pelo horror de seu pecado» (Inst. De la religion chrétienne, IV, 41). Entretanto, é a luta política que inscreve o jogo da metonímia no coração dos usos da palavra consciência, fazendo do foro interior tanto um «forte» quanto uma «força» (cujo conceito, ao longo da época clássica, entrará em concorrência com os de espírito e de gênio para designar o princípio da individualidade).

Page 13: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 13

distintas. No primeiro campo, situam-se os «agostino-cartesianos» franceses, na verdade tão pouco fiéis à

questão de Santo Agostinho (como Deus, «mais elevado do que o que é mais elevado em mim», se faz sentir no

mais interior da intimidade de minha alma?) quanto à de Descartes (quem sou eu, pois, eu que estou certo de

minha existência pensante?). Eles são, nesse sentido, antes de Locke, os inventores do que Wolff e Kant

denominarão a psicologia racional. No segundo campo, encontramos Malebranche, mas também, é claro,

Spinoza40, cujas filosofias, inteiramente opostas quanto às questões da criação e da natureza, têm, entretanto,

em comum o fato de fazer da «consciência» (ou da conscientia) um desconhecimento da alma em relação a si

mesma. Afastada dessa antinomia, mas não menos determinante para os acontecimentos que se seguem (não

somente em razão das solicitações que lhes faz Locke, mas de suas idéias e termos, transmitidos a Leibniz) encontraremos a posição do platonismo de Cambridge, que faz da consciência a forma «expressa» ou

«explícita» da percepção de si mesmo presente em variados graus em toda individualidade.

1. Cogito e cogitatio: ética e metafísica da certeza de si em Descartes

Os historiadores da filosofia nos dizem que o momento em que a consciência vai designar a essência da subjetividade coincide com volta ao fundamento do pensamento, através da experiência metafísica da

dúvida. Eles identificam, portanto, fundamentalmente, a consciência ao cogito, ou fazem desse último o

protótipo filosófico da primeira41. A realidade é mais complexa. A filosofia das Méditations não é a da

consciência (Bewsstsein), mas da certeza (Gewissheit) e das condições de sua obtenção. No texto original em

latim, encontra-se somente uma vez a palavra conscius, em uma importante passagem em que o tradutor

(revisto por Descartes) não a transpôs como «consciente»:

«…interrogo-me a mim mesmo, para saber se possuo algum poder e alguma virtude que sejam capazes de fazer de sorte com que eu, que sou agora, seja ainda no futuro: pois, já que não sou senão uma coisa que pensa […], se tal poder residisse em mim, eu decerto deveria ao menos pensá-lo e dele ter consciência (si quae talis vis in me esset, ejus procul dubio conscius essem)…42».

Afirmando como evidência que «a alma sempre pensa», essa filosofia não conduz a um programa de conhecimento em que a consciência seria o medium e o órgão, mas a um conflito metafísico que divide os pós-

cartesianos. Tomando partido nesse conflito, de modo original, Locke proporá uma filosofia do espírito (Mind)

que, ao mesmo tempo que se substitui ao cartesianismo, prescrirá antecipadamente as vias de sua redescoberta

e, mesmo, de sua interpretação.

Sabe-se que o texto das Méditations não comporta a fórmula canônica cogito, ou cogito (ergo) sum.

Em revanche, encontraremos aí a versão mais sutil da argumentação que estabelece a verdade – «todas as

vezes que a pronuncio, ou que a concebo em meu espírito» – da proposição da existência «eu sou, eu existo»

(ego sum, ego existo). É esta formulação que a tradução registrou sob o nome de «cogito». Seria um outro

nome da consciência? Em que estaria ela aqui implicada?

40 Não consagraremos, aqui, um desenvolvimento específico a Spinoza, pois isto nos levaria muito longe de nosso objetivo: elucidar o conteúdo e as condições de redação do tratado de Locke. Cf. nosso estiudo «A Note on Consciousness/conscience in the Etics», Studia Spinoziana, nº 8, 1994. 41 Nisto eles são, é claro, grandemente ajudados pela maneira pela qual, na Crítica da razão pura, referindo-se a Descartes, Kant havia identificado os problemas da «consciência de si» (Selbstbewusstsein) às interpretações do «eu penso» (das Ich denke), «texto único do qual a psicologia racional deve retirar toda a sua ciência». Mas, isso é uma outra história. 42 IIIe Meditation, A.T., IX, 39 (trad. Luynes). A paginação do volume IX da edição de Adam-Tannery é reproduzida em margem da edição de Oeuvres philosophiques de Descartes por F. Alquié, 3 vol., Garnier, 1967, onde as Meditations latinas e francesas figuram no volume II.

Page 14: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 14

A certeza de minha existência se explicita imediatamente como certeza da existência desta «coisa que

pensa» que eu sou:

«Mas o que então sou eu? Uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que deseja, que não deseja, que imagina também, e que sente…» (A.T., IX, 22).

Ela é, decerto, uma experiência do entendimento. Por outro lado, a proposição «Eu sou uma coisa que

pensa», apesar de sua complexidade sintática, exprime uma idéia bastante simples, apreendida naquilo que

Descartes chama, aliás, de uma intuição. Ao sair da dúvida, a certeza de que «eu sou» é equivalente àquela

segundo a qual «eu penso», isso é, ela não implica em nada de exterior ao pensamento em vias de se efetuar e

de se enunciar (ou de se efetuar ao enunciar-se, ainda que tacitamente). Trata-se, pois, de uma pura auto-

referência. Mas, por sua vez, o «eu penso» se multiplica ao infinito, já que é uma idéia que envolve todas as

modalidades do pensamento, os pensamentos de todos os objetos possíveis e, finalmente, todas as minhas ações, na medida em que as penso. Aos termos inicialmente enumerados (eu duvido, eu concebo, etc.)

Descartes acrescenta outras modalidades que concernem a ações corporais presentes ao pensamento: eu

caminho, eu respiro, etc. Pode-se representar tudo isto por um esquema:

Eu sou = Eu penso =

Eu duvido Eu concebo Eu afirmo Eu nego Eu (não) desejo Eu imagino Eu sinto Eu caminho Eu respiro Etc.

Mas temos também o movimento recíproco, no qual todas as modalidades de meu pensamento estão

reunidas em uma única idéia simples:

Eu duvido Eu concebo Eu afirmo Eu nego Eu (não) desejo Eu imagino Eu sinto Eu caminho Eu respiro

Etc.

= Eu penso = Eu sou

A expressão: «eu sou pensante», ou: «eu sou uma coisa que pensa» é, em suma, um equivalente geral

de todas as modalidades infinitamente diversas do pensamento, com seus objetos e suas referências próprias.

Observe-se que o termo «coisa» não é, de forma alguma, uma maneira de desnaturar a subjetividade, mas

Page 15: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 15

antes, para Descartes, a forma de nos fazer entender que é do ponto de vista de um sujeito que «pensamento» e

«existência» podem ser imediatamente identificados43. Nessa meditação, o sujeito (ego) se reconhece como o

autor de todos os seus pensamentos44. Esta «coisa» que pensa em mim não é outra, senão eu. Assim, a certeza

é, ao mesmo tempo, certeza de que sou eu quem penso em mim (ninguém pensa «em meu lugar», nem mesmo

Deus – talvez, sobretudo não Deus ) e certeza de que «penso de fato aquilo que penso» (há uma verdade

intrínseca de meus pensamentos: mesmo que eles sejam falsos, fictícios, etc., eles são meus pensamentos, que

«me pertencem»).

Tal sendo o movimento das Méditations, poderia parecer que o acento se desloca, se passamos a

outros textos: em particular, aos de Réponses aux IIe Objetions e aos de Principes de la philosophie45. O problema, como diz a tradução francesa dos Principes, I, § 9, é de saber «o que é pensar»: problema de

definição, e não de interpretação de uma experiência. Mas, de novo, temos aqui uma relação entre uma

«substância» e «modos», ou entre o atributo principal desta substância (que se confunde praticamente com

ela), o pensamento (cogitatio) e seus modos, que dependem todos do cogitare ou são cogitationes:

escutar imaginar sentir ver caminhar etc.

= pensar (pensamentos)

Note-se que não se trata de ser ou de existir. Estamos no atributo do pensamento, que descrevemos46.

Em contrapartida, vemos intervir o termo conscientia (Cogitationis nomine intelligo illa omnia quae nobis

consciis in nobis fiunt, quatenus eorum in nobis conscientia est…), ocorrência quase única em Descartes. O que

significa ela, exatamente? Parece-nos que é preciso seguir o fio condutor fornecido pelas traduções revistas e

aprovadas por Descartes, que sem dúvida nos orientam para a língua em desuso, mas que têm a enorme vantagem de dissipar a ilusão da transparência das palavras. Ora, o que dizem? Simplesmente que sabemos, ou

que temos, nós próprios, conhecimento do que é o pensamento: «Pela palavra pensar, entendo tudo o que se

faz em nós de tal sorte que nós o percebemos imediatamente por nós mesmos, etc.»47 O que é esta apercepção

ou este conhecimento imediato? Algumas observações bastante simples podem ser formuladas:

43 Antes de ser substituído pelo termo «substância», do qual Descartes faz, aliás, um uso profundamente desviante, no que se refere à tradição, «coisa» é uma expressão oxímora, denotando, ao mesmo tempo, a questão que sua coincidência coloca para o sujeito e o suplemento de singularidade que ego cogito ou ego sum cogitans comportam, em relação à essência da cogitatio. Pode-se falar, neste sentido, de heceidade do pensamento, que é propriamente o sujeito cartesiano. 44 O que não quer dizer, necessariamente, como sua causa: na Meditação III, Descartes operará esta distinção, mostrando que, entre todas as minhas idéias, há pelo menos uma (a idéia de Deus) de que não posso ser a causa, pois ela me supera infinitamente em perfeição: mas eu não deixo de ser, «formalmente», seu autor, nesse sentido em que sou de fato eu que a penso. Por isto, a acuidade da tensão entre Ego e Ille, Homem e Deus, primeira e terceira pessoa, que então se cria, e o risco a que ela submete minha identidade. Cf. E. Balibar, «Ego sum, ego existo», Descartes au point d’hérésie, Bulletin de la Société française de philosophie, nº 3, 1992. 45 Ver os textos em nosso Dossiê abaixo. Encontrar-se-á uma interpretação em parte diferente na obra de Vincent Descombes, La Denrée mentale, Editions de Minuit, 1995, p. 26 e seg. Ainda que afirme a filosofia mental «pós-cartesiana, mais do que cartesiana», Descombes se esforça, de toda maneira, para fazer remontar a Descartes o que não é articulado senão por Locke. 46 Observar-se-á adiante como Locke modifica a função dessa enumeração, na perspectiva de sua própria articulação da «reflexão» e da «consciência». 47 Comparar o texto do Exposé Géométrique das Réponses aux Secondes Objections: «Cogitationes nomine complector omne id, quod sic in nobis est, ut ejus immediate conscii sumus […] Ideae nomine intelligo cujuslibet cogitationis formam illam,

Page 16: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 16

– primeiramente, a conscientia é, ela própria, um «pensamento» entre outros. Em nenhum lugar

Descartes diz que o pensamento em geral é a consciência; mas ele diz que não há pensamento sem este outro

pensamento – ou esta «idéia da idéia», como, mais tarde, dirá Spinoza – que é a consciência;

– em segundo lugar, ele se serve dessa tese, que ele afirma como um axioma, para introduzir uma

cláusula de completude: podemos inventoriar exaustivamente os modos do pensamento, pois assim como não

há nada que pertença ao pensamento sem que o saibamos, a todas as nossas ações correspondem pensamentos.

Não há, portanto, nem pensamentos inconscientes nem ações impensadas;

– em terceiro lugar, isso quer dizer que a conscientia é um operador que, em permanência, relaciona

todos os pensamentos a um ego que pode pensá-los, e que, reciprocamente, inscreve o sujeito entre os pensamentos (fazendo que haja, entre outras coisas, um pensamento de si mesmo). É-se tentado a dizer: «eu»

ou ego, esse eu que pensa, que caminha, que vê, etc., está inscrito, também ele, «objetivamente» (isso é, na

condição de idéia) no mundo dos pensamentos. Ele não lhe é exterior;

– enfim, esse conhecimento é imediato, isso é, não resulta de uma ligação ou de um raciocínio. Esse

ponto é decisivo: na história da filosofia, o que será denominado de «consciência» não será mais, todo o tempo,

um conhecimento claro ou racional, mas sempre imediato, ou originariamente fundado na imediatez.

O fato que Descartes dê esse conhecimento como imediato é justamente o que confundiu seus leitores,

pois isso conduz a uma mutação da noção de reflexão. Até então, a reflexão designava uma operação mediata:

em particular, quando os aristotélicos diziam que a alma e suas operações se conhecem pela reflexão, queriam

dizer que elas não se conheciam diretamente, mas somente por seus efeitos, suas diferenças. Ao contrário, em

Descartes, reflexão quer dizer que a alma ou pensamento se reconhece, ela própria, em cada uma de suas modalidades, pois ela está a cada vez presente (e outros textos acrescentam que ela é identicamente presente,

isso é, que certos modos como a inteligência não têm, nesse sentido, nenhum privilégio, o que aliás se vê

claramente no § 9 dos Principes: ela está, igualmente, no sentir ou no querer)48.

Poder-se-ia, no entanto, indagar do que, exatamente, tem-se aqui o conhecimento, qual é seu domínio

ou seu objeto. De uma certa forma, esse domínio é infinitamente extenso, já que todas as cogitationes estão aí,

de pleno direito, compreendidas. Mas ele é, por outro lado, extremamente pobre, pois refere-se, a cada vez, a

uma única e mesma coisa: ao fato de que pensamos sob tal ou tal modalidade, ou que conceber, querer, sentir,

etc, são pensamentos que ego pode trazer a si mesmo. Não se trata, portanto, de fixar, para esta «consciência»

um programa de investigação reflexiva, como o de descobrir faculdades da alma ou analisar operações lógicas,

etc., contrariamente ao que acreditarão alguns sucessores de Descartes. Contrariamente, sobretudo, ao que

Locke teorizará e praticará a respeito da mind. É também por isso que a famosa fórmula das Méditations, que

per cujus immediatam perceptionem ipsius ejusdem cogitationis conscius sum…»; tradução de Clerselier: «Pelo nome de pensamento, compreendo tudo o que é de tal modo em nós, que disso somos imediatamente conhecedores […] Pelo nome de idéia entendo esta forma de cada um de nossos pensamentos, pela percepção imediata da qual temos conhecimento desses mesmos pensamentos […] (A.T., IX, 124). F. Alquié (ed. Cit. P. 586) acredita poder anotar: «Em vez de conhecimento, diríamos, mais acertadamente: conscientes. Pois o latim é: ut ejus immediate conscii sumus. O pensamento (cogitatio) é, portanto, para Descartes, sinônimo de consciência […] Cf. Principes, I, 9. Por sua vez, em descartes selon l’ordre des raisons (Aubier, 1953, vol. I, p. 63 seg., 94-103), M. Gueroult não cessa de praticar a equação da essência do pensamento e da consciência, para mostrar, em particular, que não há diferença real entre pensamento e pensamento do pensamento. 48 Sobre os paradoxos da reflexão em Descartes, consultem-se os trabalhos de Jean-Marie Beyssade: La Philosophie première de Descartes (Le temps et la cohérence de la métaphysique), Flammarion, 1979, e sua edição do Entretien de Descartes avec Burman (PUF, 1981).

Page 17: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 17

diz «que a alma conhece mais facilmente do que o corpo» não introduz qualquer psicologia racional ou

metafísica da alma. Se a alma «conhece mais facilmente…» é certamente porque ela se reconhece em toda parte

como ela mesma (até no menor «pedaço de cera»…), mas também porque, diferentemente do conhecimento do

corpo, que é complexo e árduo, o da alma é simples e sempre idêntico a ela mesma. Eis porque Descartes diz

que esse conhecimento não deve nos ocupar por muito tempo, mas que podemos lidar rapidamente com ele.

Basta apreender seu princípio. Em última análise, se há em Descartes uma metafísica da alma, esta metafísica é

uma ciência pontual.

A fórmula que nos diz que não podemos pensar sem saber o que pensamos e nos saber «pensantes»

tem uma importância igualmente crucial. É ela que, na discussão de Locke sobre as idéias inatas, conduzirá a fazer da «consciência» o próprio objeto do pensamento, mas também a levantar o problema do inconsciente. É

útil relembrar aqui algumas das fórmulas de que Descartes se serve49. Nas Réponses aux IVe Objections (de

Arnauld), ele escreve:

«não pode haver em nós pensamento do qual, no exato momento em que ele está em nós, não tenhamos uma consciência atual (nec ulla potest in nobis esse cogitatio, cujus eodem ello momento, quo in nobis est, conscii non simus). Por isso, não duvido que o espírito, tão logo é infundido no corpo de uma criança, comece a pensar, ainda que não se lembre, em seguida, daquilo que pensou, porque as espécies de seus pensamentos não permanecem imprimidas em sua memória.»

E, nas Réponses aux VIe Objections:

«Não é possível que não experimentemos todos os dias em nós mesmos o que pensamos (non potest non esse sibi conscius); e, no entanto […] ninguém poderá razoavelmente inferir que não pensa, a não ser aquele que […] pretender manter teimosamente esta proposição: o homem e a besta operam da mesma maneira, que, quando se vier mostrar a ele que as bestas não pensam, preferirá se despojar de seu próprio pensamento (o qual ele não poderá, entretanto, não conhecer em si por uma experiência contínua e infalível) (Nam sane fieri non potest quin semper apud nosmet ipsos experiamur nos cogitare) ao invés de mudar sua opinião…»

Por sua vez, nas Septièmes Objections, o Pde. Bourdin escrevia:

«Se aquele que se serve desse método diz que pensa […] e que pensa de tal forma que, por uma ação refletida, ele vislumbra seu pensamento e o considera, o que faz com que pense, ou melhor, que saiba e considere o que pensa (o que denominamos, na verdade, de aperceber, ou ter um conhecimento interior) (et consideret se cogitare (quod vere est esse conscium, et actus alicujus habere conscientiam) e se diz que isso é o próprio de uma faculdade […] que é espiritual e, portanto, que ele é um espírito, ele dirá aquilo que ainda não disse, o que deveria dizer, o que esperava que dissesse, e que de fato freqüentemente quis sugerir, quando o vi esforçando-se em vão para nos dizer o que era […] mas ele de novo não o dirá…»

É esse contraditor de Descartes que introduz, como sinônimo de conscientia, o termo reflexão em seu

sentido escolástico: a alma não conhece diretamente, mas por reflexão. Descartes vai dar sua resposta:

«Quando nosso autor diz que não basta que uma coisa seja uma substância que pensa para ser [uma substância] completamente espiritual e acima da matéria, que, somente ela, ele acredita poder ser propriamente denominada de espírito; mas que, além disto, é necessário que, por um ato refletido de seu pensamento, ela pense que ela pense, ou que ela tenha um conhecimento interior de seu pensamento (ut

49 Ver no Dossiê de textos uma lista mais completa, com referências detalhadas.

Page 18: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 18

actu reflexo cogitet se cogiatre, sive habeat cogitationis suae conscientiam), ele se engana […] Pois o primeiro pensamento, qualquer que seja, pelo qual nos apercebemos de qualquer coisa, não difere mais do segundo, pelo qual nos apercebemos que nós já a tínhamos anteriormente apercebido, do que este último do terceiro, pelo qual nos apercebemos que nós já tínhamos anteriormente apercebido ter apercebido essa coisa; e não se poderia achar a menor razão pela qual o segundo desses pensamentos não venha de um sujeito corporal, se aceitamos que o primeiro pode daí pode vir.»

Parece-nos possível interpretar esses textos (que deram lugar a muitas discussões) sugerindo que

Descartes mantém, aí, quatro teses sucessivas, mas que, de seu ponto de vista, formam uma só doutrina:

1. A alma ou espírito (mens) não pode não pensar, porque esta é, precisamente, sua essência. Em

outras palavras (e esta formulação duplamente negativa confere a sua tese um valor de princípio), seria

contraditório afirmar, ao mesmo tempo, que a essência da alma é de pensar e que ela possa não pensar50.

2. A essa tese de essência, pode-se dar uma tradução sobre o plano da existência: a partir do momento

em que uma alma existe, ela não cessa de pensar, e isso por tanto tempo quanto ela exista. Em outras palavras,

a alma sempre pensa. Mas isso não significa em nada que ela se relembre, quando pensa, de haver,

anteriormente, pensado (e de ter existido quando ela existe!), quer seja em sonho, quando seu corpo estava em gestação, na infância, ou simplesmente no instante anterior… A recíproca figura no Entretien avec Burman:

para que a alma seja «consciente» (tenha consciência) de seu pensamento, não é em nada necessário que este

pensamento já seja passado. Em outros termos, tese radical (e psicologicamente incômoda), o pensamento que

é a essência da alma nada tem de essencial a ver com a memória, ele existe e deve ser pensado fora de

qualquer consideração de tempo escoado, mas sempre «atualmente», isso é, no próprio ato de pensar (e em

sua duração própria).

3. Descartes sustenta, em um só movimento, que a alma não pode pensar sem saber que ela pensa, ou

sem se saber, com certeza, pensante. Mas é preciso fazer aqui algumas distinções sutis. Descartes quer dizer,

antes de mais nada, que todo pensamento se sabe pensamento (por exemplo, nós não podemos «querer uma

coisa que não apercebemos pelo mesmo meio que a queremos»). Trata-se da presença a si do pensamento, que

é identicamente em todas as suas modalidades e não depende do exercício de nenhuma faculdade particular. De novo, a formulação negativa seria mais clara: a alma, na medida em que pensa de uma maneira ou de outra,

não pode se desconhecer (isso é, se tomar ela mesma por um outro gênero de «coisa»). Ela sempre tem, pois, a

possibilidade de se conhecer como «coisa pensante» em geral, sob uma ou outra de suas modalidades, ou de

apreender sua própria essência nas «ações» pelas quais se exprime.

É precisamente disso que se tratava no cogito, sobretudo se ele é exposto sob a forma como o fizemos

acima, como «equivalente geral» das diferentes modalidades do pensar, imanente à sua variação. Pois jamais é

de uma maneira impessoal que a alma ou o pensamento apreende sua própria essência genérica, presente em

cada uma de suas modalidades particulares, mas por uma experiência que só tem sentido na primeira pessoa

(como «minha experiência que aqui está»), hoc pronuntiatium, dizem as Meditações), mesmo se em cada um

de nós ela se efetua de maneira rigorosamente idêntica. Estamos bastante próximos daquilo que faz a

originalidade e a dificuldade do cartesianismo: o conhecimento do pensamento apreende, de fato, uma essência

racional, comunicável, mas a partir de uma experiência absolutamente singular. O cartesianismo é esse curto-

50 Ver-se-á que essa tese conduzirá Locke a cessar de identificar a faculdade de pensar (e de se pensar), que ele chama de mind, a uma alma substancial (para a qual ele reserva os termos soul e spirit).

Page 19: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 19

circuito, essa tensão quase insustentável entre a universalidade da essência e a imediatez da existência singular,

reunidas em um mesmo enunciado. Se o conceito de «consciência», tal como se formará logo em seguida,

segundo a modalidade de Malebranche ou de Locke, não tem verdadeiramente lugar aí, não é porque ele visa,

justamente, a distender essa unidade de contrários, introduzindo uma mediação (e, de mais a mais, como

veremos, toda uma série de mediações)? Deixemos de lado, por um instante, nossa resposta.

4. Chega-se, enfim, à quarta e última tese: a alma sabe ou conhece o que ela pensa, isso é, ela conhece

seus próprios pensamentos por aquilo que eles são. À primeira vista, trata-se apenas de aplicar em detalhe o

que acaba de ser afirmado para o pensamento em geral. Mas vê-se, rapidamente, que o detalhe pode trazer

problemas, na medida em que entra em jogo a questão da «união da alma e do corpo», nas sensações, sentimentos, paixões e, mesmo, na imaginação51. De uma certa maneira, existe toda uma série de pensamentos

cuja natureza desconhecemos, já que os atribuímos ao corpo, como se, na verdade, fosse o corpo que pensasse

em nós (quando sentimos, etc.). Na VIe Méditation, Descartes explica que esse engano desempenha uma

função vital: se nós não localizássemos nossas sensações no corpo, as tomaríamos por conclusões da alma a

partir de informações recebidas pelo corpo, poderíamos colocá-las em questão, e não reagiríamos

espontaneamente às dores, perigos, aos etc., de acordo com as necessidades de nossa sobrevivência.

Argumentação finalista que nos obriga a questionar se é possível sustentar em geral que a alma se sabe ou se

conhece.

Novamente pode-se, ao que parece, distinguir duas etapas. Pode-se, inicialmente, dizer que, até no

engano, todos os pensamentos se apreendem de fato em sua verdade: precisamente como sensações, vontades,

imaginações, julgamentos… Eles não se confundem entre si. E aqueles que implicam a influência do corpo ou uma influência sobre o corpo são verdadeiramente pensados como «unidos» ou «confundidos» com suas ações

e suas paixões. O contrário, disse-se, implicaria numa mistificação. Mas, em seguida, e isso é bem mais

delicado, pode-se dizer que nós sempre temos a possibilidade de dirigir nossa atenção exclusivamente para

aquilo que faz que uma idéia seja uma idéia, ou que um pensamento seja uma ação da alma. Descartes não

diz que essa possibilidade seja realizada em todas as circunstâncias, nem que ela seja facilmente exercida: mas

que ela sempre é em direito, possível, e que pode-se apreender seus meios por meditação. Acede-se, assim, a

uma prioridade ou «precedência» que é inerente à natureza da alma, e que a manifesta claramente para ela

mesma. O que nós pensamos, então, em todos os casos, não é a confusão, mas a distinção do pensamento, que

só depende dele para ser recuperada.

O que pretendia, portanto, dizer Descartes, repetindo que «a alma conhece mais facilmente do que o

corpo» e que nós temos dela um melhor conhecimento? Frase sem dúvida não destituída de intenções

apologéticas, mas que deve também poder se conciliar com sua prática teórica. Acreditamos que ele não tinha qualquer intenção de fazer uma teoria das faculdades ou operações do pensamento52. Em contrapartida,

tratou-se, para ele, de fazer, a cada vez, a mesma demonstração: o pensamento pode ser referido somente à

«coisa que pensa» do qual ele é a ação, mesmo se é sob o efeito de objetos exteriores e particularmente do

corpo. No fim das contas, o conhecimento que tenho de mim mesmo, como pensamento (esta «coisa qualquer»

ou esta «coisa» que eu sou) tem por objetivo refazer a experiência da certeza primeira e constatar, em todos os

51 Encontrar-se-á no livro de D. Kambouchner, L’homme des passions. Commentaires sur Descartes. Albin Michel, 1995, uma discussão dessas dificuldades, conduzindo à idéia de um «cogito desenvolvido», distinto da «reflexão pura» (vol. III, p. 353 e seguintes.). 52 Ele havia renunciado a isso após as Regulae ad directionem ingenii, que permaneceram inacabadas.

Page 20: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 20

casos, a distinção da alma. É por isso que ele pode ser, ao mesmo tempo, infinitamente rico (múltiplo) em

objetos, reencontrados em todas as ocasiões da vida, e infinitamente pobre (simples) em resultados ou

conclusões: pois a conclusão é sempre a mesma.

Avancemos que o que a alma conhece por ela mesma em sua relação com o mundo, não é senão sua

liberdade ou potência, que consiste em sua capacidade própria de pensar claramente e distintamente as coisas

(entre as quais ela mesma) – e, em caso contrário, de suspender o julgamento. Vê-se que, sobre esse ponto, o

objetivo do conhecimento de si nada tem de especulativo, mas que sua orientação metafísica é

fundamentalmente «prática» ou, se preferirmos, ética. Mas essa ética da autonomia intelectual é tão incômoda

quanto arriscada, pelo que comporta de precariedade e de suficiência53. Ela não assegura a ancoragem da certeza de si mesmo na existência (fundamentum inconcussum) senão ao preço da maior insegurança quanto à

identidade ou à essência de seu «objeto», a cada instante reconquistada sobre sua alteridade interior: eu não

sou esse Deus cuja idéia perfeita está, no entanto, inscrita como seu modelo infinito ou sua causa «eminente»

no coração de minha razão, tanto quanto não sou esse corpo ao qual minhas percepções se encontram de tal

forma unidas que experimento nele minha própria existência, minhas ações e paixões, e assim eu sou «eu».

É esse conhecimento que os cartesianos, discípulos infiéis, vão em seguida tentar transportar para o

plano da ciência. Mas a ciência se chamará, igualmente, consciência: cum scientia.

2. A idéia de uma metafísica da alma entre os «cartesianos» franceses

Ainda que o substantivo «consciência» não figure em sua obra, nem em latim nem em francês, é

importante referirmo-nos, antes de mais nada, a Arnauld, pois ele contribui para a emergência do conceito por

suas poderosas sugestões54.

A primeira está contida na La logique ou l’art de penser, de 1662, obra conhecida sob o título de

«Lógica de Port-Royal», escrita em colaboração com P. Nicole, em que se vislumbra, algumas vezes, uma das

fontes do psicologismo que teria dominado a lógica até a entrada em cena do formalismo moderno. É uma

reorganização da teoria clássica dos julgamentos, dos raciocínios e do método sob as bases de uma análise dos

elementos do pensamento. Ora, esta é uma teoria das «idéias», no novo sentido que esse termo está

adquirindo: signos e imagens das coisas que têm sua origem no próprio espírito. Assim, as formas lógicas

devem ser concebidas como traduzindo, por meio da linguagem, «operações mentais» cuja natureza é, em

última análise, independente desse revestimento verbal. Reencontrar-se-á em Locke essa sugestão

consideravelmente desenvolvida55.

53 Em «Le cerveau et la pensée» (reed. In Geroges Canguilhem, Philosophe, historien des sciences, Albin Michel, 1993), Canguilhem a caracteriza como «reivindicação» (e não como representação) de uma «vigilância do mundo das coisas e dos homens» (p. 29-30). 54 Antoine Arnauld, «o grande Arnauld», teólogo e filósofo, a quem a longevidade excepcional (1612-1694) permitiu ser, ao mesmo tempo, o principal «intelectual» do jansenismo, o interlocutor de Descartes no momento do debate sobre as Meditações, mais tarde adversário de Malebranche sobre as questões da graça e da visão em Deus e, enfim, correspondente de Leibniz a propósito do Discours de Métaphysique (1686), é o promotor de uma tentativa de fusão entre o cartesianismo e agostianismo que se pode considerar como a fonte maior do espiritualismo na filosofia francesa. É ele que busca fazer reconhecer que o cogito ergo sum comporta «antecedentes» na obra de Santo Agostinho – que Descartes, em suma, não teria feito senão redescobrir. 55 Locke tinha traduzido em inglês, em 1675-1676, os Essais de Morale de Pierre Nicole, em que esse último expunha, entre outras coisas, que é preciso ir às próprias coisas, para além das palavras. Cf. Michaud, 1986, p. 111; Marshall, 1994, p. 131 e seg.

Page 21: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 21

A segunda é explicitada na obra, muito mais tardia, dirigida contra Malebranche, Des vraies et des

fausses idées (1683). É aqui que Arnauld inaugura a consideração do «cogito» (futuro «eu penso»), tomado

nominalmente, como argumento-tipo e modelo do conhecimento de si sobre o qual deve repousar uma

metafísica racional. Essa insistência é associada a uma discussão concernindo a natureza das idéias como

«representações». A esse termo, que ele considera como perigosamente equívoco, Arnauld prefere o de

percepção, aplicável a toda situação na qual uma coisa «está objetivamente em meu espírito». Trata-se, em

suma, de encontrar uma via média entre dois opostos, igualmente inaceitáveis: que as idéias sejam «seres

representativos» autônomos (o que leva à tese malembranchiana segundo a qual a alma percebe, não os

objetos em si mesmos, mas suas idéias, isso é, suas representações ou modelos); ou, inversamente, que as «coisas nelas mesmas» sejam, de alguma maneira, visadas pela alma (segundo a doutrina medieval da

intencionalidade, que será mais tarde reencontrada, à sua maneira, pela fenomenologia). As idéias, segundo

Arnauld, devem ser consideradas como o meio termo de uma «dupla relação»: com a alma que pensa, de que

elas são uma modificação, e com o objeto que elas representam, segundo um modo específico que não seria, em

geral, redutível à noção de retrato ou de imagem. No limite, elas não seriam nada além do nome fornecido a

essa relação56.

A presença da alma como um dos termos da dupla relação que constitui a idéia autoriza Arnauld a

propor uma definição do pensamento (que ele liga à autoridade de Descartes e à sua definição da cogitatio)

identificando-o, gradativamente, à reflexão e em seguida, implicitamente, à «consciência»:

«Nosso pensamento ou percepção é essencialmente reflexiva sobre ela própria: ou, o que se diz mais auspiciosamente em latim, é sui conscia. Pois não penso sem que eu saiba que penso. Eu não conheço um quadrado sem saber que o conheço […] além dessa reflexão que se pode denominar virtual, encontrada em todas as nossas percepções, há uma outra mais expressa, pela qual examinamos nossa percepção por meio de uma outra percepção, como qualquer um pode comprovar sem dificuldades […] segue-se que toda percepção sendo essencialmente representativa de qualquer coisa, e assim chamando-se idéia, ela não pode ser essencialmente reflexiva sobre ela mesma, sem que seu objeto imediato seja essa idéia, isso é, a realidade objetiva da coisa que se diz que meu espírito percebe…»

Não nos esqueçamos que no século XVII «realidade objetiva» quer dizer representação do objeto, por

oposição à «realidade formal» da coisa, que é seu ser em si. Vê-se que a dupla relação constitutiva da idéia se encontra, por sua vez, desdobrada, a partir de seu termo mental. Dessa reflexão que é sempre, ao menos,

virtual, Arnauld faz o princípio subjetivo de toda ciência, a começar pela própria ciência da alma e de Deus, de

quem temos as idéias mais claras de todas.

Encontramos concepções análogas entre os cartesianos «ortodoxos» nesse último terço do século

XVII. Desde 1666, Louis de La Forge, médico e filósofo, que acabava de editar, a título póstumo, o Traité de

l’Homme de Descartes, escreve uma «continuação», sob o título de Traité de l’esprit de l’homme, na qual

declara que «[seu] desejo […] não foi senão o de explicar, um pouco mais longamente do que ele [Descartes]

havia feito, as Faculdades da Alma». O duplo patrocínio do autor das Meditações e daquele das Confissões é

imediatamente reivindicado. Ele também entende por idéia «unicamente as formas dos pensamentos do

Espírito» que nos representam «dois tipos de Seres […] aquele que é extenso, que chamamos de Corpo, e

56 Sobre a concepção da idéia em Arnauld e sua crítica da idéia de uma obscuridade da alma em relação a si mesmo, ver os estudos de J.-M. Beyssade, «Sensation et idée: le patron rude» e de D. Kambouchner, «Des vraies et des fausses ténèbres. La connaissance de l’âme d’après la controverse avec Malebranche», in Antoine Arnauld. Philosophie du langage et de la connaissance, Études réunies par Jean-Claude Pariente, Vrin, 1995.

Page 22: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 22

aquele que pensa, que nomeamos Espírito». O Espírito, «isso é, a coisa que pensa», se pensa, portanto, a ele

próprio. O conhecimento do pensamento por ele mesmo, para o qual convém a palavra cartesiana do cogitare é

essencialmente idêntico à intelligere de Santo Agostinho, que se dirige ao homem interior (homo interior,

enquanto o Corpo é homo exterior)57.

Mais adiante, La Forge vai descrever esse conhecimento de si como um recolhimento e uma ascese,

uma forma, para o Espírito, de «se retirar em si para se observar sem testemunhas» (p. 100) e, finalmente,

como uma consciência (para a qual ele emprega igualmente o nome de sentimento interior):

«Tomo aqui o Pensamento por essa percepção consciente, ou conhecimento interior que cada um de nós ressente imediatamente por si mesmo quando se apercebe daquilo que faz ou do que se passa em si.» (p. 112).

E ainda:

«O que será, então, essa admirável função, cuja essência parece tão escondida? […] se todas as funções do conhecimento são operações que nada devem à matéria e que não saem da alma, é um engano grosseiro olhar para qualquer outra coisa que o próprio espírito, para descobrir sua origem [les ressorts] […] Provamos, precedentemente, que a natureza do espírito era de ser uma coisa que pensa, e dissemos que a essência do pensamento consistia nessa consciência e nessa percepção que o espírito tem de tudo o que nele se passa…» (p. 156).

Acompanhamos aqui a realização, por La Forge, de três operações fundamentais, a uma só vez: ele introduz o neologismo consciência; ele a define como a própria essência do pensamento, a modalidade

segundo a qual «a alma sempre pensa»; e ele a identifica com a interioridade, ou com esse movimento pelo

qual «o homem interior» entra em si mesmo, isso é, se contempla como «puro espírito». Os desenvolvimentos

de La Forge, a esse respeito, são estreitamente ligados ao projeto de uma demonstração da imaterialidade e da

imortalidade da alma, que, por sua vez, precedem e orientam a análise de suas «faculdades»58.

A preocupação apologética se exprime plenamente no tratamento da questão da união da alma e do

corpo, que assinala um novo afastamento em relação a Descartes. Não somente La Forge introduz, em sua

interpretação, o conceito fundamentalmente anti-cartesiano de uma Aliança ou um Tratado, fundado no

modelo do «governo do mundo» e, como ele, concluído sob a égide de Deus – cujas cláusulas ele vai enumerar,

mas deduz (não sem embaraços, pois, como conciliar essa tese com o monismo fundamental da concepção

cartesiana de pensamento?) a idéia de que a Alma ou Espírito do Homem comporta uma «parte superior» (a única verdadeiramente imortal ou imaterial) e uma «parte inferior» (susceptível de união com o corpo e

submetida a sua influência), que se combateriam uma à outra, em particular nas paixões59.

Mas, o que é talvez mais notável é a maneira pela qual o recurso à idéia de interioridade contribui,

finalmente, para o ocultamento da questão do «eu», ou da primeira pessoa, uma vez prestadas as homenagens

57 De la Forge, op. cit., PUF, 1974 (reed.), p. 82. Cf. Dossiê de textos. 58 Ainda que La Forge invoque Santo Agostinho, há uma diferença considerável entre a forma como trata a questão da interioridade, ou intimidade da alma e a forma como ela aparecia nas Condissões ou em De Registro. É que, para Agostinho, o que descobrimos «no mais profundo de nós mesmos» é, por um lado, um combate permanente entre a aspiraçao à salvação e a inclinação para o pecado e, por outro, o apelo do próprio Deus, «mestre interior» que transcende nossa natureza e a põe, de algum modo, «fora de si». Essa referência não tem qualquer peso em La Forge, muito mais naturalista. 59 Descartes, no artigo 47 das Paixões da Alma, se havia explicitamente afastado dessa «imaginação» de «combates entre a parte inferior e a parte superior da alma». Para ele, a alma não tem partes, pois toda sua essência é somente pensar, sob uma multiplicidade de modalidades.

Page 23: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 23

devidas ao cogito. Sobre esse ponto, La Forge, que se pretende, ao mesmo tempo, agostiniano e cartesiano, não

é, de fato, nem uma coisa nem outra: o conceito de consciência, ou de sentimento interior que ele introduz é

impessoal (é uma essência ou faculdade), tão afastado do ego das Confissões, tomado pelo combate interior

(ego eram, qui volebam, ego, qui nolebam…)60 quanto daquele das Meditações, ocupado com a questão «quem

sou eu?», e «(o que é, pois) que pensa em mim?».

O movimento se realiza e se codifica, dissemos, em um terceiro autor, Pierre-Sylvain Régis (1632-

1737), que, em seu Système de philosophie contenant la Logique, la Métaphysique et la Morale61 fornece duas

definições para a Consciência, no Glossário dos termos não usuais que figura no fim da obra: «Consciência é o

testemunho que prestamos a nós mesmos acerca de qualquer coisa»; a outra, especificamente ligada à retomada do texto cartesiano:

«Asseguro-me, pois, de que existo todas as vezes que acredito conhecer alguma coisa; e estou convencido da verdade desta proposição, não por um verdadeiro raciocínio, mas por um conhecimento simples e interior, que precede todos os conhecimentos adquiridos, e que denomino consciência.»

Mas, sobretudo, (enquanto a Física é a ciência dos corpos) ele identifica a Metafísica com a ciência das

verdades que concernem às almas, isso é, com o «conhecimento das substâncias inteligentes» consideradas,

seja «em si mesmas», ou na condição de Espíritos, seja «em relação ao corpo» ao qual o Espírito está unido, ou

que lhe «pertence mais do que os outros». O sistema de Régis converte, verdadeiramente, o «eu» cartesiano

em «eu consciente» e este último em sujeito-objeto de uma metafísica da alma, a uma só vez intelectualista e

espiritualista, ou de uma psicologia racional. Deveremos nos interrogar em que medida o «empirismo»

lockiano difere desse ponto de vista. Se esse é o caso, não é tanto, talvez, em razão de sua conversão às próprias

coisas, do que do cerrado confronto com outros discursos teóricos, profundamente (ainda que diferentemente)

impregnados de uma visão teológica: o de Malebranche, que nega à alma humana a capacidade de se conhecer a ela própria claramente, e o do «platônico de Cambridge », Ralph Cudworth, que forja o neologismo

consciousness a partir de uma etimologia grega fictícia, e tenta, por esse meio, opor ao materialismo

ameaçador uma teologia da emergência progressiva do espírito na natureza. Examinemo-los.

3. Consciência como desconhecimento: Malebranche

Os cartesianos são os teóricos da consciência clara, como conhecimento de si; cada um à sua maneira, Malebranche e Spinoza chamarão de «consciência» uma obscuridade ou desconhecimento necessário62. Mas, à

diferença de Spinoza, que caracteriza a consciência como desconhecimento, no sentido em que ela é incapaz de

formar uma idéia adequada da individualidade corporal, cuja multiplicidade supera muito seu poder de

percepção (Ética, II Parte, prop. 21 e s.), Malebranche faz do desconhecimento uma característica da relação

que a alma entretém com ela mesma. De forma bastante surpreendente, ele descreve essa relação na própria

linguagem que havia servido a Descartes para caracterizar a «confusão» da união da alma e do corpo. É sem

60 Santo Agostinho, Confissões, VIII, x, 22: «eu era, eu mesmo, aquele que queria e que não queria» (trad. De Arnauld d’Andilly). 61 Ver nosso Dossiê de textos. 62 A comparação com Spinoza, praticada por seus adversários e, mesmo, por alguns de seus defensores, foi a cruz que Malebranche carregou.

Page 24: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 24

dúvida por isso que ele utiliza-se indiferentemente dos termos consciência e sentimento interior, ou explica um

pelo outro. Por outro lado, ele explica que a representação confusa que a alma humana tem dela mesma está

ligada (não causalmente, mas simbolicamente) à influência que assume o corpo, ou melhor, à complacência

pelo corpo que, no homem, resulta de sua queda. Trata-se, portanto, de uma concepção estreitamente

comandada pelo dogma de uma perversão inicial da natureza humana. A consciência malebranchiana liga-se,

intrisecamente, ao amor de si, que deve se converter, para se transformar em amor de Deus.

É preciso, no entanto, cuidar para não deformar o pensamento de Melebranche, cujo finalismo radical

comporta também uma dimensão construtiva: ele explica, com efeito, que, sem essa complacência do corpo, se

a alma fosse capaz de se pensar e de se conhecer a ela mesma de uma forma pura, ela se desviaria das necessidades e das tarefas da vida terrestre, e não aspiraria mais senão a conhecer Deus e a se unir

imediatamente com ele, o que iria contra o destino terrestre do homem. O desconhecimento é, pois, útil, ele

tem um fim prático. Ele inscreve a economia sobrenatural da salvação nas exigências naturais da saúde, e

reciprocamente.

Na Recherche de la Vérité, de 1674, Malebranche explicou claramente sua teoria da consciência como

conhecimento confuso da alma, e sua oposição, quanto a esse ponto, ao cartesianismo63. Ele distingue quatro

«maneiras de conhecer» (às quais correspondem quatro tipos de objetos de conhecimento):

1. Somente a Deus conhecemos «por ele mesmo», isso é, ele é conhecível em si, ou melhor ainda, ele

se faz conhecer em nós, como nosso «mestre interior», ou a «luz de nosso próprio espírito». Esse

conhecimento supremamente adequado, esclarecedor, mais do que esclarecido, começa com o que

Malebranche denomina a idéia geral do ser e culmina na de infinito, ou de ser perfeito64. Ela nos revela que nossa essência está unida à essência de Deus, e não é separável do amor: mas trata-se de um amor intelectual, e

não de um sentimento65.

2. No que se refere ao conhecimento «pelas idéias», ele é o ponto característico da teoria de

Malebranche (e o mais contestado). As idéias são consideradas, a uma só vez, como arquétipos (retorno a uma

inspiração platônica) e como representantes das coisas, que elas substituem para o entendimento. E, segundo

Malebranche, o «lugar» desses arquétipos é o próprio Deus, o que quer dizer que nós vemos em Deus, como em

uma tela transcendental, as idéias geométricas dos corpos e, mais geralmente, as «verdades eternas» da razão e

da ciência. Notemos que as propriedades de que se trata aqui são qualidades geométricas e mecânicas dos

corpos, correspondendo a idéias claras e distintas (qualidades para as quais Locke forjará a expressão de

«qualidades primeiras»).

3. O conhecimento por consciência ou sentimento interior é aquele que temos de nosso próprio

espírito ou de nossa alma: ele é imediato, mas obscuro e confuso (como podemos experimentar e como se pode

63 Livro III, 2ª Parte, cap. Vi E vii. Cf. Dossoiê de textos. 64 Que também é a idéia de ordem: nesse sentido, há poucos autores clássicos a quem convenha melhor o vocábulo de «onto-teologia». Cf., em particular, os Entretiens sur la métaphysiqiue et la religion (1688) (Tomo XII das Oeuvres complètes de Malebranche, organizadas por A. Robinet, CNRS/Livraria Vrin). 65 «Já que a Verdade e a Ordem são relações de grandeza e de perfeição reais, imutáveis, necessárias, relações que a substância do verbo Divino mantém em si; aquele que vê essas relações, vê o que Deus vê: aquele que regula seu amor por essas relações, segue uma lei que Deus ama invencivelmente. Há, pois, entre Deus e ele uma conformidade perfeita de espírito e de vontade. Em uma palavra, já que ele conhece e ama o que Deus conhece e ama, ele é, tanto quanto é capaz, semelhante a Deus» (Traité de Morale, I, 1, 14; ed. J.-P. Osier, p. 62.

Page 25: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 25

explicar por meio da teologia da queda). O «eu» que ela nos apresenta é um eu alienado, ambivalente, que se

revela e se esconde, ao mesmo tempo66.

4. Enfim, a «conjectura» é o modo pelo qual conhecemos «as almas dos outros homens», portanto a

essência mesma do outro: seu pensamento semelhante ao nosso, seus sentimentos saídos, da mesma forma

que os nossos, de uma união da alma e do corpo, sua linguagem «instituída»… É, pois, esse conhecimento que

torna possível a comunicação, ou a sociedade.

A identificação entre a consciência e o sentimento interior dá lugar, em Malebranche, a uma belíssima

fenomenologia, que se prolonga em toda a sua doutrina moral. Como ele é o primeiro grande utilizador do

termo de consciência em um sentido metafísico e psicológico, essa equação terá fortes conseqüências na tradição filosófica francesa (por exemplo, em Rousseau). Ela introduz, de certa forma, um terceiro termo entre

a idéia do conhecimento e a do julgamento. Em relação ao conhecimento verdadeiro, a consciência tem,

evidentemente, uma dimensão restritiva, o que vai contra a ilusão cartesiana de um conhecimento perfeito da

alma por si mesma (e, em conseqüência, contra a suficiência de si da alma que conhece, na qual Malebranche,

como todo o anti-humanismo do século, vê uma heresia e quase uma blasfêmia). Mas, por outro lado, pelo

sentimento confuso que temos de nós mesmos, nós apreendemos algo de essencial, que é o pressentimento de

nossa liberdade, inseparável de um destino sobrenatural67.

No fundo, no que concerne Descartes e em terminologia nele diretamente inspirada, as baterias são

inteiramente invertidas: não é de uma «união da alma e do corpo» que procede a confusão, mas de uma «união

da alma com Deus», vivida (em razão do pecado) sob o modo alienado da separação. E essa inversão leva a uma

proposição surpreendente, inaceitável para um cartesiano: se estamos em condições de distinguir claramente a alma do corpo, não é positivamente, porque teríamos sempre uma idéia já clara da alma: é negativamente,

porque nós só temos uma idéia clara dos corpos!

«Não sabemos de nossa alma senão o que sentimos se passar em nós […] É bem verdade que conhecemos, muito por nossa consciência ou pelo sentimento interior que temos de nós mesmos, que nossa alma é alguma coisa de grande, mas não é possível que o que conhecemos não seja quase nada daquilo que ela é nela mesma.»

Alguns anos mais tarde (1678), nos Éclaircissements à la Recherche de la vérité, Malebranche acusa o

golpe:

«Quando M. Descartes, ou os cartesianos a quem falo asseguram que se conhece melhor a alma do que o corpo, eles só entendem por corpo a extensão. Como, pois, poderiam sustentar que se conhece mais claramente a natureza da alma do que a do corpo, já que a idéia do corpo e da extensão é tão clara […] e que a de alma é tão confusa que os próprios cartesianos discutem entre si todos os dias, para saber se as

66 «Eu não sou senão trevas, para mim mesmo» (Méditations chrétiennes et métaphysiques, IX, §15, citado por Michel Henry, Généalogie de la psychanalyse, PUF, 1985, que apresenta uma interpretação de Malebranche como doutrina contraditória: por um lado, uma «repetição» fenomenológica radical do cogito cartesiano, no elemento da afetividade, de outro, uma desvalorização ontológica desse mesmo cogito, como privação ou alienação da luz). 67 Cf. Éclaircissements sur la Recherche de la Vérité, Ier. Èclaircissement (Ed. Rodis-Lewis, vol. III, p. 3-17). O esquema da alienação não cessa, entretanto, de se reproduzir infinitamente> «Nossos sentidos não são tão corrompidos quanto imaginamos; mas é o mais íntimo de nossa alma, ié nossa liberdade que é corrompida» (De la Recherche…, Livro I, cap. V, ed. cit., vol. I, p. 25). É impressionante observar que essa teorização anticartesiana da obscuridade da consciência tem por contrapartida, não somente uma ontologia e uma moral teocêntricas, mas, sobre um outro plano, uma das primeiríssimas ocorrências da idéia de «ciência do homem» (no sentido do genitivo objetivo), fazendo desse último o objeto de uma disciplina antropológica (cf. Prefácio da recherche: «De todas as ciências humanas, a ciência do homem é a mais digna do homem», ed. Cit., p. XX).

Page 26: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 26

modificações de cor lhe pertencem […] Pode-se dizer que se tem uma idéia clara de um ser e que se conhece sua natureza quando se pode compará-lo com os outros, dos quais se tem também uma idéia clara […] Mas não se pode comparar seu espírito com outros espíritos, para reconhecer aí claramente qualquer relação; não se pode sequer comparar entre elas as maneiras de seu espírito, suas próprias percepções.»68

A concepção da consciência exposta por Malebranche merece, por muitos aspectos, ser chamada de

existencial69. Sem dúvida, já em Descartes, a dificuldade do «cogito» consistia na certeza de uma existência

(ego sum, ego existo). Mas esta era tão mais forte quanto a experiência correspondente era mais intelectual. É

o inverso em Malebranche. Voltando à famosa análise do «pedaço de cera» da IIª Meditação, ele opõe, por sua

vez, as qualidades geométricas ou inteligíveis dos corpos às suas qualidade sensíveis (cores, sabores, odores,

etc.) que são indissociáveis dos sentimentos de prazer e dor. Ora, são essas últimas que nos revelam, de forma

precisamente «confusa», algo de nossa alma, de que elas são as «modificações». Inscrevendo a sensação, o

sentimento e a consciência em uma continuidade não somente semântica, mas ontológica, Malebranche abre o

caminho para uma descrição da subjetividade como conjunto de experiências qualitativas, inseparáveis de uma particularidade individual que permanece incomunicável. E, mesmo, a rigor, inanalisável. Locke, para quem a

distinção das qualidades «primeiras» e «segundas» desempenha um papel fundamental, se esforçará, ao

contrário, para mostrar sua compatibilidade com a tese de uma plena acessibilidade analítica das operações do

espírito (do Mind, que ele distingue, como veremos, da alma)70.

A contra-prova dessa oposição nos é fornecida por um texto de Locke que é, por muitos aspectos,

notável, e que apresenta ainda a vantagem de nos reconduzir à intricação dos problemas teóricos e das

questões de língua: trata-se das notas críticas sobre a teoria das «idéias» de Malebranche, redigidas em 1696

(no momento mesmo em que Coste empreende a tradução do Essay) e publicadas, após sua morte, em 1706

nos Posthumous Works71. Locke recusa de forma absoluta a distinção operada na Recherche de la vérité entre

conhecimentos «por idéias», relativos às essências objetivas que vemos «em Deus» (isso é, exatamente tais

como existem no entendimento divino) e conhecimentos «por sentimento», relativos às qualidades sensíveis, das quais só percebemos as «modificações do espírito» que elas produzem em nós (ou como nossas próprias

afecções). Para ele, todas as idéias ou percepções procedem da sensação, da reflexão, ou de sua combinação,

qualquer que seja seu grau de clareza ou de confusão (Ensaio, Livro II, cap. 1). O lado da objetividade (a

representação das coisas) e o da subjetividade (a modificação do espírito) não podem, portanto, ser repartidos

em múltiplos modos de conhecimento, mas estão presentes em todos os casos. Nesse momento, Locke assinala

68 Ver a integralidade dos textos em nosso Dossiê. 69 Ela suscitará o maior interesse em Merleau-Ponty, que a ela consagrará um curso: L’Union de l’âme et du corps chez Malebranche, Biran et Bergson, Notas recolhidas e redigidas por Jean Deprun, Vrin, 1978 (p. 29: «Vê-se que, em Malebranche, os problemas atuais já estão presentes…»). Os temas malebranchianos não cessaram de retornar nas problemáticas da consciência, entre os séculos XVIII e XX (notadamente entre os autores franceses), mas sobre a base de uma posição prévia do sujeito humano como «consciência de si» que se pode dizer lockiana – para completá-la, retificá-la ou, mesmo, subvertê-la pela afetividade e a «carne». 70 Para uma exposição do problema das qualidades primeiras e segundas, ver a obra de Emmanuel Picavet, Approches du concret. Une introduction à l’épistemologie, Ellipses, 1995. A terminologia não figura em Descartes e cartesianos. Considera-se, freqüentemente, que Locke a elaborou a partir das formulações de Boyle. 71 Examination of P. Malebranches’s opinion of our «seeing all things in God», The Works of John Locke, New Edition, London, 1823, vol. IX, pp. 211-255. Existe uma tradução francesa recente: John Locke, Examen de la «vision en Dieu» de Malebranche, Introdução, tradução e notas por Jean Pucelle, Vrin, 1978. O principal comentário inglês é o de Charlote Johnston, «Locke’s Examination of Malebranche and Norris», Journal of the History of Ideas, 1958, p. 551-558. Locke já havia feito um estudo detalhado das teses de Malebranche na Recherche de la vérité e de sua crítica por Arnauld, logo após a publicação do livro desse último Des vraies et des fausses idées (1683), como prova seu diário

Page 27: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 27

o uso, por Malebranche, da palavra «sentiment» (em francês) e declara-se na impossibilidade de traduzi-la,

antes de mais nada por não conseguir compreendê-la (Examen, § 42). Essa dificuldade atinge seu ponto

máximo quando Malebranche declara que a «consciência ou sentimento interior» é o modo do conhecimento

da alma por si mesma:

«A idéia de uma alma humana», pergunta-se, então, Locke, «não seria, tanto quanto a idéia de um triângulo, um ser real em Deus? Se assim o for, por que minha alma, estando intimamente unida a Deus, não veria tão bem sua própria idéia, que nele está, quanto a do triângulo que também está aí? E como justificar que Deus nos tenha dado a idéia de um triângulo, e não a da alma, senão dizendo que Deus nos deu uma sensação externa para uma e nenhuma para perceber a outra, mas apenas uma sensação interna para perceber a operação dessa última?» (ibid., § 46).

Locke não tem qualquer dificuldade para traduzir o francês «conscience» pelo inglês consciousness,

praticando, em suma, a operação inversa àquela que, no mesmo momento – talvez, inclusive, com sua ajuda –

Coste decide realizar em sua tradução do Essay. Em contrapartida, é-lhe totalmente impossível encontrar um

equivalente inglês para esse «sentimento interior» que, em Malebranche, é o outro nome da consciência, e

antes de tudo, para a própria idéia de «sentimento» (para a qual não convém nem a idéia lockiana de sensação nem a de reflexão e que, por esta razão, não é uma percepção)72.

Só se pode estar surpreendido pela maneira como se encontra assim materializada, pela

intradutibilidade das palavras, a incompatibilidade das problemáticas da consciência, ou da relação do espírito

a si mesmo, no exato momento da maior proximidade de interesses. Duas vias se encontram prefiguradas, que

poderão de novo ser confrontadas, ou formar os termos de uma antítese (como na Dialética transcendental

kantiana), mas jamais se conciliar. E essa incompatibilidade será comunicada, em uma medida mais ampla, às

tradições nacionais que interpretarão a consciência/consciousness seja como sentido interior, seja como

sentimento interior.

4. «Sunaisthêses, Con-senso e consciousness»: o neologismo de Cambridge

Ralph Cudworth (1617-1688), principal representante, juntamente com Henry More, da escola dos

«platônicos de Cambridge», pertencia ao protestantismo moderado («latitudinal»), partidário da liberdade de consciência, tanto em relação à Igreja quanto em relação ao Estado, em virtude de uma concepção da moral

que dela fazia um sentimento natural do Bem e do Mal, mais do que um mandamento e uma obrigação73. Sua

monumental obra, dirigida contra os materialistas (de Demócrito a Hobbes)74, The True Intellectual System of

the Universe: The First Part; Wherein All the Reason and Philosophy of Atheism is Confuted; and Its

Impossibility Demonstrated, acabada em 1671, só foi publicada em 167875. Ela é inspirada pela leitura de

72 Cf. abaixo nosso § III.3: «A origem das idéias e o sentido interior». 73 Sobre Cudworth e o platonismo de Cambridge, além das obras clássicas de Cassirer e de R. Colie, leia-se a introdução de J.-L. Breteau da edição francesa do Traité de la morale et Traité du livre arbitre, de Cudworth, PUF, 1995; e, do mesmo autor, «La conscience de soi chez les platoniciens de Cambridge», in R. Ellrodt, Genèse de la conscience moderne, PUF, 1983. Ver, igualmente, J. A. Passmore, Ralph Cudworth, Cambridge, 1951; Samuel S. Mintz, The Hunting of Leviathan. Seventeenth Century Reactions to the Materialism and Moral Philosophy of Thomas Hobbes, Cambridge, 1969; C. A. Patrides, The Cambridge Platonists, Cambridge, 1969; R. Popkin, «Cudworth», in The Third Force in Sventeenth-Century Thought, Leiden, 1992. 74 Ele é um dos primeiros a empregar o termo: cf. O. Bloch, Le Matérialisme, PUF, Que sais-je?, 1985, p. 6. Cudworth propor uma classificação de quatro formas clássicas de materialismo (atomismo democrítico, estratoniciano, estóico, hilozóico). 75 Anunciada, a segunda parte não foi acabada. O livro de Cudworth jamais foi traduzido em francês, embora tenha sido objeto de um longo resumo, em diversas publicações da Bibliothèque choisie de Jean Le Clerc, publicada em Amsterdan entre

Page 28: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 28

Plotino e das interpretações neo-platônicas de Aristóteles (citadas no grego). A tese que o autor defende é a de

que o atomismo, base de todos os ateísmos desde a Antigüidade, constitui-se, na verdade, uma interpretação

tardia, redutora e deformante de uma «verdadeira filosofia» desaparecida, que é preciso reencontrar76: seu

fundamento seria a concepção do universo como um todo animado, constituído de mônadas ou átomos

espirituais.

A filosofia de Cudworth é, de fato, um vitalismo generalizado, ao mesmo tempo monista e hierárquico.

Monista, porque toda a natureza é inteligível a partir de um princípio único de formação dos indivíduos, que

ele denomina a «natureza plástica» (plastic nature), ao mesmo tempo forma e força. Hierárquica, porque, ao

longo da «escala dos seres» (scale or ladder of nature), desde os indivíduos materiais ou inanimados até os espíritos e, finalmente, ao Intelecto divino ele próprio, passando pela vida vegetal e animal, esse princípio de

atividade e auto-transformação se dá ele mesmo formas cada vez mais puras e cada vez mais livres. O sistema

de Cudworth (cujas réplicas modernas e contemporâneas poderiam ser facilmente identificadas, desde Charles

Bonnet e Maupertuis, até Bergson e Teilhard Chardin) é, assim, uma vasta teologia, a uma só vez naturalista e

espiritualista, na qual a natureza progride para sua própria perfeição. Todas as formas, todos os graus do ser

são imanentes ao mesmo processo (o que não deixou de criar dificuldades teológicas a Cudworth, acusado de

panteísmo, ou de reintegrar Deus no Mundo). Mas toda essa progressão é aspirada em direção a seu fim, e a

perfeição da alma divina representa a força organizadora do universo, tanto quanto o arquétipo do qual o

conjunto de individualidades que o constituem se aproxima mais ou menos completamente.

Esse é o âmbito em que Cudworth, dentre outros termos abstratos com idêntica fatura em –ness, criou

o de consciousness, a partir do adjetivo conscious (= concius), ele próprio de recente naturalização. Cudworth o faz equivalente de «Con-senso», por ele referido aos termos gregos sunaisthêses e sunesis, reencontrados em

Aristóteles e Pltotino; desta forma, ele fabrica uma etimologia fictícia (pois os latinos jamais consideraram

conscientia como uma «tradução» de tais termos, que eles associavam, antes, aos termos estóicos e cristãos

seneidos e suneidêsis77. O neologismo intervém em um desenvolvimento que recapitula a doutrina das

«naturezas plásticas», quando Cudworth propõe-se a distinguir uma força vital ignorante de seus próprios fins

(a que forma os organismos) da força que dirige as ações animais. Nesse momento, Cudworth insere,

igualmente, uma referência crítica ao cartesianismo: o dualismo entre duas substâncias, extensa e pensada, é

tão incapaz de dar conta da produção da vida e, em geral, da finalidade na natureza, quanto o materialismo78.

Dotado de uma significação a um só tempo ética, ontológica e cosmológica, em Cudworth o conceito

da consciousness cristaliza, pois, a conjunção de naturalismo e espiritualismo que já destacamos. Poder-se-ia

dizer, apenas, que a consciousness é a marca de um certo tipo de seres naturais, situados na parte mais elevada

1703 e 1706 (ver os tomos I, II, V – este último contendo a resposta às críticas de Bayle contra a doutrina das naturezas plásticas, VI, IX, X). Esta publicação terá um importante papel no renascimento das concepções vitalistas, em face do mecanismo inspirado de Harvey e Descartes: cf. J. Roger, Les Sciences de la vie dans la pensée française au XVIIIe siècle, red. Albin Michel, 1993, p. 418 e seg. 76 Idéia próxima do tema hermético da prisca philosophia: cf. a discussão, por Francis Yates, das posições de Cudworth sobre este ponto, in Giordano Bruno et la tradition hermétique, tr. francesa de Dervy-Livres, 1988, p. 492 e seg. E, igualmente, M. Bernal, Black Athena, vol. I, tr. francesa PUF, 1996, p. 234-237; A. Rupert-Hall, Henry More. Magic, Religion and Experiment, Basil Blackwell, Oxford, 1990, p. 113 e seg. 77 Encontram-se precisões sobre o uso dos termos gregos suneidos, suneidêsis, sunesis, sunaisthêsis no estudo de A. Cancrini: SUNEIDESIS. Il tema semantico della «cons-scientia» della Grecia antica, Lessico Intellectuale Europeo, VI, Edizioni dell’Ateneo Roma, 1970, e no artigo de H.-R. Schwyzer, «Bewusst» und «Unbewusst» bei Plotin, Entretiens de la Fondation Hardt sur l’Antiquité classique, Tomo V, Les souces de Plotin, Vandoeuvres-Genève, 1957. 78 Cf. nosso Dossiê (texto extraído da «Digression» sobre as naturezas plásticas).

Page 29: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 29

da escala de seres. Mas o mais interessante é sublinhar que, neste sentido, a consciência não é um traço

propriamente humano, ainda que caracterize particularmente as ações humanas: ela «começa» com o

sentimento vital, ou o sentimento de si dos viventes inferiores ao homem, e se estende às inteligências

superiores, em particular a Deus, que é eminentemente «consciente». Nesse caso, ela não se limita a informar

as ações ou comportamentos, mas torna-se o próprio princípio da criação, pois a Inteligência superior (o noûs)

não se contenta em perseguir fins exteriores, por mais racionais que sejam, mas «pensa-se ela mesma», «quer-

se a ela mesma», e «goza de si mesma».

Desse uso extensivo resulta, imediatamente, que a consciência é susceptível de grau (o que é a

diferença essencial, em relação à definição reflexiva introduzida, na mesma época, pelos cartesianos franceses, dos quais Cudworth pretende se distinguir: aqui a reflexão é um grau superior da consciência, mas entre tantos

outros). Mais interessante ainda, isso conduz o filósofo a usar o termo inconscious, geralmente empregado na

dupla: senseless and inconscious, que caracteriza a «matéria»79. A inconsciência e a consciência são contrários;

entretanto, em virtude do princípio de continuidade hierárquica que organiza todo o sistema, essa

contrariedade não tem sentido senão relativo: no fundo, ela se reproduz em cada nível da escala, segundo a

comparação do indivíduo àquele, mais primitivo, que o precede, ou àquele, mais perfeito, que a ele se segue.

Somente Deus é perfeitamente «consciente», sua Inteligência se percebe perfeitamente ela mesma, seu Espírito

de move ele próprio (self-active Mind). Inversamente, Cudworth diz, de forma expressa, que o espírito

inconsciente é um «pensamento adormecido» (ou entorpecido, tomado de estupor: drowsy, unawakened or

astonished cogitation). Eis como ele torna possível explicar, tanto que a consciência emerge da vida, quanto

que a vida, e mesmo a matéria mais simples, são «energias inconscientes», ou formas inconscientes de inteligência, cega a seus próprios fins80.

Compreende-se, então, que a referência à consciência desempenhe um papel decisivo na economia do

sistema de Cudworth, e no combate que ele empreende contra o materialismo, indo enfrentá-lo em seu próprio

terreno naturalista. É a consciência que lhe permite evitar que a hierarquia seja reversível. Atribuir um

«pensamento» às formas mais elementares da natureza, na medida em que são dotadas da capacidade de

formação ou de individuação, é possível já que o pensamento pode ser, ou «consciente», ou «inconsciente» de

si próprio. A natureza é uma ascensão da matéria em direção ao pensamento, porque é uma ascensão da

energia inconsciente em direção à energia consciente (ou das formas latentes da consciência em direção a suas

formas atuais e refletidas). Tem-se aqui o ponto de partida da doutrina leibniziana da percepção e, de forma

mais geral, de todas as tentativas de associar a vida, o sentimento e a consciência através de uma progressão,

inscrevendo essa última em uma evolução que exprime a própria ordem da natureza, na medida em que esta

tem por fim o espírito.

Observe-se, enfim, que, nessa ampliação da idéia de consciência, abandonou-se totalmente uma

referência direta à fórmula e à questão do «eu». Em contrapartida, o tema da «sunaisthèsis, Con-sense and

79 «The Hylozoists never able neither to produce Animal Sense, and Consciousness, out of what Senseless and Inconscious», R. Cudworth, The True…, 1678, reprint cit. 1964, The Contents, ad Chap. V, p. 666-667. 80 A diferença é, pois, total, em relação a Malebranche, como ela o é, em geral, entre as teorias do desconhecimento de si e as teorias do insconciente, que só se encontrarão com os desenvolvimentos contemporâneos da psicanálise. Longe de o desconhecimento, em Malebranche, caracterizar seres inferiores ao homem ou sua animalidade, ela representa a forma alienada daquilo que nele há de mais elevado: a alma, imagem do criador de quem a queda o desviou. Inversamente, o otimismo panteizante de Cudworth deixa pouco espaço para as conseqüências morais e teológicas do pecado original. Além disso, ele é partidário declarado do «livre arbítrio», adversário da predestinação e, de forma geral, do agostinismo.

Page 30: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 30

consciousness» é estreitamente associado com o conjunto de termos que conotam a reflexão, a autonomia e a

auto-referência. Esse deslocamento é decisivo para a formação da noção de consciência de si, que deverá – por

uma conceitualização explícita do «si» – afastar-se da redundância. Ao que parece, Cudworth não forjou a self-

consciousness81, mas emprega self-conscious ao lado de numerosos outros termos de mesma fatura. Sua

insistência (como, em geral, a dos platônicos de Cambridge) pelo prefixo self, por meio do qual eles formam

numerosos compostos, a partir do modelo real ou fictício de termos gregos em auto-, não deixa de ter interesse

para quem pretende explicar a forma pela qual Locke isolará a idéia do «self»82. Pode-se imaginar, também,

que a tese segundo a qual a «consciência» e o «si» não são ligados a uma diferença substancial da alma e do

corpo, mas à sua integração «plástica» em uma forma única, explicitamente dirigida contra o dualismo cartesiano, facilitou, em Locke, a neutralização da questão da substância e a autonomização das funções da

mind, em relação à «alma» e ao «corpo».

É impressionante verificar que os rascunhos (drafts) do Essay de Locke, datando de inícios de 1670,

não contêm nenhum uso da palavra consciousness, que ocupa, ao contrário, um lugar central na versão final,

desde a primeira edição (1690) e, evidentemente, na segunda (1694). Mas essa palavra aparece sob sua pluma

em uma nota de seu Diário, datada de 20 de fevereiro de 1682, onde, discutindo, precisamente, o livro de

Cudworth e suas posições acerca da imortalidade da alma das bestas, ele antecipa sua concepção sobre a

identidade pessoal, que só será desenvolvida após 1694. Em certo sentido, tudo já estava dito aí:

«Identity of persons lies not in having the same numerical body made up of the same particles, nor, if the mind consists of incorporeal spirits, in their being the same. But in the memory and knowledge of one’s past self and actions continued on under the consciousness of being the same person, whereby every man own’s himself83.»

iii. mind, consciousness, identity: o isolamento do «mental» no Essay concerning Human Understanding.

A redação do Essay concerning Human Understanding se estendeu por um longo período, através

muitos lugares da Europa intelectual, religiosa e política. Os primeiros manuscritos datam de 1671, quando

Locke acabava de ser eleito membro da Royal Society, por recomendação de Boyle, e de entrar, como médico, conselheiro e secretário, para o serviço do Conde de Shaftesbury, chefe do Partido dos Liberais (Whigs). Nos

anos seguintes, ele viaja longamente pela França (Montpellier, Paris), onde freqüenta tanto os cartesianos

(Arnauld e Nicole), quanto os epicúricos discípulos de Gassendi, lendo e traduzindo alguns de seus textos,

reagindo às idéias de Malebranche. Em 1683, sua liberdade, ou mesmo sua vida, é ameaçada por sua

81 De que o Oxford English Dictionary fornece uma primeira referência, antes de Locke, em um outro platônico de Cambridge, John Smith, em 1675, em um sentido próximo do egoísmo. Cf. nosso Glossário (self-consciousness). 82 Cf. J.-L. Breteau, art. cit. A predileção dos cambridgeanos pela idéia da reflexividade, assim como por neologismos helenizantes ou latinizantes que podem exprimi-lo aparece claramente no livro de Henry More, The Imortality of the Soul (1659, reed. Em 1662). Teremos a ocasião de sublinhar sua importância para a gênese das formulações lockianas sobre a personalidade e o «si». (cf. abaixo, Glossário: personality, self). 83 «A identidade das pessoas não reside no fato de ter numericamente o mesmo corpo, feito dos mesmos corpúsculos, nem, se o espírito é constiutuído de espíritos incorpóreos, em sua conservação. Mas na memória e no conhecimento do “si” passado e de suas próprias ações, continuamente submetidas à consciência de ser a mesma pessoa, pela qual cada homem se possui a si mesmo e se afirma como tal.» Cf. Rogers, 1997; Ayers, 1991, vol. II, p. 254-255 e nota 45; e, sobretudo, Marshall, 1994, p. 153, que detalha o contexto.

Page 31: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 31

participação na conspiração contra Charles II e ele deve se refugiar na Holanda, onde acaba a redação dos Dois

tratados sobre o Governo Civil e do Ensaio84. Ele estabelece estreitas relações com teólogos humanistas

(«arminianos» ou «admoestadores» [remontrants], como Philipp van Limborch, adversários da predestinação

calvinista e defensores de uma interpretação racional das Escrituras, e com os protestantes franceses do

«refúgio», fundadores da República das Letras85. Em 1688, após a «Gloriosa Revolução», ele retorna à

Inglaterra e publica simultaneamente três obras, que se tornaram seus mais célebres livros: o Essai (em inglês,

com seu nome), os Dois Tratados (em inglês, anonimamente) e a Carta sobre a Tolerância (em latim,

anonimamente).

Enquanto Locke viver, o Ensaio vai conhecer diversas reedições, acompanhadas de transformações: as mais importantes são as modificações de formulação no capítulo xxi do Livro II (On Power), sobre a questão da

liberdade e da vontade, o acréscimo do capítulo xxvii nesse mesmo Livro (Of Identity and Diversity) e o do

capítulo xxxiii (Of the Association of Ideas), como conclusão do Livro II e, enfim, o do capítulo xix do Livro IV

(Of Enthusiasm), dirigido contra as concepções iluministas e místicas da religião e em nome de um

«cristiniasmo razoável» que permitisse a cada um não «tiranizar» nem seu próprio espírito, nem os dos

outros86.

O Ensaio é o primeiro dos grandes tratados modernos de teoria do conhecimento. Seu objetivo,

exposto no Preâmbulo (numerado capítulo I do Livro I nas edições inglesas) é de proceder a um exame crítico

das diferentes faculdades do conhecimento que formam o entendimento humano, do duplo ponto de vista de

84 Cf. Ashcraft 1986; Marshall, 1994. 85 Um dos amigos próximos de Locke, em Amsterdã, era John Le Clerc, nascido em Genebra, em 1657, morto em 1736, filósofo e filólogo ligado à Igreja arminiana e muito ativo nos debates do tempo. Ele editou, a partir de 1686, a Bibliotèque Universelle et Historique, continuada após 1703 pela Bibliotèque Choisie (cf. Barnes, Jean Le Clerc (1657-1736) et la République des Lettres, Droz, 1938). Pode-se encontrar, no tomo VIII (1688) da Bibliotèque…, a tradução francesa – em manuscrito – de um Breviário do Essai Philosophique concernant l’Entendement [Humain], redigido pelo próprio Locke, e que se termina pelo seguinte desenvolvimento: «Este é o extrato de uma obra em inglês que o autor aceitou publicar apara satisfazer alguns de seus amigos particulares e para oferecer-lhes um resumo de seus sentimentos. Se alguns daqueles que se darão ao trabalho de examiná-lo acreditar haver encontrado algum lugar em que o autor se tenha enganado, ou qualquer coisa obscura ou defeituosa nesse sistema, basta-lhe enviar suas dúvidas ou suas objeções a Amsterdã, aos mercadores livreiros que imprimem a Bibliotèque Universelle. Ainda que o autor não tenha grande desejo de ver sua obra publicada [sic] e que ele acredite que se deve ter mais respeito pelo público, do que oferecer-lhe primeiro o que se julga ser verdadeiro, antes de saber se os outros concordarão, ou o julgarão útil; não obstante, ele não é tão reservado, que não se possa esperar que se disporá a oferecer ao público a integralidade de seu tratado, assim que a maneira pela qual esse breviário foi recebido lhe der ocasião de crer que sua publicação não será de todo inoportuna. O leitor poderá observar nessa versão alguns termos empregados em um novo sentido, ou que talvez jamais tenham aparecido em qualquer livro francês. Mas teria sido muito longo exprimi-los por perífrases, e acreditou-se que, em matéria de filosofia, era perfeitamente permitido tomar, em nossa língua, a mesma liberdade que, nas outras, se toma neste tipo de ocasiões, formando palavras analógicas quando o uso comum não fornece aquelas de que se tem necessidade. O autor o fez em seu inglês, e pode-se fazê-lo nessa língua, sem que seja preciso pedir permissão ao leitor. Seria muito desejável que se pudesse fazê-lo igualmente em francês, e que pudéssemos igualar na abundância de termos uma língua que a nossa não supera em exatidão de exposição». (op. cit., p. 140-142). Vê-se, por este texto destinado a servir de isca para os sábios de toda a Europa, que a filosofia de Locke foi apresentada em francês antes de sê-lo em língua original (não sem alguns quiprocós de pessoa: cf. Bibliotèque Choisie, Ano 1705, Tomo VI, «Éloge de feu M. Locke»). É Le Clerc que proporá, em seguida, Pierre Coste (1668-1747), jovem protestante do Languedoc, seu colaborador e protegido, como tradutor para o Ensaio. Em 1696, Coste se instala na Inglaterra, para poder trabalhar com o autor e é empregado como preceptor do filho de Lady Masham, Francis Cudworth Masham (Cf. The Correspondence of John Locke, Oxford, 1978, vol. III e seguintes, assim como Jean Le Clerc, Epistolario, cit. vol. II). Mais tarde, ele traduzirá, notadamente (1720), a Ótica de Newton. Não parece, no entanto, que Locke tenha freqüentado Bayle, de quem suas concepções são profundamente distantes, mesmo que a posteridade tenha aproximado suas duas defesas da tolerância. 86 Sobre o qual ele publicará em 1695 uma obra inteira, ainda de forma anônima, mas cujas posições ele assumirá em sua controvérsia com o bispo de Worcester, Edward Stillingfleet, que se termina por uma magnífica profissão de fé em favor da liberdade de consciência: «… é, segundo me parece, a lei de meu Mestre [=Cristo] não chamar ninguém na terra, nem de ser chamado por ninguém de Mestre. Nenhum homem, eis o que penso, tem direito de me prescrever minha fé, ou passar-se por mestre para me impor suas interpretações ou suas opiniões; tanto quanto as minhas não devem importar a ninguém, para além do que importam em razão de sua evidência…» (A Second Vindication of the Reasonableness of Chritistianity, in The Works of John Locke, 1823, vol. VII, p. 359).

Page 32: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 32

sua «concordância» (agreement) ou «proporção» a seus objetos (de maneira a identificar os critérios de

certeza e de verdade) e de seus limites de validade (de maneira a fixar as fronteiras de seu exercício, em

particular as da razão e da fé). As proposições essenciais concernindo a consciência (consciousness) estão

contidas em quatro grupo de textos, que marcam a progressão:

1. A refutação da teoria das «idéias inatas», exposta no Livro Primeiro. Locke mostra a possibilidade

de dissociar o princípio «cartesiano» segundo o qual o espírito não pode pensar sem saber que pensa da

representação de uma «substância pensante» e, a fortiori, da tese de que «a alma sempre pensa».

2. A descrição da origem ou proveniência (original) das idéias na sensação e na reflexão, que são

como uma percepção do «sentido externo» e uma percepção do «sentido interior» (Livro Segundo, capítulo I). Ao introduzir essa última noção, Locke abre a possibilidade de uma análise pelo espírito (mind) de seu próprio

funcionamento. A consciousness é então definida como «a percepção, por um homem, daquilo que se passa em

seu próprio espírito» (Ensaio, II.i.19).

3. A definição de um critério de identidade pessoal, que não é outra senão a consciência ela mesma, no

capítulo xxvii do Livro II. Este capítulo foi acrescentado em 1694, sem dúvida tanto para completar sua

argumentação quanto para responder às objeções dos teólogos, inquietos com uma dissolução da

substancialidade da alma (base das provas de sua imortalidade)87. Locke replicará mostrando que a pessoa,

com suas atribuições morais, jurídicas e religiosas (a responsabilidade de nossos atos, pelos quais teremos que

responder no dia do «julgamento»), é bem mais rigorosamente identificada por uma teoria da consciência do

que por uma metafísica da substância. Havendo assim refundado sua teoria, Locke aproveita da segunda

edição do Ensaio para introduzir em todas as suas análises precedentes referências à consciência – que, anteriormente, não figuravam aí.

4. Enfim, a análise da relação entre as «operações interiores do espírito» e sua «expressão», pelo meio

dos sinais da linguagem (Livro III, cap. I e II) que conduz à distinção entre as «verdades mentais» e as

«verdades verbais» (Livro I, cap. V). Esta é uma bifurcação fundamental para toda a história da filosofia,

marcando o triunfo do ponto de vista da concepção ou representação sobre o da enunciação. Locke a discute ao

término de sua obra, mas pode-se pensar que, desde o início, ela orienta toda a dinâmica de sua argumentação.

Procederemos, assim, da seguinte maneira: mostraremos, inicialmente, como Locke isolou o mental (Mind,

Thought) do verbal (Language, Words) e como essa separação lhe permitiu reformular o princípio de

identidade no elemento da consciência; em seguida, mostraremos que ela coincide com uma refundação da

noção tradicional de «sentido interior». Por fim, esboçaremos a unidade dos conceitos de consciência, de si e

de identidade em uma teoria da «Pessoa» que é a primeira grande doutrina moderna do sujeito individual, e

reuniremos as características da interioridade e da exterioridade do Mind em uma «tópica», antes de passar ao autor.

1. O mental e o verbal

No capítulo I do Livro III, Locke toma partido contra a idéia de que as palavras da linguagem sejam signos das coisas, em favor da idéia de que são signos das idéias das coisas. A idéia de fazer das palavras uma

simples nomenclatura das coisas é absurda, pois as palavras denotam também relações, logo, operações

87 Ver M. Ayers, op. cit., vol. II, p. 254-259 : «Personal identity before the Essay».

Page 33: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 33

intelectuais. É preciso que elas possam significar «uma multiplicidade de existências particulares» (ou sua

generalidade, o que é o caso de todos os substantivos comuns88), a presença e a ausência (ou a afirmação e a

negação), enfim, as noções de «coisas que não tocam os sentidos» (ainda que tenham sua origem na

experiência). Isso significa que somente as idéias presentes no espírito podem conferir um sentido à

linguagem.

Seria o caso de dizer que, segundo Locke, as palavras não se referem às coisas? Certamente que não,

mas é preciso admitir que essa relação é o resultado de uma «suposição» do espírito. A relação que se

estabelece entre as idéias e seus signos verbais ou escritos é, antes de tudo, estritamente individual: «em sua

significação primeira e imediata, as Palavras não significam outra coisa senão as idéias que estão no espírito daquele que delas se serve» (III.ii.2), elas são para cada um os «signos de [suas] concepções interiores» e «as

marcas das idéias que temos no espírito» (marks for the Ideas within his own Mind) (III.ii.2) e, «por

conseguinte, é das idéias daquele que fala que as Palavras são signos, e ninguém pode aplicá-las imediatamente

como signos para qualquer outra coisa além das idéias que tem, ele próprio, em seu espírito.» (III.ii.2). Resulta

daí que cada indivíduo deve ter adquirido idéias para poder fazer uso das palavras correspondentes. E também

que os indivíduos atribuem às palavras uma relação unívoca com as coisas, em conseqüência da intenção que

têm de estabelecer uma «relação secreta» com outros homens: «supõem que as palavras de que se servem são

signos das idéias que se encontram também nos espíritos (in the Minds) dos outros homens com quem se

entretêm» (III.ii.4).

No capítulo IV.v («Da Verdade em geral»), Locke estende a correspondência entre as palavras e as

idéias àquela das proposições verbais e proposições mentais. Essa última, por sua vez, permite distinguir a verdade mental e a verdade verbal («Truth of Thought» ou «Mental Truth» versus «Truth of Words» ou

«Verbal Truth»: aqui a tradução francesa permite unificar imediatamente a terminologia, ressaltando a nova

concepção do pensamento como «atividade mental»). Falar de «proposições mentais» permite conservar

formalmente a tese clássica que diz que «a Verdade não pertence propriamente senão às Proposições» (IV.v.2),

já que essas não são outra coisa, além de operações do pensamento. É preciso remontar a essas operações para

estabelecer se os enunciados constituem «verdades reais» (sic), ou «verdades nominais», isso é, presunções de

verdades que podem se revelar enganosas. Tem-se aqui a certidão de nascimento do psicologismo, que não

resulta tanto de uma crítica da idéia de uma verdade necessária existindo em si quanto de desqualificação da

linguagem como elemento originário do pensamento (um anti-linguistic turn, de alguma forma)89. Vê-se

também que o psicologismo não é o efeito do nascimento de uma psicologia: ele seria, antes uma condição para

tal nascimento, o programa que ela se esforçará em cumprir.

88 As primeiras idéias (genética e logicamente) sendo mais sensíveis, somos reconduzidos, não às «coisas mesmas», mas às suas impressões ou representações no espírito. A palavra ou substantivo por excelência é o termo geral que designa uma classe de objetos de experiência sensível: cf. Geneviève Nrykman, «Philosophie des ressemblances contre philosophie des universaux chez Locke», Revue de Métaphysique et de Morale, outubro-dezembro de 1995, p. 439-454. 89 É claro que essa desqualificação será imediatamente seguida de uma requalificação, como instrumento indispensável do progresso do conhecimento. Mas o importante é a posição do fundamento semântico. Não se trata, pois, tanto de uma anterioridade cronológica, mas de uma prioridade lógica, ainda que comporte uma dimensão genética. Locke não pretendeu dizer que podíamos conhecer o mundo sem dispor de linguagem; ao contrário: o Livro III do Essay é inteiramente consagrado ao desenvolvimento de sua função necessária, e assim do efeito de retorno da comunicação social sobre a constituição do entendimento. Mas ele quis mostrar que o uso das palavras e sua relação com as idéias são sempre, em última análise, fundados em uma norma de significação que pertence exclusivamente à interioridade da consciência, ou à forma pela qual a consciência percebe suas próprias operações. É – para não recorrer a mais do que uma referência – exatamente o que Frege buscará afastar, ao opor as questões subjetivas de «representação» (Vorstellung), que dependem, a seus olhos, da psicologia, das questões objetivas de «sentido» (Sinn) e de «denotação» (Bedeutung) que dependem da lógica (cf. Écrits logiques et philosophiques), tradução e introdução de Claude Imbert, 1971, p. 102 e seg.).

Page 34: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 34

«Mas, para voltar a consideração sobre em que consiste a Verdade, digo que é preciso distinguir duas espécies de Proposições que somos capazes de formar. Primeiramente, as Mentais, em que as Idéias são unidas ou separadas em nosso entendimento, sem a intervenção das palavras, pelo espírito que, percebendo sua conveniência ou desconveniência, julga de forma atual (by the Mind, perceiving or judging of their Agreement, or Disagreement.). Há, em segundo lugar, Proposições Verbais, que são palavras, signos de nossas idéias, unidos ou separados em sentenças afirmativas ou negativas. E, por esta maneira de afirmar ou de negar, esses signos formados por sons, são, por assim dizer, unidos junto ou separados um do outro […]» (IV.v.5)

Locke demonstra, então, como as operações do espírito (isso é, da consciência) desdobram

«tacitamente» as da linguagem e se constituem em sua norma de verdade:

«Cada qual pode ser convencido por sua própria experiência de que o Espírito, vindo a perceber ou a supor a conveniência ou a desconveniência de qualquer uma de suas idéias, as reduz tacitamente em si mesmo a uma espécie de Proposições afirmativa ou negativa […] Mas essa ação do Espírito (Action of the Mind) que é tão familiar a cada homem que pensa e que raciocina é mais fácil de ser concebida quando se reflete sobre o que se passa em nós (easier to be conceived by reflecting on what passes in us), do que é simples explicá-la com palavras. Quando um homem tem em seu espírito a idéia de duas linhas […] ele une ou separa, por assim dizer, essas duas idéias, quero dizer, a dessa linha e a dessa espécie de divisibilidade e, assim, ele forma uma proposição mental que é verdadeira ou falsa, de acordo com o fato de que uma tal espécie de divisibilidade ou uma divisibilidade em tais partes alíquotas convém realmente ou não a essa linha. E quando as idéias são unidas ou separadas dessa forma no espírito, de acordo com o fato de que essas idéias ou as coisas que elas significam convêm ou desconvêm, eis aí, se ouso dizê-lo, uma Verdade mental. Mas a Verdade verbal é algo a mais. É uma Proposição em que as palavras são afirmadas ou negadas uma da outra, de acordo com o fato de que as idéias que significam convêm ou desconvêm […] (IV.v.6)

E, mais adiante, ele indica que a passagem das proposições mentais às proposições verbais comporta

um risco específico de perda da relação com a realidade:

«Ainda que nossas palavras não signifiquem outra coisa além de nossas idéias, como elas são destinadas a significar coisas, a verdade que elas contêm quando vêm a significar Proposições não poderia ser senão verbal, ao designar no espírito idéias que não convêm com a realidade das coisas. Eis porque a Verdade, tanto quanto o Conhecimento, pode ser facilmente distinguida em verbal e real (come under the distinction of Verbal and Real); a primeira sendo somente verbal (being only verbal Truth), a cada vez que os termos são unidos de acordo com a conveniência ou desconveniência das idéias que significam, sem considerar se nossas idéias são tais que elas existam ou possam existir na Natureza. Mas, ao contrário, as Proposições contêm uma verdade real, quando os signos de que são compostas são unidos na medida em que nossas idéias convêm, e que essas idéias são tais que nós as conhecemos capazes de existir na Natureza […] (IV.v.8) [tradução de Coste]

A linguagem é, pois, ao mesmo tempo mais (uma vestimenta) e menos (uma presunção) do que o

pensamento. A situação inicial (em que tínhamos necessidade das palavras para exprimir idéias complexas)

então é invertida. É ao pensamento puro que é preciso voltar, para estabelecer o que é «realmente» a verdade,

em seus dois aspectos: coerência interna e correspondência com as coisas. Mas isso supõe que o pensamento

comporte em si mesmo um critério de certeza, e que seja capaz de se comparar consigo mesmo e com seu exterior.

Page 35: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 35

2. O princípio de identidade

Antes mesmo de enunciar um critério de identidade para a pessoa humana, Locke inscreveu na constituição da consciência um enunciado que faz dessa última uma «identidade a si». Sem essa preliminar,

não seria possível fundar absolutamente nada. A consciência não poderia garantir a identidade da pessoa se ela

não contivesse, em si mesma, o princípio da identidade. Observemos que, dessa forma, Locke vai reencontrar

as funções de certeza que caracterizavam o «cogito» cartesiano: distribuindo-as, no entanto, ao longo de uma

constituição teórica do sujeito, ao invés de concentrá-las no puro enunciado do «eu» – em outras palavras, no

paradoxo de uma auto-referência. Pelo mesmo movimento, ser-lhe-á possível conferir à sua análise um caráter

geral. A singularidade do sujeito (que ele denominará o si, the Self) pode ser descrita aí sem que lhe seja necessário enunciar-se imediatamente ela própria na primeira pessoa, como na meditação cartesiana. Em

contrapartida – de acordo com um esquema dialético clássico – o enunciado da identidade a si, pelo qual

começa essa constituição, está unido à refutação de um erro, que é a «doutrina das idéias inatas». Assistimos,

assim, à produção de uma verdade necessária a partir de seu contrário, o que confirma que se trata, realmente,

de um fundamento90.

A refutação do inatismo ocupa o conjunto do Livro I. Deixaremos de lado a discussão, constantemente

reaberta, sobre quem, entre os filósofos antigos ou contemporâneos, está sendo visado pela argumentação de

Locke91. Basta-nos admitir que, ainda que não se possa reconhecer Descartes em todas as formulações

criticadas por Locke, a argumentação desenvolvida por este último conduz à dissociação de duas partes da

herança cartesiana. Por um lado, a idéia «falsa» de que certas noções possam dever sua universalidade a uma

inseminação divina no espírito do homem. Por outro lado, a idéia «verdadeira» segundo a qual o pensamento está imediatamente presente a si, ou que ele é intrinsecamente reflexivo. Entre as duas, a proposição «a alma

sempre pensa», interpretada como idéia de permanência substancial, é posta em contradição com a

experiência. Mas sua refutação prepara uma outra tese, essencial para a teoria da consciência: o espírito

sempre se recorda de haver pensado.

O primeiro momento da crítica do inatismo consiste em mostrar que os princípios gerais da lógica e da

moral (o que a tradição denominava as «noções comuns») não são nem originários, nem universais:

«Não há, efetivamente, nenhum Princípio sobre o qual todos os homens se ponham geralmente de acordo. E, para começar pelas noções especulativas, eis dois desses célebres Princípios aos quais se atribui, antes do que a quaisquer outros, a qualidade de Princípios inatos: Tudo o que é, é; e É impossível que uma coisa seja e não seja, ao mesmo tempo, […] longe de serem objeto de um consentimento geral, para grande parte do Gênero Humano essas duas Proposições não são sequer conhecidas. Pois, primeiramente, é certo que as Crianças e os Idiotas não têm a menor idéia desses princípios, e que neles não pensam de nenhuma maneira.» (I.i.4-5)

O segundo momento surge como objeção a que as verdades inatas pudessem se achar imprimidas na

alma sem que ela o saiba, sem que ela tenha esse saber à sua disposição, «atualmente». É essa objeção – por

meio da qual Leibniz, por exemplo, realiza a operação de resgate dessa noção de inatismo – que Locke declara

absurda:

90 Não discutiremos o «empirismo» atribuído a Locke pela tradição filosófica. No que nos concerne aqui, é antes seu racionalismo que é digno de destaque. 91 Sobre o assunto, cf. John W. Yolton, John Locke and the Way of Ideas, Oxford, 1968, cap. 2, e Jean-Michel Vienne, Expérience et raison. Les fondements de la morale selon Locke, Vrin, 1991, cap. 1, p. 18 e seg.

Page 36: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 36

«Pois que dizer que há verdades que, impressas na Alma e que a Alma não percebe e não entende é, ao que me parece, uma espécie de contradição, a ação de imprimir não podendo marcar outra coisa (supondo que ela signifique algo de real nesse encontro) senão fazer perceber certas verdades. Pois imprimir o que quer que seja na Alma sem que a Alma disso se aperceba (without the Mind’s perceiving it) é, a meu ver, uma coisa simplesmente ininteligível […] Dizer que uma Noção está gravada na Alma (imprinted on the Mind) e sustentar, ao mesmo tempo, que a Alma não a conhece absolutamente (that the Mind is ignorant of it) e que disso não teve ainda qualquer conhecimento (and never yet took notice of it) é fazer dessa impressão um puro nada. Não se pode asseverar que uma certa proposição esteja no Espírito, quando o Espírito ainda não a percebeu, nem dela descobriu qualquer idéia em si mesmo (wich it never yet knew, wich it was never conscious of) […] Pois se essas palavras, estar no Entendimento, carregam qualquer coisa de positivo, elas significam ser percebido e compreendido pelo Entendimento. De forma que sustentar que uma tal coisa está no Entendimento e que não é concebida pelo Entendimento (to be in the Understanding, and, not to be understood), que ela está no Espírito sem que o espírito a perceba, é o mesmo que se disséssemos que uma coisa está e não está no espírito ou no Entendimento. Se, portanto, essas duas Proposições: O que é, é e é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo estivessem gravadas na Alma dos Homens pela Natureza […] todos aqueles que têm uma alma deveriam possuí-las necessariamente em seu Espírito, reconhecer sua verdade e fornecer-lhes seu consentimento» (I.i.5)92.

Locke não cessará de repetir essa formulação, não apenas no mesmo capítulo (§ 9), mas em toda a

obra, a cada vez que se tratar de voltar ao fundamento da teoria. Assim, no Livro II, capítulo I, § 10. E,

sobretudo, no § 19:

«Ora, poderia a Alma pensar, sem que o Homem pensasse? Ou bem o Homem pode pensar sem estar convencido em si mesmo (a Man think, and not be conscious of it) […] eles podem igualmente dizer que o Corpo é extenso, sem ter partes. Pois dizer que o Corpo é extenso sem ter partes e que uma Coisa pensa sem conhecer e sem aperceber o que pensa (that a Body is extendend without parts, as that any thing thinks without being conscious of it, por perceiving it, that it does so) são duas asserções igualmente ininteligíveis. E aqueles que assim falam teriam as mesmas razões para sustentar […] que o Homem sempre tem fome, mas que ele não tem sempre o sentimento de fome; já que a Fome não poderia existir sem esse sentimento, da mesma forma o Pensamento sem uma convicção que nos assegure interiormente que pensamos (as thinking consists in being conscious that one thinks). Se dizem que o Homem sempre tem essa convicção (That a Man is always conscious to homself of thinking), eu pergunto como eles o sabem, posto que essa convicção (Consciousness) nada mais é do que a percepção daquilo que se possa na Alma (Mind) do Homem. Ora, poderia um outro Homem se assegurar que sinto em mim o que sequer percebo, eu próprio? (Can another Man perceive that I am conscious of any thing, when I perceive it not myself)? É aqui que o conhecimento do Homem não poderia se estender para além de sua própria experiência…»

Avalie-se a amplitude da reviravolta operada por Locke. O princípio de identidade e o princípio de

contradição foram relativizados à condição de crenças ou conhecimentos adquiridos, isso é, constatou-se a sua

não-universalidade de fato (todos os homens, entre os quais as crianças, os selvagens, os idiotas não têm deles

conhecimento como enunciados). Mas, isto, para se reencontrarem inscritos na própria estrutura do espírito,

sob a forma da tese: é impossível que o homem não pense o que ele pensa, ou que ele pense sem pensar. E, por

um fulgurante contra-ataque, essa contradição é imputada àqueles (cartesianos ou supostos tais) que afirmam que a alma sempre pensa, isso é, continuamente. O que há de universal não são tais enunciados, não são sequer

as «proposições mentais» correspondentes, mas a não-contradição do espírito e, conseqüentemente, a

92 Notemos que Coste não tem qualquer rigor na tradução das palavras Soul e Mind, o que prova que essa distinção é nova ou impraticável para ele. Cf. Glossário: mind.

Page 37: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 37

identidade do espírito com ele próprio, na condição de atividade ou operação do pensamento. Enfim, Locke

remete essa afirmação à experiência de cada um, o que não quer dizer que ela seja relativizada, mas, ao

contrário, que, no seio de toda experiência se experimenta a mesma escora de impossibilidade e, assim, o

mesmo ponto de certeza universal. O nome dessa necessidade em que o pensamento se encontra de não pensar

sem pensar é precisamente consciousness.

Por ele mesmo, esse nome produz, evidentemente, um efeito. Pode-se resumi-lo reformulando da

seguinte maneira a dupla negação, inerente à articulação do lógico e do psicológico: o pensamento é a

consciência, porque um pensamento não consciente é uma contradição nos termos, um não-pensamento. Mas

essa nova formulação, equivalente, aos olhos de Locke, também coloca em relevo o postulado subjacente a toda argumentação: que pensar e conhecer são duas noções fundamentalmente idênticas. Elas o são, de fato,

porque idênticas a uma terceira: a percepção. Eis porque é equivalente dizer: seria contraditório que o espírito

pensasse sem saber que pensa, ou: seria contraditório que o espírito pensasse sem pensar que pensa, ou

pensasse e não pensasse, ao mesmo tempo.

No que precede, teve-se a aplicação direta dessa equivalência; no que segue, ter-se-á a recíproca: já

que o pensamento sabe ou pensa (i.e., percebe) que pensa, por definição, ele pode conhecer, ele próprio, todos

os seus modos, todas as suas operações. Muito mais justificadamente do que os cartesianos, Locke será, assim,

o verdadeiro fundador da psicologia racional, nominalmente referida à experiência, mas feita de todas as

reflexões do espírito sobre ele próprio. E que, nesse sentido, precede, tanto de direito como de fato, a qualquer

constituição de «ciência»93.

3. A origem das idéias e o sentido interno

Quando Locke introduz o substantivo consciousness (II.i.19), ele já passou à construção positiva. Já não é mais questão de alma (a despeito de algumas flutuações terminológicas), mas de estrutura do Mind ou

«espírito»94. Trata-se de mostrar de onde provêm os materiais de todo pensamento, a saber, as idéias, mas

também porque é possível para o espírito analisar a lógica das operações mentais. Ora, essas duas explicações

são de fato uma só, o que quer dizer que a possibilidade do conhecimento de si é originariamente inscrita na

estrutura do espírito.

Sua tese é a de que as idéias têm uma dupla origem: elas provêm seja da sensação das qualidades dos

objetos do mundo exterior, seja da reflexão do espírito ou do entendimento sobre suas próprias operações.

Locke precisa bem (II.i.3-5) que essas duas fontes (Fountains) podem, uma e outra, serem consideradas como

espécies de «percepção», isso é, que se trata de receber idéias; mas, em um caso, elas são recebidas pelo canal

dos órgãos dos sentidos, enquanto que, no outro, elas se formam por uma faculdade análoga, «à qual bem

conviria o nome de sentido interior (might properly enough be call’d internal Sense)». Por outro lado, ele chama nossa atenção para o fato de que as idéias de reflexão não são simplesmente idéias em segundo grau, ou

«idéias de idéias», como se o espírito observasse, de alguma forma, as idéias primeiras que lhe vêm da

93 Sugerimos aqui simplesmente que o introdutor do termo em filosofia, Christian Wolff, como bom leibniziano que era, denominou de psychologia empirica a «psicologia racional» de Locke, para poder reservar à sua escola a «verdadeira» psychologia rationalis. Esse ponto de vista ainda é atuante no século XX, como demonstram os comentários de Cassirer. 94 Sobre a tradução, ou não-tradução, de Mind por espírito, cf. Glossário: mind.

Page 38: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 38

sensação, mas são percepções de operações ou ações do espírito, ou da forma pela qual o espírito opera sobre

(e com) as idéias primeiras que lhe vêm da sensação.

A consciência seria, então, pura e simplesmente idêntica ao sentido interno ou ao sentido interior?

Ainda aqui, há nuances que se referem, em parte, à necessidade de levar em consideração os usos históricos

dos mesmos termos. O paradoxo é que a expressão «sentido interno», destinada a um futuro tão promissor95,

não aparece, na verdade, senão uma só vez no texto de Locke. De nossa parte, nós o explicaríamos do seguinte

modo: a expressão «sentido interno» não foi inventada por Locke; ela tem uma origem aristotélica e medieval,

designando a percepção pela alma de fenômenos localizados no interior do organismo96. Por outro lado,

Descartes havia mencionado «sentidos interiores» pelos quais se experimentam as sensações internas (fome e sede) e os sentimentos de prazer, de dor, de alegria, de tristeza…97 Locke nos diz, em suma: se há um sentido

interno, esse sentido nada pode ser senão a reflexão, pela qual o espírito percebe suas próprias operações. O

termo é, portanto, em certo sentido, inútil. Mas, por outro lado, ele tem a vantagem de sublinhar o paralelismo

da «percepção interior» e da «percepção exterior», isso é, de mostrar que a reflexão é tão imediata quanto

uma sensação, e que engendra idéias tão «simples» quanto ela, a começar pela idéia do pensamento, que

caracteriza originariamente a consciência. A partir daí, uma outra conseqüência se segue: permanecendo,

implicitamente, um «sentido interior», a reflexão não aparece somente como tomada de consciência pela

experiência, mas como sendo ela própria uma experiência, precisamente uma experiência dos fenômenos

«interiores», uma experiência de interioridade.

Mas se essa experiência é imediata, ela não é necessariamente simples. Isso se deve à estrutura do que

Locke denomina percepção. Na III Meditação, Descartes havia começado por distinguir os pensamentos em dois gêneros: um, do lado das vontades, afecções e julgamentos, outro, do lado das idéias que são «como que

imagens das coisas». Em seguida, ele classificara as idéias, segundo sua origem, em três categorias: «inatas»,

ou contemporâneas à própria formação de meu espírito, «adventícias», ou recebidas do exterior (quer se

tratem de objetos sensíveis, de outros homens ou de Deus) e, enfim, «factícias», isso é, forjadas por meu

próprio espírito. Na medida em que, como o faz Locke, elimina-se a categoria das idéias inatas (o que significa

dizer que não há universalidade dada da razão, mas somente uma universalidade construída, na ciência como

na moral), restam as idéias adventícias e as idéias factícias: aquelas que recebo e aquelas que formo. Mas sua

correlação, precisamente, é bastante para reconstituir todo o campo do entendimento, tornando efetivamente

analisável tudo o que Descartes havia declarado inanalisável, inclusive a clareza e a distinção de certas

«naturezas simples». Mais ainda, ela permite reintegrar no campo das idéias as operações que Descartes havia

situado à parte (em particular, o julgamento, de novo analisado segundo suas modalidades de «reunião» e de

«separação»).

Sem dúvida, a concepção lockiana apresenta numerosos enigmas. Para começar, no que concerne à

relação entre sensação e reflexão. Releiam-se os parágrafos II.i.3 e seguintes. Há uma anterioridade das idéias

95 Em particular, em Kant (via Tentens). Sobre a «dívida» de Kant em relação a Locke, cf. as apreciações de Béatrice Longuenesse, Kant et le pouvoir de juger. Sensibilité et discursivité dans l’Analytique transcendentale de la Critique de la raison pure, PUF, 1993, p. 263 e seg., e de Jocelyn Benoist, Kant et les limites de la synthèse. Le sujet sensible, PUF, 1996, p. 119 e seg. 96 Cf. E. Ruth Harvey, The Inward Wits. Psychological theory in the Middle Ages and the Renaissance, London, The Warburg Institute, 1975; H. A. Wolfson, «The Internal Senses in Latin, Arabic, and Hebrew Philosophical Texts», Havard Theological Review, XXVIII (1935), 69-133. 97 Principes, IV, § 190. Cf. D. Kambouchner, L’homme des passions, op. cit., vol. I, p. 269 e seg.

Page 39: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 39

de sensação, o que quer dizer que a matéria primeira de todo conhecimento e de todo pensamento é fornecida

pelo mundo exterior ou, antes, por sua representação, cujos elementos são as idéias de «qualidades». Mas essa

matéria primeira necessária é claramente insuficiente: nenhum pensamento seria possível se não houvesse

também idéias de reflexão, se, pois, uma primeira reflexão não constituísse, junto com as idéias de origem

sensível, outras idéias igualmente elementares, de origem intelectual ou interior, que são, de fato, originárias, a

mesmo título que as outras. Essa primeira reflexão é, portanto, o protótipo de uma decalagem na própria

origem que será reencontrada ao longo da constituição do entendimento (ou, se assim se prefere, da

experiência)98.

Como se viu, Locke insiste sobre o fato de que as idéias de reflexão não são percepções de outras idéias (a começar pelas idéias de sensação), mas percepções de operações mentais (Operations of our own

Minds) referentes a outras idéias. Isso quer dizer que não se está tratando com uma superposição de níveis de

representação formalmente idênticos, em que cada nível se constituiria no objeto dos precedentes, e que

poderia se estender até o infinito, como na concepção spinozista, de origem cartesiana, da idéia da idéia. Mas

também não se está tratando com um meio de remeter ou de reduzir, passo a passo, todas as idéias e

representações intelectuais a um protótipo sensível, de que elas só extrairiam as características gerais. Pois,

entre a percepção primeira (a sensação) e a percepção segunda (a reflexão), deve sempre se interpor já o meio

termo de uma «operação», mesmo que elementar. Por isso, o que o espírito percebe pela reflexão, não são

idéias que seriam simplesmente depositadas nele, mas suas próprias operações e, nesse sentido, é a ele

próprio, na medida em que ele é essencialmente uma atividade. Paradoxalmente, o que a «reflexão» lockiana

percebe é mais imediato, ou mais originário, ainda que mais diferenciado do que se estivéssemos tratando com uma «idéia de idéia»99.

Locke propõe, igualmente, uma enumeração em muitos aspectos semelhante à de Descartes, quando

ele descreve os modos da cogitatio; mas, desta vez, tratam-se dos primeiros elementos do entendimento,

fornecidos pela reflexão:

«operações que, tornando-se o objeto das reflexões da alma (when the Soul comes to reflect on), produzem no entendimento um outro tipo de idéias, que os objetos exteriores não teriam podido fornecer: tais como são as idéias do que denominamos aperceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer, querer, e todas as diferentes ações de nossa alma (the differents actings of our own Minds) de cuja existência estamos plenamente convencidos, porque nós as encontramos em nós mesmos (which we being conscious of, and observing in our selves) e por intermédio das quais recebemos idéias tão distintas quanto aquelas que os corpos produzem em nós, quando vêm tocar nossos sentidos.» (II.i.4)

A dificuldade se concentra, finalmente, na noção de percepção, que é o eixo de todas as definições e

classificações de Locke. Não tanto pela significação extensiva que ele lhe confere, praticamente sinônima de

representação sensível, ou intelectual100, mas em razão da significação por vezes passiva, por vezes ativa de

que se reveste. Assim, a sensação é fundamentalmente passiva, já que ela nos transmite as qualidades dos

98 Sobre a maneira pela qual essa decalagem é repensada por Condillac, de modo a que se possa ler aí a produção do próprio entendimento (sempre pressuposto por Locke como um conjunto de «faculdades dadas»), cf. J. Mosconi, «Sur la théorie du devenir de l’entendement», Cahiers pour l’Analyse, nº 4, set/out 1966. 99 Essa distinção é suficiente, nos parece, para invalidar a idéia de uma continuidade essencial entre Descartes e Locke na invenção do mind, afirmada por R. Rorty no início de sua obra Philosophy and the Mirror of Nature (1979; tyrad. Franc. 1990). 100 O tradutor Coste buscou explicitar essa extensão traduzindo, freqüentemente, o inglês perception pelo francês apperception ([apercepção], o que permite dizer que o espírito «se apercebe daquilo que se passa em si próprio».

Page 40: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 40

objetos exteriores, mas ela pode ser também designada como um primeiríssimo nível de atividade do espírito.

Da mesma forma, a reflexão é, a princípio, a simples percepção das operações internas do espírito, mas essa

percepção é, por sua vez, designada como uma «operação» (e Locke diz que a primeira das «idéias de reflexão»

é justamente a idéia de percepção, que é quase a idéia elementar do espírito – II.ix.2).

Tudo se passa, com efeito, como se a concepção lockiana fosse fundada sobre um dualismo

fundamental: o das representações e das operações, que são como duas faces da percepção, ou que se alternam

em sua gênese. Assim se explica que o espírito possa tanto ser descrito como uma tábula virgem (tabula rasa),

sem inscrição prévia, quanto como um dinamismo caracterizado por seus poderes ou faculdades (powers of

Mind), constantemente animado por um movimento que Locke denominará mais adiante de «inquietude» (uneasiness)101. O Mind de que nos fala Locke é, nesse sentido, uma máquina lógico-psicológica que, em

permanência, engendra novas representações que «operam» sobre os materiais constituídos pelas idéias

simples de sensação e de reflexão (ou, se assim prefere-se: a partir da diferença inicial entre idéias de sensação

e idéias de reflexão). Trabalhando, desta forma, para estender sua percepção do mundo e para ampliar sua

diversidade.

O que funda as análises de Locke é, mesmo, um duplo dualismo, cujos termos não cessam de se

superpor: de um lado, temos a distinção da sensação e da reflexão, que remete à heterogeneidade do exterior e

do interior, dos elementos sensíveis e dos elementos que têm sua origem no próprio entendimento; de outro,

temos a distinção do lado passivo (a percepção propriamente dita) e do lado ativo (as operações que a tornam

possível e a tomam por objeto). Ora, essas duas distinções não são sinônimas. Pode-se perfeitamente conceber

um entendimento passivo, que toda uma tradição filosófica tomou por uma espécie de perfeição (por exemplo, sob o nome de «intuição intelectual»). Inversamente, não é necessário considerar a sensação como puramente

passiva, como uma «recepção» das qualidades dos objetos sem intervenção do poder ou da energia do espírito:

ao contrário, uma parte da posteridade psicológica de Locke não cessará de majorar esse poder. O empirismo,

ou aquilo que assim se denomina, não seria, em permanência, influenciado por essa superposição? Ela é

patente, em todo caso, em Locke. Mas ela influencia diretamente, também, a definição de consciência: pois, no

fundo, ela é, a princípio, o próprio momento da diferença entre a sensação e a reflexão, ou entre a passividade

e a atividade do espírito.

A consciência seria então a reflexão no «sentido interno»? Vê-se que Locke se dirige para uma

concepção bem mais complexa: a consciência está presente desde a primeira reflexão, já que ela é «a

percepção do que se passa em nosso próprio espírito», isso é, das sensações que aí introduzem idéias, e das

operações a que elas dão lugar. Poder-se-ia dizer que o conceito de consciência «desdobra» o de reflexão,

englobando sob um nome único o que a torna possível (a diferença inicial entre a sensação e a operação intelectual, entre a passividade e a atividade do espírito) e aquilo que ela torna possível: o trabalho, ou o

desenvolvimento do entendimento, ao longo do qual a reciprocidade do ponto de vista das «idéias» e do ponto

de vista das «operações» não cessará de se exercer. Assim, é preciso dizer também que a consciência está

101 No grande capítulo II.xxi: «Do Poder». Mas, a partir do § II.i.4 tínhamos a frase essencial: «The term Operations here, I use in a large sense, as comprehending not barely the Actions of the Mind about its Ideas, but some sort of Passions arising sometimes from them, such as is the satisfaction or uneasiness arising from the though.» Voltaremos adiante à questão das relações entre o problema da consciousness e o da uneasiness (para o qual Coste teve, igualmente, que forjar um neologismo, explicando-se: cf. Essai philosophique… Traduit de l’anglois par M. Coste, ed. Cit., p. 177). Sobre a formulação da noção e a história de sua tradução, ver Jean Deprun, La Philosophie de l’inquiétude en France, op. cit., p. 192 e seg., que sublinha de novo a importância da confrontação com Malebranche.

Page 41: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 41

sempre presente ao longo do progresso do entendimento: à medida que se desenvolve a experiência, a

consciência reflete [sobre] suas ações ou formas sucessivas. A consciência é, portanto, a instância de totalização

do saber, sob a forma de um conhecimento de si do espírito coextensivo à própria experiência. E assim

chegamos ao princípio de identidade: a consciência é uma identidade a si que se mantém, ou melhor, que se

reitera no seio das diferenças: diferença ou desigualdade da primeira reflexão, diferenciação progressiva da

experiência e do espírito que por ela se forma.

Uma tal identidade, ao mesmo tempo diferencial e totalizadora, deve ser sempre pensada como uma

interioridade. Já a partir do § 8 do livro II, cap. I, Locke escreve, de forma admirável:

«Vemos porque muito tempo se passa antes que a maioria das crianças tenham idéias das operações de seu próprio espírito, e porque certas pessoas jamais conhecem a maior parte delas, nem muito claramente, nem muito perfeitamente. A razão disso é que, apesar de essas operações serem constantemente excitadas na alma (they pass there continually), elas só aparecem aí como visões flutuantes e não produzem impressões suficientemente fortes para deixar na Alma (Mind) idéias claras, distintas e duráveis, até que o entendimento venha a se dobrar [replier], por assim dizer, sobre si mesmo (till Understanding turns inwards upon itself), para refletir sobre suas próprias ações e para propor-se a si mesmo como objeto de suas próprias contemplações102…»

Até então, a interioridade do espírito só era afirmada de forma negativa: por oposição à exterioridade da sensação, ou melhor, à exterioridade que a sensação denota, já que ela «situa» espontaneamente as

qualidades por ela registradas no exterior de si (nos «objetos» ou «corpos») e, por diferença, se situa a si

própria no interior. Pode-se supor também que a interioridade das operações mentais se pensa por diferença

com sua expressão verbal, com a «saída» do foro interior que representam a tradução das idéias em palavras e

a comunicação dos pensamentos. Mas temos, agora, se é possível dizer assim, uma marca interior da

interioridade, a qual, de novo, faz-se uma com a consciência. Esta última é, a cada instante, a via de acesso a

essa interioridade que já a constitui. Ou ela pode sê-lo (como testemunham as crianças e os adultos

irrefletidos), pois que a dobra [pli] já está lá, podendo ser dobrada [repliée] à vontade.

Como a impressão sobre uma tábula, a reflexão é decerto, por si só, uma metáfora, tão antiga quanto

as comparações entre o pensamento e a visão (ou a idéia de um «olho do espírito», presente em Platão).

Reflexão e repli (dobradura) têm uma raiz semântica comumNdT, mas não são noções estritamente equivalentes. Pode-se, inclusive, sugerir, que elas seguem em sentido contrário: enquanto o repli (dobra)

interioriza uma exterioridade inicial, a reflexão permite desenvolver uma quase-exterioridade no seio da

interioridade. A representação metafórica do espírito como uma cena sobre a qual «passam» pensamentos (e

acontecimentos intelectuais ou afetivos «se passam») que o próprio espírito observa naturalmente também

está presente em Locke. Ela está tradicionalmente exposta a objeções contra o desdobramento do espírito em

observador e observado e contra o caráter fantasmático da cena interior. Locke reduz, ou contorna, essas

objeções pelo recurso à metáfora mais profunda do repli, que será freqüentemente encontrada na história dos

debates sobre a consciência e o sujeito.

102 Vê-se que Coste achou a metáfora muito original, mas ele a traduziu bem. NdT Em português, a «prega» deriva-se da mesma raiz latina, de plica – de que se originou, também, «replicar», que toma em nossa língua, no entanto, sentido diverso de «dobradura», de «dobrar-se sobre si», que se manteve no francês.

Page 42: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 42

iv. a consciência do sujeito: o si ou a responsabilidade

A expressão de self-consciousness, dissemos, não aparece antes do capítulo II.xxvii, acrescentado em

1864 (§16). Aliás, ela não figurará mais do que uma só vez, em todo o Ensaio. Mas está essencialmente ligada à

idéia de que a continuidade da consciência é o critério da identidade pessoal, para a qual Locke forja, ou

sistematiza, a expressão nominal the Self. O sujeito lockiano, ao qual estarão associadas tanto as funções de

vigilância intelectual quanto as de responsabilidade e de «posse de si mesmo», é pois essencialmente uma

consciência de si, ou melhor: uma consciência do «si»103. Locke não considera a noção de identidade como

unívoca: ela deve se diferenciar segundo os domínios aos quais se aplica104. o primeiro é o das «substâncias»,

notadamente corpos, que são idênticos ou diferentes conforme conservem a mesma composição «material»,

isso é, corpuscular. O segundo é o dos organismos vivos, que conservam sua forma típica a despeito das transformações por que passam, o que Locke denomina «identidade individual». É o que se passa, sobretudo,

com os indivíduos humanos, que podem ser nomeados (Adam, Sócrates, Pedro, Paulo). Mas Locke busca

distinguir essa identidade individual (que se poderia chamar, também, de invariância) da identidade de

pessoa, que repousa unicamente na continuidade da consciência no tempo. Ele não teme enfrentar os

paradoxos no mínimo aparentes que podem resultar de uma estrita aplicação desse critério, tal como as fusões

e os desdobramentos de personalidade: se dois indivíduos (Sócrates, Platão) têm ou tiveram os mesmo

pensamentos, as mesmas memórias, a mesma consciência, eles são ou seriam uma só pessoa; inversamente, se

um mesmo indivíduo tem ou teve duas consciências distintas, como o «homem diurno» e o «homem noturno»

– evocados de forma surpreendente no § 23 – eles seriam duas pessoas (e dois sujeitos de imputação distintos).

Trata-se, pois, do mesmo «princípio de identidade» lógico-psicológico que se esboçava na crítica das

idéias inatas:

«Para descobrir em que consiste a identidade pessoal, é preciso ver o que implica a palavra pessoa. É, acredito, um ser pensante […] que pode consultar-se a si mesmo como o mesmo (consider it self as it self), como uma mesma coisa que pensa em diferentes tempos e em diferentes lugares; o que faz unicamente pelo sentimento que tem de suas próprias ações (consciousness), que é inseparável do pensamento e lhe é, parece-me, inteiramente essencial, sendo impossível a qualquer Ser aperceber sem aperceber-se que apercebe (to perceive, without perceiving, that he does perceive) […] Esse conhecimento sempre acompanha nossas sensações e nossas percepções presentes; e é assim que cada qual é, para si mesmo, o que chama si mesmo (everyone is to himself, that which he calls SELF). Não se considera, nesse caso, se o mesmo Si é continuado na mesma Substância, ou em diversas Substâncias…» (II.xxvii.9)

Um tal critério é, no entanto, exposto à objeção de que nos esquecemos de uma boa parte de nossas

ações, sem, por tanto, acreditar que mudamos de identidade. Ao que Locke responde por uma articulação mais

profunda da consciência e da memória, que faz do esquecimento (forgetfulness) uma marca de imperfeição e

finitude, sobre o fundo da temporalidade interior, essencial à subjetividade do pensamento:

«A con-sciência, por tão longe quanto ela possa se estender, mesmo que fosse até séculos passados, reúne em uma mesma pessoa as existências e as ações mais distanciadas no tempo, assim como ela une a existência e as ações do momento imediatamente precedente; de sorte que qualquer um que tenha uma con-sciência, um sentimento interior (consciousness) de algumas ações precedentes e passadas, é a

103 Sobre as questões de história das idéias trazidas pelo emprego de self-consciousness, cf. Glossário: self-consciousness. 104 Sobre a questão da analogia e da equivocidade na concepção lockiana de Identity, cf. Glossário: identity, sameness.

Page 43: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 43

mesma pessoa a quem essas ações pertencem. Se, por exemplo, eu sentisse igualmente em mim (Had I the same consciousness) que vi a Arca e o Dilúvio de Noé, tal como sinto que vi, no último inverno, a inundação do Tamisa ou que escrevo presentemente, não poderia, também, duvidar de que o eu que escreve nesse momento (that I, that write this now), que viu no inverno passado o Tamisa ser inundado e que esteve presente ao Dilúvio Universal é o mesmo eu […] que estou certo que eu que escreve isso sou, nesse momento em que escrevo, o mesmo eu que era ontem (that I that write this am the same MY SELF now whilst I write… that I was Yesterday), quer eu seja inteiramente composto, ou não, da mesma Substância material ou imaterial. Pois para ser o mesmo eu, é indiferente que esse mesmo si seja composto da mesma Substância, ou de diferentes Substâncias; posto que sou tão interessado (concerned) e, também, justamente responsável (accountable) por uma ação feita há mil anos e que me é presentemente imputada (appropriated) por esta con-sciência que tenho (self-consciousness) de tê-la feito por mim mesmo, quanto o sou por aquilo que acabo de fazer no momento precedente» (II.xxvii.16).

Tal é, no fundo, o verdadeiro «cogito» lockiano, ao mesmo tempo formalmente semelhante ao de

Descartes, naquilo em que combina em uma mesma certeza o fato da existência e a experiência do pensamento,

e fundamentalmente diferente, no que ele ressitua toda essa experiência no elemento «histórico» da memória.

Ego sum quis sum, sou o que sou, na medida em que tenho a certeza de ser sempre aquele que fui, porque

estou consciente de pensar o que pensei (e, sem dúvida, também: eu estou, a cada instante, consciente de que

terei pensado o que atualmente penso).

Assim, as objeções que Descartes havia afastado, notadamente a idéia de que é preciso tempo para a

reflexão, e de que não poderia haver uma «consciência», uma idéia da idéia ou um pensamento daquilo que

penso sem uma duração – sobre a qual pode-se perguntar se ela altera, ou não, a representação inicial – tornam-se, em Locke, teses positivas, incorporadas ao próprio conceito da consciência, e o meio de uma

reformulação do cogito105.

Vê-se bem que essa memória está inteiramente situada na perspectiva da responsabilidade, o que quer

dizer que ela não se volta para o passado sem antecipar em permanência o futuro, ou melhor, sem que, de

alguma forma, «provenha» do futuro: o que é uma maneira fundamental de totalizar subjetivamente o tempo,

no presente da consciência. Desse modo, ela está intimamente ligada a uma noção de apropriação do

pensamento por ele mesmo.

Se somarmos essas indicações, poderemos acrescentar ainda que, em Locke, o pensamento como

consciência e a consciência de si como atividade de pensar – em outras palavras, o sujeito – são essencialmente

referidos à alternância de dois modos de ser das idéias: não o possível e o real, mas antes a existência virtual e

a existência atual. Ou as idéias me estão presentes, como percepções, ou então elas estão ausentes – não no sentido de uma aniilação, mas no sentido em que são colocadas sob reserva, em um «lugar» temporal que

religa o passado e o futuro pela própria possibilidade do presente106. Cada um desses modos de existência é

pressuposto pelo outro, o que significa que a consciência está na memória, e a memória na consciência. Esta é,

precisamente, a significação completa da noção de mind – que está, inclusive, em conformidade com sua

etimologia. Mas isso significa, ainda, que reencontramos mais uma vez a figura da identidade na diferença, sob

105 Note-se a persistência da estreita relação com a temática do ceticismo, que ressurgirá no cerne do problema da consciência de si em Hume e em Hegel. Locke toma exatamente a posição contrária das formulações de Montaigne: «Moy à cette heure et moy tantôt sommes bien deux» («Eu, nesse momento, e eu, ainda há pouco, somos de fato dois») (mas «Meu livro é sempre um») (Ensaios, III, ix). Cf. o comentário de Jean Starobinski, Montaigne en mouvement, Folio Gallimard, 1993. 106 Poder-se-ia desenvolver essa indicação remetendo ao capítulo (II.x: Da retenção) no qual Locke esboçou sua fenomenologia da memória. Cf. Glossário: memory.

Page 44: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 44

a forma de uma identidade que «passa» da existência virtual à existência atual, ou da virtualidade à atualidade

do pensamento. Não estaria ela, no fundo, bastante próxima dos dualismos que já encontramos? Se

pudéssemos demonstrá-lo, teríamos uma visão decisiva da forma pela qual Locke entrelaçou a problemática da

consciência àquela do tempo interior e, portanto, de seu papel de fundador da filosofia moderna.

As diferenças que fornecem a própria estrutura da consciência (sensação e reflexão, passividade e

atividade, presença atual e presença virtual) devem sempre ser pensadas na modalidade da passagem e, por

conseguinte, de uma duração, ainda que evanescente, de um «momento do tempo» (o que estaríamos tentados

a denominar, como o contemporâneo de Locke, Isaac Newton, de uma fluxão). Reciprocamente, qualquer

passagem ou movimento do pensamento tem por essência um jogo de diferenças, que se escavam desde a origem e se conservam ao longo da experiência da consciência. Não somente a consciousness sempre contém

um diferencial de tempo (o que se exprime admiravelmente na fórmula já citada: «the perception of what

passes in a Man’s own Mind» a consciência é a presença a si, como «percepção», de uma ação que se passa,

que está, portanto, em vias de se passar)107, mas ela contém um nexo das três instâncias temporais. Pois, por

essa «ação» já passageira de que presentemente me faço consciente, terei futuramente que responder (quer

seja em um futuro último, o do Julgamento Final, seja o futuro imediato que se desenha pela vigilância que

exerço sobre meus pensamentos). E o que, em suma, Locke nos mostra é que a retenção do passado se une à

consciência presente em razão do Julgamento por vir – no qual ela sempre já se inscreve. Poder-se-ia exprimi-

lo, ainda, dizendo que na constituição do Mind lockiano as três instâncias, passado, presente e futuro, são os

outros nomes para a memória, a consciência e o julgamento, cuja interdependência, cujo co-pertencimento em

interioridade se trata, justamente, de pensar, referindo-os ao termo comum que é a ação.

Mas isso significa também dizer que essa forma de identidade a si que nomeia a «consciência de si» (o

Eu sou ou Eu = Eu cujo formalismo Hegel, mais tarde, criticará, atribuindo-o a uma tradição que vai de

Descartes a Kant e Fichte) é, em realidade, uma equalização, mais do que uma igualdade dada: é um

movimento de volta a si que passa pela retenção (mais ou menos completa) do passado, em função de um

futuro que, sempre lá, o julga e o espera. E, em conseqüência, é o movimento mesmo de uma apropriação de si

que se efetua no campo da experiência da consciência:

«Entendo a palavra Pessoa como uma palavra que foi empregada para designar precisamente o que se compreende por si mesmo (is the name for this self). Em toda parte em que o Homem encontra aquilo que chama de si mesmo, penso que um outro pode dizer que reside a mesma pessoa. A palavra Pessoa é um termo de Barreau que apropria ações, e o mérito ou demérito dessas ações (appropriating Actions and their Merit) […] Assim, toda ação passada que ele não puder adotar ou apropriar (reconcile or appropriate) pela cons-ciência a esse presente si não pode tampouco interessar-lhe mais do que se ele jamais a tivesse realizado, de sorte que se ele viesse a experimentar prazer ou dor, isso é, recompensas ou penas em conseqüência de tal ação, seria o mesmo que se ele ficasse feliz, ou infeliz, no primeiro momento de sua existência, sem tê-lo merecido de nenhuma forma […] Eis porque São Paulo nos diz que, no Dia do Julgamento, quando Deus retribuirá cada um segundo suas obras, os segredos de todos os corações serão manifestados. A sentença será justificada pela própria convicção em que terão todos os Homens (by the all Persons shall have) de que, em qualquer Corpo que apareçam, ou em qualquer

107 Pode-se encontrar a recíproca dessa proposição no capítulo consagrado à duração como «modo do pensamento», que não contém a palavra consciousness, mas que reproduz exatamente sua definição (II.xiv.3). Daí partirão, mais tarde, os teóricos, para sustentar a idéia do «fluxo de consciência» sem a consciência, designada como uma hipóstase: cf. William James, «Does consciousness really exist?» (1905), in Essays in Radical Empiricism, 1976. Essa “fuga em direção ao futuro” é característica de toda a história filosófica do tema da subjetividade.

Page 45: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 45

Substância a que esse sentimento interior (consciousness) se encontre associado, eles terão eles próprios cometido tais ou tais ações, merecendo o castigo que lhes infligido por tê-los praticado.» (II.xxvii.26)108

E é sem dúvida em razão dessa unidade da reflexão, da memória, da responsabilidade e da

apropriação, reunidas em uma só fenomenologia da «percepção interior», que a consciousness lockiana é ainda

e sempre, ao menos por sua estrutura formal, uma consciência moral. Por isso, o fato de que ela se constitui no

critério da identidade pessoal, e esta última o próprio requisito da responsabilidade, não é mais o que o avesso

de sua constituição. A unidade que (a partir de Kant) denominamos de sujeito e a que Locke, em primeiro

lugar, chamou de consciência de si, é indissociavelmente lógica (identidade a si) moral e jurídica

(responsabilidade, apropriação) e psicológica (interioridade e temporalidade). Ela se chama a si própria, em

segredo, My self. E ainda que caiba a uma disciplina racional, quase experimental, a tarefa de retraçar a

«história»109, ela é sem dúvida constituição de uma Idéia da razão. Mas essa idéia, longe de repousar sobre um substancialismo metafísico, resulta inteiramente de sua desconstrução. É bem verdade que tal desconstrução se

efetua em nome de uma outra concepção metafísica, talvez muito mais originária do que a de substância: a do

próprio e da apropriação.

Ao inscrever o tempo da memória e do julgamento na interioridade da consciência, Locke opera um

retorno à concepção agostiniana do «homem interior», incomparavelmente mais profunda do que aquela que

havíamos observado nos «cartesianos» (Arnauld, La Forge). Mas é, no fundo, para subvertê-la: pois a

memória, constitutiva do sujeito e de seu modo de acesso à verdade em Santo Agostinho, não era subjetiva,

nesse sentido. Ela representava, antes, a marca. no «mais profundo» de cada alma humana, de uma

transcendência e de uma eternidade ausentes. Eis porque ela estava ligada, não a uma experiência da

«propriedade de si mesmo» e de apropriação (mesmo que limitada pelas possibilidades empíricas do espírito),

mas, bem pelo contrário, a uma experiência de minha insuficiência ontológica e a meu desejo de unir-me a Deus no além. A invenção lockiana da consciência – é o que lhe dará sua força, mas também não cessará de

atrair as críticas – não sacrifica nenhuma das significações simbólicas tradicionalmente associadas à

interrogação do indivíduo acerca de suas origens e dos fins de seus próprios pensamentos e, pois, acerca da

destinação do homem. Ela lhe fornece, entretanto, uma formulação que, segundo seus próprios termos,

historiciza integralmente as marcas da transcendência, ou as inscreve como representações reguladoras na

relação a si e na imanência do espírito, como maneiras pelas quais o pensamento se percebe a ele próprio, em

atividade, se vendo «operar», «adquirir», «investigar», «progredir» e «passar».

108 A passagem correspondente de São Paulo é I Coríntios, 14, 25: «Mas se, quando todos profetizam, entrar um infiel ou um não-inciado, ei-lo repreendido por todos, julgado por todos; os segredos de seu coração são revelados (ta krupta tês kardias autou phanera ginetai). Então, caindo de face contra a terra, ele adorará Deus, proclamando que Deus está realmente entre vós.» É interessante observar que o contexto da carta de São Paulo evoca o desaparecimento do véu das palavras (das «línguas») no momento em que a claridade se faz, no «face a face»: redescobre-se aqui, mas pela via teológica, a idéia de que a «verdade do pensamento» e a essência do espírito se revelam pela abstração da linguagem. Cf. Glossário: ressureição. 109 O termo é empregado por Locke que, em seu capítulo introdutório (§ 2), fala do «simples método histórico» do Essay (Historical, plain method). Ele será retomado por Voltaire, nas Lettres philosophiques de 1734, para opor o método empírico de Locke ao «romance da alma» de Descartes e Malebranche (Voltaire, Mélanges, Bibliothèque de la Pléiade, 1961, p. 38). Sobre a rara presença do termo «consciência», nessa acepção, em Voltaire, afora esta passagem – em que figura, em última análise, como um anglicismo – cf. C. Glyn-Davies, op. cit., p. 68-69.

Page 46: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 46

v. interior/exterior: a «tópica» lockiana da consciência

Para concluir, busquemos localizar em uma «tópica» única as relações de interioridade e de

exterioridade que nos parecem como características das operações da consciousness lockiana e, nesse sentido,

como constitutivas da nova concepção da realidade «mental» para a qual ela se faz determinante. Isso nos

permitirá compreender tanto a grande amplitude dessa concepção, no entroncamento das problemáticas

«psicológica», «fisiológica» e «transcendental» relativas ao sujeito, quanto sua constante exposição aos

questionamentos críticos.

Vimos que Locke, no início do II livro do Essay, chama de «reflexão» uma percepção segunda (mas

originariamente possível, o que a expressão «sentido interno» serve para designar) pela qual o mind percebe

suas próprias operações, a começar pela sensação que é a fonte de todas as nossas informações sobre o mundo. A estrutura do espaço interior é determinada de forma imanente por esse redobramento, ou essa dobradura

originária que é engendrada pela superposição das «idéias de sensação» e pelas «idéias de reflexão». Digamo-

lo melhor: a diferença ontológica entre o exterior (o mundo e seus objetos, feitos de qualidades, de modos, de

substâncias, de relações…) e o interior (as idéias, as operações sobre essas idéias, em seguida seu

encadeamento em pensamentos cada vez mais complexas) é reproduzida, ou projetada no seio do mind –

portanto, na interioridade, como redobramento da sensação e da reflexão, ou de uma idéia de exterioridade e

de uma idéia de interioridade. Assim, o interior contém, idealmente, a si mesmo e a seu outro. O que se poderá

interpretar – e essas interpretações de fato dominarão a posteridade de Locke – seja como traço ineliminável

da exterioridade (da matéria) no seio da interioridade (do espírito), seja como antecipação e condição de

possibilidade da relação com a exterioridade do mundo, na própria estrutura da interioridade. Condillac ou

Kant.

No entanto, esperamos ter demonstrado que uma tal estrutura de redobramento ou de emissão ao

exterior, no seio da interioridade, não se sustenta teoricamente, a menos que seja colocada em correspondência

com uma série de outras demarcações, que são, ao mesmo tempo, articulações bastante problemáticas. A

tópica das relações entre interior e exterior, no duplo sentido de disposição imaginária dos «espaços»teóricos e

de localização recíproca dos problemas, adquire assim uma complexidade que a tradição filosófica não cessará

de tentar deslindar, retomando os termos tais quais ou procedendo a inversões, subtrações ou adjunções. A

primeira e mais importante dessas articulações, recordemos, é a separação entre idéias e palavras, ou do

pensamento e da linguagem.

As palavras também se constituem, em relação às idéias e à sua interioridade própria, uma

exterioridade, ainda que certamente não no mesmo sentido em que os objetos da experiência, em geral: o fato

de que elas sejam perceptíveis como objetos, modos ou qualidades sensíveis é uma condição necessária à

função da linguagem, mas que não é suficiente para caracterizá-la. No mínimo, seria preciso acrescentar que as palavras, na condição de signos, pertencem ao mundo da comunicação social (o que, em um outro contexto – o

do Second Treatise of Government – Locke denomina a civil society)110. É desde esse novo limite (ou, se assim

se preferir, sobre essa frente) do interior mental e do exterior social e verbal, que o sujeito lockiano (ou a

«pessoa») descobre a possibilidade de observar em si próprio as condições da verdade primeira de seus

110 A articulação é explicitada – em termos finalistas – desde as primeiras linhas do livro III: «Tendo feito o homem para ser uma criatura sociável (a sociable Creature), Deus não somente inspirou-lhe o desejo e levou-o à necessidade de viver com os de sua espécie, mas ainda concedeu-lhe a faculdade de falar (furnished him also with Language), para que ela se tornasse o grande instrumento e o laço dessa sociedade (the great Instrument and common Tye of Society)» (III.i.1, trad. Coste).

Page 47: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 47

conhecimentos (que residem na natureza de suas operações metais), assim como a possibilidade de trabalhar

para seu progresso (que reside na aquisição de novas idéias, no desenvolvimento da correspondência entre as

idéias e as coisas, por meio dos signos de linguagem comuns a todos, enfim, a passagem das proposições

mentais às proposições verbais, com as formas de verdade correspondente). A posição defendida por Locke,

quanto à natureza do signo funda-se em uma estrita hierarquização do pensamento e da linguagem, pois as

palavras não adquirem uma significação unívoca, em um espaço público de comunicação, senão à condição de

serem, antes de tudo, signos de idéias, para tornarem-se em seguida signos das coisas, num movimento que vai

do interior ao exterior, mas permanece ancorado na interioridade – condição mesma do sentido. Para que a

separação do mental e do verbal não se transforme em barreira solipsista (idéia nada lockiana), é preciso, entretanto, que a passagem para a exterioridade – como a própria comunicação e, portanto, a sociedade civil –

seja, de uma certa maneira, antecipada no seio do espírito. Mesmo que sob a forma dessa «responsabilidade»,

ou capacidade de responder (e de responder por si) que, como vimos, é também uma dimensão originária da

consciência, inseparável de sua temporalidade própria.

Tem-se aqui o ponto de partida para os «quebra-cabeças» modernos concernindo à relação entre

linguagem e subjetividade, que se originam do enfrentamento recorrente entre as hipóteses de um pensamento

puro que precede a dimensão trans-individual da comunicação, e de uma estrutura lingüística, ou quase-

lingüística (semiótica) que rege as operações do pensamento. Ao dissociar o mental e o verbal, Locke decerto

forjou o meio de resolver questões que embaraçavam seu predecessor, Hobbes: como, se a linguagem é um

elemento da verdade e se o que a caracteriza é um poder infinito de metáfora ou de ficção, garantir um uso

verdadeiro, puramente «referencial», para as palavras111? No entanto, ainda é preciso que Locke demonstre que a tradução dos pensamentos em palavras, que se constitui em uma antecipação da sociedade no seio do

pensamento individual (uma «relação secreta» do mind com os outros minds) tem suas condições na própria

consciência. Isso implica que cada indivíduo ou pessoa responsável imagine no espírito dos outros uma

consciência análoga à sua (Essay, III.ii.4); em outras palavras, isso implica que a consciência é já a forma de

uma relação virtual a outrem, ao mesmo tempo em que ela é, atualmente, a forma de relação consigo. Ora, essa

concepção pode facilmente conduzir a uma aporia. Quando se abandona o puro terreno de uma fenomenologia

da consciência para abordar a questão da verdade das proposições mentais como adequação a uma certa

realidade, Locke se vê tentado a afirmar que as idéias são, elas próprias, signos, em um sentido mais geral – e,

por conseguinte, as palavras são signos de signos. E ele vai até evocar, nas últimas linhas de seu livro, uma

semeiôtikè ou uma ciência (doutrina) geral dos signos que incluiria, a uma só vez, o conhecimento das idéias e

da linguagem (a lógica, propriamente dita)112.

A definição da linguagem pressuporia, assim, tendencialmente, uma representação do pensamento como linguagem interior ou linguagem de idéias113. Por outro lado, o raciocínio pelo qual nos estabeleceríamos

111 Cf. E. Balibar, «L’institution de la vérité. Hobbes et Spinoza», in Lieux et noms de la vérité, Ed. de l’Aube, 1994. 112 Essai, IV.v.2: «De forma que a verdade não pertence propriamente senão às proposições; e essas são de dois tipos, uma mental, e outra verbal, assim como os signos (signs) dos quais nos servimos comumente são de dois tipos, a saber as idéias e as palavras» e IV.xxi.4: «Pois já que entre as coisas que o espírito considera não há nenhuma, exceto ele próprio, que esteja presente ao entendimento, é necessário que alguma outra coisa se apresente a ele como signo ou representação da coisa que ele considera, e essas são as idéias [its necessary that something else, as a Signs or Representation of the thing it considers, should be present to it: and these are Ideas]». Leia-se a interessante interpretação de Michael Ayers, op. cit., I, cap. 7, p. 60 s.: «Ideas as natural signs». 113 Hoje novamente defendida por certos filósofos do espírito – no sentido da Philosophy of Mind: cf. Jerry Fodor, The Language of Thought. M.I.T. Press, 1975.

Page 48: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 48

secretamente a referência objetiva das palavras não pode antecipar o resultado da comunicação sem suscitar a

difícil questão de uma «linguagem privada» que é quase uma contradição nos termos. Language of thought et

Private language são, hoje, problemas para a filosofia analítica e para as ciências cognitivas. Wittgenstein

havia antecipadamente recusado a pertinência dessas questões, reunindo seus pressupostos em sua crítica do

«mito da interioridade»114. Mas essa crítica só faz ressaltar a importância do novo ponto de vista da

interioridade inaugurado por Locke em sua filosofia: sem o isolamento prévio da consciência em relação ao

momento trans-individual da comunicação, ainda que à condição de reinscrevê-lo, posteriormente, na

interioridade da pessoa, o sujeito não poderia ser identificado à consciência e não haveria psicologia.

De nosso ponto de vista, essa estrutura teórica merece ainda outra observação. É fácil perceber que a interioridade lockiana (interioridade do mental, dobrado sobre si mesmo como consciência e encontrando

assim, por seus próprios meios, o critério de sua «identidade») é profundamente diferente de uma

interioridade espiritual (aberta, aliás, sobre o abismo da transcendência, como em Santo Agostinho), tanto

quanto de uma interioridade orgânica (fundada sobre a hierarquização e a integração das «almas» ou

princípios de vida, como em Aristóteles), para não mencionar as tentativas de conciliação dessas diferentes

tradições (como em Cudworth e os platônicos de Cambridge e, mais tarde, Leibniz). Menos fácil, ainda que

mais decisivo, talvez, é observar o elemento de equivocidade intrínseca que a interioridade lockiana comporta.

Essa equivocidade resulta da própria tópica que vimos de esboçar. Com efeito, a imanência do campo da

consciência é objeto de dois modos de exposição concorrentes, mas que não são jamais completamente isolados

nas passagens que analisamos. Por um lado, positivamente, ela é apresentada como identidade a si do espírito,

ou melhor, como experiência vivida que corresponde, para cada sujeito, ao fato de que «sou eu mesmo», ou de que «eu sou meu próprio eu» (I am My self), ao longo do fluxo (train, succession, continuation) dos estados de

consciência (excluídos os problemas de memória e de personalidade)115. A consciência é, pois, a percepção que

se percebe a ela mesma, ou que se torna, para si própria e de forma imediata, objeto de reflexão. Mas, por outro

lado, a imanência não cessa de ser exposta negativamente (e mesmo, como pudemos observar, apresentada

como negação da negação, segundo a forma clássica do elenchos): ela é, assim, o outro da exterioridade, ou seu

reverso. Acontece que essa exterioridade se diz em múltiplos sentidos e segundo múltiplas lógicas, que jamais

coincidem totalmente.

Ela é exterioridade do mundo sensível, objeto da percepção (que a leitura «empirista» clássica de

Locke privilegiou), mas também exterioridade do mundo dos signos e, através dele, do conjunto de laços ou

relações (ties, bonds) que constituem o «comum» ou a «comunidade» dos homens. É pela proximidade com

essas diferentes exterioridades, ou com as diversas fronteiras que elas, continuando a marcar uma abertura e

uma alteridade (e ainda que sob forma de um puro diferencial de passividade e atividade), transpõem até interioridade, que essa última se define e se reconhece como tal. A interioridade é, pois, esse paradoxo (Kant

dirá, mais tarde: anfibologia) de uma imanência, ou de uma autonomia que só pode ser determinada como

negação, ou como um «lugar» que sempre já está, originariamente, subtraído à exterioridade. E ela é o

114 Cf. Jacques Bouveresse, Le mythe de l’intériorité. Expérience, signfication et langage privé chez Wittgenstein. Ed. de Minuit, Paris, 1987 ; Geneviève Brykman : «Le mythe de l’intériorité chez Locke», Archives de Philosophie nº 55, 1992, p. 575-586. Igualmente V. Descombes, La denrée mentale, op. cit., p. 186 s. (Descombes sugere, com razão, que a anfibologia do interior e do exterior somente pode ser ultrapassada pela intervenção de um conceito moderno de organismo, tal como ele se formula definitivamente em Claude Bernard: precisamente o que expõe o ponto de vista lockiano a um curto-circuito. Mas a auto-referência implicada em tal conceito não remete necessariamente, nem à consciência, nem ao eu. 115 Cf. Glossário: memory, personality.

Page 49: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 49

paradoxo de uma univocidade (referida ao princípio da identidade) que vem constantemente sobredeterminar

a equivocidade de seu outro – em outras palavras, a equivocidade do mundo116. Talvez, inclusive, a

multiplicidade de nomes que ela se dá e que ela inscreve em uma série aberta (o mind, ou espírito, consciência,

eu, pessoa, antes que apareça o sujeito) tenha exatamente por função conjurar essa volta equívoca da

exterioridade sobre a própria idéia de interioridade. A partir daí, pode-se indagar o que sucede com a

sobredeterminação quando, ulteriormente, a interioridade e a identidade do sujeito são colocadas em questão

pela emergência de interrogações «críticas» tais como: existe consciência não-subjetiva, podendo ser fora da

presença do Eu? Existe subjetividade não consciente? Designaria o próprio «Eu» um Si, uma mesmice ou

ipseidade, ou seria ele apenas uma miragem da reflexão, o artifício da língua ou, inversamente, o efeito de superfície de uma alteridade mais originária?

Ao invés de nos engajarmos nessas perspectivas – todas elas herdeiras, ainda que a título de antítese,

da referência lockiana à interioridade do si e da consciência e, por conseguinte, das equivocidades que ela

dissimula – será preciso que compliquemos, por uma última vez, nossa representação tópica. Pois a

exterioridade da percepção e a da nominação não são bastantes, ao que parece, para esgotar o campo daquilo

que, para a consciência, é seu exterior. Talvez exista ainda um terceiro tipo de exterioridade (e, assim, um grau

suplementar de equivocidade na relação interior/exterior) que está ligada à maneira como Locke formula o

problema do afeto.

A dificuldade decerto não é pequena, e provém do fato que, ao se engajar no que ele próprio denomina

o esboço de um «tratado das paixões»117, cujo pivô é a análise da relação entre desejo e inquietude (Desire,

Uneasiness) Locke oscila entre uma referência implícita ao «corpo próprio» do indivíduo, cujas afecções permitiriam explicar a associação das sensações com, por um lado, as idéias e, por outro, os sentimentos de

prazer e de dor, e uma neutralidade fenomenológica na qual os afetos são puramente descritos como modos da

experiência, ou «idéias» do espírito. É o segundo ponto de vista que domina incontestavelmente, e essa escolha

teórica deve ser relacionada à atitude cética que Locke pretender manter face a todas as outras suposições de

relações substanciais subjacentes às operações do espírito e às suas relações com o corpo em uma unidade

individual118. Deve-se, sobretudo, relacioná-lo à emergência, na análise do poder – no horizonte da crítica de

Locke às teorias do Bem como «causa final» do Desejo e da Vontade (II.xxi.38 etc.) – de um conceito de objeto

ou de causa do desejo que, por mais necessariamente exterior ao espírito que pareça, não deixa de ser

irredutível, tanto ao objeto da percepção quanto ao signo comunicativo, devendo englobar em sua generalidade

todos os bens (goods) de natureza corporal, espiritual ou social que podemos nos representar (de que temos a

idéia) e dos quais ressentimos a ausência como um «desejo inquieto» – bela descoberta de tradução de Coste

para the successive uneasiness of our desires (II.xxi.31-34).

Todos esses conceitos, que mereceriam, cada um deles, uma longa discussão própria, são de fato

conceitos-limite, e conceitos de um limite: entre o que se denominaria hoje o cognitivo (e que Locke chama de

«percepção», no sentido geral) e o afetivo (que ele deriva da «inquietude» ou «mal-estar»: outra tradução

116 Não exploramos aqui a hipótese recíproca: que a equivocidade do «mundo», tal como ele aparece na cosmologia lockiana – mundo natural percebido, mundo social significante (enquanto Spinoza, ou Leibniz, por exemplo, se esforçam para pensá-los com as mesma categorias, como momentos de uma mesma natureza, ou de um mesmo todo) – seja, ela própria, o correlato do aparecimento do sujeito como «consciência de si». 117 Essai, livro II, cap. xx (Des modes du plaisir et de la douleurs) e xxi (De la puissahnce : Of power). 118 Sobre a possibilidade de considerar as correspondências, no texto de Locke, entre a problemática da consciência (consciousness) e a da inquietude (uneasiness) como efeito do «recolhimento» da alma, cf. Glossário: concern.

Page 50: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 50

possível para a uneasiness), mas, sobretudo, entre a passividade e a atividade, de que a dupla inquietude e

desejo representa, justamente, o princípio de inversão. A uneasiness é definida como expressão imediata do

desejo, ou a diferença entre o prazer e a pena, que põe em movimento («move») a vontade. Não há, pois, ação

isenta de inquietude, já que qualquer ação é também uma emoção do indivíduo, ou comporta uma dimensão

afetiva irredutível. Mas a uneasiness é mais geralmente relacionada à atividade mental, ou à sucessão das

operações da mind: o que faz com que o espírito seja, por vezes passivo (sensação), por vezes ativo (reflexão),

mas jamais permaneça em repouso, na contemplação de uma idéia, ou ainda flutuando de uma percepção a

outra, ao caso dos objetos encontrados119.

Aprovando a tradução francesa de «inquietude», Leibniz proporá, para o alemão, Unruhe, baseando-se na analogia do balanço de um relógio em movimento «perpétuo»120. Isso equivale a dizer que o

encadeamento das idéias está ligado à sua qualidade afetiva e aos efeitos de emoção, ou afetos, que elas não

podem deixar de produzir, ainda que, em si, elas não sejam senão representações ou perceptos. A uneasiness é

como o motor dinâmico do processo de que a consciousness é a forma cognitiva. Mas que lugar exterior à

consciência e, portanto, ao espírito (mind) propriamente dito (já que não há nenhuma operação do

pensamento que não se perceba como tal) e, ao mesmo tempo, imediatamente vizinho à sua unidade atribuir à

energia desse motor? Locke confronta-se aqui com sua própria crítica à idéia da substância e nos abandona

entre diversas suposições incompatíveis: que a uneasiness seja um traço, no sentido da mind, da relação latente

que o espírito mantém com o corpo próprio do indivíduo, ou que seja, como o «fundo da alma»

malebranchista, uma relação essencialmente secreta do espírito com ele mesmo, de onde procederia seu

movimento de perpétua fuga em direção ao futuro.

Como a de «signo», essas noções-limite da afetividade provavelmente conduzem a aporias: assim

como toda consciência é essencialmente inquieta, porque a uneasiness, que é doença da consciência, é a uma só

vez indissociável e teoricamente distinta dessa consciência, o limite entre o perceptivo e do afetivo –

representando ou simbolizando na mind, ao mesmo tempo, sua relação passiva com o corpo próprio e sua

relação ativa consigo mesma, jamais pode ser fixado em um ponto preciso. Esse limite regride indefinidamente

em direção a uma unidade de contrários enigmaticamente visada por Locke por meio do termo «poder»

(power). Mas pode-se igualmente dizer que a questão, sempre recolocada, dessa unidade não é mais do que a

sombra da distinção teórica inicial121. Pode-se, ainda, ir mais longe, e sugerir que, ao separar teoricamente as

duas exposições fundamentais respectivamente consagradas à inquietude (e, portanto, à perpétua

diferenciação do espírito) e à consciência de si (portanto, à identidade pessoal), Locke simbolizou o enigma de

uma interioridade que induz, em seu próprio seio, à questão da exterioridade, já que o capítulo xxi do livro II

119 Cf. Essay, II.xiv.13, sobre a impossibilidade, para o espírito, de se manter indefinidamente e ao mesmo tempo em uma só e mesma (self-same single) idéia. Ao mesmo tempo que nuança esse julgamento e aponta suas dificuldades, J. Deprun (La philosophie de l’inquiétude em France, op. cit. p. 192-195) descreve a uneasiness lockiana como essencialmente passiva, o que lhe permite identificar aí a inversão, termo a termo, da concepção de Malebranche. Parece-nos, ao contrário, que toda a fenomenologia do «desejo inquieto» e da «inquietude do desejo», em Locke, onde abundam as unidades de contrários, vai ao encontro de um pensamento da diferencial entre passividade e atividade, ou de uma transição contínua de uma a outra. 120 Nouveaux Essais sur l’entendement humain, ed. cit., p. 139-141. 121 Valeria a pena – mas isso seria tema para um outro estudo – indagar se tal não está mais do que nunca presente – à exceção da «consciência» – na definição de Freud para as «pulsões» inconscientes, com seu duplo status de traços psíquicos de uma excitação somática e da fixação de um nó recalcado entre as «representações» (Vorstellungen) e «afetos» (Affekte). Cf. S. Freud, Das Unbewusste. Schriften zur Psychoanalyse, S. Fischer Verlag, Frankfurt a. M. 1960 (o artigo de 1915 «L’inconscient» está traduzido na Méthapsychologie, Gallimard, 1952).

Page 51: O Tratado Lockiano Da Identidade

O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 51

não contém a palavra consciousness, tanto quanto o capítulo xxvii não contém a palavra uneasiness, muito

embora as análises sejam rigorosamente correlativas122.

Afinal, cada uma das características da interioridade que, em Locke, forma a essência da consciência

(ou do espírito, como sistema de operações conscientes) aparece, pois, como o avesso de uma exterioridade

específica, para a qual a designação de um lugar próprio é tão problemática quanto a unidade que ela deve

formar com as outras: quer se trate da articulação da sensação e da reflexão, da palavra e da idéia, ou do afeto e

do percepto. Pode-se assim explicar que, ao construir essa tópica, Locke prescreveu por antecipação os lugares

teóricos em que se apresentariam os problemas característicos da disciplina centrada no fenômeno da

consciência, quer ela se conceba como um exercício de introspecção, como uma análise crítica e transcendental, ou como uma ciência experimental articulada à psicologia. A fenomenologia da consciência deverá sempre se

reconstituir, ou se reconquistar, pela designação e conceptualização de seus limites. Mas Locke também

prescreve por antecipação as modalidades segundo as quais poderá emergir, contra o «primado da

consciência» (e, mais fundamentalmente, contra a organização do campo da subjetividade a partir da noção de

consciência), a hipótese de um pensamento ou psiquismo «inconsciente». Em muitos desenvolvimentos

contemporâneos aos quais poderíamos fazer referência, é ainda e sempre a conceptualidade lockiana que

opera, mesmo quando se trata de operar sua inversão. É também aí que a invenção da consciência se mostra

interminável.

122 Esse «exterior inseparável» que o afeto representa, em relação à consciência essencialmente definida em termos de percepção (de si) é tão mais embaraçoso e enigmático que também é possível representá-lo como um segundo grau de interioridade, um «interior do interior», isso é, uma intimidade cuja fonte está escondida na própria interioridade (por analogia com a fórmula agostiniana: interior intimo meo). Torna-se, então, inevitável – sempre a anfibologia – que a interioridade da consciência, como «cena» sobre a qual «passam» as idéias e se desenrolam as operações da mind, partes extra partes, apresente-se, por sua vez, como uma espécie de exterioridade, ou uma exterioridade metafórica. Assim, a interioridade regride ao infinito, e os «lugares» contrários se convertem um no outro. Mas não poder-se-ia colocar uma questão análoga, a respeito das outras «exterioridades» que situamos em relação ao mental? Interessa a uma tópica, ainda que elementar, que a interrogação seja guiada nesse sentido. Na história da «ciência do espírito», o afeto, a sensação pura, o signo (ou o significante) não cessarão de figurar os abismos da interioridade, que a transformam virtualmente em seu avesso.