O Trauma de Saigon

3
Imprimir () Prestes a completar 92 anos, o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger não pensa em aposentadoria e acaba de lançar o 17º livro de sua carreira: "Ordem Mundial" 30/04/2015 - 05:00 O trauma de Saigon Por Robinson Borges Naquele dia, a embaixada dos Estados Unidos estava dominada pelo pânico. Helicópteros Huey faziam várias viagens do porta-aviões até Saigon, no Vietnã do Sul, para concluir a desocupação do prédio. Pessoas tentavam escalar desesperadamente os muros da embaixada para conseguir partir do país, mas poucos, além dos americanos, conseguiram. Enquanto isso, os vietnamitas do Norte passavam a ocupar o Palácio da Independência, davam os primeiros passos para transformar a capital de um país unificado e viravam uma trágica página de nossa história. Aquele era o dia 30 de abril de 1975, o da maior derrota militar dos EUA, o fim da Guerra do Vietnã. "Saigon foi um momento muito triste e, em parte, causado por nós mesmos", afirma, em entrevista ao Valor, Henry Kissinger, assessor de Segurança Nacional e secretário de Estado nos mandatos dos presidentes Richard Nixon (de 1969 a 1974) e de Gerald Ford (de 1974 a 1977). Um dos nomes de maior influência no palco da política externa, Kissinger é um estadista controverso. Frequentemente é responsabilizado por crimes de guerra, sob o argumento de ter violado os direitos humanos no Vietnã. Durante o conflito, calcula-se que foram usadas mais toneladas de bombas do que todas as lançadas durante a Segunda Guerra, sem contar as armas químicas e bacteriológicas. As estimativas de vietnamitas mortos entre civis e militares pode ter ficado acima de 1,5 milhão, de acordo com pesquisas variadas, deixando 900 mil crianças órfãs. Do lado americano, foram quase 60 mil soldados mortos. "Muitas das versões que existem dos fatos, internacionalmente, precisam considerar a história antes de julgar", responde Kissinger, quando questionado sobre se tem algum arrependimento em relação à guerra.

description

Artigo sobre o conflito de Saigon.

Transcript of O Trauma de Saigon

  • Imprimir ()

    Prestes a completar 92 anos, o ex-secretrio de Estado americano Henry Kissinger no pensa em aposentadoria e acaba de lanar o 17 livro de sua carreira: "Ordem Mundial"

    30/04/2015 - 05:00

    O trauma de Saigon

    Por Robinson Borges

    Naquele dia, a embaixada dos Estados Unidos estava dominada pelo pnico. Helicpteros Huey faziam

    vrias viagens do porta-avies at Saigon, no Vietn do Sul, para concluir a desocupao do prdio.

    Pessoas tentavam escalar desesperadamente os muros da embaixada para conseguir partir do pas, mas

    poucos, alm dos americanos, conseguiram. Enquanto isso, os vietnamitas do Norte passavam a ocupar

    o Palcio da Independncia, davam os primeiros passos para transformar a capital de um pas unificado

    e viravam uma trgica pgina de nossa histria. Aquele era o dia 30 de abril de 1975, o da maior derrota

    militar dos EUA, o fim da Guerra do Vietn.

    "Saigon foi um momento muito triste e, em parte, causado por ns mesmos", afirma, em entrevista ao

    Valor, Henry Kissinger, assessor de Segurana Nacional e secretrio de Estado nos mandatos dos

    presidentes Richard Nixon (de 1969 a 1974) e de Gerald Ford (de 1974 a 1977).

    Um dos nomes de maior influncia no palco da poltica externa, Kissinger um estadista controverso.

    Frequentemente responsabilizado por crimes de guerra, sob o argumento de ter violado os direitos

    humanos no Vietn. Durante o conflito, calcula-se que foram usadas mais toneladas de bombas do que

    todas as lanadas durante a Segunda Guerra, sem contar as armas qumicas e bacteriolgicas. As

    estimativas de vietnamitas mortos entre civis e militares pode ter ficado acima de 1,5 milho, de acordo

    com pesquisas variadas, deixando 900 mil crianas rfs. Do lado americano, foram quase 60 mil

    soldados mortos.

    "Muitas das verses que existem dos fatos, internacionalmente, precisam considerar a histria antes de

    julgar", responde Kissinger, quando questionado sobre se tem algum arrependimento em relao

    guerra.

  • Pessoas escalam os muros da embaixada americana, em Saigon, para tentar pegar os helicpteros dos Estados Unidos e deixar o Vietn do Sul, em 29 de abril de 1975

    O conflito durou mais de duas dcadas, mobilizou a opinio pblica e deixou marcas terrveis exibidas

    em horrio nobre nos telejornais mundo afora. Ao custo de US$ 150 bilhes, os EUA arruinaram cerca

    de 70% dos povoados do Vietn do Norte e inutilizaram mais de 10 milhes de hectares de terra do pas.

    Em sua verso da histria, Kissinger argumenta que a guerra comeou antes de sua gesto na poltica

    externa americana.

    Em 1964, um suposto bombardeio a barcos americanos pelos vietnamitas do Norte, no golfo de Tonquin,

    foi a senha para que o ento presidente Lyndon Johnson desse incio s aes militares. "O governo

    Nixon, do qual fiz parte, herdou essa guerra. Quando assumimos o governo, j havia 550 mil americanos

    nas selvas vietnamitas, e conflitos civis no so como programas de televiso. No se pode deslig-los",

    prossegue Kissinger, com sua caracterstica voz de bartono. "As aes militares ordenadas pelo

    presidente Nixon, que eu, na qualidade de seu assessor de Segurana Nacional, apoiei, junto com a

    poltica de flexibilidade diplomtica conduziram a um acordo em 1973."

    O acordo foi assinado entre Kissinger e o ministro das Relaes Exteriores do Vietn do Norte, Le Duc

    Tho, em Paris, em 1973. Havia apenas um ponto inegocivel no processo: que o povo vietnamita

    admitisse escolher o prprio governo em um sistema livre, lembra Kissinger. Para ele, entretanto, o

    governo Nixon superestimou o alcance da negociao. "O compromisso equivalia derrota [para os

    vietnamitas do Norte], e a noo de sociedade plural, algo quase inimaginvel."

    A Guerra do Vietn deve ser entendida no espectro da Guerra Fria, de um mundo binrio. O Vietn do

    Sul era uma nao capitalista que vivia sob regime ditatorial e era apoiada pelos Estados Unidos. O

    Vietn do Norte era apoiado pela Frente Nacional para a Libertao (FNL), comandado por Ho Chi

    Minh, de colorao comunista. "Os Estados Unidos entraram na Guerra do Vietn por razes morais,

    acreditando em seu excepcionalismo em promover a democracia e a liberdade para o resto do mundo",

    observa o escritor americano Evan Thomas.

    O acordo no foi implantado, mas os americanos comearam a retirar suas tropas, em parte

    pressionados pela opinio pblica e pelo Congresso. "Em um perodo de quatro anos, retiramos todas as

    tropas que tnhamos no Vietn, 150 mil por ano", pondera Kissinger. Graas ao tal acordo, Kissinger e Le

    Duc Tho foram os vencedores de um dos mais polmicos prmios na histria do Nobel da Paz - Le Duc

    Tho recusou. A justificativa era que o acordo, na verdade, estava distante. Na poca, o matemtico e

    humorista americano Tom Lehrer resumiu o indignado esprito americano com a escolha de Kissinger

    da seguinte maneira: o prmio significou a "morte da stira".

    A derrota americana, segundo o ex-secretrio de Estado, tambm deve ser analisada no contexto da crise

    interna dos EUA. As mortes e a violncia da guerra j haviam desgastado o governo republicano de

    Nixon, duramente afetado pelo escndalo do Watergate, o que culminou em sua renncia em 1974. "O

    Vietn do Norte conquistou o Vietn do Sul ao enviar quase que seu Exrcito inteiro atravs da fronteira

  • internacional. A comunidade internacional permaneceu em silncio e o Congresso proibiu uma

    interveno militar", analisa Kissinger. "Os governos do Laos e do Camboja caram logo depois diante de

    levantes comunistas e, neste ltimo, o Khmer Vermelho imps um regime de brutalidade inimaginvel."

    Na viso de Kissinger, "o trauma de Saigon" fez que a Casa Branca perdesse o fio a partir do qual se

    desenrolava seu conceito de ordem mundial, um tema caro ao ex-secretrio. J o abordou em sua tese de

    doutorado, em Harvard, e no livro "Diplomacia", de 1994. Prestes a completar 92 anos, ele no d sinais

    de aposentadoria. Publicou "Ordem Mundial", seu novo trabalho, poucos meses depois de fazer uma

    cirurgia cardaca, no ano passado. Com traduo de Cludio Figueiredo, o livro de 428 pginas (R$

    54,90) chega ao Brasil pela Objetiva. Trata-se de seu 17 ttulo em 60 anos.

    Kissinger parte do pressuposto de que o 11 de Setembro alterou o rumo da histria. Depois de um

    momento de fora unipolar dos Estados Unidos, com a queda do Muro de Berlim, hoje as foras so

    multipolares e misturam Estados naes, regies, culturas e sombrias organizaes no estatais (Al-

    Qaeda e Isis). "Hoje, pela primeira vez, as diversas regies do mundo esto unidas pela comunicao

    instantnea e pela economia globalizada. Portanto, a questo transformar isso em uma ordem

    internacional", diz. O dilema como fazer para a ausncia de um consenso no minar todo o sistema

    internacional. Para ele, porm, nunca antes na histria houve efetivamente uma ordem mundial: o

    imprio chins e o romano, por exemplo, viveram isolados.

    Em seu currculo, Kissinger ostenta grandes feitos diplomticos, como a visita secreta a Pequim, no

    incio do restabelecimento de relaes entre EUA e China, em 1971, em plena Guerra Fria. O poderio

    econmico chins de hoje tambm exige uma ao diplomtica inteligente. "Os EUA e China tm de

    reconhecer que um conflito militar entre eles seria catastrfico", diz. (Leia ao lado.)

    O ex-secretrio continua a dar expediente na Kissinger Associates, empresa de consultoria com sede na

    Park avenue, em Manhattan. Apesar de se locomover com a ajuda de uma bengala, viaja o mundo. Neste

    ms esteve na China e vai frequentemente Rssia.

    Kissinger responde s perguntas com um sotaque carregado, apesar de ter se mudado para Nova York

    em 1938, quando sua famlia judia escapava da Alemanha nazista. Logo que o jovem Heinz Alfred

    Kissinger chegou aos EUA deparou com uma nova ordem: no tinha mais que atravessar a rua quando

    encontrava garotos no judeus. Nesse momento despertou o interesse pelas cincias sociais e a

    diplomacia. Aos 40 anos, tornou-se professor de Harvard.

    Apesar de seu peso intelectual e duras experincias pessoais, passagens de sua biografia so

    controversas at hoje. Em janeiro, foi alvo de protestos no Congresso americano, onde participava de um

    debate. "Detenham Kissinger por crimes de guerra", dizia faixa colocada pelo grupo pacifista Code Pink.

    Quando Kissinger comeou a falar, uma mulher pediu que ele fosse detido porque teria arquitetado o

    golpe de Estado no Chile (1973) e coordenado "o massacre no Vietn, em Camboja e no Laos".

    Quatro dcadas depois, a memria americana ainda parece marcada pela guerra.

    Leia mais em: Por uma nova ordem mundial