O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ANDHRÉ-LUIZ TISSERANT CAVAZZANI O VAZIO JURÍDICO Ensaio sobre a gênese e a extinção do direito no taoísmo laoziano CURITIBA 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ANDHRÉ-LUIZ TISSERANT CAVAZZANI

O VAZIO JURÍDICOEnsaio sobre a gênese e a extinção do direito no taoísmo laoziano

CURITIBA2009

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ANDHRÉ-LUIZ TISSERANT CAVAZZANI

O VAZIO JURÍDICOEnsaio sobre a gênese e a extinção do direito no taoísmo laoziano

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do bacharelado no Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig.

CURITIBA2009

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EPÍSTOLA

Desconfie dos autores que querem dedicar-lhe um livro.

Honoré de Balzac – Code des gens honnêtes.

Seguindo-lhe a preciosa advertência, refugo meus intentos e os aniquilo

com as palavras de duas personificações da contrariedade, ambas ligadas ao

curso e à precisão: uma ao Curso contínuo, que lentamente se dilui ao alcançar a

eternidade; outra ao curso arriscado, veloz e poluente de nossa Era:Não dar preferência aos homens capazes

impede que o povo conteste.Laozi

Tomado pela resignação diante de minha incapacidade e da pouca valia

de minha obra, de nada serve tanto a admiração quanto a contestação alheias, e

encerra-se a possibilidade de qualquer um ser destinatário de algo já preterido a

priori, restando-me apenas dedicá-la nos ríspidos termos daqueles que falam a si

mesmos na incontestável coerência da sinceridade:- Pra quem eu dedico?

- Eu dedico pra mim, *or*a!Nelson Piquet, ao comentar seu

primeiro título mundial de F-1, em 1983

Tal sinceridade, contudo, exige o desbaste do orgulhoso ímpeto dos

vitoriosos, pelo que se retorna à proposição inicial até não restar, da desconfiança

de mim mesmo, outra opção que a renúncia à qualquer menção epistolar:Spinoza, recusando a pensão, observou, calmamente, que não

lhe seria possível lisonjear um homem que não admirava.

Will Durant, sobre uma generosa soma oferecida por Luis XIV

caso dedicasse seu próximo livro à “Resplandecente Alteza”.

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GRATULAÇÃO

Agradeço ao Vazio Contemplativo.

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LAURÉIS

Já que não posso mais do que agradecer ao Vazio, evidencie-se, num

espaço próprio, o modesto laurel ao continente Abya Yala1 e a seus povos

autóctones.

Hoje já se sabe, com os avanços no estudo antropológico, que a origem

dos ancestrais indígenas de nossa civilização pertence ao oriente, mais

propriamente à Polinésia2, e que, anteriormente à invasão européia, navegadores

chineses promoveram incursões culturais nestas porções do mundo3,

miscigenando o sangue tropical antes que fosse coagulado com a brutalidade

ocidental do estupro:[...]Contra os índios, todas as armas foram usadas com

generosidade: disparos de carabina, incêndio de suas choças,

1 Da explanação constante na página da Wikipedia em língua espanhola e inglesa: “Abya Yala es el nombre dado al continente americano por la etnia Kuna de Panamá y Colombia antes de la llegada de Cristóbal Colón y los europeos. Aparentemente, el nombre también fue adoptado por otras etnias americanas, como los antiguos mayas. Hoy, diferentes representantes de etnias indígenas insisten en su uso para referirse al continente, en vez del término "América". Quiere decir "tierra madura", o según algunos "tierra viva" o "tierra en florecimiento".

Idêntico é o sentido expresso em:

“El uso de este nombre es asumido como una posición ideológica por quienes lo usan, argumentando que el nombre "América" o la expresión "Nuevo Mundo" serían propias de los colonizadores europeos y no de los pueblos originarios del continente”.

E, na seqüência:

”The Aymara leader Takir Mamani suggested the selection of this name (which the Kuna use to denominate the American continents in their entirety), and proposed that all Indigenous peoples in the Americas utilize it in their documents and oral declarations. "Placing foreign names on our cities, towns and continents," he argued, "is equal to subjecting our identity to the will of our invaders and to that of their heirs." The proposal of Takir Mamani has found a favorable reception in various sectors.”

2 E. Dussel. Hipotesis... pg. 32.3 Em 1421, ao menos quatro grandes expedições chinesas, dispondo de frotas em número superior ao de todas as Armadas européias somadas, já haviam explorado todos os continentes e fincado bases avançadas na Austrália, África e Abya Yala. São numerosos os registros europeus de objetos e mesmo indivíduos chineses encontrados ao longo da ocupação do Novo Mundo. Além disso, os primeiros navegadores europeus obtiveram mapas completos dos oceanos através do comércio nas rotas da Seda que levavam ao Oriente.

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e depois, de forma mais paternal, empregou-se a lei e o álcool.

O advogado se tornou especialista também na espoliação de

seus campos, o juiz os condenou quando protestaram, o

sacerdote os ameaçou com o fogo eterno. E, por fim, o

aguardente consumou o aniquilamento de uma raça soberba

cujas proezas, valentia e beleza Alonso de Ercilla, em seu

'Araucana', deixou gravadas em estrofes de ferro e jaspe.

Pablo Neruda - Confesso que vivi.

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A 14 de outubro de 1865, os chefes e líderes que restavam aos

cheyennes do sul e arapahos, assinaram o novo tratado

concordando com a ' paz perpétua'. O artigo 2 do tratado dizia:

'Fica plenamente estabelecido pelos grupos índios aqui

reunidos... que doravante cederão, sem dúvida, quaisquer

reivindicações ou direitos... a ou sobre o território demarcado

como se segue, isto é: começando na junção dos braços norte

e sul do rio Platte; daí, do braço norte ao cimo da cadeia

principal das montanhas Rochosas ou até aos montes

Vermelhos; daí, para o sul, ao longo do cimo das montanhas

Rochosas, até a parte superior do rio Arkansas; daí, para

baixo, pelo rio Arkansas, até o Cimarron cruzar o mesmo; daí,

ao lugar do começo. Esse território é o que proclamam ter

possuído originalmente e que nunca contestarão por esse

título'. Assim, os cheyennes e arapahos abandonaram todas as

reivindicações ao território do Colorado. E essa, sem dúvida,

foi a significação real do massacre de Sand Creek4.

4 Dee Brown – Enterrem meu coração na curva do rio. Pg. 91 - Incursão comandada pelo coronel J.M. Chivington em 28 de novembro de 1864 contra aldeias arapahos e cheyennes pacificamente acampadas num braço do rio Sand Creek, e compostas majoritariamente de velhos, mulheres e crianças. No alto de suas cabanas tremulavam flâmulas brancas e uma bandeira dos Estados Unidos de Abya Yala (E.U.A.Y.), hasteadas pelos indígenas como prova do tratado de paz com o homem-branco. Rompendo esse pacto com o falso pretexto de que as aldeias haviam furtado cavalos, Chivington atacou e dizimou-as, mutilando as genitálias e retirando o escalpo dos mortos. Ao massacre, presenciado por oficiais atônitos que se negaram a seguir as ordens do coronel e depois testemunharam contra ele, seguiu-se a ocupação final das terras do Colorado e o tratado do qual fala a citação. Violações a acordos anteriores, extermínios, ocupações e a imposição de novos tratados degradantes que reduziam os indígenas à condição de prisioneiros foram uma prática sistemática durante o processo de colonização das terras do norte abyayalano.

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Portanto, é nessa improvável e genocida conjuntura que se exsurge a

reflexão sobre a obra de Laozi, sem que se esqueça seu nevrálgico intento, o de

se insinuar numa incursão cultural similar à dos antigos navegadores chineses

sobre o universo abyayalano ao qual estamos constritos.

Entende-se como aliado, e também se o homenageia, o Curso da Grande

Literatura, que jamais se inebriou5 com os desvios fáceis do destino, e

determinou, artisticamente, a inexorável asfixia da realidade pendente sob o

cadafalso da história.

Em decorrência desse movimento, saúda-se por fim a lei, essa pústula de

pavor grafada em artigos de latão e brita, e seus fiéis mucamos – sejam líderes

tribais, advogados, juízes, legisladores ou juristas - que entornam sem descanso

as teorias omeléticas da coação social vindoura, pois, sem eles como inimigos,

não se poderia proceder à elíptica-crítica do direito que fundamenta este trabalho: Não pode haver maior desgraça no mundo que converter-se, a

um doente, em veneno a teriaga que tomou para vencer a

peçonha que o vai matando […] E tal é o que acontece em

muitas Repúblicas do mundo, e até nos reinos mais bem

governados, os quais, para se livrarem de ladrões – que é a

pior peste que os abrasa -, fizeram varas que chamam de

justiça, isto é, meirinhos, almotacéis, alcaides; puseram

guardas, rendeiros e jurados; e fortaleceram a todos com

provisões, privilégios e armas. Mas eles, virando tudo de

carnaz para fora, tomam o rasto às avessas e, em vez de nos

guardarem as fazendas, são os que maior estrago nos fazem

nelas, de sorte que não se distinguem dos ladrões que lhes

mandam vigiar em mais senão que os ladrões furtam nas

5 Essa visão, embasada em uma experiência de leitura das obras clássicas, e aplicada à parcial exegese da realidade e dos instrumentos jurídicos de controle social, está em flagrante oposição com a da professora Vera Karam de Chueiri em sua dissertação “Philosophy, law and literature: crisscrossings and interweavings”. Nela, afirma, parafraseando Martha Nussbaum, que a literatura é um meio de maquiar o grotesco e o excêntrico inerente às coisas, e conclui, através do discurso de Dworking, que, utilizando desse artifício, o direito pode ser “inebriante”: “...through the chain of law it is possible to arrive to a better answer to conflicts, ambiguities, paradoxes and aporias – also – without sacrificing law, justice and democracy […] my argument ends by showing that legal discourse experiences a sensation of inebriety provoked by strong shots of literacy...”. Pg. 93.

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charnecas e eles no povoado; aqueles com carapuças em

rebuço e eles com as caras descobertas; aqueles com seu

risco e estes com provisão e cartas de seguro […] E eis aqui

como os que têm por ofício livrar-nos de ladrões vêm a ser os

maiores ladrões que nos destroem.

Anônimo do século XVIII – Arte de furtar.

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Que seria de nós se o mundo fosse povoado exclusivamente

de pessoas honradas, ricas, de bons sentimentos, tolas,

piedosas, políticas, simples, dissimuladas? […] A gendarmeria,

a magistratura, os tribunais, a polícia, os tabeliães, os rábulas,

os chaveiros, os banqueiros, os oficiais de justiça, os

carcereiros, os advogados desapareceriam como que por

encanto. Quer faríamos então? Quantas profissões repousam

sobre a má-fé, o roubo, o crime! Como matariam o tempo

aqueles que gostam de ir aos tribunais para ouvir as defesas,

para acompanhar o cerimonial dos julgamentos? Todo o estado

social repousa sobre ladrões...

Honoré de Balzac – Code de gens honnêtes.

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Depois dos médicos, vêm imediatamente os rábulas ou

jurisconsultos. Eu não saberia dizer-vos ao certo se esses

supostos filhos de Têmis precederam os sequazes de

Esculápio: disputam a precedência entre si. O que é fora de

dúvida é que os filósofos, quase que por consenso unânime,

ridicularizam os advogados, e, com muita propriedade,

qualificam essa profissão de 'ciência de burro'.

Erasmo de Rotterdam – Elogio da loucura.

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EPÍTOME

Ensaio que trata, inicialmente, de uma breve compreensão dos aspectos

essenciais do sistema filosófico de Laozi, pormenorizando sua dimensão mística,

religiosa e cosmológica; na seqüência, e a partir de um paralelo didático com a

dialética hegeliana e a teoria marxista, sofrendo influxos filosóficos que vão de

Voltaire a Spinoza e de escritores como Borges e Balzac a Dostoiévski,

prossegue com a aplicação peculiar do taoísmo sobre as categorias sociais de

amor, justiça e moral, evidenciando, por fim, sua apropriação para uma crítica à

permanência da ordem jurídica.

Termos para pesquisa: Laozi; Taoísmo; Jusfilosofia; Extinção do direito.

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АБСТРАКТ

Испытание, которое первоначально кратко понимания ключевых

аспектов философской системы Лаоцзы, подробно остановившись на его

мистическое измерение, религиозных и космологических, в

последовательности, и из параллельного обучения с гегелевской диалектики

и марксистской теории, страдающим приток начиная философской от

Вольтера до Спинозы и писатели, как Борхес Бальзака и Достоевского, по-

прежнему с применением уникальной даосизма на социальные категории,

любви, справедливости и морали, показывая, наконец, ее ассигнования на

критику незыблемости права.

Слова для поиска: Лао-цзы, даосизма, философии Правовые, прекращение

законов.

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ÍNDEX

EPÍSTOLA..................... 3 GRATULAÇÃO................... 4LAURÉIS....................... 5 EPÍTOME........................... 9АБСТРАКТ.................... 10 ÍNDEX................................ 11

I. ANTELÓQUIOS: NA NASCENTE DO CURSO, O DELTA DO CURSO.......................12

II. O LIVRO DO CURSO...................................................................................................16II.I. NU COM A MÃO NO CURSO: LAOZI............................................................. 16II.II. NO LEITO DO CURSO: CORRENTEZA MÍSTICA........................................ 19

II.II.I. O “DAO”............................................................................................. 19II.II.II. O “DAO” E DEUS..............................................................................24II.II.III. O “DAO” E O EU.............................................................................. 26II.II.IIII. O “DAO” E LAO.............................................................................. 29II.II.IIIII. O “DAO” E A ALMA....................................................................... 30

II.III. NA IMANÊNCIA DO CURSO: I CHING......................................................... 34II.III.I. A DOUTRINA YIN-YANG: “XINGA O I CHING!”.............................. 42

II.IIII. NOS MEANDROS DO CURSO: MAROLAS DIALÉTICAS......................... 45II.IIII.I. O “DAO” FILOSÓFICO................................................................... 45II.IIII.II. O “DAO” A-DIALÉTICO................................................................. 47

III.O LIVRO DO CURSO E DA VIDA............................................................................... 57III.I. ÀS MARGENS DO CURSO E DA VIDA: O TRIUNFO DA VONTADE.......... 59

III.I.I. O “DAO-DE”: CORAÇÃO SEM AMOR, IGUALDADE SEM JUSTIÇA, CONSCIÊNCIA SEM MORAL..................................................................... 59III.I.II. O “DAO-DE”: LIDERANÇA SEM AÇÃO.......................................... 68III.I.III. O “DAO-DE”: ANARQUIA SEM VIOLÊNCIA.................................. 72

III.II. NO AÇOREAMENTO DO CURSO E DA VIDA: REJEITOS JURÍDICOS.... 77

III.II.I. NO LODAÇAL DO CURSO E DA VIDA: A ANFÍBIA RESISTÊNCIA MARXISTA.................................................................................................. 85III.II.II. A CHEIA DO CURSO E DA VIDA: MONÇÕES LAOZIANAS......... 93

IIII. ILAÇÕES: NO DELTA DO CURSO, A NASCENTE DO CURSO............................ 100

ESCÓLIOS MEDITATIVOS............................................................................................ 101

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I6. ANTELÓQUIOS: NA NASCENTE DO CURSO, O DELTA DO CURSO.

A caminhada de mil milhascomeça diante dos teus pés.

Laozi.

Chama-se “monografia” por imposições de estilo já negligenciadas, mas

se trata de uma tentativa de ensaio místico, pois tanto seu conteúdo quanto sua

composição distam de quaisquer padrões dissertativos para o conhecimento

acadêmico, preterindo as etapas da famigerada “metodologia do trabalho

científico” em favor de inevitáveis e sempre duvidosas impressões individuais

retorquidas, locupletadas e conjugadas com as teorias consideradas adequadas

para desvelar a complexidade da exegese dos aforismas taoístas diante dos

paradogmas7 ocidentais.

Muitos estudos partem das mais limitadas e deturpadas vertentes do

taoísmo (taoísmo legista, taoísmo mágico, taoísmo meditativo, etc...), divergindo

da leitura integral e da interpretação cuidadosa dos elementos da obra original. É

por esse motivo que tanto comentadores posteriores como concepções oriundas

desses comentários foram preteridos em favor de uma leitura própria do Dao De

Jing8.

Em consonância com essa lição, e adicionada a exigüidade temporal para

6“I” é o algarismo romano equivalente ao numeral arábico “1”, mas também é o símbolo que representa a “mutação” nos pictogramas do “I Ching”. Por conta dessa identidade imagética, e por ser o taoísmo um monismo filosófico, optou-se por utilizar exclusivamente o algarismo “I” na numeração dos capítulos e subcapítulos deste ensaio. 7 Paradigmas divinizados, elevados ao ar rarefeito onde agonizam asfixiados os dogmas da

ocidentalidade. 8 Essa opção pelo taoísmo posterior, dignatário de desentendimentos decadentes voltados à perpetuação de dada ordem política e à sua redução a rituais que vão da magia ao vegetarianismo, é a considerada como válida na tese “Direito e Taoísmo” do professor da UFSC Paulo Roney Ávila Fagúndez, sobre a qual comentar-se-á oportunamente.

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a conclusão do trabalho e os deletérios efeitos das minhas limitações teóricas,

seja no domínio da história da filosofia ou do idioma mandarim, reduziram-se ao

estritamente necessário tanto os objetivos quanto as referências. Nisso, nada há

de excepcional, vez que a bibliografia confiável e traduzida do Dao De Jing é

escassa, e o melhor é contar apenas com a obra original, relembrando-se da lição

de Jorge Luis Borges: El tiempo me ha enseñado algunas astúcias: [...] ignorar las

interpretaciones dudosas y leer siempre los clásicos.9

Mais do que tudo, existe uma simpatia monolítica pela filosofia taoísta,

dotada de um sistema filosófico completo e complexo, aforístico (e por isso coeso

e elegante) e altamente crítico, representando, sem dúvida, uma síntese possível

para as lacunas confusas deixadas pelo atual pensamento filosófico, além de se

constituir, segundo o mesmo julgamento, na mais radical proposta de pedilúvio

místico10 para os frágeis pés da racionalidade febril.

Em seu romance autobiográfico “Zen e a Arte de Manutenção de

Motocicletas”, o filósofo Robert Pirsig se antecipa e já conclui esta introdução: Naquele livro [Dao-de Jing] não havia coisas vagas e nem

imprecisas. Não havia sequer uma discrepância. Mais preciso

e definido, impossível.11

Espantosamente, Laozi resolve as armadilhas e contradições oriundas da

dimensão mediúnica de sua obra empregando o antigo estilo lacônico e poético

de transmissão do conhecimento, o mesmo que era a regra entre os pensadores

sofistas gregos, sendo “indicação do elevado nível [de seu] ponto de vista o fato

[…] de se limitar, falando do indizível, a alusões cujo desenvolvimento deve ser

deixado aos cuidados de cada um.”12

9 J.L.Borges. Elogio de la Sombra. Prólogo.10 “Místico” é aquilo que prescinde da explicação, descrição ou tentativa de apreensão meramente racional-científica, porque em si mesmo contém todas as complexidades inacessíveis ao conhecimento humano. Diferentemente do “metafísico”, fenômenos que podem ser indiretamente deduzidos, calculados, etc... (R. Pirsig. Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas, pg. 240). 11 R. Pirsig. Pg. 24212 R. Wilhelm. Pg. 32.

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Eis portanto justificada, pelo próprio Laozi, minhas opções exegéticas e

compositivas.

Frise-se que a mudança no projeto levou em conta o esgotamento das

apreensões hegelianas e marxistas, não apenas porque são ícones vastamente

estudados e até certo ponto depredados por uma dispersão teórica e prática dos

seus seguidores13 - como também pela originalidade de uma abordagem do

fenômeno do esgotamento jurisdicional – inserido no esgotamento da

racionalidade eurocêntrica – a partir de pensadores imortalizados no Oriente.

É daí que Laozi se eleva, sôfrega e imperceptivelmente, “un pie y

despues otro pie”14, à condição de protagonista no marco filosófico essencial

deste estudo. E, sendo estudo a síntese da expressão latina “retirar de dentro”,

ninguém mais adequado do que o lendário filósofo de Qu Ren, que extrai da

contemplação de si mesmo o curso de todas as energias vitais e dimensões da

existência.

Sobre sua obra, metaforize-se que em todo o curso, bóia incólume um

livro de areia. No conto homônimo de Jorge Luis Borges, o livro de areia dispunha

de todas as suas páginas vazias, mas, à medida em que eram folheadas,

preenchiam-se com qualquer assunto imaginado e se multiplicavam infinitamente.

O leitor, então, adquiria uma incessante fixação pelo volume, logo convertida em

doentia paranóia, levando-o por fim a continuar o ciclo maldito, e, expurgando-o

de seus domínios, a entregá-lo de livre arbítrio para o próximo curioso.

Essa incursão literária digna dos piores juristas15 nada tem a ver com as

inclinações deste trabalho, senão que, embora seja o curso aquático a metáfora

13 Essa crítica é referendada por muitos autores exemplificados na New Left Review (Nova Esquerda Inglesa), sobretudo pela voz de E.P. Thompson, o qual afirmou a necessidade de se voltar a um marxismo ortodoxo, ao invés de o expandir despropositadamente para conhecimentos díspares, acessórios a uma revolução econômica e política, como fizeram no conjunto de sua obra filósofos quais Althusser, Poulantzas, dentre outros. Sobre a dispersão do hegelianismo, basta indicar as próprias críticas de Marx aos “jovens hegelianos” e, funcionando como contraprova, sua ode isolada a Feuerbach: “Feuerbach é o único que tem para com a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico, e o único que fez verdadeiras descobertas nesse domínio, ele é em geral o verdadeiro triunfador da velha filosofia” (Marx, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Pg. 117).14 J. Cortázar. Manual de Instrucciones. Como subir una escalera. 15 Marcelo Barbosa, amigo há longo tempo emigrado para a universidade parisiense, costumava dizer que os vícios retóricos dos juristas reduziram à condição de prostitutas dois gigantes da literatura universal: Neruda e Drummond.

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mais recorrente no taoísmo, é útil visualizar nas prolíficas folhas em branco do

livro de areia a marca da inesgotabilidade característica ao Dao-de Jing.

Arte minimalista, música dodecafônica, geometria fractal, biologia

molecular, quiromancia, arquétipos psicanalíticos, cabala, teoria das supercordas,

efemérides zodiacais, medicina homeopática, etc... poderiam facilmente integrar-

se à análise taoísta da vida. Contudo, por obrigações de ofício, alguns dos temas

menos interessantes, embora igualmente válidos, como filosofia idealista,

materialismo histórico, justiça, moral e direito, serão tratados a seguir.

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II. O LIVRO DO CURSO

Rio raso, ruidoso. Rio fundo, silencioso.

Dito caipira

II.I. NU COM A MÃO NO CURSO16: LAOZI

Tudo o que eu digo, acreditem,

teria mais solidezse em vez de carioquinha

eu fosse um velho chinês.Millôr Fernandes

Laozi (Lao Tsu, Lao Tse, Laotze), ou “ancião”, é apenas um dos apelidos

que teve o filósofo precursor de toda a filosofia taoísta. Foi também chamado de

Ehr (orelha) e Lau Dan (velha orelha comprida)17. Seu nome de família é Li, mas o

nome completo é desconhecido.

A afirmação de Si-ma Tsién (163-85 a.C.)18 sobre Laozi: “A sua ambição

era esconder-se e permanecer anônimo”, não destoa da seqüência inferida dos

escassos fatos noticiados sobre sua existência, e tampouco de sua obra,

acentuadamente pessimista com a sociedade de sua época, como se apreende

da conclusão em sua biografia de poucas linhas: Laozi seguia o curso e sua virtude; seu ensinamento visava ao

16 Referência à famosa canção da banda Ultraje a Rigor. Contextualizando, diz respeito ao desnudamento da história pouco conhecida do filósofo que tomou o Curso em suas mãos, legando-nos uma incrível compreensão da origem cosmogônica e da crítica radical à sociedade.

17 Isto é, “velho professor”.18 WILHELM, Richard. Pg. 11.

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ocultamento de si mesmo e ao anonimato. Residiu muito tempo

em Zhou. Ao perceber a decadência de Zhou, foi embora.

Chegando à fronteira, o guarda do passo, Yin Xi, disse: 'O

senhor vai ocultar-se, eu exijo que componha um livro para

mim'.

Então Laozi compôs um livro de duas partes, falando sobre o

curso e sua virtude, com pouco mais de cinco mil ideogramas.

Partiu. Ninguém sabe seu fim.

Assim como a maioria dos autores chineses antigos, sua vida se

confunde com a sua obra e com a lenda – somando-se à religiosidade advinda do

culto aos seus ensinamentos, e não são raras passagens relatando seu encontro

com Confúcio e até mesmo com Buda19.

Em relação ao primeiro, eram contemporâneos, e existem muitas

referências ao Dao-de Jing em Os Analectos (compilação das palestras de

Confúcio por seus discípulos), mas nenhuma relatando essa entrevista hipotética,

da qual se diz consensualmente entre os comentadores o seguinte:Lao-Tzu se manifesta de maneira bastante depreciativa em

relação aos heróis antigos, que eram ídolos venerados de

Confúcio”, para então sentenciar: “O senhor afaste seu ar

arrogante, seus excessivos desejos, suas atitudes maneiristas

e suas intenções libertinas. Nada disso é de proveito à sua

pessoa. É o que lhe tenho a dizer, nada mais.20

Ao que Confúcio, impressionado, responde com uma silenciosa

despedida e, posteriormente, confessa aos seus pupilos: [...]Chegando ao dragão, eu não posso saber como, galgando

o vento e as nuvens, sobe ao céu. Hoje eu vi Laozi. Como se

parece com o dragão.21

19 “Nas discussões posteriores entre as duas religiões, ambas afirmavam que o fundador de uma religião teria aprendido com o fundador da outra. No entanto... seria impossível qualquer contato pessoal de Lao-Tzu com Buda. No quadro histórico devem ter sido inseridas situações posteriores.” WILHELM, R. Pg.

20 SPROVIERO, M.B. Pg 9.21 Idem.

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Fosse-se estabelecer um paralelo desse embate irônico entre Titãs do

Pensamento, haveria poucas comparações possíveis, talvez reduzidas à luta

entre Tífon e Zeus22 e, falando da nossa realidade, à ultrapassagem de Nelson

Piquet sobre Ayrton Senna, durante a qual retirou suas duas mãos do volante

sinalizando com os dedos médios erguidos para o oponente23. Numa continuidade

lendária, pode-se imaginar Laozi, com a vagarosidade draconiana de seu boi

preto, antepondo-se à carruagem de Confúcio enquanto, sorridente, gesticulava

no equivalente chinês.

Historicamente inconsistentes tais relatos, pode-se, contudo, entender

que essa oposição virulenta, embora estranha diante da importância insopesável

de K'ung Chung-ni24 para o pensamento chinês, é muito condizente com o teor do

Dao-de Jing, diametralmente oposto à crença k'ungchung-niana de que a virtude

moral e o caráter justificariam e aperfeiçoariam um modelo social complexo,

fundado em leis e instituições. Tal como é compreensível a admiração de

Confúcio, que manteve intocadas muitas das proposições de Laozi, embora,

como foi dito, acreditasse na evolução harmoniosa da sociedade diante do

progresso técnico do Homem.

Sobre as interrogações que recaem sobre a autoria, pode-se concordar

que “em última análise, essa questão não tem valor algum... o Tao-te King existe;

não importa quem o tenha escrito”25, sendo inegável não só sua existência, mas

também a sua originalidade, baseada na amplitude e na profundidade sem

precedentes de suas críticas e nos inúmeros autores taoístas posteriores que com

maestria discorreram exclusivamente sobre essa obra: Chuang-Tzu, Han Fe Tzu,

Huai Nan Tzu, e os imperadores da dinastia Han - Han Wen Di e Han Ging Di,

que deram ao livro o título “Dao-de Jing” e a divisão de seus aforismas em

capítulos.

22 Nessa luta, Tífon massacrou e humilhou Zeus, forçando todos os Deuses do Olimpo a se refugiarem covardemente.

23 Ocorreu durante o GP da Hungria em 1986, e é considerada uma das maiores ultrapassagens da história da F-1 por muitos grandes pilotos e especialistas no esporte.

24 Nome chinês de Confúcio25 WILHELM, R. Pg. 13.

Page 19: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

19

II.II. NO LEITO DO CURSO: CORRENTEZA MÍSTICA

Não há livro duradouro que não inclua o sobrenatural.

Jorge Luis Borges

II.II.I. O “DAO”

Philosophy that turns awayFrom those who aren't afraid to say

what's on their mindsThe left behinds of the great society

Frank Zappa - Hungry freaks, daddy!

Brevemente dispostas as referências do autor, devem-se verificar os

princípios elementares do taoísmo, começando por uma explanação de suas

denominações, seguida da diferenciação essencial sobre a filosofia de Laozi e o

confucionismo, as religiões taoístas e outras apropriações posteriores de acento

taoísta.

A preferência pelo “curso” para descrever as etapas de aprofundamento

taoísta se baseia numa escolha recorrente do próprio Laozi para definir sua

doutrina, a água corrente: O maior bem é como a água.A virtude da água está em beneficiar todos os seres em conflito.Ela ocupa os lugares que o homem despreza.Portanto, é quase como o Tao [...]VIII

A relação entre o Tao e o mundo poder ser comparadaCom os riachos das montanhas e com as águas do vale,que se lançam nos rios e nos mares.XXXII

Entende-se que seja o curso aquático a representação por excelência

para representar a imanência do Dao: a água flui sem cessar num ciclo fadado à

Page 20: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

20

eternidade, persevera porque contorna os obstáculos, e na suavidade contínua,

preenche os espaços vazios, acumulando-se nos baixios ignorados pelo Homem.

Porque é suave e está abaixo de tudo, por ser, em última análise, fraco, o curso

perdura. Nesse sentido: O retorno é o movimento do Tao.

A fraqueza é o efeito do Tao.

XL

Não deixa de ser curioso que a metáfora seja reincidente na dialética de

Heráclito: “um homem não toma banho no mesmo rio duas vezes” (pois nem o

homem, nem o rio serão os mesmos). O Dao vai além dessa compreensão, dá-

lhe unidade, porquanto o homem e o rio se transformam, reagindo

reciprocamente, o curso do rio e o curso do Homem – simbolizando o curso do

universo e o de toda a vida, são estáveis em suas transformações, e suas

mudanças são absorvidas pela lei imutável que as provoca, em conformidade

com o I Ching.

Laozi deixa claro que o uso do ideograma DAO (ou Tao) serve ao limitado

esforço humano de tudo nomear, inclusive o inominável: Procuramos por algo que não vemos [...]

Procuramos por algo que não ouvimos [...]

Procuramos por algo que não sentimos [...]

Essas três coisas são inseparáveis.

Por isso, entrelaçadas, formam o Um […]

Nascendo continuamente,

não se pode nomeá-lo.

XIV

----------

Há uma coisa que é invariavelmente perfeita.

Antes que houvesse Céu e Terra, já estava ali,

tão silenciosa e solitária.

Ela continua sozinha, imutável.

Corre em círculo e não se põe em risco.

Pode ser chamada de 'Mãe do Mundo'.

Page 21: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

21

Não conheço seu nome.

Qualifico-a de Tao.

XXV

Damos por compreendidas todas as coisas de nosso mundo, sejam ou

não passíveis de serem conhecidas, nos limitados termos da linguagem. E nada

mais natural do que, no intento de denominar o absoluto, passando pelo tudo,

pelo nada e por todas as suas variantes, utilizar um termo de amplo significado

(caminho, curso, rota, via, passo, estrada, trajeto), extensamente recorrente na

língua chinesa e ligado à várias tradições.

Para K'ung Ch'iu26, por exemplo, dá-se-lhe o nome “Caminho” e significa

“[...] a soma total de verdades sobre o universo e o homem; e não apenas do

indivíduo mas também do Estado diz-se que possui ou não o Caminho. Como se

trata de algo que pode ser transmitido de professor para discípulo, é

necessariamente algo que pode ser colocado em palavras.”27

Mesmo assim, seu sentido é também apreendido em seus Analectos, pois

afirma: O mestre disse:

- As Odes são trezentas, em número. Podem ser resumidas a

uma frase:

“Não se desvie do caminho.”

Analectos, II, 2 e 297.

Na analogia laoziana, tais significados se ampliam, pois o ideograma

diretamente relacionado a “caminho” é LU (combinação dos ideogramas “pé” e

“cada” - “caminho percorrido”), enquanto DAO combina os ideogramas para

“cabeça” e “andar”, somando-lhe significações quais as de razão, espírito,

sentido, logos, dizer, falar, guiar, discorrer, curso, discursar, e assim por diante.

Esse termo, cuja utilização remonta à descrição de trajetórias celestes na

astronomia chinesa (para indicar seus movimentos ordenados, perfeitos), leva a

uma concepção “de liberdade absoluta, que se orienta somente por si mesma, ao

26 Outro nome chinês de Confúcio.27 D.C. Lau. Pg. 13.

Page 22: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

22

passo que todas as outras coisas recebem o seu sentido de algo externo”28: [...]O Homem orienta-se pela Terra,

a Terra pelo Céu.

O Céu orienta-se pelo Tao.

O Tao orienta-se por si mesmo.

XXV

Embora a incessante busca por um uso de palavras que

correspondessem ao mais aproximado sentido possível da realidade fosse uma

preocupação constante tanto para Confúcio, na “retificação dos conceitos”, quanto

para Laozi, no “correcionismo”, ambos em oposição à crescente escolha pelo

“nominalismo”, que “considerava o nome algo puramente arbitrário que nunca

atingia a realidade”, Laozi apresenta uma “doutrina das noções […] que podem

ser, de algum modo, designadas por 'nomes', mas estes são, por assim dizer,

nomes ocultos impronunciáveis […]. Ainda assim, [através dos] nomes

pronunciáveis, quando bem escolhidos […] pode-se depois... transmitir, de certa

forma, a tradição e... preservar a continuidade do evento humano”:29

Quando a criação começou,

só então apareceram os nomes.

Os nomes também atingem a existência

e não sabemos mais onde é preciso parar.

Se soubermos onde parar,

não correremos perigo.

XXXII

Discute-se, pois, a correta denominação de tudo o que vem após a

criação humana, o talhar o bruto: o nome deve ser preciso, a linguagem deve ser

sucinta e, no plano político, o nome deve designar exatamente as funções. Como

o uso desordenado das palavras vai para além (ou aquém) da natureza humana,

é também um desvio do Dao.

Tais cuidados no trato lingüístico aproximam Laozi do rei Tâmus , cujo

28 WILHELM, pg. 12929 WILHELM. Pgs. 134-135.

Page 23: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

23

célebre diálogo com Teuto foi descrito, a partir do relato platônico, por Erasmo de

Roterdã em “Elogio da Loucura”:Tendo o rei Tâmus perguntado a Teuto qual era a vantagem de

suas letras alfabéticas, este último respondeu:

- Servem para despertar a memória.

Ao que replicou o rei:

- Pois a mim parece justamente o contrário, porque os homens,

servindo-se desses caracteres, porão tudo no papel e não

conservarão nada na memória.30

Sua inclinação em refutar qualquer expressão excessiva dos sentidos -

vez que a intuição, como parcela individual do Dao, jamais é totalmente inteligível,

exclui não só a escrita como qualquer intervenção excessiva da criação humana.

Essa posição está evidente no aforisma V: . “{...} Porém palavras em demasia se esgotam ao serem

proferidas.

O melhor é guardar o que está no coração.”

Sendo o coração aos chineses apenas um dos órgãos responsáveis pela

apreensão através dos sentidos (tal como visão, paladar, audição, olfato e tato), e

algo tanto diverso de sua concepção “emocional” no Ocidente, traduz-se

imediatamente seu uso por Laozi, numa posição que é também referendada por

Erasmo: Como se houvesse sombra de verdade em que a natureza, tão

previdente e vigilante quanto ao pernilongo e até quanto às

ervas ou às florzinhas do campo, fosse esquecer-se

unicamente do homem, deixando de lhe fornecer tudo aquilo

de que precisa […] Eis porque, muito longe de contribuírem

para essa felicidade que se pretende apresentar como razão

de sua descoberta, as ciências são, ao contrário,

extremamente nocivas.31

30 Erasmo. Pg. 46.31 Erasmo. Pg. 47.

Page 24: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

24

O escopo deste ensaio passará ao largo da crítica ao conhecimento e à

teoria da ciência, pois, permeando todo o Dao-de Jing, infere-se-a nos outros

aspectos que serão abordados. Resta, contudo, a menção de que não só a

repulsa é extensiva, como encontra ecos no bom, embora reduzido, pensamento

crítico ocidental, de Popper a Feyerabend, além dos filósofos abyayalanos da

libertação.

II.II.II. O “DAO” E DEUS

O Dao-de Jing, enquanto síntese-crítica da sociedade chinesa até o ano

520 a.C., acumula um vasto repositório de tradições antiqüíssimas, e sua forma

final foi, em grande parte, derivada das correções de Laozi às crenças espirituais

chinesas, e da grande influência das tradições místicas anteriores, quais o Livro

das Mutações32, o mais remoto escrito chinês.

Com base na sua hermenêutica peculiar dessa obra, como ver-se-á a

seguir, fundou a gênese da filosofia taoísta, recebendo também influxos das mais

antigas religiões hindus, como o jainismo e o budismo, compartilhando com elas a

desnecessidade criadora de Deus.

A manifestação evidente da reinterpretação religiosa de Laozi está no V°

aforisma: “Céu e Terra não são bondosos.

Para eles, os homens são como cães de palha, destinados ao

sacrifício.

O Sábio não é bondoso.

Para ele, os homens são como cães de palha, destinados ao

sacrifício [...].”

Neste aforisma, está explícita a menção à antiga religião animista33

chinesa, ou seja, o taoísmo primitivo, marcado pelo antropomorfismo, com

sacerdotes humanos (usualmente reis) elevados à condição de santos e espíritos

32 I Ching. Na tradução literal: “Obra Clássica das Mutações”. “Ching” é o mesmo que “King” ou “Jing”.

33 Sistema dos que consideram a alma como causa de todos os fenómenos vitais.

Page 25: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

25

da natureza e dos ancestrais, que castigavam e perdoavam os homens

sucessivamente.

É relevante mencionar, na Ética de Spinoza, Parte V, “Da potência do

entendimento ou da alma humana”, a constatação alcançada, estupenda em

comparação com seus equivalentes ocidentais e em muito similar à de Laozi:Deus não tem paixões nem é afetado por nenhuma paixão de

alegria ou de tristeza.

Proposição XVII

Esse modelo religioso, com personagens de uma realeza heróica,

subordinados terrenos e rituais de purificação através de sacrifícios, no qual a

Entidade Divina possui consciência humana, não dista absolutamente de muitas

religiões mitológicas como a grega, por exemplo, e, apesar de “na China ... [ainda

ter] uma existência relativamente intacta”34, esgarçadamente ruiu com Laozi, que

promoveu sua substituição pela idéia mais elevada de que o Céu e a Terra não

são dotados dos erráticos sentimentos humanos, e estão para além das

condições estáticas e das meras oposições, para além de todo acidente e

desordem.

Por essa razão, “a imagem dos cães de palha do sacrifício caracteriza o

fato de que todos os seres são ricamente dotados para cumprir a missão da sua

espécie, o que, no entanto, nada tem a ver com algum 'valor pessoal' “35, vez que

tais bonecos luxosamente ornados e utilizados durante festivais e rituais

religiosos, eram abandonados e destruídos ao final dos eventos. Ademais, eram

reconstruídos nas comemorações seguintes, dando continuidade ao ciclo.

O animismo, ainda, conformou as religiões monoteístas, bastando para o

demonstrar as inúmeras menções feitas em todas elas à Ira Divina, mera ira

humana divinizada, exemplificadas em diversos trechos do Antigo Testamento: na

expulsão de Adão e Eva do Paraíso, na curiosa seleção natural divina dos

homens durante o Dilúvio, na transformação dos sodomitas em estátuas de sal,

34 WILHELM, R. Pg. 22. O animismo original permanece e dura no tempo das culturas orientais, sendo bastante considerado como elemento de coesão social, diferentemente do Ocidente, onde foi inferiorizado à categoria de “superstição”, sobretudo pelo cristianismo e judaísmo.

35 WILHELM. Pg. 180.

Page 26: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

26

na condenação dos homens à incompreensão mútua a partir da destruição da

Torre de Babel, na punição de Davi por haver desposado a mulher de Urias, nas

últimas palavras de Jesus: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonastes?”, etc,...

É, portanto, a religião irascível, porém redentora, que inescrupulosamente se

assemelha e serve aos desígnios políticos dos reis.

Isso não indica, contudo, que menções a Deus não sejam feitas. A palavra

é prenhe de significâncias, e, em Laozi, adquire em alguns aforismas o poder de

sintetizar a relação natural (e posterior) que advém do curso do Céu e da Terra

em confluência com a Vida. Limitando-se a isso, “por enquanto, pode-se refletir

sobre o fato de que as velhas raízes inglesas good (bem) e God (Deus), que

designam respectivamente a Qualidade e o Buda, parecem ser idênticas.”36

II.II.III. O “DAO” E O EU

Essa alusão aos “cães de palha” leva à discussão de qual é o caráter da

filosofia de Laozi, seja aplicada à religião ou não, e as opiniões oscilam do

individualismo exclusivo à totalidade impessoal.

Embora nenhuma leitura do Dao-de Jing permita essas conclusões,

admite-se que seu estilo possa causar debate entre leitores alheios aos mistérios

de sua redação, vez que Laozi foi o primeiro autor chinês, e provavelmente um

dos primeiros no mundo, a se referir filosoficamente ao “eu”.

Para entendê-lo, é necessário explicar que as línguas antigas possuíam

uma terceira forma de expressar o sujeito: através da “voz média”. Laozi critica

tanto o “eu” ativo, que intervém no mundo, quanto o “eu” passivo, que é pelo

mundo regido. Wolfgang von Schöfer, aludido por Sproviero, apresenta um

panorama desse aspecto:Na língua chinesa, quanto mais se retroagir no tempo, mais

domina a voz média […] Num estágio anterior tínhamos a voz

ativa, a média e a passiva. Num estágio ainda mais remoto

tínhamos apenas a voz ativa e a média […] A forma inicial de

expressão seria a voz média. Esta corresponderia ao estágio

36 PIRSIG. Pg. 246.

Page 27: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

27

em que o homem não se distingue do mundo; a ausência da

voz média, em nossa época, corresponde ao estágio em que a

separação é total. Não temos mais a possibilidade de exprimir

a relação homem-mundo. E o desaparecimento da voz média

dá-se, hipoteticamente, entre 500 e 400 a.C, durante a época

axial. Muitas noções (percepções) que eram concebidas

globalmente como atividade e repouso, hoje soam paradoxais.

Noé é, como Buda, aquele que é tão ativo que sua atividade é

repouso.37

Curioso notar que, com a progressiva sofisticação das sociedades e a

prevalência do Homem sobre o ambiente, a partir da referida época axial (cujos

pormenores serão descritos na parte “II” deste ensaio), a linguagem foi,

concomitantemente, perdendo sua complexidade e reduzindo cada vez mais seu

alcance descritivo.

O “eu” laoziano, portanto, não pode ser individual, pois expressa uma

relação homem-mundo que é inerente a todos os homens, ou, do contrário, “o

Dao, harmonizador universal, não harmonizaria os indivíduos.”38 Essa idéia está

em consonância com o budismo, que nega à personalidade o “atma” (eu

individual), e referencia-se no decorrer de todo o Dao-de Jing, especialmente no

trecho que cita o próprio Buda:[…]É por isso que o nobre tem como raiz o inferior

e o alto tem o baixo como fundamento.

Assim também os príncipes e reis:

Eles se dizem “solitários”, “órfãos”, “destituídos de mérito”.

Com isso eles indicam que sua raiz está entre os humildes.

XXXIX

Não indica também, como visto, uma negação abstrata do mundo, vez

que é através do “eu” que se promove não só a identidade com o mundo

sensorialmente apreendido, como sua superação, através da negação, no “eu”,

37 Sproviero. Pgs. 214-215.38 SPROVIERO. Pg. 219.

Page 28: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

28

de todos os elementos artificiais criados pela cultura humana. Sendo esse “eu” no

mundo ou para além do mundo, será sempre idêntico aos demais “eus”, pelo que,

a partir da pessoa, conhece-se o seu mundo:[...]Quem for lembrado por filhos e netos

não desaparecerá.

A vida de quem cultiva a própria pessoa será verdadeira.

A vida de quem cultiva a própria família será plena.

A vida de quem cultiva a própria comunidade crescerá.

A vida de quem cultiva o seu país será rica.

A vida de quem cultiva o mundo será imensa [...]

LIV

Laozi compreende o mundo tal qual o corpo humano: é fonte de

calamidades, e por isso deve ser cuidado. Ao não desprezar o corpo, cultivando-o

mediante exercícios e supressão das vontades, não se perde nos labirintos da

abstração de Hegel, que, ironicamente, elaborou suas teorias encarcerado em

uma biblioteca, alheio ao mundo e à sua própria saúde.

Tal raciocínio irrompe no aforisma XIII, no qual a personalidade é

necessariamente corpórea, e, na sequência, também no III, onde existe a

prescrição sobre a atenção com a mente e o corpo:É porque tenho uma personalidade

que sofro de grandes males.

Se eu não tivesse nenhuma personalidade,

de que mal poderia sofrer?

Portanto: a quem honra o mundo em sua pessoa,

a esse bem se poderia confiar o mundo.

A quem ama o mundo em sua pessoa,

a esse poder-se-ia entregar o mundo.

- - -

[O Sábio] Enfraquece as vontades e revigora os ossos.

Page 29: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

29

II.II.IIII. O “DAO” E LAO

Após Laozi, a religião taoísta, absorvendo parte de sua filosofia , elevou-o

à condição de figura mitológica do panteão chinês, num curioso ato de

contradição ao Dao-de Jing, cujos aforismas IV e XXV atentam para a

anterioridade do Dao em relação a Deus e, conseqüentemente, para a

impossibilidade de sua divinização ou personificação na forma de culto dos

antepassados.

“Ao afirmar que o Dao é anterior ao ancestral, Laozi procura evitar a

divinização do próprio homem.”, numa clara crítica ao título Di (ancestral

primordial) utilizado por todos os imperadores chineses.39

Tal divinização, contudo, deu-se de forma assemelhada ao budismo, na

figura de guia espiritual (Tai Shang Xuan Yuan Huang Di40 ou Tai Shang Lao

Jun41), aspecto bem diverso da que ocorreu com outras figuras búdicas, como

Jesus Nazareno42, por exemplo, pois “essa espécie de taoísmo, cuja principal

força reside no exorcismo e na magia (é) até hoje transmitido por herança, pela

metempsicose, na família Dchang, de forma semelhante ao dalai-lamismo.”

Ironicamente, nesses títulos canonizantes se infere o caráter místico da

reinterpretação religiosa de Laozi, e não mágica, de onde se conclui que “nada

disso tem a ver com Lao-Tzu, da mesma forma como a bondade do destino

impediu que ele fosse eleito papa do taoísmo.”43E, em outras palavras, mais

sintéticas a respeito das origens da religião taoísta:O taoísmo nada mais é do que a religião popular animista da

antiga China, que, mesclada com doutrinas hindus, foi levada a

um determinado sistema [...] que, ainda por cima, era diferente

39 O culto aos antepassados era admirado por Confúcio. A oposição laoziana está no aforisma IV: “Eu não sei de quem ele [o Dao] possa ser filho. / Parece ser anterior a Deus.” Deus (cujo sentido em Laozi é diverso, a depender do aforisma) recebe também a acepção de “ancestral” em várias traduções, indicando a crítica de Laozi à messianidade e à personificação de Deus.

40 “Sublime Imperador de Mística Ordem”.41 “Sublime Senhor Lao”42 Considerado uma reencarnação de Buda para os hindus. Há, na tradição hermética

trismegista, relatos sobre sua viagem para a Índia em busca do aperfeiçoamento espiritual, de onde, inclusive, o nome “Cristo”, “Krishna” em sânscrito.

43 WILHELM, R. Pg. 22.

Page 30: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

30

em cada lugar e só em conseqüência da união política das

respectivas tribos constituiu um aglomerado.

E, sobre o papel da reinterpretação religiosa da obra laoziana:[...]não é o fundador da atual religião taoísta. O fato de ele ser

venerado [...] não nos deve confundir. É natural que, desde

tempos antigos, não faltassem pessoas na China que

soubessem inserir os seus próprios pontos de vista no Tao-te

King, quer tentassem unir os seus ensinamentos com os de

Confúcio, ou encontrassem nele uma tendência ao cultivo da

contemplação; quer buscassem ajuda para produzir o elixir da

vida ou a pedra filosofal [...], quer o utilizassem para as teorias

militares ou para o código penal, quer o relacionassem como o

politeísmo animista ou com determinados ritos vegetarianos ou

antialcoólicos ou compilassem do texto as fórmulas mágicas

para abençoar ou amaldiçoar, e até nos círculos das

fraternidades políticas secretas, que planejavam a queda do

poder constituído com o uso da magia dos espíritos, em

diversas épocas. Mas, como afirma com muito acerto um

erudito chinês, todas essas tendências não passam de

incursões na obra de Lao-Tzu.44

II.II.IIIII. O DAO E A ALMA

Embora já se tenha visto que é inegável sua originalidade, parte do Dao-

de Jing foi alterado, e mesmo alguns epigramas foram inseridos. Isso não

compromete de maneira alguma o texto, pois, embora longe de sua glória

primeva, essas modificações são bem conhecidas no conjunto da obra, e citam-se

não exaustivamente: a seção IV e a VI, atribuídas a Huang Di (2697-2597 a.C.), O

Imperador Amarelo, primeiro e lendário imperador chinês e ancestral da tradição

taoísta, cuja correspondência laoziana está na seção XXV, inegavelmente mais

densa e complexa; a seção XIII; a seção XXXI; e a seção LXXIV, sobre a qual

44 Idem. Pg. 21.

Page 31: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

31

restam algumas suspeitas. Geralmente, essas seções são pormenorizações da

seção anterior, que buscam justificar determinada posição política como, por

exemplo, a pena capital (LXXIV completando a seção LXXIII).

Citaram-se tais modificações para exemplificar que o Dao-de Jing

também acumula conhecimentos espirituais transmitidos em outros tempos e

lugares. Esse fato não danifica a intervenção radical de Laozi contra a

religiosidade de sua época, mas, como já dito, dá-lhe uma dimensão ainda maior,

vez que o sábio de Gu Ren reinterpreta as tradições a partir de fontes ainda mais

antigas, preservando seus conteúdos.

O método precavido de somar entendimentos dá ao aspecto religioso de

Laozi uma enorme complexidade, que é também a complexidade de sua filosofia,

e que se pode demonstrar a partir do X° aforisma: Serás capaz de educar a tua alma para que ela abarque a

Unidade sem se dispersar?

Serás capaz de unificar a tua força e conseguir a delicadeza de

uma criança?

Serás capaz de purificar a tua visão íntima até torná-la

imaculada?

Serás capaz de amar os homens e governar o Estado de modo

que fiques sem conhecimento?

Serás capaz de, quando se abrem e se fecham

as Portas do Céu,

ser como a fêmea de um pássaro?

Serás capaz de, com a tua clareza e pureza interior,

Penetrar em tudo sem precisar de ação?

Produzir e alimentar,

produzir e não possuir,

agir sem guardar para si,

aumentar sem dominar:

eis a Vida secreta.

“Ficar sem conhecimento” refere-se ao conhecimento inato dos seres, o

mais elevado na doutrina taoísta – e igualmente considerado por Confúcio, de

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32

onde se extrai a crítica ao conhecimento, especialmente o científico, e o governo

baseado na intuitividade e espontaneidade (“produzir e não possuir”, “agir sem

guardar para si”, “aumentar sem dominar”), implicando, sempre, “penetrar em

tudo sem precisar de ação”. Essa idéia, a não-ação (Wu Wei), é a mais importante

em todo o taoísmo, e será oportunamente considerada.

“Ser como a fêmea de um pássaro” é alcançar a espiritualidade. A

metafórica imagem alada é a mesma da pomba-branca no Ocidente,

representação do espírito-santo.

Embora soe aos aurículos academicistas mera curiosidade incidental a

classificação espiritual nas religiões chinesas, comprova-se essencial conhecê-la

na medida em que é requisito para compreender a natureza da unidade do Dao

De Jing, da “energia ativa que atua no tempo […] de maneira completamente

independente, numa liberdade que corresponde à própria lei da enteléquia”45,

devendo o leitor estar à par de todas as peculiaridades que lhe conformam o leito

qual limo neolítico para uma perfeita interpretação de suas inclinações filosóficas,

religiosas, sociais, políticas, econômicas, etc... Há duas almas atribuídas ao Homem: o Shen (animus) ou alma

imaterial que emana da parte celeste e etérea do cosmos e

consiste na substância Yang [masculino]. Quando opera

ativamente no corpo humano é chamado Qi ou “sopro vital” e

Hun, quando dele se separa após a morte; e o Gui (anima), a

alma imaterial que emana da parte terrestre do universo, Yin

[feminino]. No homem vivo opera sob o nome de Po e na morte

retorna à Terra.46

A compreensão dos Espíritos no taoísmo consiste em suprimir a

materialidade do Gui e estimular a imaterialidade do Shen. Em uma vida que flua

continuamente imersa no Dao, os espíritos não tomam a forma de espectros

(fantasmas ou demônios, diversos das almas dos mortos). É o se mostra em LX: Quando o mundo é governado de acordo com o Tao,

os mortos não andam por aí como espíritos.

45 WILHELM, R. Pg. 127. “Enteléquia” é a essência aristotélica da alma.46 J.J.M. de Groot, The Religions System of China, vol. 4, pg. 5. In SPROVIERO, M.B.

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33

Isso não quer dizer que os mortos não sejam espíritos,

mas que seus espíritos não são nocivos aos homens.

E não só os mortos não são nocivos aos homens,

também o Sábio não lhes faz mal.

Quando, então, essas duas potências não se danificam

mutuamente,

suas Forças da Vida conjugam seus efeitos.

Logo, na harmonia, todos eles confluem suas energias beneficamente.

São nos períodos de convulsão social, descritos no aforisma LVII: “Quanto mais

proibições47 houver no mundo, / mais o povo empobrecerá”, que surgem os

fantasmas personificando essas desordens diante de tempos agitados, assim

como o messianismo corrupto dos “sinais e dos milagres”48, manifestações, em

todo o caso, abundantes na superficialidade do taoísmo animista.

47 A acepção é sem dúvida de tabus e superstições, vez que as proibições relativas às leis são citadas logo abaixo.

48 M.B. Sproviero. Pg. 251.

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34

Falhando na interpretação do Dao-de Jing e sem conhecer a fundo outros

autores orientais críticos, Hegel ressaltou “a falta de liberdade interior” na religião

chinesa, veementemente combatida por Laozi em LVII e que desde então

encontrou outras vozes concordantes, como Cheng Yi Chuan, no século II d.C.49

II.III. NA IMANÊNCIA DO CURSO: I CHING

No, his mind is not for rentTo any god or government.

Always hopeful, yet discontent,He knows changes aren't permanent,

But change is.Rush - Tom Sawyer

O cerne da cisão filosófica e religiosa alavancada por Laozi, com a qual

se começou o capítulo anterior, está baseada no I Ching50, o Livro das Mutações.

Escrito em uma era imemorial, anterior à invenção da escrita literária, através de

um conjunto de oito signos primordiais conhecidos como “trigramas” (três traços

sobrepostos, indicando, primariamente, elementos e fenômenos da natureza),

que, combinados entre si, formam sessenta e quatro hexagramas (dois trigramas

sobrepostos, indicando o estado ou processo relacionado com a síntese dos

trigramas elementares).

Os traços combinados são indivisos ou contínuos, representando o

elemento criativo (celeste – masculino – pensar) e divisos ou interrompidos,

representando por sua vez o elemento receptivo (terreno – feminino - ser), e

49 M.B. SPROVIERO. Pg. 250. “Hoje acredita-se loucamente em maus espíritos, fantasmas e histórias fantásticas; isso só por não se iluminar previamente a razão”.

50 Tradução literal: “Livro Clássico das Mutações”. “Ching” é a mesma palavra que “Jing” ou “King”, e adjetiva na China todas as obras consideradas fundamentais. Existem suposições de que Confúcio assim chamava sua coleção de tais obras.

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35

constroem “todo o mundo das constelações cronológicas”51, associando-se com

os elementos naturais (Céu, lago, fogo, relâmpago, vento, água, montanha,

Terra), com as direções (noroeste, oeste, sul, leste, sudeste, norte, nordeste,

noroeste), além de partes do corpo, relações de parentesco, estados mentais, e

assim sucessivamente.

A composição a partir de Kua (traços) integrados determina que o

“princípio mais importante do Livro das Mutações é o de que há uma relação

universal e harmônica entre o macrocosmo e o microcosmo”. Como se verá a

seguir, a reinterpretação oficial do I Ching desconsiderou, para fins políticos, esta

que é sua revolucionária, subversiva, e portanto natural conclusão.

Laozi, em sua análise original do I Ching, viu na natureza uma constante

não acidental, desordenada, estática ou mecânica, mas alternante e

transformativa, na qual está “o âmago e a Grande Polaridade (T'ai Gi), a unidade

que transcende toda dualidade, todos os fatos e mesmo toda a existência”52, a

partir das três mudanças comuns a todos os fenômenos: transformações cíclicas (um estado que passa ao seguinte mas volta a si como conseqüência da

mudança, qual o nascer e o pôr-do-Sol, as estações climáticas,...);

desenvolvimento progressivo (a despeito da passagem de um estado ao outro,

“a linha de desenvolvimento não retorna a si mesma […] cada dia de um homem

contém a soma das vivências antecedentes acrescidas da vivência de cada novo

dia”53); e a lei imutável a essas mudanças (os movimentos anteriores são

definidos, simples e graduais, e, por isso, a criação se dá “de maneira muito

suave e imperceptível, de modo que não se perde a visão geral”54. É essa

cadência no curso da criação que permite tanto a variedade dos fenômenos

quanto sua apreensão imediata pelos seres).

Nos termos do I Ching, os ciclos equilibram dinamicamente os opostos, o

desenvolvimento dos eventos é um processo e a lei imutável é justamente a

inevitabilidade da mudança, como precisamente definido por Neil Peart e Pye

51 R. Wilhelm. Pg. 126.52 R. Wilhelm. Pg. 126-127.53 R. Wilhelm. Pg. 127.54 Idem.

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36

DuBois55, na composição que é a quintessência do Rock progressivo: “changes

aren't permanent, but Change is”. Os ciclos e os processos de desenvolvimento

estão permeados pela energia criadora que os faz renascer continuamente, e

essa força criativa é anterior a tudo, incluindo a Criação.

A contribuição marcante de Laozi foi definir essa energia, Wu Gi

(literalmente “infinito”, “sem fronteiras”, “definitivo”, “sem vigas”, ou, no

entendimento laoziano, não-princípio), por ele chamada de Dao, como o

fundamento de sua compreensão filosófica do mundo, pelo que o símbolo por

excelência do taoísmo é justamente o círculo vazio, indicador dessa negação, e

não o muitíssimo mais popular Taijitu, o diagrama bicolor mais usado para

representar o estado posterior Tai Gi (“grande viga”)56, desdobramento do

imanifesto para as oposições que permitirão a identificação da variedade infinita

do mundo manifesto

Assim, tem-se a explanação didática das três fases nas quais a Unidade

do Dao se desenvolve de imanifesto a manifesto, de não-ser a ser, de nada e

vazio ao mundo fenomenológico que, por sua vez, está inexoravelmente

vinculado ao Dao, pois é apenas o desdobramento das variedades imanentes da

Unidade:O Tao gera o Um.

O Um gera o Dois.

O Dois gera o Três.

O Três gera todas as coisas.

Atrás de todas as coisas há escuridão

e elas tendem para a luz,

e o fluxo da força dá-lhes a harmonia.”

XLII

55 Neil Peart, da banda Rush, é um dos grandes bateristas e letristas da história do rock, autor, em conjunto com o compositor Pye DuBois, da referida canção “Tom Sawyer”

56 São muitas as representações para o Tai Gi. Outra bastante popular é a versão chamada de Taegeukgi, vermelha e azul, presente na bandeira da Coréia do Sul.

Page 37: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

37

Observe-se que a negação que marca o Antecedente de tudo não indica

negatividade, pois, como já foi visto, seu uso data de uma época em que ainda

existia a voz média como meio termo entre a afirmação e a negação absolutas, e,

com a degradação da linguagem, é a mera negação o meio que resta para

descrever aquele sentido que é em Laozi muito mais complexo e descritivo. Pela

mesma razão, não é também cético ou pessimista.

“O Dao anterior ao Um é, em sua ontologia, absolutamente

transcendente”, e, como decorrência, “o Um é o Dao em sua afirmação”. Ao

utilizar o termo “gerar”, Laozi dá à emanação criadora um sentido panteísta,

similar ao que se verá abaixo em Spinoza, embora indeterminado, pois a palavra

não implica o panteísmo por geração57, tal qual “criar” não implica o

criacionismo58. A questão primordial, portanto, permanece sabiamente em aberto,

e, mesmo permeando toda a filosofia do Dao-de Jing sem contradições, são o

principal alvo das críticas hegelianas que serão oportunamente colocadas.

Curiosamente, o trecho seguinte, conforme referido anteriormente, foi

“implantado” no Dao-de Jing por Laozi, e sua autoria é creditada ao Imperador

Amarelo, muito referido por seu domínio dos princípios do I Ching. Serve para 57 SPROVIERO, pg. 243: “O princípio criando o mundo de sua própria substância, como um

pai gera o filho de seu próprio sangue”.58 Idem: “Deus gerando tudo sem nada, nem de outro nem de sua substância”.

Page 38: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

38

ilustrar como a interpretação do Livro das Mutações no taoísmo tem raízes tão

antigas quanto a própria China:O Tao flui sem cessar.

No entanto, na sua atuação, ele jamais transborda.

Ele é um abismo; parece o ancestral de todas as coisas.

Abranda a sua dureza.

Desata os seus nós

Modera o seu brilho.

Une-se com a sua poeira.

É profundo, mas como é real!

Não sei de quem possa ele ser filho.

Parece ser anterior a Deus.

IV

O pensamento ocidental mais próximo a Laozi parece ser o de Baruch de

Spinoza, o filósofo monista luso-judaico-holandês: “O mundo, perpetuamente, existe, é […] O mundo nunca foi

criado, nunca será destruído. Ele apenas, simples, profunda e

eternamente, é. Isso, pois, quanto à estrutura do mundo […] E

quem é Deus? […] Deus é o mundo. Ele tudo penetra, é

perpétuo e completo. Ele é.”59

Em sua colossal “Ética demonstrada à maneira dos geômetras”, Spinoza

identifica, tratando de Deus, sua substancialidade. “Deus é substância; ora, é da

essência da substância que ela existe; portanto é inconcebível supor que Deus

não existe”:“Deus, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de

atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e

infinita, existe necessariamente.”

Proposição XI.60

59 Will Durant. Comentários à Ética... Pg. 412. O que interessa aqui é exclusivamente asseverar, em que pesem suas diferenças, a presença do monismo filosófico, como um elemento destoante e radical, também no pensamento europeu.

60 Spinoza Pg. 74.

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39

Em Laozi, o Dao é em si tudo, mas também anterior à tudo e, portanto, a

Deus, uma construção religiosa que deturpa a busca pela essência, isso se não

tomado como um mero nome para descrever essa essência, o que são coisas

diferentes. Demonstrar esse aspecto, como faz exaustiva e heroicamente Spinoza

ao longo de seus escólios, tampouco é seu objetivo, pois a “demonstração” cabe

à cada um que reflita sobre si mesmo. É inegável, entretanto, que as conclusões

de Spinoza sobre a “substância” sejam muito próximas da unidade do Dao: A substância absolutamente infinita é indivisível; Fora de Deus

nenhuma substância pode ser dada e conhecida; Tudo o que

existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser

concebido.

Proposições XIII, XIV e XV.

Ao classificar a substância de Deus como eterna, infinita e indivisível,

Spinoza declara-se monista e contradiz a irredutibilidade dualista do pensamento

e da existência típica do cartesianismo, além de comprovar, por seus meios, que

Deus não é em si determinado, ao contrário do que diz Hegel apenas

reproduzindo os seus próprios valores religiosos.

Spinoza não diferencia os termos, talvez os tendo por complementares,

mas, no pensamento oriental, originalmente a partir da matemática hindu, “infinito”

identifica algebricamente aquilo que pode ser contabilizado, mas cuja

continuidade gera a necessidade de uma estimativa. Já o eterno é a substância

mesma da religião, inescrutável e além de todos os sentidos e de toda a

capacidade humana. Em uma palavra, é o Dao. Ao diferenciar os dois termos,

evitam as confusões comuns na razão ocidental, que muitas vezes toma infinito

por eterno e vice-versa, e classificações matemático-filosóficas quais “infinito

potencial” e “infinito real”.

Laozi vai, como é praxe, para além mesmo do valente Spinoza. Ser e

não-ser, manifesto e imanifesto, “do ponto de vista do Dao, são idênticos, já que

tudo nele é manifesto […]”, pois tudo pode ser contemplado. A cisão entre

pensamento e existência, portanto, inexiste em Laozi. Se Platão busca na

abstração do mundo das idéias, sob as sombras de vagas brumas, a

Page 40: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

40

compreensão da realidade, em Laozi o interior de cada ser contém tal

compreensão, como sementes inconcebíveis e invisíveis na forma real, mas

inteiramente inequívocas, pois se transformarão inevitavelmente em árvores: [...] Dirigir-se para o “Não-ser” leva

à contemplação da maravilhosa essência;

dirigir-se para o Ser leva

à contemplação das limitações espaciais.

Pela origem, ambos são uma coisa só,

diferindo apenas no nome.

I

Mas a relação não é absoluta, em si determinada, dispondo de

complexidades desveladas de acordo com o prisma com o qual se a observa, pois

também, “do ponto de vista do sujeito finito, são correlativos [...]”:Se todos na Terra reconhecerem a beleza como bela,

desta forma já se pressupõe a feiúra

Se todos na Terra reconhecem o bem como o bem,

deste modo já se pressupõe o mal.

Porque Ser e Não-ser geram-se mutuamente [...]

II

E, “a fim de exprimir algo além do sujeito, o manifesto é subordinado ao

imanifesto”61:[…] Todas as coisas sob o Céu nascem no Ser.

O Ser nasce no Não-ser.

XL

É notável perceber que os princípios do Livro das Mutações e sua

interpretação no Dao-de Jing assemelham-se, dentre outras descobertas

científicas62, à lei da conservação das massas por Mikhail Lomonosov, plagiada e

reproduzida por Antoine Lavoisier na sentença: "Numa reação química que ocorre

61 B. Sproviero. Pg.62 Há uma impressionante relação entre os 64 hexagramas e os 64 pares

cromossômicos na espécie humana, dentre outras “coincidências”.

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41

em sistema fechado, a massa total antes da reação é igual à massa total após a

reação", e em sua famosa variante filosófica: “Na natureza, nada se cria, nada se

perde, tudo se transforma.”63

Coube à Albert Einstein, com a sua teoria da relatividade, ampliar essa lei,

comprovando que em toda reação existem diferenças de massa compensadas

com a consequente liberação de energia. E o I Ching, antecedendo-os em pelo

menos três mil anos, estendeu o alcance dessa lei ao inimaginável, inclusive

indicando os contornos da “Criação”.

É precisamente “energia”, embora sua etimologia (do grego “trabalho”,

“realizar ação”) não traduza exatamente a misticidade energética que se busca

compreender, o que melhor qualifica as mutações do I Ching e o movimento

contínuo e imperceptível do Dao proposto por Laozi. Portanto, válido o

pensamento do cineasta, psicólogo, tarólogo e escritor Alejandro Jodorowsky:Hay un inconsciente individual, familiar, colectivo, social,

histórico, cósmico, y debajo de todo eso está ese ser, esa cosa

impensable que llamamos dios. Es energia, que no sabemos

que es, esta es nuestra base... e hasta aí podemos llegar.64

Eis uma das mais ilustrativas passagens indicativas dessa afluência,

precisamente comentada na seqüência pelo sinólogo germânico Richard Wilhelm:O espaço entre o Céu e a Terra

é como uma flauta;

vazia, ainda assim, inexaurível;

soprada, mais e mais sons produz.

V

Essas duas forças primordias das quais nasce, como terceiro

termo, o mundo visível, são o Céu e a Terra […], comparados a

um instrumento musical de sopro, do tipo da flauta.65 O

63 Anotações escolares de Andhré-Luiz Tisserant. Junho de 1998.64 Entrevista sobre seu livro “Psicomagia” com Fernando Sanchéz Dragó, da rede espanhola

TVE.65 Em algumas traduções, a alegoria utilizada é “fole”, que expande e contrai

ininterruptamente apenas com a passagem aérea do Dao.

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42

instrumento mesmo é vazio, mas o sopro faz brotar dele sons,

e quanto mais é soprado, maior a variedade de sons

produzidos por ele. Todas as melodias infinitas surgem em

seqüência interminável, mas são captadas pelo instrumento,

que por si só não é som. A flauta é a Terra; o sopro, o Céu.

Quem, no entanto, produz o som? […] Em última análise, é o

Tao.66

Outro trecho de mesma inclinação é o do sexto epigrama, excerto

atribuído ao lendário Huang Di, o Imperador Amarelo (2697-2597 a.C.), um dentre

outros 8 governantes iniciais dotados de conhecimento sobre-humano e

considerado o ancestral de toda a etnia Han e da tradição taoísta:O espírito do vale não morre nunca;

ele é a mulher misteriosa.

A porta da mulher misteriosa

é a raiz do Céu e da Terra.

Ininterrupta, assim como perpétua,

ela age sem esforço.

O vale é a profundidade e o vazio, que, ao se preencher com o espírito,

adquire vida (matéria). A matéria por si só é a mera possibilidade de existência.

Pertence, pois, ao não-ser, ao Dao.

II.III.I. A DOUTRINA YIN-YANG: “XINGA O I CHING!”

A doutrina yin-yang é apenas um dos componentes da impressionante

cosmologia dos tempos do taoísmo pré-literário do Imperador Amarelo, e seu par

representa a materialidade terrena dos espíritos Shen e Gui.

Sua exclusividade doutrinária para fins de interpretação filosófica é muito

posterior, e derivada dos interesses escusos da política imperial tirânica em

reduzir o sentido original do taoísmo - não outro que vincular o homem à sua

natureza e, conseqüentemente, à liberdade e autonomia, aspectos sempre

66 R. Wilhelm. Pg. 133.

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43

contrários ao controle e à dominação.

Assim nascia, com o karma dos natimortos, uma doutrina – jamais uma

filosofia – concretamente pegajosa e aparentemente conciliadora, com o intuito de

justificar na sabedoria ancestral chinesa os ególatras autocratas do futuro, em

nada semelhantes aos reis que inspiraram a figura do “Sábio” laoziano:“[...] poderíamos considerar esses pares [ser e não ser;

manifesto e imanifesto] como complementares, mas não dizer

que a realidade é uma união de partes em equilíbrio. Não se

deve confundir o pensamento de Laozi com a doutrina Yin-

yang da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.”67

O lapso temporal da dinastia Han é imediatamente posterior ao

surgimento das motivações covardemente ideológicas que criaram o “yin-

yanguismo”, durante a dinastia Qin, iniciada por Qin Shihuang, o unificador da

China e, por tal razão, chamado de Primeiro Imperador. Foi mais conhecido no

ocidente por ter sido enterrado com seu megalômano exército de terracota,

devidamente acompanhado de um número desconhecido de serviçais e

concubinas mantidos vivos sob a terra para bem serví-lo na passagem para o

além.

Reinou no intervalo de 260 a 210 a.C, quinqüênio de tragédias

largamente superiores, para a historiografia chinesa, às provocadas pela

medonha Revolução Cultural de Mao Zedong: milhares de livros considerados

insurgentes foram queimados, juntamente com seus autores; milhares de

intelectuais e filósofos foram assassinados; obras gigantescas, incluindo a

precursora da Grande Muralha, foram construídas utilizando como mão de obra a

população local reduzida à escravidão; os livros clássicos que sobreviveram à

loucura piroclástica foram reinterpretados de maneira a justificar a centralização

política e a submissão forçosa dos demais reinos; discípulos renomados de

Confúcio e de Laozi foram exterminados como “cães de palha”, não sem antes

verem as obras de seus mestres serem deformadas para justificar a nova era de

tirania.

67 Sproviero. Pg. 213.

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44

A respeito do imperador, proferiu, sem se exceder na angústia, o filósofo

confucionista Xun Zi: Qin possui o coração de um tigre ou um lobo; [e é] avarento,

perverso, ávido para o lucro, e sem sinceridade.

Apenas para instigar a curiosidade a respeito da crueldade desse líder,

diga-se que, mesmo depois de escavado todo o seu exército de terracota, a

tumba permanece (e provavelmente permanecerá) inviolável. No meio rural

chinês ainda são fortes as superstições que conectam a abertura do mausoléu à

liberação do espírito altamente vingativo do Imperador.

Por fim, o mítico Livro das Mutações foi também mutilado pelos coups de

pourquoi da dinastia Chin:O I Ching escapou da grande queima de livros feita pelo tirano

Ch'in Shih Huang Ti, no tempo em era considerado um livro de

magia e adivinhação, o que levou a escola de magos das

dinastias Ch'in e Han a interpretá-lo segundo outras visões. A

doutrina do yin-yang foi sobreposta ao texto.68

Eis resumidamente, os antecedentes de Mao, do Mal e da popular

doutrina reduzida à esfera bicolor do yin-yang que a ignomínia ocidental toma

como a grande contribuição filosófica do extremo oriente...

68 Acessado em 10 de maio de 2009 - http://pt.wikipedia.org/wiki/I_ching

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II.IIII. NOS MEANDROS DO CURSO:

MAROLAS DIALÉTICAS.

II.IIII.I. O “DAO” FILOSÓFICO

Antes de se ater propriamente na superação da dialeticidade

característica do pensamento ocidental, volta-se brevemente à questão da

relevância de Laozi para o pensamento ocidental, e, logo após, do preconceito

relacionado à filosofia oriental.

Sobre o primeiro aspecto, diga-se apenas que Laozi, “em todo o seu

opúsculo, ele não cita algum nome histórico, tampouco se preocupa com o seu

momento histórico. Por isso ele desaparece, para a China, em nebulosas

distâncias, uma vez que ninguém lhe pode seguir o rastro. É justamente esse o

motivo pelo qual exerceu tão grande influência na Europa”, ao contrário de

Confúcio, centrado em sua realidade histórica, fartamente documentada nos

Analectos, tornando-se, dessa maneira, incompreensível fora dela. “Por essa

razão, ele é até hoje estranho à vida intelectual européia.”69

Há, evidentemente, muitos olhares vesgos do academicismo que, de

soslaio e sob as lentes espessas de óculos seculares, são lançados pelos

“Abades do Conhecimento”70 sobre uma apreensão multidisciplinar e a partir de

diversas tradições de conhecimento.

Hegel já demonstra a importância de seu aparecimento neste trabalho por

sua reação pueril (idêntica em Heidegger) a esse pormenor:“Em primeiro lugar, há a assim chamada filosofia oriental. Mas

ela não entra no corpo e no âmbito de nossa apresentação, ela

é apenas algo provisório de que temos de falar.”71

69 R. Wilhelm. Pg. 1570 Os intelectuais do claustro acadêmico. A expressão parece sensata, pois a origem de educandários para os conhecimentos específicos é religiosa, e a palavra “universidade”, do latim, representa o mesmo que “católico”, do grego, todas conduzindo às pretensões universalistas romanas e, depois, européias, e ao maior vício do pensamento ocidental: o de enxergar em si mesmo a origem e o destino de tudo, mesmo diante das evidências históricas que tornam a Europa, até a Era Moderna, a periferia do mundo conhecido.71 HEGEL, F. Preleções sobre a história da filosofia.

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A réplica a essa venenosa destilação eurocêntrica - que, em nossa época,

chega a levar autores da afamada Escola de Frankfurt a afirmações

extremamente bizarras, como a que denega a importância do jazz em favor de

uma única música instrumental “verdadeira”, no caso a mumificada música

clássica européia - deve começar com a mais óbvia das constatações: “O que garante a objetividade do mundo em que vivemos é o

fato de que este mundo é comum a nós e aos outros seres

pensantes. Ao nos comunicarmos com os outros homens,

recebemos deles raciocínios harmoniosos já consagrados.

Sabemos que tais raciocínios não partem de nós, e, ao mesmo

tempo, reconhecemos neles, por causa da harmonia, o

trabalho de seres racionais como nós. E na medida em que tais

raciocínios pareçam adequar-se ao mundo conforme o

percebemos, podemos inferir que tais seres racionais viram o

mesmo que nós; eis porque sabemos que não estivemos

sonhando. É exclusivamente essa harmonia, essa Qualidade,

se preferirem, que constitui a base da única realidade que

poderemos conhecer.”(Pirsig, Robert. Obcit. pg. 255). 72

Imediatamente, verifica-se que a curiosidade humana, em diversos

tempos e por diversos gênios, direcionou-se exatamente sobre as mesmas

questões, impingindo-as com as mais variadas compreensões. E pouco há de

mais harmonioso nos fragmentos de sabedoria que acumulamos do que a “assim

chamada filosofia oriental”.

Toda vez que existe uma crise no conhecimento de uma época, isso

representa um esgotamento qual o que presenciamos agora e que já foi descrito

por milhares de autores passados e recentes. Do satírico Petrônio ao épico

Граф Лев Николaевич Толсто́й73, do escarnicador Voltaire à saga abyayalana

em Manuel Scorza, da dissonância de Tom Zé à vigorosa pintura de Klimt, todos

eles denunciaram, compartilhando um destino de isolado desgosto, os rumos

72 PIRSIG, Robert. Ob. Citada. Pg. 255.73 Na condição indiscutível de maior criador da literatura universal, Tolstói criou métodos pedagógicos originais e aderiu a uma filosofia de acento anarquista, baseada no pacifismo e no “não-fazer”, o que o torna legatário, como ele próprio confirmara, da tradição taoísta.

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decadentes da humanidade.

Perceptível, pois, que a carência de novos paradigmas deve encontrar o

sendeiro dos caminhos que se polifurcam em muitos e outros pensadores de

muitos e outros períodos, pois, como referiu Pirsig, são homens como nós,

dotados de nossas habilidades, e são eles que materializam o único mundo (seja

ocidental, oriental, atlante ou ciclope) que nos é dado e que é por nós erigido.

A oposição comum, de feições torpemente hegelianas, de que

determinada compreensão filosófica sobre um tema, por pertencer a outros

modelos de espaço-tempo-civilização, deve ser desconsiderada filosoficamente,

não encontra, como visto, nenhuma justificativa racional, sendo incoerente em si

mesma e inútil para uma argumentação crítica.

Por mais que supostamente não exista uma chamada “filosofia oriental”,

devemos atentar, seguindo a trilha dos bodes de Enrique Dussel74, que a filosofia

da qual geralmente os europeus se consideram herdeiros legítimos, tampouco

gotejou do Mamilo da Ásia75, mas da Ásia Menor, nas colônias persas da Grécia,

já imiscuída de tradições milenares como o pensamento egípcio, o mais influente

na história de boa parte do mundo conhecido76.

II.IIII.II. O “DAO” A-DIALÉTICO

Para compreender o porquê de se situar a obra de Laozi numa análise

conjunta também de Marx e de Hegel, será necessário apontar as críticas que

fazem entre si, num lento desvelar de interessantes semelhanças e abissais

diferenças, evidentemente cabendo a mim o papel de interpor a suave e

devastadora torrente do córrego laoziano, vez que limitações físicas impediram

sua argüição nos tempos modernos.

Sobre tais e quais hegelianismos abstratamente enraizados na

consciência ocidental falar-se-á exaustivamente na seqüência, antecipando-se,

contudo, a bovina e cáustica baba elástica pendente na crítica de Marx, referente

74 1492: El encobrimiento del otro.75 Referência anatômica à condição peninsular da Europa em relação à Ásia. 76 Não é à toa que as Escolas Ocultistas e Maçônicas veem nas tradições egípcias a chave

para a compreensão da cultura ocidental.

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48

à “racionalização” de elementos que não poderiam ser supra-sumidos e/ou

considerados a partir da razão:“Por um lado, a existência que Hegel supra-sume na filosofia

não é, portanto, a religião, o Estado, a natureza efetivas, mas a

própria religião já como um objeto do saber, a dogmática,

assim como a jurisprudência, a ciência política, a ciência

natural. Por um lado, portanto, está em oposição tanto à

essência efetiva quanto à ciência imediata não filosófica ou aos

conceitos não filosóficos desta essência. Hegel contradiz,

portanto, seus conceitos correntes.”77

É com base nessa perspectiva que Marx gradualmente desenvolve a

transposição da dialética idealista-histórica para a sua dialética materialista-

histórica, cujo cerne se encontra no prólogo da “Contribuição à crítica da

economia-política”, que trata da revisão crítica da filosofia do direito de Hegel: “Mi investigación desembocaba em el resultado de que ni las

relaciones jurídicas ni las formas de Estado pueden explicarse

por si mismas ni por la llamada evolución general del espíritu

humano, sino que radican em las relaciones materiales de

vida, cuyo conjunto resume Hegel, siguiendo el precedente de

ingleses e franceses del siglo XVIII bajo el nombre de

'sociedad civil'.”78

Necessário, também, antever as linhas a serem percorridas nessa

tentativa de imersão taoísta para uma crítica generalizada à totalidade ocidental -

tanto por não ser a totalidade que se nomeia79 quanto nem propriamente ocidental

- e, em conseqüência, à teoria e prática jurídicas.

É notável que os estudiosos orientais vejam em Hegel, e não em outros

77 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Pg. 131.78 K. Marx. Obras Fundamentales, I. Prólogo. Pg. XII. 79“O Tao que pode ser pronunciado

Não é o Tao eterno. O nome que pode ser proferidonão é o Nome eterno.[…]Pela origem, ambos [ser e não-ser] são uma coisa só,diferindo apenas no nome.”

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49

autores, como Heidegger80, uma espécie de concepção intermediária entre as

vertentes filosóficas imensamente distintas da Europa e da Ásia Média (península

índica) e Extrema (China, Indochina e Japão).

Isso porque Hegel resolve o problema filosófico sob a perspectiva do

“Espírito Absoluto”, da mesma maneira que “o Vedanta dos hindus, o Caminho

dos Taoístas, e até o Buda […] considerados monismos absolutos, semelhantes

ao que Hegel idealizara”81.

Apesar disso, difere do monismo oriental ao aniquilar seu alcance

imaginadamente “universal” com o determinismo característico da racionalidade-

positivista-científica do século XVIII. Mas é esse ímpeto de retorno ao metafísico

(embora imperfeito em Hegel, vez que não compreende sua indeterminação

essencial, ou seja, não abrange sua misticidade) que o torna mais próximo do

pensamento oriental clássico do que nenhum outro.

Pode-se claramente apreender na dialética hegeliana não apenas um

retorno às concepções esquecidas de Heráclito, buscando a plenitude na relação

das contradições que “ao mesmo tempo que se antagonizam, também se

identificam”82, mas a similaridade de suas fases (tese, antítese, síntese) com a

tríade das transformações do Dao (O Dao gera o Um. O Um gera o Dois. O Dois

gera o Três)83.

Contudo, o que mais o assemelha a Laozi é a construção idealista de seu

sistema totalizante, que “subordina a dialética ao espírito”84. E já se procede à

errata, vez que não há propriamente subordinação, como indica a pedagogia

superficial de obras acadêmicas meramente descritivas, mas a insuficiência do

idealismo para explicar a dimensão espiritual. Esse dilema foi percebido por Hegel

tanto quanto por Laozi, e, embora de forma mais simplória, também Marx se

80 Uma abordagem sobre a técnica em Heidegger basta para compreender tais motivos, pois sua crítica a uma ilusão de ciência natural aplicada enquanto técnica condiz com a concepção taoísta de que a técnica é “irromper o ser, cultivar o ser”, ao invés de “montagem e fabricação de idéias” (Sproviero, B.M. pg. 32-33).

81 R. Pirsig. Pg. 240.82 Ávila Fagúndez, Paulo Roney. Direito e Taoísmo. Pg. 297. Nota 577.83 R. Wilhelm. Pg. 133. “O movimento dialético de Hegel, que abrange a tese, a antítese e a

síntese, no qual a síntese se converte em tese e ponto de partida da continuidade, baseia-se rigorosamente na mesma concepção enunciada por Laozi.”

84 Ávila Fagúndez, P.R. Idem.

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50

referiu exatamente à ele ao falar da “natureza humana”, como veremos abaixo.

Na sua chautauqua85 reconstitutiva da vida de Fedro, Robert Pirsig

acompanha a evolução e a resposta dada por Hegel ao dilema: “Creiam-me, quando se encara o mundo não como uma

dualidade de matéria e espírito, mas como uma trindade

composta de mente, matéria e qualidade, a arte da

manutenção de motocicletas e outras artes assumem uma

dimensão que jamais possuíram […]. Especulando sobre a

relação entre Qualidade86, mente e matéria, ele deduziu que a

Qualidade é que dava origem à mente e à matéria […] Queria

apenas dizer que na fronteira do tempo, antes do processo de

discriminação de um objeto, deve existir uma consciência de

natureza irracional que ele denominava consciência de

Qualidade. Só se pode estar consciente de ter visto uma árvore

depois que a árvore foi vista. E entre o instante da visão e o da

consciência deve existir um lapso de tempo. Podemos ter a

impressão de que esse lapso não merece a mínima

importância. Mas não há absolutamente nada que justifique a

idéia de que esse intervalo é irrelevante.

O passado existe apenas em nossa memória, o futuro, apenas

em nossos planos. O presente é a única realidade que temos.

A árvore que captamos racionalmente, por causa daquele

pequeno lapso de tempo, está sempre no passado, e, portanto,

é sempre irreal. Qualquer objeto concebido em termos

intelectuais está sempre no passado, sendo, portanto, irreal. A

realidade situa-se no momento da visão, antes que se inicie o

processo de intelectualização. Não existe nenhuma outra

realidade […] a Qualidade é a mãe, origem de todos os sujeitos

e objetos […] o estímulo constante para que criemos todo o

mundo em que vivemos.” E como “tomar esse evento que nos

fez criar o mundo e incluí-lo no mundo que criamos é

85 História narrativa indígena.86 “Qualidade” é o próprio “Dao” numa visão ocidental que busca opor-se à cisão entre

conhecimento clássico (ciência) e conhecimento romântico (intuição). Vide aforisma... “Não sabendo seu nome/ Qualifico-o Tao”.

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nitidamente impossível […] não se pode definir a Qualidade.

Qualquer tentativa de definição só conseguirá abranger uma

pequena parte da Qualidade como um todo.

Hegel havia se referido a isso com seu conceito de Espírito

Absoluto. O Espírito Absoluto era independente também, tanto

da objetividade quanto da subjetividade.

Contudo, Hegel dizia que o Espírito Absoluto era a origem de

tudo, mas excluiu a experiência romântica desse 'tudo'. O

Absoluto de Hegel era completamente clássico, completamente

racional e completamente ordenado.”87

Esclarecedora, portanto, a crítica que o próprio Hegel opera ao comentar

o Dao De Jing em seu “Lições sobre a Filosofia da Religião”, e que se converte na

referida crítica ao próprio Hegel: “Na seita do Dao, o princípio tem que passar para o

pensamento, o elemento puro. É notável, a esse respeito, que

no Dao, a totalidade, surja da determinação da tríade. O um dá

origem ao dois, o dois ao três, o três ao Universo. Assim que o

homem procede como pensante, resulta a determinação da

tríade. O um carece de determinação, é a abstração vazia.

Para ter o princípio da vitalidade e da espiritualidade, necessita

progredir para a determinação. A unidade só é efetiva na

medida em que contiver o dois em si, e assim está dada a

Tríade. Com esse avanço para o pensamento, não se fundou,

no entanto, nenhuma religião espiritual superior às

determinações do Dao, que permanecem abstrações totais; e a

vitalidade, a consciência, o espiritual decaem, por assim dizer,

não só no próprio Dao, mas também no próprio homem

imediato. Para nós, Deus é o Universal, mas em Si

determinado; Deus é Espírito, sua existência é a

espiritualidade. Aqui [em Laozi], a realidade, vitalidade do Dao,

é ainda a consciência efetiva, imediata, de modo que ele é, na

verdade, algo morto como Laozi, mas adquirindo outras

87 R. Pirsig. Pg. 235-240.

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formas, subsiste vivo e efetivo em seus sacerdotes.”88

Esse trecho comenta o anagrama XLII89, um dos mais importantes da

obra, e, com a pretensão hipertrófica que o notabilizou, Hegel quis ir além das

críticas que “nem o adversário mais tenaz de Lao-Tzu, o profeta cultural Han Yü,

consegue fazer-lhe [outra censura] a não ser esta: que ele estava sentado num

poço e não enxergava o mundo; mas homem algum podia refutar a parte que ele

via”.90

Para Hegel, o absoluto é a unidade de conceito e realidade que se

autodetermina e emana (“Deus é em si determinado”). A emanação é a perda que

chega ao ser, sempre a se obscurecer. Em Laozi, o absoluto (Dao) ilumina

totalmente, pois cria e o que cria a ele retorna. Não é uma idéia estanque

(“abstração vazia”), uma origem a perecer, pois “manifesto e imanifesto, ser e

não-ser, geram-se mutuamente”91. Assim, contemplar é a visão total da luz, não a

recepção de sua emanação. A dualidade hegeliana, conceito-realidade, é

imaginária e se esvai num vago delineamento místico. E sua lógica, por fim, dá

apenas contornos pedagógicos ao inexprimível.

Marx, criticando essa concepção do idealismo determinista na análise do

capítulo final da Fenomenologia do Espírito, “O Saber Absoluto”, demonstra, ao

contrário de Hegel, estar plenamente consciente das severas limitações da

abstração que pensa a “consciência como evanescente”92:

“Como o homem efetivo enquanto tal não é construído como

sujeito, e por isto a natureza também não – o homem é a

natureza humana […] vemos aqui como o naturalismo

realizado, ou humanismo, se diferencia tanto do idealismo

88 Sproviero. Pg. 243.89 “O Tao gera o Um.

O Um gera o Dois.O Dois gera o Três. O Três gera todas as coisas.Atrás de todas as coisas há escuridãoe elas tendem para a luz,e o fluxo da força dá-lhes a harmonia.”Laozi, XLII

90 Wilhelm. Pg. 25. 91 Laozi, II.92 MARX, Karl. Ob Cit. Pg. 126.

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53

quanto do materialismo e é, a um só tempo, a verdade

unificadora de um e de outro. Vemos igualmente como só o

naturalismo é capaz de compreender o ato da história

universal.

O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e

como ser natural vivo, está, por um lado, munido de forças

naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo; estas forças

existem nele como possibilidades e capacidades, como

pulsões; por outro, enquanto ser natural, corpóreo, sensível,

objetivo, ele é um ser que sofre, dependente e limitado, assim

como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões

existem fora dele, como objetos independentes dele. Mas

esses objetos são objetos de seu carecimento, objetos

essenciais, indispensáveis para a atuação e confirmação de

suas forças essenciais. ”93

Marx exemplifica essa relação numa composição metafórica digna do

próprio Laozi, e que destaca explicitamente sua importância para este trabalho:“O sol é o objeto da planta, um objeto para ela imprescindível,

confirmador de sua vida, assim como a planta é objeto do sol,

enquanto externação da força evocadora de vida do sol, da

força essencial objetiva do sol.”94

Na seqüência, procede a demonstrar que a existência é efetiva e sensível

a partir de sua objetividade, de onde, embora delimite-se o reduzido alcance do

pensamento ocidental (o não-ser taoísta, por não poder ser apreendido pela

racionalidade, existe enquanto não-ser, não como fruto da imaginação como

dispõe Marx), coloca-se a questão do ser e do não-ser, pancreática95 no “Livro do

Caminho e da Vida”:“Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum

93 MARX, Karl. Ob. Cit. Pg. 127. 94 Idem.95 O pâncreas, esse pequeno órgão desprezado do corpo humano, é essencial e

insubstituível, sendo que seu comprometimento, seja pelo diabetes, câncer ou qualquer outra afecção, antecipa vertiginosamente a vida em 100% dos casos.

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ser natural, não toma parte na essência da natureza. Um ser

que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser

objetivo. Um ser que não seja ele mesmo objeto para um

terceiro ser não tem nenhum ser para seu objeto, isto é, não se

comporta objetivamente, seu ser não é nenhum ser objetivo.

Um ser não-objetivo é um não-ser […] não efetivo, não

sensível, apenas pensado, isto é, apenas imaginado, um ser

da abstração”.96

Referenciando-se diretamente à Hegel, cujo idealismo conduz à imersão

nas filosofias orientais, Marx aponta justamente aquilo que destoa da referida

aproximação com o taoísmo, ou seja, a sua artificialidade, sua abstração elevada

no momento de transcendência da dialética idealista, quando da passagem da

síntese à tese originária com o retorno da filosofia à religião através do

pensamento racional.

Marx se refere à dialética hegeliana como “falso positivismo”, “criticismo

apenas aparente”97, uma vez que “O homem que reconheceu levar no direito, na política, etc.,

uma vida exteriorizada, leva nessa vida exteriorizada,

enquanto tal, sua verdadeira vida humana […]. Por isso, em

Hegel, a negação da negação não é a confirmação da

verdadeira essência, precisamente mediante a negação da

essência aparente, mas a confirmação da essência aparente

ou da essência estranhada de si em sua negação ou a

negação dessa essência aparente enquanto uma essência

objetiva, habitando fora do homem e independentemente dele,

e sua transformação no sujeito.”98

Hegel, portanto, aparece como justificador da aparência, e não cultor da

essência. Em Laozi, como vimos, a essência, o não-ser/ser, assume outra

dimensão, mística, para além do conhecimento humano, de todo e qualquer

96 MARX, Karl. Idem.97 Manuscritos econômico-filosóficos. Pg. 130.98 Idem.

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pensamento, sendo por isso o “nada” (tanto em Marx quanto em Laozi) para o

qual a mente deve se voltar – não no intuito de apreendê-lo, mas de incorporá-lo.

“Incorporar”, esse termo vital para o entendimento do taoísmo, leva a um

pequeno colchete sobre a elaboração de Alejandro Jodorowsky ao criticar a

limitação da psicanálise freudiana, e que pode ser absorvida neste ensaio sem

problemas: No hay que matar al padre, hay que absorverlo, porque matar

al padre es un delírio de Freud, como la castración femenina es

un delírio de Freud. Diz él que la mujer tiene un 'complexo de

castración', que le falta un pénis. Pero no, la mujer no necesita,

tiene una vagina. Ella puede tener un complexo de que la

encierre' […] Al padre, hay que entrar en el padre y

compreenderlo y absorverlo.99

A consideração ocidental parte do problema que enxerga a totalidade

enquanto totalidade e não na eternidade do Curso. Ou, em outras palavras, que

enquanto na dialética o todo encerra conflitos em uma espiral ascendente de

eliminação-superação, na filosofia taoísta a dimensão não é “total”, mas eterna:

jamais se limita e implica continuidade, sendo todo conflito um equívoco a ser

desfeito, naturalmente, no seguimento do Dao.

Ressalte-se o abismo entre essa percepção e a da “filosofia ying-yang”,

que, como já foi visto, não passa de uma deturpação reducionista e deliberada de

correntes filosóficas chinesas e hindus clássicas(“i”, jainísmo, hinduísmo,

budismo, taoísmo, confucionismo) de maneira a imiscuir a idéia de “equilíbrio”

onde há um desequilíbrio que deve ser erradicado, e que é freqüentemente

confundida com as contribuições de Laozi.

Nele, não há equilíbrio entre opostos; o equilíbrio não depende de

sopesos numa balança (a própria balança e os contrapesos indicam

desequilíbrio), é condição inerente ao Curso, no qual, como já se frisou, não

cabem conflitos e nem oposições.

O “Dao”, embora não constitua equivalência à dialética, facilmente

99 Entrevista sobre seu livro “Psicomagia” com Fernando Sanchéz Dragó, da rede espanhola TVE.

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56

superando-a, é paralelo útil para viver um mundo sem o protagonismo da vontade

civilizatória de conduzir o Curso da existência, pois, no Dao-de Jing, tal vontade

não existiu desde sempre e nem representa a natureza humana.

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57

III. O LIVRO DO CURSO E DA VIDA

A borboleta, é ela própria que voa para a chama.

Sinto o pulsar do coração; sinal de que não faço bem.Фёдор Михайлович Достоевский100

O espírito da obra de Laozi diante de sua época, sobre a qual sente

“[...]fadiga em relação à história e […] não cita um único exemplo histórico em seu

pequeno livro.”101, deve iniciar a segunda parte deste ensaio qual uma adjacência

prostática da primeira parte.

Nesse propósito complementar, suplementar e integralizador, é didática a

exposição de Dazai Shuntai102: Ao contrário disso [de Confúcio], Lao-Tzu teria reconhecido

não ser a doença de que o reino sofria do tipo que se pudesse

tratar com alguns remédios, ainda que fossem os melhores,

porque o corpo do povo estava numa condição que não dava

nem para viver nem para morrer. Ele teria reconhecido que, na

verdade, em períodos anteriores, também haviam predominado

condições péssimas; mas, naqueles tempos, o mal teria sido

quase que incorporado em algum tirano e a grande reação da

fúria do povo teria se concentrado num nobre inovador,

impondo, com um ato enérgico, uma ordem nova, e melhor, no

lugar da anterior. Na época do fim da dinastia Tchou, as coisas

foram diferentes. Não existiram grandes vícios nem virtudes

fortes. É verdade que o povo sofria a pressão de seus

superiores, mas não tinha força para um ato enérgico de

vontade. As suas falhas não eram falhas e os seus méritos não

100 Dostoievski.101R. Wilhelm. Pg. 17.102R. Wilhelm. Pg. 15-16.

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eram méritos, e uma profunda falsidade interior corroera todos

os relacionamentos, de modo que aparentemente ainda se

falava do amor humano, da justiça e da moral como de ideais

elevados, enquanto internamente a ganância e a sede de

poder envenenavam tudo. Nessas circunstâncias, todo

movimento como vistas a querer ordenar as coisas só poderia

aumentar a desordem. Esse tipo de doença não pode ser

tratado por meios exteriores. O melhor seria, antes de tudo,

deixar que o corpo enfermo pudesse relaxar, a fim de se

refazer primeiramente pelas energias restaurados da natureza.

Teria sido esse o sentido do legado que ele deixara, ao sair do

mundo, nas cinco mil palavras do Tao-te King.

O “período anterior” ao qual se refere Laozi é o da passagem de

pequenos agrupamentos comunitários auto-sustentáveis, com lideranças naturais

e a libertação de tudo o que é supérfluo, e portanto valorizado, desejado e obtido

por meio da competição, para a chamada sociedade complexa (“dinastia Tchou”),

estágio civilizatório marcado pela construção de grandes cidades com governos e

leis institucionalizadas e amplo desenvolvimento tecnológico (domesticação de

animais, escrita, agricultura em larga escala, grandes obras de engenharia,

lideranças hierárquicas, etc...), alheio à técnica natural alcançada quando o

Homem deixa que suas necessidades sejam satisfeitas com o que está

disponível, e ao qual se seguiu a perda do vínculo com a natureza e a fragilidade

espiritual do ser humano.

De lá para cá, as dimensões dessa complexidade se ampliaram

exponencialmente, e com ela todas as conseqüências antevistas e solucionadas

no Dao-de Jing, pelo que a crítica laoziana de 2.500 anos atrás seguirá

perseguindo e atemorizando o mundo com a influência de sua apocalíptica

atualidade.

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59

III.I. ÀS MARGENS DO CURSO E DA VIDA: O TRIUNFO DA VONTADE103

III.I.I. O “DAO-DE”: CORAÇÃO SEM AMOR, IGUALDADE SEM JUSTIÇA, CONSCIÊNCIA SEM MORAL

[...]Só eu não sou piedosoSe eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria

aos sábados à noite [...]Iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos

pederastas ou barbudosEu me universalizaria no senso comum e eles diriam

que tenho todas as virtudesEu não sou piedoso

Eu nunca poderei ser piedoso.Roberto Piva - A Piedade.

O Dao-de, o Curso da Vida, está expresso detalhadamente na primeira

parte do aforisma XXXVIII, tão essencial à filosofia taoísta quanto revolucionário

na concepção do que é a natureza humana:Quem estima grandemente a Vida

nada sabe da Vida;

Quem menospreza a Vida

procura não perder a Vida;

por isso não tem Vida.

Quem estima a Vida

não age nem faz planos.

Quem menospreza a Vida

age e faz planos.

.

103Alusão ao filme de apologia ao nazismo “Triumph des Willens”, de Leni Riefenstahl, para simbolizar os efeitos deletérios da civilização, de suas vontades irrefreáveis, de suas virtudes desequilibradas, de seu amor-de-mula, de sua moral acachapante, de sua justiça irreal, de seu direito sintético, de suas cidades cinzentas, de sua tecnologia devastadora, de seu saber claustrofóbico, etc, etc...

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60

É na sua aplicação sobre as mazelas do desvirtuamento do curso que

tem significado o segundo termo metafísico essencial da obra laoziana: DE ou TE:

natureza, ser, espírito, energias, virtude, mas, principalmente, Vida, pois sua

definição chinesa é: “o que os seres recebem para nascer denomina-se 'te'.“104

Por razões facilmente apreensíveis em todo o texto de Laozi, “DE” não

possui a acepção de “virtude” presente em muitas traduções, e que “própria de

tratados moralistas posteriores, adapta-se ainda menos a Lao-Tzu do que a

Confúcio.”105 Apesar disso, é freqüentemente traduzida assim em Os Analectos,

expressando “uma palavra carregada de significado moral […] uma benção que o

Homem recebe do Céu”106. Visualizando em Confúcio um pensador da essência

moral, entende-se a restrição de seus vocábulos em comparação com Laozi.

Em Laozi, “a vida, em seu fenômeno mais elevado, não age, não tem

finalidades e intenções, […] não tem necessidade de desejar aprovação, pois é

inteiramente aceita por si mesma, porque gera, nutre, acrescenta, cultiva,

aperfeiçoa, mantém e abriga todos os seres. Ela produz sem possuir, atua sem

manter, promove sem dominar; nisso consiste o mistério da vida.”

A vida, nesses termos, prossegue num fluxo ininterrupto, sem início ou

fim, “ao sabor da imortalidade”107, porque para ela não existem os antagonismos

com as quais o organismo se debilita dia-a-dia e que o levam para um

fortalecimento aparente, pois que conduz “...a partir daí, para a rigidez e a

morte.”108: Eu, também, ensino o que os outros ensinam:

“Os fortes não morrem de morte natural.”

XLII

----------

Quando ingressa na vida,

o homem é tenro e fraco;

quando morre,

é duro e forte […]

104R. Wilhelm. Pg. 23.105R. Wilhelm. Pg. 23.106D.C.Lau. Pg. 14.107B. Sproviero. Pg. 247.108Wilhelm. Pg. 146.

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61

Por isso os duros e fortes

são companheiros na morte,

e os tenros e frágeis

são companheiros na vida […]

LXXVI

A força é sempre prevalência, violência, hiperdesenvolvimento,

desequilíbrio, cujos efeitos deletérios consomem e levam à destruição através de

uma vivência que busca os extremos e ignora que “o indivíduo não vive a si

mesmo, deixa-se viver, está sendo vivido”109:Os adeptos da vida – três em dez.

Os adeptos da morte – três em dez.

Os que levam a vida

ao campo da morte – também três em dez.

E a razão?

Vivem intensamente a vida [...]

L110

A primeira sentença do aforisma se refere à postura hedonista diante da

vida. A segunda, à niilista. A terceira, aos que buscam uma vida plena, porém o

mero ato de buscar essa permanência terrena e individual (“vivem intensamente a

vida”) torna a vida suscetível aos perigos e conduz à morte. Não é isso que faz o

bom cultor da vida”111, o Sábio, que, afastando de si a individualidade, torna-se

invulnerável: […] Quando nos servimos da nossa luz

para retonar a essa claridade,

não nos expomos mais ao perigo.

A isso se dá o nome de manto da eternidade [...]

109Wilhelm. Pg. 26. Vislumbra-se que o posicionamento filosófico da obra de Paulo Freire é, pois, dotado da mesma mutabilidade contrária à resignação fatalista presente em Laozi, o que permite uma apropriação também pedagógica do taoísmo, comprovando sua imensa validade para a ampliação do pensamento crítico.

110Este aforisma foi extraído da tradução mais literal, porém menos compreensível, de Sproviero. Exceto se indicado, os aforismas são por padrão os da tradução de Richard Wilhelm.

111Sproviero. Pg. 141.

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LII

----------

[…] Ouve-se do bom cultor da vida:

Em terra – não topa com rinocerontes ou tigres.

Na liça – não sofre com armas e escudos.

O rinoceronte não tem onde fincar o chifre.

O tigre não tem onde fincar as garras.

As armas não têm onde enfiar a lâmina […]

L

No liame diverso, a qualidade total da vida é a fraqueza e a suavidade,

esboçadas com a metáfora do recém-nascido: Quem mantém em si a plenitude da Vida

é como um recém-nascido:

[...]Seus ossos são frágeis, seus tendões tenros,

e mesmo assim seu aperto de mão é firme.

Nada sabe ainda sobre a união do homem e da mulher,

e mesmo assim seu sangue se agita,

porque ele tem a plenitude da semente;

ele pode gritar o dia inteiro

e mesmo assim sua voz não fica rouca,

porque ele tem a plenitude da paz.

Conhecer a paz é ser eterno.

Conhecer a eternidade é ser harmônico.

Propagar a vida chama-se felicidade.

Colocar a própria força a serviço da cobiça chama-se ser forte.

Quando as coisas se tornam fortes, envelhecem.

Tais coisas são contrárias ao Tao,

e o que é contrário ao Tao logo chega ao fim.”

LV

Essa natureza harmônica se interioriza no homem por meio da discrição,

sobriedade, humildade, simplicidade, modéstia, bondade, lealdade e moderação,

seja na sua conduta ou na conduta com os demais - estejam ou não imbuídos

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dessas virtudes, pois a vida é “aparentemente individual, porém não

individualmente limitada”112:O Sábio não tem coração próprio;

ele faz seu o coração das pessoas.

“Para os bons, sou bom;

para os que não são bons, também sou bom;

pois a Vida é bondade.

Para os leais, sou leal.

E leal também para os que não o são;

pois a Vida é lealdade [...]”

XLIX

Na sua segunda parte, o aforisma XXXVIII que iniciou o capítulo detalha

os antagonismos que são a mera aparência da vida:Quem estima o amor age, mas nada tem em vista.

Quem estima a justiça age e tem planos.

Quem estima a moralidade age

e, quando não lhe fazem oposição,

a provoca com grandes gestos.

Por isso, se o Tao está perdido, a Vida também está perdida.

Se a Vida está perdida, o amor está perdido.

Se o amor está perdido, a justiça está perdida.

Se a justiça está perdida, a moralidade está perdida.

A moralidade é a insuficiência da fidelidade, é indigência de fé

e o começo da confusão […].

Ao conceber o caminho para a eternidade, o Dao-de traça a linha de um

processo involutivo da vida que constitui uma reta-contínua de descenso

composta, respectivamente, pelo amor, pela justiça, pela moral e que, por

consequência, culmina no direito; ao mesmo tempo, condena-as

sistematicamente no decorrer do aforisma XXXVIII e seguintes, pois, para Laozi,

“a vida que queremos impor mediante medidas preventivas como algo positivo é

112 Wilhelm. Pg. 145

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64

uma vida inferior, mesmo quando se manifesta como altruísmo, justiça ou

moral.”113

Sendo essa “vida” um componente espontâneo, inconsciente, sua

obliteração começa com a imposição de comportamentos culturais que nascem

na perturbação do princípio essencial, o Wu Wei, não-agir: o amor não possui

desígnios, mas seu mal é propriamente a interferência, livre de objetivos, sobre si

e sobre os outros (“quem estima o amor age, mas nada tem em vista”); continuam

com o agir direcionado a um propósito: a justiça (“quem estima a justiça age e

tem planos”), onde a ação é voltada para a obtenção de um equilíbrio às custas

do equilíbrio de outrem, gerando, em si mesma, desordem; e, finalmente, decaem

na ação cuja intenção é a autoafirmação de si sobre os outros: a moral (“quem

estima a moralidade age e, quando não lhe fazem oposição, a provoca com

grandes gestos”), “que, não sendo correspondida, ameaça e obriga os demais”114,

e, conforme se aduz do aforisma, representa da mesma maneira uma

manifestação opressiva do ego quando não é contestada.

Laozi, contudo, não nega essas interferências de forma absoluta.

Exemplificativo da sensibilidade de seu pensamento é que, quando propõe a

erradicação do amor do espírito humano, o faz enquanto sentimento de ação

altruísta, carregada, portanto, de uma satisfação para si que preenche a alma. O

amor enquanto não-ação, o bem que se faz agindo em conformidade com o Dao

após esvaziar a alma da interferência dos sentidos, é exaltado.

Da mesma maneira com a lealdade. A lealdade que significa

“sinceridade”, “dedicação”, é tratada diversamente daquela significando

“fidelidade”, ou seja, um apego a outrem que não encontra eco no equilíbrio de si

mesmo, e usada para denunciar o amor filial e os “funcionários leais”, que o

demonstram aos seus superiores de acordo com a conveniência.

Assim, é apenas aparente contradição entre “Quem estima o amor age,

mas nada tem em vista” (XXXVIII) – no sentido altruísta, que tem no ódio seu

inverso possível, e “Tenho três tesouros que aprecio e preservo. O primeiro

chama-se amor [pois] pelo amor podemos ser corajosos” (LXVII) – o amor

113 R. Wilhelm. Pg. 27. 114Idem.

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enquanto identificação com o outro e busca pelo bem, que é apenas amor,

alcançando sua forma de unidade não-sentimental.

Em alusão aos ideogramas de V, e à metáfora do “cão de palha”, vistos

no capítulo O “Dao” e Deus, temos, relativamente ao amor e à moral, a distinção

essencial das doutrinas taoístas e confucionistas:“REN, 'amor humano', 'benevolência', 'humanismo' […] é a

virtude fundamental do confucionismo. Alguns acham que

Laozi critica-o por considerá-lo um amor parcial, de predileção.

É importante salientar que Laozi não critica o Ren, sua crítica é

ao considerá-lo o fundamento das virtudes. O Ren vem depois

do curso e da virtude [...]

Victor Von Strauss comenta este texto:

'Laozi sabia quão pouco existe no amor humano que como

bondade do coração, não raramente só é fraqueza quando não

enraizado no supremo fundamento moral, no eterno. Daí, sua

renitente polêmica contra o Ren que Confúcio qualificava de

suprema virtude'.”115

“Bondade ou moralidade, conceitos mais elevados do confucionismo, são

rejeitados [pelo taoísmo] como imperfeitos, por não irem além do interesse

pessoal”116, e, dessa maneira, Confúcio ignora o que é pressuposto em Laozi, pois

“ao pretender fundamentar a ordem jurídica da sociedade complexa na ordem

moral comunitária, torna a ordem moral dependente da jurídica, destruindo-a”.117

Confúcio estagnou em um meio termo, justificando as instituições, porém

resgatando os antigos valores, sem obter com isso nem uma justificativa e nem

um resgate: “Quando se perde o grande Tao,

aparecem a moralidade e o dever.

Quando a inteligência e o saber prosperam,

aparecem as grandes mentiras.

Quando os parentes próximos discordam,

115 SPROVIERO. Pg. 219.116 WILHELM. Pg. 180.117 Idem.

Page 66: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

66

aparecem o dever filial e o amor.

Quando os Estados estão em desordem,

aparecem os funcionários leais.”

XVIII

Calcado no confucionismo, temos o estágio seguinte da degeneração

moral: O legismo vai arrancar do texto o direito do Estado de sacrificar

indivíduos. Mêncio (372-289 a.C.), seguidor de Confúcio,

propõe o sacrifício pela virtude. Num célebre trecho, diz que

sacrificaria a vida que tanto ama por um valor superior, a

virtude.118

O movimento legista exterioriza da essência humana o controle social, e

“vai tornar a ordem jurídica independente das virtudes morais dos indivíduos,

contra o confucionismo. Quando as virtudes são formalizadas em regras de

conduta, então estas substituem as virtudes e a prescrição moralista faz com que

todos lutem pelo reconhecimento público de serem cumpridores dos deveres,

acusando outros de não-cumprimento”.119 Como decorrência, têm-se as outras

deturpações morais condenadas em Laozi no aforisma XVIII, como o mérito e a

lealdade que, comparados com o XXXVIII, indicam a “insuficiência de fidelidade...

o começo da confusão”.

Com efeito, esse elevado senso de si a partir de preceitos moralistas

constitui-se no orgulho descrito por Spinoza:O orgulhoso ama a presença dos parasitas ou dos aduladores,

e detesta a dos generosos.

Proposição LVII

A solução para os dilemas resultantes desses vícios comportamentais é

recorrente no Dao-de Jing, sob diversas formulações que nominam um sem

número de princípios, os quais, contudo, são essencialmente os mesmos. Abaixo,

118 R. Wilhelm. Pg. 27119SPROVIERO. Pg. 231.

Page 67: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

67

no aforisma LVI, a variante “cala tua boca”: O que sabe, não fala.

O que fala, não sabe.

É preciso manter a boca fechada

e cerrar suas portas,

embotar sua perspicácia,

desfazer os pensamentos confusos,

moderar o seu brilho,

e pôr em comum o que se tem de terreno.

A isso se dá o nome de união misteriosa com o Tao.

Quem a tem não é influenciado pelo amor

e fica insensível ao frio.

Fica insensível ao lucro,

fica insensível à perda.

Fica insensível à glória,

fica insensível à condição de inferioridade.

É por isso que ele é o mais glorioso sobre a Terra.

“Fechar a boca” e “cerrar as portas”, imagens também utilizadas em LII,

dizem-no para as percepções enganosas do mundo exterior, alheio ao homem,

dominado pelo amor, pela moral e pela justiça. As últimas frases, versando sobre

a insensibilidade, outra característica fundamental do taoísmo, trazem sobretudo

no que se refere “à condição de inferioridade” (resumindo as anteriores: “lucro”,

“perda”, “glória”) um importante elemento para a análise da justiça, vez que o

embate superior x inferior, certo x errado, vencedor x perdedor, é o fundamento do

direito (já enquanto justiça institucionalizada, para além da enfermidade mental

aludida por Laozi).

Mais uma vez em Spinoza, uma síntese ocidental possível para o

aforisma: O contentamento íntimo é, na realidade, o objeto supremo de

nossa esperança […]

Escólio da proposição LII

Page 68: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

68

No fragor de tão promíscua refrega, o direito dá um passo mais na areia

movediça da civilização e sentimentaliza irrevogavelmente a justiça,

fragmentando-a como um prêmio salomônico na dualidade das partes em

confronto, e gerando uma necessidade artificial na condição de superioridade de

um sobre o outro. Ao exaltar todas as condenações presentes no Dao-de Jing,

contrariando meticulosamente a unidade do Dao, resta apenas, como uma

definição possível do direito em Laozi, parafrasear a última frase do aforisma: É

por isso que ele é o mais nefasto sobre a Terra.

III.I.II. O “DAO-DE”: LIDERANÇA SEM AÇÃO

Dessa maneira, a justiça que se estabelece nas sociedades complexas é

a justiça jurídica, institucional, que já se impõe como um papel da liderança de

uns sobre os demais, através da fragmentação da liderança natural, oriunda dos

laços familiares e da aceitação de alguém por sua capacidade espontânea. Sua

crítica em Laozi, é, portanto, a crítica da autoridade, assim como a crítica desta é

a crítica daquela, e vice-versa.

Vista como uma regra lógica de toda e qualquer civilização, a liderança,

entretanto, deve ser analisada com mais atenção. Não se pode considerá-la nem

comum a todos os povos e nem contínua se tomada na perspectiva histórica da

humanidade, pois mesmo depois da formação das grandes civilizações urbanas,

a figura do protagonismo social não foi uma constante.

A confirmação parcial desse entendimento encontra-se na análise das

descrições dos primeiros textos da pena portuguesa referentes às nações

indígenas da Abya Yala litorânea. Nas cartas de Pero Vaz de Caminha, ele e os

muitos escrivães subsequentes imiscuem conceitos político-nacionais do ideal de

dominação colonialista e ignoram a civilização indígena, pois “respondem às

próprias perguntas que colocam, umas atrás das outras, em termos de violentas

afirmações eurocêntricas. A curiosidade dos primeiros colonizadores é menos

uma instigação ao saber do que a repetição das regras de um jogo cujo resultado

é previsível.”120

120 “Intérpretes do Brasil”. Introdução, Silviano Santiago, pg. XVII.

Page 69: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

69

Procedendo à retificação crítica de tais relatos, “Pierre Claustres reabre a

possibilidade de uma antropologia política, aventando a hipótese de haver

existido organizações sociais que se estruturaram sem a violência inerente ao

'poder coercitivo', isto é, sociedades humanas que não conheceram processos de

hierarquização impostos pelo alto [...] Na antropologia tradicional, em virtude da

cegueira etnocêntrica, era impossível vislumbrar uma sociedade onde a

organização social não dependia do uso da força e da violência como causa de

aglutinação.”121

Lógico, portanto, que ao denominar de “mansa” a pacífica cultura

indígena, e de “obediência” à ausência de hostilidade contra os europeus antes

de demonstrarem seus intentos barbáricos, fez-se total a incompreensão ibérica

dos povos autóctones. Não se percebeu em nenhum momento da criminosa

historiografia portuguesa que a figura da liderança nas tribos era reservada aos

períodos de guerra; no resto do tempo, eram os índios homens livres. Assim, o

“líder” não surgia de uma estrutura hierárquica, mas do valor e da admiração do

indivíduo pelos demais.

É precisamente a “liderança natural” da qual fala Laozi, comum tanto aos

primórdios dos povos que se desenvolveram em núcleos urbanos quanto àqueles

que permaneceram tribalizados, e que encontra na conclusão de Pierre de

Claustres sua síntese mais acurada: As organizações sociais em que o poder é obtido pelo

mecanismo e exercício da coação por parte de poucos e

obediência por parte de muitos são apenas um caso particular

na história das sociedades, e não o geral.122

Em Laozi, a única autoridade possível, independente de justificações, é a

natural, o “Sábio” (Chong Jen), figura também elaborada por Confúcio, e sua

conduta é relatada em inúmeros aforismas:Assim também é o Sábio:

permanece na ação sem agir,

ensina sem nada dizer.

121 Idem. Pg. XIX.122 Idem.

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70

A todos os seres que o procuram

ele não se nega.

Ele cria, e ainda assim nada tem.

Age e não guarda coisa alguma.

Realizada a obra,

não se apega a ela.

E, justamente por não se apegar,

não é abandonado.

II

----------

Por isso é que o Sábio governa da seguinte maneira:

esvazia os corações e enche os estômagos.

Enfraquece as vontades e revigora os ossos,

e faz com que o povo fique sem conhecimento

e sem desejos,

e providencia

para que os doutos não ousem agir.

Ele pratica a não-ação

e tudo reina em ordem.

III

----------

[…] por menosprezar o seu eu,

este aparece em primeiro plano.

Ele renuncia ao seu eu

e a sua essência é preservada.

VII

---------

[…] Por isso o Sábio se veste com trajes grosseiros,

mas no seio ele esconde uma jóia.

LXX

---------

[…] reconhece a si mesmo, mas não quer se exibir.

Ama a si mesmo, mas não busca a fama para si.

LXXII

----------

Page 71: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

71

O Sábio não é erudito,

o erudito não é sábio

LXXXI

O sábio é, portanto, “o homem repleto das energias transcendentais da

vida secreta […] cujo sentido está aberto para o evento cósmico e sua leis” 123

Wu Wei (“fazer sem agir”), a concepção vista no estudo sobre o “I Ching”

que é gênese do taoísmo, ao perpassar tudo com o espírito de conformidade com

o Dao, aparece pela primeira vez no aforisma II, e já em relação com a prática

humana do Sábio, da liderança natural, pois “trata-se de deixar que as forças

criadoras atuem no interior e a partir do próprio eu, sem que se queira acrescentar

um favor a partir do exterior. Na verdade, já existia na China essa tendência como

ideal e Confúcio também o menciona como o mais elevado”:124

O mestre disse:

- O governo pela virtude pode ser comparado à estrela Polar,

que comanda a homenagem da multidão de estrelas sem sair

do lugar.

Analectos, II, 1.

O mestre disse:

- Se houve um governante que conseguia impor a ordem sem

ter de tomar nenhuma ação, foi, talvez, Shun. Tudo o que ele

precisava fazer era mostrar-se em postura respeitosa e olhar

na direção do sul.125

Analectos, XV, 6.

123 R. Wilhelm. Pg. 147124Idem. Pg. 179.125 Os mapas chineses indicam os pontos cardeais invertidos em relação aos seus

equivalentes ocidentais. O sul, portanto, representa o norte, direção da origem da civilização chinesa, ao norte do Rio Amarelo. E é para onde se voltava o trono dos imperadores.

Page 72: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

72

III.I.III. O “DAO-DE”: ANARQUIA SEM VIOLÊNCIA

O sábio, entretanto, não é necessariamente um governante. Ele é a

escolha natural, tal qual o cacique indígena, caso exista a necessidade de um

guia para os problemas da vida em comunidade. Em Laozi, os modelos de

governo ideais se resumem ao retorno ao Curso, dotado não só das virtudes

místicas para além do mundo sensorial, como de um sentido sempre positivo

ordenado por si. Um grande país deve ser governado

como quem frita pequenos peixes

LX

Ao fritar alevinos, não se pode remexê-los e nem virá-los subitamente, ou

se dissolvem na banha do frigir. Assim, deve-se prezar pela suavidade, pela não

interferência, pelo aspecto feminino que conforma a Terra, de acordo com o que

foi visto na análise espiritual do Dao: Quando um grande reino está situado à jusante,

ele é o lugar onde se juntam todas as correntes do Universo.

Ele é o Feminino do mundo.

O Feminino, pela sua passividade,

sempre vence o Masculino.

Com sua tranqüilidade, ele e mantém embaixo.

Assim, se um grande reino se submete a um pequeno,

conquista com isso o reino pequeno.

Se o reino pequeno se submete ao grande,

com isso será conquistado pelo grande.

Assim, um conquista porque se submete

e o outro é conquistado porque se submete.

O grande reino não quer outra coisa,

senão unir os homens e alimentá-los.

O pequeno reino não quer outra coisa,

senão participar do serviço dos homens.

Cada um consegue o que assim deseja,

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73

mas o grande é que deve se submeter.

LXI

Não é o embate, a anexação agressiva, que permeia a harmonia entre os

homens. Ela só é alcançada através de uma mútua relação de abstenção, que,

discretamente, leva à adesão política e à proteção de todos os envolvidos, ou

seja, ao γεμονίαἡ (hegemonia). A raiz grega desse termo não se liga ao domínio,

mas à unidade política através do consenso. Laozi lhe empresta uma dimensão

ampliada ao frisar que a submissão, nesse movimento que busca o equilíbrio, é

sempre do maior reino, seguindo-se-lhe a do menor.

As interpretações que derivam de Laozi sistemas de estratégias bélicas126,

destoam totalmente do texto original, pois no taoísmo a guerra é a última opção,

e, mesmo assim, seu caráter é exclusivamente defensivo, como meio de garantir

o equilíbrio pacificamente alcançado. A despeito das deturpações, “a China

comprovou repetidamente algo dessa verdade [taoísta]... assimilou, devido ao seu

tamanho e à sua tranqüilidade, cada uma das tribos agressivas e conquistadoras

que penetraram em sua periferia.”127

Em inúmeros trechos, há a referência ao conhecimento, criticado como

vício do espírito. Embora, como já expresso, não seja o alvo deste ensaio sua

pormenorização, deve-se atentar para sua negação enquanto conduta do

governante: Os que outrora eram competentes

ao governar segundo o Tao

não o faziam pelo esclarecimento do povo,

mas mantendo-o na ignorância.

A dificuldade em governar um povo

está no fato de ele saber demais.

Por isso, quem governa o Estado pelo saber

é o ladrão do Estado.

Quem não dirige o Estado pelo saber

é a felicidade do Estado.

126 Posteriormente, tais sistemas se tornariam muito famosos, como o de Sun-Tzu, por exemplo, evidentemente influenciado pela filosofia taoísta.

127 R. Wilhelm. Pg. 154.

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74

Quem conhece esses dois pontos tem um ideal.

Conhecer sempre esse ideal é a Vida oculta.

LXV

A negação do “saber demais” não é uma proposição ao estilo “pão e

circo”, como tantas interpretações políticas o fizeram para se justificarem nos

textos laozianos, mas a crítica ao saber desnecessário, que, por ser excessivo,

não promove o retorno ao Curso e afasta o homem de seu caminho natural,

levando-o à uma dependência vertiginosa da tecnologia. Aqui, tem-se uma

curiosa e essencial diferença com o pensamento ocidental, legatário de Sócrates,

para o qual o bem supremo é “sei o que sei e sei o que não sei”. Em Laozi: Conhecer o não conhecimento

é o bem supremo […].

LXXI

Erasmo de Rotterdam é da mesma opinião sobre a verdadeira essência

do “ignorante”, do “tolo”, epítetos que podem adjetivar o mendicante e maltrapilho

“sábio” laoziano: Não será verdade que, entre tantas espécies de animais, os

que vivem mais felizes são os que não têm nenhuma disciplina

e que só a natureza reconhecem como mestra? […] Já o

cavalo, por estar mais próximo dos sentimentos do homem, e

sendo por este dominado, participa consideravelmente das

calamidades humanas. Acontece, muitas vezes, que esse

animal doméstico, em lugar de fugir da batalha, se atira ao

perigo, e, na ambição da vitória, um golpe mortal estende-o por

terra. Já não falo das cruéis mordeduras, das esporadas

agudas, da prisão que é a estrebaria, das rédeas, do pesado

cavaleiro, em suma, de toda a trágica escravidão a que ele, a

exemplo do homem, se sujeitou espontaneamente, na ânsia

excessiva de se vingar do veado, seu inimigo […] Por tudo

isso, nunca terei louvado bastante a Pitágoras por se ter

transformado em galo. Esse filósofo, em virtude da

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75

metempsicose, passou por todos os estados: filósofo, homem,

mulher, rei, confidente, peixe, cavalo, rã e creio até que

esponja. E, depois de todas essas transmigrações, declarou

que o homem era o mais infeliz de todos os animais, pois todos

os outros estão satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela

natureza, enquanto só o homem se esforça por ultrapassá-los.

Além disso, Pitágoras costumava antepor os tolos aos sábios e

aos grandes.128

É interessante perceber que, da organização social que decorre da

aceitação de um poder natural e naturalmente aceito, centralizado em um homem

excepcional que rejeita todos os vícios, o povo não mais teme o poder porque

dele nem se dá conta. Eis o sinal de que um poder maior, o fluxo do Dao, chegou.

Misticamente considerada a afirmação política, tem-se que é da autoridade

humana ignorada que surge o Curso em sua plenitude.

Delineia-se, enfim, qual é o governo em consonância com a filosofia

taoísta, no aforisma XVII:Quando um Grande Soberano governa,

o povo mal sabe que ele existe.

Os menores são amados e louvados,

os ainda menores são temidos,

os mais inferiores ainda são desprezados.

Quão ponderados devemos ser com as palavras!

Terminada a obra, os negócios seguem seu curso

e as pessoas pensam:

“Somos livres.”

As etapas da decadência social que levam ao fortalecimento da

autoridade, ao invés de seu enfraquecimento, essencial para a aceitação do

governante pelo povo segundo Laozi, corrompem suas origens naturais e migram

para autoridades primeiramente carismáticas e, finalmente, para o modelo

autoritário baseado na força.

128 Elogio da Loucura. Pg. 49.

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76

Ao estabelecimento dos governos embasados na força, advém

inevitavelmente a contestação. E é precisamente no contestar que as

comparações da filosofia politica taoísta com o anarquismo acabam. Porque,

embora o anarquismo europeu compartilhe dessa contestação aos regimes

autoritários, institucionalmente estabelecidos, sua tendência a dessacralizar toda

a autoridade leva, necessariamente, à violência, mimetizando o mesmo

comportamento refutado e, portanto, conduzindo ao desgoverno, vez que a

autoridade natural também é refutada.

Em Laozi, considera-se o movimento de contestação irrefragável e

constante como um caminho que conduz naturalmente ao estágio anterior de

autogoverno, respeitada a autoridade natural. Em verdade, tal autoridade natural,

personificada por aqueles que são “Sábios”, é o próprio autogoverno, pois sua

autoridade é fruto espontâneo da admiração dos demais. Esse movimento,

portanto, é permeado pelo divino, e visto como inerente à essência do homem e

de seu mundo.

Aqui, também, recorrente seu posicionamento sensível: embora seja

cultor da simplicidade original, em Laozi isso não se opõe, necessariamente, às

formas de organização social mais complexas, desde que, ao se consolidarem, o

espírito humano seja preservado através da liberdade (não-agir estatal) e da

autonomia (ausência de leis). Por isso a recorrência em fazer do Sábio, aquele

dotado da habilidade em governar, um exemplo constante aos demais.

Através dele o Dao pode fluir e se disseminar por todo o reino. É nesse

propósito que Laozi elabora um esquema progressivo da organização humana

que começa no indivíduo, passa à família, comunidade, reino e, finalmente,

Estado, o qual, como se viu, não é simplesmente rejeitado. Esquematização

idêntica se encontra em Confúcio, o qual, contudo, omitiu o comunitarismo, o

núcleo organizacional mais relevante no taoísmo.

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77

III.II. NO AÇOREAMENTO DO CURSO E DA VIDA: REJEITOS JURÍDICOS

O Código ensina ao leitor que ele será vítima de um roubo doméstico, de uma trapaça, de uma afanação, acompanhados de

um número maior ou menor de circunstâncias agravantes; e suas páginas inquietantes farão com que o cidadão tranque seu

dinheiro a sete chaves, tomado pelo mesmo terror daquele que, ao ler um livro de medicina, já sente os sintomas das perigosas

doenças ali descritas.Honoré de Balzac – Code des gens honnêtes.

Atente-se que o direito - do qual tanto se fala nas teorias críticas como o

instrumento que marginaliza grande parcela dos homens, mas que tem sua

importância defendida arduamente pelos mesmos que deveriam destruí-la129 – é

relegado a um papel pernicioso, pois que receptor de toda a escatologia amorosa,

justicialista e moralista, oriunda de toda a liderança estabelecida ou por se formar,

e, na concomitância contemplativa do Dao-de, é necessariamente considerado

repulsivo à Vida e irrelevante para o seu seguimento.

Nessa lógica, seria o Direito, numa decadência em espiral, que começa

no desvirtuamento do Dao-de com a interiorização da exaustivamente repetida

tríade degenerativa (amor, justiça, moral), e de todos os seus correlatos

(infidelidade, descrença, confusão, etc...) uma latrina vazia, que sintetiza todos

esses preceitos regulatórios, impositivos e alheios à natureza humana, e onde

fermenta o espiralado caldo decaído .

Contudo, nos termos do Dao-de, a latrina vazia permanece vazia para

levar à contemplação necessária, catalisada pela contenção dos sentidos

129 Basta citar para isso as milhares de “teorias jurídicas críticas”, de Michel Miaille a Roberto Lyra Filho, do promíscuo marxismo estrutural de Althusser ao onanismo copista de Norberto Bobbio, sem que nenhum deles, em nenhum momento, sequer cogite que o não-Direito, e não outro-Direito (poético, alternativo, pluralista, literário, transcendente, etc, etc...), possa ocupar a relação de substituição lógica ao Direito que os beneficia. Aqui, como sempre, está o punctum dolens de Laozi.

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78

(impulsos intestinais, no caso) e pela meditação sobre o espaço suspenso abaixo

e acima das nádegas contraídas. Mas, no caso do direito, no afã de tudo

conquistar, de todos os homens regrar e de toda a sociedade regular, provoca-se

a distensão retal involuntária, convertendo a mística latrina imaculada num

banheiro de rodoviária que se entope insanavelmente com toda a organicidade

hedionda do pensamento humano.

A tarefa desse trabalho, agora já desvelada, não é desentupí-la, o que

seria condenar-se ao suicídio no melhor dos intentos, mas, qual um estudante do

ginásio desocupado e livre das confusões do eruditismo, taoisticamente destruí-la.

Para proceder à crítica taoísta do direito, cume desta apicultura

ensaística, veste-se a roupa protetora e se espezinha no agreste vespeiro do

catatau de 407 folhas de Paulo Roney Ávila Fagúndez, pois que, ao tropeçar nos

ferrões de contradições insanáveis ao longo de suas temerosas afirmações,

demolindo a golpes de kung-fu panda130 toda a sutil harmonia do taoísmo

laoziano, surge como facilitante para esta metodologia ingrata.

Como seu texto carece de uma linha lógica ao longo dos capítulos,

sofrendo de graves falhas argumentativas e se servindo de citações aleatórias

dos mais variados pensadores, estejam ou não inseridos num mínimo, e diga-se,

mesmo exíguo múltiplo comum da filosofia laoziana, tomemos em oposição duas

das inúmeras frases curtas emaranhadas ao longo do texto, já naquilo que

constitui sua incursão taoísta crítica:O Direito não consegue enfrentar os problemas humanos que

residem dentro de cada um. Há a preocupação de se

estabelecerem limites externos que são os geradores dos

problemas psicossociais e da própria violência131

E, como espécie de diagnóstico dessa falha do direito, conclui que:As leis querem adaptar o povo aos anseios de classes

dominantes e aos projetos dos governantes. Pelo contrário, o

Direito teria que ser instrumento de estímulo à prática de

130 Referência aos momentos iniciais do longa de animação homônimo, no qual o protagonista, um urso panda, é um desengonçado fã de artes marciais.

131Ávila Fagúndez. Pg. 198.

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79

condutas positivas, de integração dos seres humanos. Como

admitir um Direito divorciado da moralidade e alheio ao senso

de Justiça?132

O direito, por decorrência lógica de sua conformação que estabelece

“limites externos” - os quais são “externos” não por serem limites, mas porque

decorrem da exterioridade cultural do direito em relação à natureza do homem - é

receptor de toda a moralidade e senso de Justiça de uma sociedade, os quais já

sendo uma corrupção da humanidade, foram ainda juridicizados, limitados,

conforme se viu na deturpação legista dos valores confucianos.

Assim, justiça e moral nunca estiveram e nem estão dissociados das

instituições jurídicas. O que ocorre é que elas próprias são a corruptibilidade da

sapiência, afirmação já catapultada de alturas estratosféricas por Laozi, mas que

se faz por bem repetir: “A moralidade é a insuficiência da fidelidade, é indigência

de fé e o começo da confusão.”

Nesse caminho, qualquer solução jurídica que recorra a uma destilação

moral que relembra os tempos inglórios do republicanismo sepultado do século

XVIII, apenas reinicia o círculo vicioso que começa, justamente, no amor filial, na

moral e, por fim, na justiça institucionalizada.

Com efeito, o que está expresso no Dao-de Jing é que não há solução

para os problemas jurídicos. E uma vez que tanto o amor filial quanto a moral

subsistem institucionalmente sob o artifício da juridicização, mesmo a solução

moral, sob os preceitos principiológicos, será apenas e tão somente jurídica!

Conclui-se, portanto, que não há nem solução e muito menos solução

jurídica aos problemas jurídicos, restando inadvertidas, simplórias, errôneas, em

uma palavra, inúteis, as citações acima criticadas.

Em outro parágrafo, Fagúndez cita um dos mais perturbados pensadores

dentre aqueles que, em nossa época, denominaram-se “marxistas”, para, então,

justificar, contrariamente à pseudocrítica formulada, o direito ideologicamente

institucionalizado:

132Ávila Fagúndez. Pg. 190.

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80

Para Althusser, “o Direito é um aparelho ideológico do Estado

[…]. Está a serviço da classe dominante que detém o poder

político, exercendo-o em defesa de seus próprios interesses”.

Os princípios estão em permanente elaboração. Poder-se-ão

formular os necessários para a defesa de determinados

interesses, (sic) porém deverão estar em sintonia como regime

político vigente. 133

Não é preciso se referir à falta de sentido das afirmações. O que importa

expressar é, por um lado, as “descobertas” óbvias de Althusser (as de que o

direito institucionalizado serve aos desígnios de quem o institucionalizou!), tidas

como constatações implícitas na crítica laoziana de dois milênios atrás e nas mais

recentes referências de Marx; e, na seqüência, a defesa do sistema jurídico

vigente mesmo diante da conclusão de que serve, unicamente, a propósitos da

perpetuação do poder político pela classe burguesa.

Comentando o aforisma XLII134, Ávila interpõe uma superficial análise de

Fritjof Capra (como o são quase todas as suas popularizações do pensamento

oriental) sobre “o yin e o yang” que pouco tem a ver com a gênese taoísta, e

proclama na seqüência: O Princípio Único Universal contido no Tao Te King, a Bíblia

dos orientais, preconiza uma dialética que concilia interesses

em conflito. Tem aplicação no Direito e pode contribuir para a

construção de uma teoria da Justiça mais em consonância com

as leis da natureza.135

Comece-se por dizer que não há nada mais errôneo do que qualificar o

Dao-de Jing como uma Bíblia. A idéia de cultuar um livro em seus estritos termos

seria considerada ridícula por mentor da criatividade como Laozi, e não se

esqueça de que “penosamente transformou em palavras aquilo que via”136 à força

133 Ávila Fagúndez. Pg. 196.134 Como foi visto, esse aforisma é vital na compreensão taoísta por partir de uma

interpretação original e impressionante de Laozi sobre o Livro das Mutações, o que aturde ainda mais os intentos “equilibrantes” de Ávila Fagúndez.

135 Ávila Fagúndez. Pg. 205.136 R. Wilhelm. Pg.

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81

dos caprichos do guarda do passo que impedia seu exílio voluntário.

Depois, o Dao, vetustamente denominado por Ávila de “Princípio Único

Universal”137, não preconiza, como já se viu, qualquer dialética – antes

demonstrando sua total inadequação à compreensão do monismo criador, e muito

menos uma que “concilie interesses em conflito”, pela simples razão de que o

conflito em si é negado na filosofia taoísta. Se há conflito, não pode haver

harmonia “em consonância com as leis da natureza”.

O aforisma LXVI, ao descrever a postura do Sábio, dá um exemplo claro

de como a natureza é a medida de todas as ações humanas, ao invés de se

perder em frases murchas, e, mais ainda, torna ululante a prescrição prática de

sua maior construção filosófica, o não-agir, cujas variantes vão do não-intervir ao

não-conflitar:Se os rios e os mares reinam sobre todos os riachos

é porque ambos sabem manter-se em níveis inferiores.

Por isso reinam sobre todos os riachos.

Assim também o Sábio:

se quer elevar-se acima do seu povo,

coloca-se abaixo dele quando lhe fala.

Se quer estar à frente de sua gente,

coloca-se atrás.

Portanto:

permanece no alto

e o povo não sente o seu peso.

Mantém-se na liderança

e o povo não é ferido por ele.

Assim, também,

todo mundo é solícito em exaltá-lo,

sem ficar de mau-humor.

Como ele não briga,

ninguém no mundo pode brigar com ele.

137 Não se trata de mero princípio, o que já é reduzí-lo ao patamar das categorizações hierárquicas do pensamento humano. Não se descreve o Dao sob esses termos, como adverte Laozi nos infindáveis trechos sobre sua “inominabilidade”.

Page 82: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

82

Em seu diminuto e excelente ensaio “Crítica da razão tupiniquim”, Roberto

Gomes também é veemente contra as pulsões dos acadêmicos que professam a

conciliação como forma de mascarar, numa forma de crítica, o próprio

conservadorismo:Se nos limitarmos à superfície, o jeito é promotor de uma

atitude de tolerância e de abertura intelectual. Como expressão

da Razão Conciliadora, um dos produtos mais lamentáveis, de

potencial despótico e conservador.

Há um retrato possível, cruel mas verdadeiro, do praticante de

Filosofia no Brasil – a imensa maioria composta de

professores, tipos entre os quais predomina, a despeito das

alegóricas pretensões reformistas (idealizadas, de resto), o

espírito mais retrógrado e legitimador do vigente. Neste retrato

vemos alguém sempre disposto a encontrar analogias – as

quais pretende brilhantes – entre as teorias mais opostas e

irreconciliáveis, fazendo sua tradicional salada filosofante,

onde, em proporções idênticas ou não, entra algo de tomismo

e de Comte, de Comte e de Marx, de Marx e de estruturalismo

e Marcuse […] A atitude conciliadora é ausente de critérios, de

intuições geradoras de pensamento”138

Ávila Fagúndez, ao derramar sua “geléia geral brasileira”139 sobre a

esperança de uma conciliação jurídica, ignora que a relação de força entre as

partes envolvidas é, quase sempre, desproporcional como o foi o embate entre

Tífon e Zeus, e faz transparecer, na sua proposta jurídica, que sua filosofia é não

outra que a condenada por Roberto Gomes. E, ainda mais uma vez, esquece-se

da demolidora crítica de Enrique Dussel à “razão comunicativa” de Jürgen

Habermas140.

Pode-se ainda questionar, e com atraso, vez que o capítulo das marolas

dialéticas já se findou, qual é a dialética referida pelo jurista Ávila. Não sendo,

138 R. Gomes. Pg. 49-50.139 Gilberto Gil – Geléia geral.140 Dussel critica a possibilidade de se alcançar soluções através do pacifismo do diálogo em

condições de extrema disparidade entre os interlocutores.

Page 83: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

83

logicamente, taoísta, que modelo conciliador-dialético é esse? Os argumentos

marxianos, parafraseando Feuerbach, sobre a última etapa da dialética hegeliana

determinam a negativa também sobre esta: [...]na medida em que Hegel apreendeu a negação da negação

– conforme relação positiva que nela reside, como a única e

verdadeiramente positiva, e conforme a relação negativa que

nela reside, como o auto unicamente verdadeiro e como o auto

de auto-acionamento de todo o ser -, ele somente encontrou a

expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da

história, a história ainda não efetiva do homem enquanto um

sujeito pressuposto, mas em primeiro lugar ato de produção,

história da geração do homem. Esclareceremos que tanto a

forma abstrata quanto a diferença que este movimento tem em

Hegel, em oposição à moderna crítica […]; ou antes, a figura

crítica deste movimento ainda acrítico em Hegel.141

Hegel supra-sume em sua dialética relações abstratas, alheias à

realidade preconizada por Marx. Estando além (ou aquém) dessa realidade, são-

lhe inacessíveis os pequenos dramas do teatro humano carentes de conciliação.

Impossível, portanto, a função que lha atribui Ávila Fagúndez.

Assumindo que a materialidade dialética surge em Feuerbach e se

aperfeiçoa em Marx, vê-se, contudo, que seu modelo não é conciliador, mas

gritantemente revolucionário, centrado em uma materialidade que já se deve

superar142, por ser insuficiente às relações de existência. Frise-se: superação, não

conciliação.

Por ora, e para não ir adiante na prospecção de todos os métodos

dialéticos outrora concebidos, de Heráclito a Plotino, conclui-se ser a dialética de

Ávila de um tipo imaginário, digno das mais ecléticas teorias holísticas, o que é

confirmado pelo próprio autor nos textos veiculados em sua página pessoal na

internet:

141K.Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Pg. 118-119.142Mesmo em crises sistêmicas pode-se discernir o movimento dialético, mas perpetuando a

essência da ordem anterior no novo estado de coisas. O que não há, em qualquer dialética, é conciliação.

Page 84: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

84

“O princípio único universal, a regra de ouro do taoísmo, é a

base da medicina tradicional chinesa, da política e todo o saber

do Extremo Oriente. Para os orientais, o par yin-yang está

presente em todosos fenômenos da vida. Nada é

absolutamente ying (sic) ou yang. É um saber extremamente

importante para a gestão dos conflitos na complexa sociedade

pós-moderna. Ademais, é um saber mais em sintonia com a

ecologia profunda, com a compreensão de que todos os seres

vivos integram a mesma teia. O taoísmo contribui, na

sociedade ocidental, para que a cultura da mediação

prevaleça. O que se percebe na China, especialmente, é a

preocupação com a formação de novos profissionais de direito,

habilitados para a compreensão dos litígios e de sua gestão

cotidiana. O conflito não é algo patológico. O conflito é parte

integrante da vida.”143

Aqui, verifica-se toda a confusão de Ávila e sua impropriedade ao se

utilizar da filosofia de Laozi, atirando-a no mesmo balaio de suas infinitas

correntes posteriores (da medicina tradicional à ecologia, passando, claro, pela

filosofia yin-yang, espécie de reducionismo gelatinoso e expansível a toda e

qualquer apropriação, seja taoísta ou não), que, como se viu no capítulo “O Dao

e a religião”, serviram-se das mais delirantes interpretações do Dao-de Jing.

Limitando-se apenas ao jurídico, já se percebe o azedume yin-yanguístico

a golfar sobre a noção de “conflito” quando se relembra de que há, na explicação

de Laozi da gênese do universo, o momento em que, a partir da unidade,

desdobra-se a dualidade dos elementos opostos (e não conflitantes, vez que se

originam da unidade), os quais, pela oposição mesma (claro – escuro, quente –

frio, alto - baixo) possibilitarão a apreensão humana e sensível da variedade (por

sua vez decorrente dos pares opostos originários) constante do mundo visível.

E, em todas as longas digressões sobre as deturpações do curso da Vida,

Laozi é explícito ao se referir terminantemente contra a idéia de conflito como

143 Texto “A recuperação da filosofia”, acessado em 24 de abril de 2008 no endereço: http://pr.fagundez.zip.net/arch2008-04-20_2008-04-26.html

Page 85: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

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“parte integrante da vida”. Nada há de menos natural à Ela do que o conflito, seja

qual for.

Outra inviabilidade que se abate sobre o ponto de vista de Roney é a

consideração de que leis humanas derivam de leis naturais. Ora, Laozi não

contraria a existência de leis, mas se refere expressamente à elas como

imaterializáveis, sendo impossível verbalizá-las. Logo, a lei humana é sempre

diversa da regência natural dos comportamentos, vez que, ao se materializar,

dissolveu a unidade necessária entre homem-mundo. É, como bem se refere

Marx, “de uma natureza humana”, a qual, por sua vez, segundo Laozi, não está

em consonância com o que é a única natureza humana.

Logo, a existência de leis laozianas estão emplastradas no imanente e no

inescrutável. Não se copiam ou se depreendem leis humanas da natureza. Do

contrário, todo o longo processo taoísta de retorno à natureza e à sua dimensão

inacessível ao intelecto, através da contemplação de si, seria inviabilizado. Assim,

totalmente contrária à uma exegese séria do Dao-de Jing reduzí-lo à condição de

guia legislativo, como faz Ávila.

III.II.I. NO LODAÇAL DO CURSO E DA VIDA: A ANFÍBIA RESISTÊNCIA MARXISTA

El intelecto... consiste... en hacer unilateral el mundo... al plasmar cada contenido del mundo em uma fija determinabilidad

y petrificar... la fluidez que hace brotar la diversidad del mundo, el cual no sería multilateral, a no ser por las muchas

unilateralidades.Karl Marx

No capítulo sobre “O Direito e os princípios”, existe na tese de Ávila

Fagúndez não só a afirmação da plena discordância com o Dao-de, como o

desconhecimento absoluto da crítica fundamental proposta pelo marxismo

jurídico.

Embora seja o marxismo insuficiente para uma compreensão ampla do

fenômeno humano, naquilo que é o escopo deste ensaio, e apesar de que “me

Page 86: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

86

gusta muchíssimo, pero no me convence”144, inegável é sua contribuição para

separar a confusão justificadora de todos os autores da falsa crítica e, aqui, da

falsa crítica jurídica. Se Laozi é o mestre que nos guia pelo Curso, Marx é o

explorador que nos desvia das perigosas contradições do discurso estabelecido.

Fagúndez interpõe: “Com efeito, salienta-se que do sistema jurídico derivam

determinados princípios. Há uma conexão desses princípios

jurídicos com o regime político e com os valores defendidos

pela sociedade. O sistema jurídico é um reflexo das relações

de poder que são mantidas na sociedade. Não se confunde a

visão de integridade com a proposta de interpretação

sistêmica, tendo em vista que a operação se dá dentro do

sistema artificial da ciência jurídica, dentro dos seus limites.

Vale destacar que o sistema jurídico é naturalmente aberto,

que trata em essência da multimensionalidade da vida. Tratá-lo

como um sistema fechado significa torná-lo impotente para

resolver os complexo problemas humanos.”145

Considerar o direito reflexo de relações de poder, demarcando claramente

sua ideologia, e limitar sua operacionalidade a si mesmo, é consagrá-lo como um

sistema fechado, inacessível ao fenômeno social, aos clamores dos povos, à

transformação inevitável e urgente. É, inclusive, a visão jurídica predominante, e

aquela que Ávila deseja preservar às custas da coerência da filosofia taoísta.

Não à toa, Marx revolucionou a matéria econômica – o cerne de sua

concepção histórica – ao tê-la considerado uma ciência necessariamente social.

As afirmações desconexas de Ávila propõem sua 'sociabilização' ao mesmo

tempo em que afirmam o isolacionismo tradicional do direito burguês.

Ávila, superestruturalmente encarcerado, debate-se a justificar o direito

através de uma abstração, de uma ilusão, de uma demência, ou até mesmo de

144 Célebre frase do economista e introdutor do marxismo no âmbito da filosofia da libertação Franz Hinkellamert ao opinar sobre Nietszche durante um jantar com acadêmicos da UFPR.

145Ávila Fagúndez, pg. 214, em concordância com José da Silva Pacheco (Curso de Teoria Geral do Processo).

Page 87: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

87

um “espírito... naturalmente aberto”, visão que o aproxima e o metamorfoseia em

um grotesco “hegeliano de esquerda”, que busca transformar o mundo pela

'autoconsciência', pela miraculosa virtude das idéias.

Marx o esmaga com uma única análise: a do direito consuetudinário,

levada a cabo no célebres “Debates sobre a lei castigando os roubos de lenda”

em “Elementos fundamentais para a crítica da economia política”146. Na primeira

vez em que Marx se ocupa dos problemas econômicos e opina sobre os

interesses materiais do povo, prossegue de tal forma na destruição dessa falsa

“mutidimensionalidade” que já não restam mais vestígios do que um dia foram as

palavras do professor Ávila:

“Reclamamos para la masa pobre, política y socialmente desamparada, el

derecho consuetudinário”, mas não, evidente, o dos privilegiados, que constituem,

desde os primórdios da humanidade [zoomorfa] e, em especial, no feudalismo

[cuja religião era a adoração da Besta], a forma animal do direito, costumes contra

o direito, privados de realidades, “pues la única igualdad que en la vida de los

animales se manifiesta es la igualdad entre un animal y los de su misma especie.”

E continua, ao reafirmar a validade do costume, explicando que o direito

consuetudinário não é expresso em leis pois é a sua negação, embora o direito

possa racionalizar os costumes, de maneira que não sejam apenas costumes,

mas “la propia costumbre de lo jurídico”.

Contudo, sua existência à parte é ressalvada se for anterior à lei, e, como

as classes privilegiadas plasmaram no direito legal suas vantagens, “no

solamente el reconocimiento de su derecho racional, sino, muchas veces, de suas

arrogancias irracionales, […] no tienen derecho a anteciparse a la ley, pues la ley

se ha antecipado a todas las posibles consecuencias de su derecho.”

Mas a lei não se opõe ao direito consuetudinário dos pobres,

simplesmente porque não o reveste. E, da mesma forma, tal direito “no se rebela

contra la forma legal, sino, por el contrario, contra la carencia de forma de éste”.

Daí que questões como a “lei da favela”, a “lei dos índios” a “lei dos negros”, as

“leis alternativas”, em verdade, não caracterizem a ilegalidade propalada pelos

146 “Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie”. Manuscritos, publicados postumamente, que serviram de moldes para O Capital. Os trechos aqui referidos foram extraídos do volume “Obras Fundamentales”, vol. I, pgs. 250 e sgs.

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organismos oficiais e pelo senso comum, pois sequer foram incluídos no projeto

jurídico da burguesia, que pretendeu, com isso, neutralizar a existência e o

reconhecimento do “outro enquanto outro” apeliano147: “Las legislaciones más liberales, en lo tocante al derecho

privado, se limitan a formular, elevándolos al plano de lo

general, los derechos com que se encuentran. Y donde no los

encuentran, no los conceden. Han abolido las costumbres

particulares, pero olvidando, al hacerlo, que mientras que el

desafuero de los poseedores se manifestaba bajo la forma de

arrogâncias arbitrarias, el de los desposeídos cobraba la forma

de concesiones fortuitas. Su modo de proceder era acertado al

ir en contra de quines alegaban costumbres contra el derecho,

pero falso em lo referente a los que se amparaban em

costumbres fuera del derecho”.148

A existência de ordem social comunitária referida por Marx, esteja ou não

emplastrada no ordenamento jurídico, é satisfatória porque aniquila, a um só

tempo, tanto o caráter “erga omnes” da justiça institucionalizada, quanto a idéia,

absolutamente ultrapassada, de prevalência do Estado como entidade divina a

reger toda e qualquer organização sócio-político-econômica, e que é

intransponível para uma boa parte das teorias vulgares da esquerda ortodoxa.

Marx conclui dizendo que os costumes das classes pobres as

impulsionam para a satisfação de suas necessidades precisamente naquilo que

“la propriedad tiene de indeciso”, pois exsurgem como um “sentido jurídico

instintivo... que aún no ha encontrado adecuado lugar dentro del círculo de la

organización consciente del Estado”.

Assim enredadas nas teias do aracnídeo burguês, as classes pobres são

encasuladas à condição de “mera costumbre de la sociedad civil”, dissonância

inexplicável na ordem social, pois “un legislador sabio... no se limitará a arrebatar

a los copartícipes de uma clase la imposibilidad de pertenecer a uma esfera de

derechos más altos, sino que elevará su propia clase a la posibilidad real de tener

147 Karl-Otto Apel.148 Marx. Idem.

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derechos.”

Refere-se, portanto, à consciência de classe em si e para si, à

identificação dos clamores do povo com os clamores de toda a humanidade e à

luta para expandir essa identidade na forma de igualdades unilaterais

equivalentes entre si, e não de uma única igualdade multilateral que diverge em

alcance e intensidade e fragmenta a sociedade em estratos diferenciados.

Essas considerações comprovam que a “mutidimensionalidade” defendida

por Ávila Fagúndez não pode se dar, logicamente, nos institutos jurídicos

estabelecidos. É necessário, em Marx, reformulá-los e, em Laozi, erradicá-los,

embora os dois estejam de acordo com a manutenção da ordem comunitária. Se

na visão marxista a proposta avilana é impensável, impensável continua também

no taoísmo, com bem se indica na citação que abre esta seção do ensaio.

Евгений Брониславович Пашуканис149, o mais célebre jurista marxista, é

impactante em demonstrar que o direito europeu moderno, copiado integralmente

pelos governos excludentes de Abya Yala, nasce de apropriações do direito

privado sobre a gestão pública para inserir, apenas enquanto mercadorias, tanto

homens quanto objetos numa ordem de protagonistas pré-determinados.

Na verdade, apenas esclarece Marx, cujos trabalhos juvenis indicaram o

hiperdesenvolvimento do direito privado burguês e suas carências insanáveis na

gestão pública. A razão? Copiaram na integralidade eles também o bem

elaborado direito privado romano, que versava pormenorizadamente sobre a

propriedade privada, elevando-o ao status de único direito.

É morbidamente curioso, nessa perspectiva, que o “direito penal mínimo”

seja uma construção da própria burguesia, vez que a ineficiência da prisão foi

muito cedo percebida, chegando-se “à convicção de que a luta contra a

criminalidade pode ser considerada em si mesma como uma tarefa médica e

pedagógica e que os juristas com os seus 'corpos de delito', os seus códigos, os

seus conceitos de 'culpabilidade', de 'responsabilidade penal, plena ou atenuada',

as suas sutis distinções entre cumplicidade, participação, instigação, etc.,

absolutamente não têm condições de prestar qualquer auxílio à solução da

questão.”

149 Pachukanis.

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90

Пашуканис vê nessa continuidade que vai contra o conhecimento

(inclusive científico), o apego da classe burguesa à sua recente condição de

domínio, e conclui, indicando a natureza napálmica150 do direito: E se, até o momento, estas convicções teóricas ainda não

determinaram a supressão dos códigos penais e dos tribunais,

foi evidentemente porque a supressão da forma jurídica está

ligada não apenas à infração do quadro da sociedade

burguesa, mas também a uma emancipação radical em

relação a todas as suas sobrevivências.151

Assim, dada a natureza individual-egoística da sociedade burguesa,

responsável pela manutenção do inútil flagelo penitenciário, o direito público foi

reduzido às categorias do direito civil, e tornado efêmero, incerto e grotesco, sob

o manto de direitos subjetivos públicos que encerram num só momento funções

sociais e os direitos dos agentes de tais funções:O problema do direito subjetivo e do direito objetivo, colocado

de maneira filosófica, é o problema do homem como indivíduo

burguês privado e do homem como cidadão do Estado […] O

método formal-lógico não tem condições de resolver nem o

primeiro nem o segundo problema, muito menos de explicar o

vínculo existente entre ambos.152

“Teoria Geral do Direito e Marxismo” promove o desmantelamento gradual

das construções jurídicas consolidadas, e calcina os velhos anacronismos das

“teorias críticas”, inclusive as que se dizem marxistas, sendo talvez por isso tão

ignorado e/ou esquecido.

Sua análise começa por discorrer sobre a forma lingüística rebuscada e o

uso complexo de seus institutos, pois, quando comparada à relação econômica, a

jurídica se dá longe do homem comum, num segundo plano cujos protagonistas

150 Napalm: agente espessante (da borracha natural ao moderno benzeno-poliestireno) de substâncias inflamáveis líqüidas, como a gasolina. Nesse estado gelatinoso, tais substâncias têm sua eficiência multiplicada nas armas lança-chamas, pois permanecem grudadas no alvo até que todo o combustível seja consumido.

151Pachukanis. Pg. 29.152 Pachukanis. Pg. 61.

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são “uma casta particular” que compreendeu a necessidade de unificar os

diferentes rendimentos do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes.

É precisamente essa a função do direito:“Marx mostra simultaneamente a condição fundamental,

enraizada na estrutura econômica da própria sociedade, da

existência da forma jurídica. Ele descobre assim o profundo

vínculo interno que existe entre a forma jurídica e a forma

mercantil.”153

Por conta dessa característica fundamentalmente óbvia, a “Crítica do

Programa de Gotha”, de Marx, esclarece que o direito dá à igualdade uma forma

geral e abstrata, a qual denuncia uma mentira, vez que o conteúdo de seus

dispositivos insuficientes, confusos e omissos jamais permite a prática de sua

forma enganosa, consolidando a força hipócrita do direito: “[...] como não leva em consideração a desigualdade natural

das aptidões individuais, o direito é, pois, no seu conteúdo, um

direito baseado na desigualdade, como todo direito.”154

Esse modelo arcaico de direito meramente conformado ao novo mundo

burguês, marcadamente mercantil, com todas as suas limitações e falhas, só

poderia se dar enquanto “ordem social estabelecida arbitrariamente”155, e reduziu

o próprio homem, seguindo o mecanismo da liberdade enquanto liberdade de

força de trabalho, à condição de coisa ou, o que é o mesmo, “sujeito jurídico”: “[...] A propriedade não se torna o fundamento da forma jurídica

a não ser enquanto livre disponibilidade de bens no mercado.

É, então, aí que a categoria de sujeito cumpre seu papel de

expressão geral desta liberdade”, fundamentando que seja o

sujeito “o átomo da teoria jurídica, o seu elemento mais

simples, que não se pode decompor”.156

153 Pachukanis. Pg. 25.154 Idem. Pg. 27.155Idem. Pg. 69.156Idem. pg. 69.

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A “livre disponibilidade”, portanto, é a possibilidade de negociar a

propriedade, constituindo, segundo Hilferding, “uma segunda propriedade, que

depende somente da vontade dos seus proprietários”, pelo que “ao mesmo tempo

em que o produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e se torna

portador de valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos.”

Como, “para a ordem jurídica, 'o fim em si' é apenas a circulação de

mercadorias”157, a conceituação do sujeito evolui tão somente enquanto idealismo

especulativo, qual em Hegel, adquirindo mero caráter formal para o direito, que,

por ignorá-lo enquanto parte mercantilizada, vê “a relação jurídica como forma

acabada, determinada a priori.”158

Se, ao partir da categoria jurídica fundamental, o “sujeito”, Пашуканис

pôde comprovar a falência do sistema jurídico ocidental, foi porque a

racionalidade que nos é típica, também ao partir do homem, reduziu seus

horizontes, coisificando-o. Tão difícil é admitir os séculos de equívocos

provocados pelo antropocentrismo, que, como bem referiu o jurista russo, pouco

se analisa na “ciência jurídica” da essência empobrecida do sujeito, preterindo-a

em face da falsa harmonia da “relação jurídica”.

Certamente, ao cindir um monismo intransponível, criaram-se

pressupostos ofensivos ao progresso humano incapaz de produzir danos, com

conseqüências inimagináveis à própria razão. Apropriada, portanto, a análise de

Huberto Rohden dessa estreita filosofia de vida:“Tem-se dito que a filosofia não oferece base sólida para uma

vida profundamente espiritual e dignamente humana por ser

simples teoria e especulação – e isso é verdade em se

tratando de qualquer sistema filosófico que não ultrapasse o

estreito âmbito das especulações meramente intelectuais, e

analíticas […] O homem inexperiente, que conhece as coisas

apenas por ouvir dizer ou por um processo meramente

analítico-intelectual, considera a racionalidade como contrária à

mística, e a filosofia, como inimiga da religião; mas todo

homem de experiência profunda é um racionalista místico ou

157Idem. Pg. 61.158 Idem. Pg. 70.

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um místico racional; é um filósofo religioso ou um homem

religioso-filosófico.”159

Concluída, portanto, a tarefa de, ao sacar os mil véus que recobrem as

capas adiposas de sua monstruosidade digna de um Rei Jabba160, comprovar a

total ausência da natureza verdadeiramente humana no direito, e as previsões

corretas de Laozi ao indicar, em tempos tão longínqüos que permanecem

inacessíveis à imaginação, a total impossibilidade de evoluir a partir de uma

ordem externa, que caminhou desde sua insólita criação contra o Curso da Vida:

não apenas deixou de desnaturar a natureza e de humanizar o homem, como o

coisificou.

III.II.II. A CHEIA DO CURSO E DA VIDA: MONÇÕES LAOZIANAS

[...]Quem não tem vidaagarra-se ao seu direito.

Laozi, LXXIX

Em Laozi, o impulso que leva de novo ao ambiente comunitário, precursor

das civilizações urbanas, é muito mais evidente e radical do que a pálida defesa

marxiana de regulações autônomas, como é o caso do respeito às normas

consuetudinárias anteriores ao projeto jurídico do Estado burguês, ou mesmo de

sua inclusão no direito institucionalizado (após a transformação revolucionária das

relações de produção).

Seja pelo período histórico do Grande Sábio, contemporâneo às grandes

involuções que castigaram para sempre o gênero humano, seja por sua amarga

contemplação do que tais mudanças nos destinariam, o aforisma LXXX indica

seu grande desgosto com a urbanização anômala e prega, pela derradeira vez, o

retorno à Idade do Ouro:Um país pode ser pequeno

e poucos os seus habitantes.

159 B. Spinoza. Introdução, pg. 14-15.160 Horrenda criatura imperial do filme “Guerra nas Estrelas”.

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Instrumentos que multiplicam a força do homem

não devem ser usados.

O povo deve pensar seriamente na morte

e não deve viajar para longe.

Mesmo que haja navios e carros,

ninguém deve servir-se deles.

Mesmo que haja couraças e armas,

ninguém deve ostentá-las:

que o povo volte a fazer nós em cordas

para usá-las à guisa de escrita.

Que faça doce o seu alimento

e belas as suas roupas,

pacífica a sua moradia

e alegres os seus costumes.

Que os países vizinhos estejam ao alcance da vista,

de modo que se possa ouvir de cada lado o canto dos galos e

o latido dos cães;

e assim as pessoas morrerão em idade avançada,

sem ter viajado de um lado para outro.

Os ecos deste aforisma foram determinantes para todo o conhecimento

posterior, incluindo a literatura chinesa, sobretudo nos territórios ao sul do Rio

Amarelo, levada a compor obras de rara beleza como “A fonte do bosque dos

pessegueiros floridos”, de Tau Yuan Ming. E as suas reverberações, como já

vimos, representam um pessimismo que é um momento necessário da energia

crítica e criativa, pois diante das dimensões de tais transformações, Laozi indica,

quando não o Dao em sua plenitude, ao menos uma tendência pela opção ao

“mal menor”.

No ressonante aforisma LXII, propõe, diante do avanço implacável da

sociedade complexa, que, uma vez perdido o Dao, o poder não seja finalmente

institucionalizado: O Tao é a morada de todas as coisas,

o tesouro dos homens de bem,

a proteção dos homens que não são bons.

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95

Com belas palavras pode-se ir ao mercado.

Com uma conduta honesta

podemos nos salientar diante dos outros.

Mas os que não são bons entre os homens,

por que se deveria rejeitá-los?

Para isso é investido um soberano,

e os príncipes têm a sua função [...]

O governo, pois, cinde o bom do mau, e rejeita o não-bom enquanto uma

oposição, diverso da reciprocidade, ignorando a essência humana e a

contaminando com o desequilíbrio das vãs diferenciações. Contudo, como a ação

humana se vincula àquilo que se é, ser bom é a única conduta possível, e o mal é

aceito não enquanto mal, mas enquanto a possibilidade de se tornar bom161,

conforme o aforisma XLIX, que se deve repetir: Para os bons, sou bom;

para os que não são bons, também sou bom;

pois a Vida é bondade.

Esse entendimento que refuta dualidades desnecessárias é comum ao

longo de todo o Dao-de Jing e também encerra a crítica ao conhecimento

racional-científico. Pelo que vimos, Ávila Fagúndez o ignora como os seguidores

de Moisés ignoraram Javé diante da atrativa adoração dos ídolos pagãos de ouro.

Voltando-se, pois, ao tema das leis, verifica-se que não apenas

estigmatizam os comportamentos como atuam negativamente sobre eles, sejam

ou não admissíveis na ordenação institucional, vez que ao classificar o bom como

bom e o mau como mau, corrompem, em verdade, qualquer comportamento,

adotando, congenitamente, dois pesos e duas medidas, seja qual for a decisão

que advenha de seu uso. As leis são, assim, por si só, a garantia da plena

injustiça e a negação do homem, e suas pusilânimes mentiras foram bem

descritas por Laozi:[…] Quem, no entanto, reconhece que o bem supremo

161 Pensamento análogo ao que se encontra em Paulo Freire e em muitos filósofos da libertação.

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96

consiste na inexistência de ordens?

A ordem transforma-se em caprichos

e o bem se converte em superstição

e os dias de cegueira do povo

duram realmente muito tempo.

Assim também o Sábio:

serve de modelo sem castrar os outros,

é escrupuloso sem ferir,

é natural sem ser arbitrário

e brilha sem ofuscar.

LVII

As fôrmas desengonçadas e desequilibrantes do direito, próprias dos

mecanismos que garantem seu funcionamento sempre parcial e insuficiente nas

sociedades complexas, são evidenciadas no aforisma LXXIX: Quando se aplaca um grande rancor,

ainda resta algum ressentimento.

Como considerar isso um bem?

Por isso o Sábio cumpre o seu dever

e nada exige dos outros.

Por isso quem tem Vida

cumpre o seu dever;

quem não tem Vida

agarra-se ao seu direito.

Ao retribuir tanto à Vida quanto ao rancor com a Vida (“por isso quem tem

Vida cumpre o seu dever”), Laozi mostra que a culpabilização é artífice do

desequilíbrio social, sendo assim, uma aparência que explica a ilusória justiça

entre os homens. Essa é a conclusão fundamental do aforisma: “quem não tem

Vida agarra-se ao seu direito”:Quando se compensa um grande rancor, resta ainda um pouco

de ressentimento. Nesse momento, o peso da culpa se

transfere do ombro do que ofende para o do ofendido, porque

Page 97: O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.

97

este tem a sua vingança. Por isso, o sábio que conhece a vida

tomará sobre si total responsabilidade, não exercendo pressão

sobre o outro.162

Ao reconhecer suas obrigações sem reivindicar os direitos, que em

verdade não correspondem à unidade do “eu”, o Dao neutraliza as contendas e

alcança seu diametral afastamento em relação ao direito; esvazia-o de seus

preceitos morais e sua justiça legalizada, arranca-lhe o domínio institucional e

alheio ao homem naturalmente estabelecido, em seis palavras: promove-o a um

Vazio Jurídico.

Esse “vazio”, que é a revelação do Dao, repousa na moderação,

discrição, tranquilidade, honestidade, modéstia, não-ação, entre tantas outras

atribuições com as quais Laozi designa genericamente o “Sábio”, ninguém mais

do que qualquer outra pessoa pode ser ao voltar, pacientemente, sua

contemplação a si mesma, e, através dela, discernir entre a essência natural que

carrega e que deve preservar e a exterioridade das normas humanas: Quem conhece os outros é inteligente.

Quem conhece a si mesmo é sábio.

Quem vence os outros é forte.

Quem vence a si mesmo é poderoso.

Quem se faz valer tem força de vontade.

Quem é auto-suficiente é rico.

Quem não perde seu lugar é estável.

Quem mesmo na morte não perece, esse vive.

XXXIII

Neste aforisma, a expressão “quem é auto-suficiente é rico” adquire

primeiramente o sentido de contentar-se consigo mesmo, como o refrear dos

162 R. Wilhelm. Pg. 146. Essa imagem do Sábio assemelha-se muito à redenção dos pecados por Jesus Cristo, tomando sobre si, sob os auspícios da morte, a culpa de todos os homens. Não à toa, como já visto, Jesus está ligado às tradições búdicas. A Igreja, contudo, divinizando o homem e institucionalizando os ritos, inverteu a lógica: o pecador, ao se confessar, deve ele próprio se redimir diante do sacerdote, o qual, impassível e comodamente, na situação oposta à do Sábio, prescreve punições como um boticário receita remédios. Aí bem se vê que nem à função primordial de promover o equilíbrio espiritual dos fiéis corresponde a Igreja.

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98

impulsos necessário à harmonia com o Dao e à continuação do movimento,

dizendo respeito, portanto, à autonomia, ou seja, a ter em si as próprias leis.

Como, na estrutura dos versos, o segundo par de cada frase se sobressai

em relação ao anterior, é associando-os que se verifica a perfeita completude: ser

auto-suficiente, possuindo as próprias leis, pressupõe mais que inteligência,

sabedoria; mais que força, poder; mais que estabilidade, vida (em seu sentido

místico, de continuidade, de imortalidade, oposto ao da vida egoísta).

E, tomando-se qualquer par, associa-se-o respectivamente com os

demais. Portanto, auto-gerir-se, ser autônomo, está nos pressupostos da vida

completa, natural, e compõe o vasto leque de indícios – agora já incontestáveis -

de que o direito, enquanto regulação externa, diversa do que se é em si mesmo, é

artificial e daninho.

Muito se pode perquerir sobre qual seria a solução para esse mundo de

fatores externos à essência humana e, agora que tomaram dimensões

globalmente titânicas, alheias às vontades do homem comum. Alguns poderão

perscrutar todo o lacônico alfarrábio do Dao-de Jing sem encontrar uma resposta.

Mas essa é uma dificuldade em perceber que a resposta se dá de sua primeira

frase até a última.

No último aforisma da primeira parte, Laozi sintetiza o espírito cósmico e

humano de seu pensamento místico:O Tao é um eterno não-fazer,

e mesmo assim nada fica sem ser feito.

Se os príncipes e os reis souberem como preservá-lo,

todas as coisas se farão por si mesmas.

Se elas se fizerem por si mesmas, provocando a cobiça,

eu as desterro pela simplicidade que não tem nome.

A simplicidade que não tem nome gera a ausência de desejos.

A ausência de desejos cria a serenidade

e o mundo se endireita por si mesmo.

XXXVII

Como tudo na natureza, o Dao é marcado por um desenvolvimento

orgânico que, deixado ao relento, corrige-se e permanece intacto

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independentemente das intervenções humanas (“o mundo se endireita por si

mesmo”).

Muito catastroficamente lembre-se do que ocorreria à Terra se a

humanidade desaparecesse repentinamente (como geralmente ocorre com as

espécies hiperdesenvolvidas, conforme as melhores teorias arqueológicas das

grandes extinções): em pouco mais de um século não restariam mais vestígios da

existência de nossa espécie, e quase toda a poluição gerada em milênios de

civilização (incluindo mesmo os mais daninhos poluentes) seria filtrada e

reabsorvida pela natureza.

Assim, imaginar um mundo ainda ocupado pela espécie humana, mas na

regência anárquica do Dao e sem qualquer interferência jurídica, é ainda mais

simples: se o Dao corrige o mundo, corrige os homens. Não é preciso criar novas

leis e nem reformular as antigas: abandonando-as, tudo retoma a ordem do

Curso, e as sociedades lentamente se encaminham para o termo médio da

existência: Poupem as palavras,

e tudo andará por si mesmo.

Um ciclone não dura a manhã inteira.

Um aguaceiro não dura todo um dia.

E quem os produz?

O Céu e a Terra.

Se o Céu e a Terra nada podem fazer de durável,

muito menos o pode o homem!

XXIII

A Era é outra, outras são as conjunturas, outras as pessoas, opostos os

hemisférios e diversas as civilizações. Considerar do taoísmo que propõe um raso

“pulo à Natureza” é um equívoco semelhante ao “grande salto adiante”. Nada se

dá repentinamente no taoísmo. O vagar é próprio do Curso, pelo que a lição

essencial de Laozi está em algo imune à crítica fatalista que não pode ver além

da irrisória e impermanente realidade: para além do tempo, de qualquer tempo, e

sob quaisquer condições, com ou sem nefandas leis, o que importa é a vida

tranqüila, a quietude interior e a integração com o Dao.

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100

IIII. ILAÇÕES: NO DELTA DO CURSO, A NASCENTE DO CURSO.

Cuida do fim assim como do começo,e nada estará perdido.

Laozi.

Concluir um tema em si inconcluso e fadado a um destino cíclico, como o

é por sua natureza a filosofia do Dao, seria tarefa ingrata em sua impossibilidade,

não tivesse Voltaire, tomado pelo espírito irresignável dos que se abstêm do

mundo exterior, excedido-se em poética contemplação e talhado na última frase

de “Cândido” o clímax de seu desgosto com a insanidade dos regimes

absolutistas europeus e, em última análise, com toda a humanidade:- Tudo isso é muito bonito, mas o que é preciso é cultivar o

nosso jardim.

Já em antecipação à censura prolixa que se abate raivosa sobre os que

poupam à reflexão após tantas palavras, insiste-se que mais dizer pouco ajudará

o jardim, pois é chegado o momento de apenas aceitar a benéfica recorrência que

se faz ler no belíssimo aforisma XLVI: Quando o Tao reina sobre a Terra,

usamos cavalos de corrida para puxar esterco.

Quando o Tao se perdeu na Terra,

criamos cavalos de guerra nos pastos verdes.

Não há pecado maior do que ter muitos desejos.

Não há desgraça maior do que ser insaciável.

Não há falta maior do que querer possuir.

Por isso:

a suficiência da suficiência é a suficiência que dura.

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101

ESCÓLIOS MEDITATIVOS

Desvairio laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em

500 páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos.Jorge Luis Borges

FILOSOFIA:LAO-TZU. Tao-te King. Texto, tradução do mandarim e comentários: Richard

Wilhelm. Tradução do alemão: Margit Martincic. São Paulo: Editora Pensamento,

1995.

LAOZI. Dao De Jing. Organização e tradução do mandarim: Mário Bruno

Sproviero. São Paulo: Hedra, 2007.

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BARUCH DE SPINOZA. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. Tradução:

Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.

CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução do mandarim: D.C. Lau. Tradução do inglês:

Caroline Chang. Porto Alegre: L&PM, 2007.

ENRIQUE DUSSEL. 1492: El encobrimiento del otro. La Paz: Plural Editores,

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Buenos Aires: Clacso, s/d.

E.P. THOMPSON. A miséria da Teoria: um planetário de erros - crítica ao

pensamento político de Althusser. S/e, s/l, s/d.

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Paulo: Martin Claret, 2002.

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KARL MARX. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

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