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Raniero Cantalamessa Reflexão sobre a Palavra de Deus Anos A, B, C (Dos domingos e das festas do Ano Litúrgico)

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Raniero Cantalamessa

O Verbo se faz carneO Verbo se faz carneO Verbo se faz carne

Reflexão sobre a Palavra de Deus Anos A, B, C

(Dos domingos e das festas do Ano Litúrgico)

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A fé provém da pregação e a pregação se exerce em razão da palavra de Cristo.

(Rm 10,17)

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Prefácio Prefácio Prefácio Prefácio Prefácio Prefácio

Dom Alberto Taveira Corrêa Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará

O Verbo se faz carne

Deus me deu a alegria de me encontrar em alguns e preciosos momen-tos com o pregador da Casa Pontifícia, Pe. Raniero Cantalamessa. Muitas vezes, fui ajudado pelos seus textos por ele escritos ou por suas pregações no Vaticano e em tantas partes do mundo. E o Senhor me concede a graça de apresentar ao Brasil esta edição de O Verbo se faz carne, com reflexões sobre a Palavra de Deus para os Anos A, B, C.

A Liturgia se constitui como a grande e principal fonte de santificação para o povo de Deus. Nela, haurimos, como de uma fonte inesgotável, a graça que nos introduz na comunhão com a Trindade. Toda a nossa vida se trans-forma no grande louvor ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo. Introduzir-nos com respeito e competência no mistério da Palavra proclamada é o serviço prestado por este volume. As reflexões brotam com grande liberdade, deixan-do-nos maravilhados com a riqueza dos tesouros disponíveis nas celebrações litúrgicas, especialmente no Dia do Senhor, o Domingo, quando o próprio Cristo “põe a mesa” da Palavra na Assembleia Eucarística.

Os textos que temos nas mãos revelam o imenso cabedal de conheci-mento da Sagrada Escritura, dos Padres da Igreja e da Liturgia. Muito fiéis

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do ponto de vista exegético e teológico suas meditações oferecem também ao leitor a experiência de intimidade com conhecimentos profundos, des-tilados em linguagem simples e até coloquial. Quem quiser preparar a par-ticipação da Liturgia Dominical com O Verbo se faz carne será introduzido em átrios de conhecimento que antes só pareciam acessíveis a especialistas nas ciências bíblicas. Para muitas pessoas, tornar-se-á livro de cabeceira, apenas para rezar, contemplar, permanecer diante da face de Deus. Os que têm a maravilhosa e desafiadora tarefa da pregação encontrarão um roteiro capaz de renovar esse ministério. Trata-se aqui de verdadeiras lições que não perdem a profundidade, por chegarem, como óleo de unção, em sua integralidade, ao recôndito do coração e da vida cristã.

E unção espiritual é o que não falta no presente escrito do Pe. Raniero Cantalamessa. Em tempos como os nossos, quando a Igreja nos introduz na leitura orante da Palavra de Deus (Lectio Divina), este livro conduz efe-tivamente à oração e à vivência dessa Palavra. O que escreve remete ao seu permanente, sério e desafiador sorriso, com o qual anuncia a Palavra nas pregações, de modo que ninguém fique indiferente. Se ele mesmo diz que se trata de uma experiência de anúncio numa comunidade concreta, deixa--nos efetivamente entrar em sua experiência do próprio Senhor, como ao entrar num Santuário.

Desejamos ainda que todas as pessoas que desfrutarem das reflexões oferecidas pelo autor, convencidos de que só Jesus Cristo tem “Palavras de Vida Eterna”, disponham seus corações para praticar a mesma Palavra, revestindo-se dela e encarnando-a na diversidade de situações em que se encontrarem. A atualidade perene da Palavra de Deus vem ainda ao encon-tro das grandes questões e desafios do nosso tempo pela perspicácia com que Pe. Raniero Cantalamessa provoca seus leitores: ele os incentiva a que façam continuamente o jogo entre o cotidiano e a liturgia, a Palavra e a Vida, para que ninguém fique indiferente diante da riqueza da Palavra de Deus anunciada na Igreja.

O próprio Espírito Santo, que conduz a Igreja, inspire em todos os lei-tores os resultados esperados nesta excelente iniciativa da Editora Ave-Maria.

Dom Alberto Taveira Corrêa, Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará

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Estas páginas não eram destinadas a se tornar um livro, e é esta a razão principal que me leva a publicá-las. Não acho, com efeito, que se possam escrever num gabinete conversas como as que agora apresento transcritas. Elas nasceram, ao invés, e fielmente guardadas, a cada domin-go, fruto do diálogo com a comunidade cristã que, há anos, se reúne para a assembleia eucarística na mesma hora, a redor do mesmo altar. É uma experiência concreta de anúncio realizada junto a uma comunidade cristã que se empenha em viver a renovação litúrgica e espiritual da Igreja, deseja-da pelo Concílio Vaticano II. Uma comunidade perfeitamente igual àquela que se reúne em cada igreja para a Santa Missa dominical.

Um diálogo só aparente, em sentido único, isto é, monólogo. Tive muitas vezes a sensação, com efeito, de que aquela palavra, mesmo se pre-parada por mim durante toda manhã, de fato, como palavra viva (e não só, portanto, falada ou escrita), nascesse naquele momento, no encontro de fé entre a comunidade e o Senhor ressuscitado que, espiritualmente presente, “atualiza” sua Palavra.

Trata-se, portanto, em certo sentido, de uma mensagem e de um tes-temunho que uma modesta porção da Igreja quer partilhar com outros cris-tãos, especialmente com aqueles que têm exigências e problemas parecidos com os desta comunidade, que são, enfim, aqueles de uma comunidade que vive numa metrópole moderna e é obrigada a confrontar-se mais intensa-mente com o mundo e numa leitura mais tempestiva dos sinais dos tempos.

De resto, nossa ambição vai ainda mais longe. Fazemos votos de que estas reflexões cheguem às mãos também de alguns irmãos que não creem

PremissaPremissaPremissaPremissaPremissaPremissa

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ainda, ou deixaram de crer, e dos quais muitas vezes falamos entre nós, a ponto de nos sentirmos um pouco culpados em relação a eles. Seria uma graça muito grande se nos permitissem, ao menos deste modo, dar razão da nossa esperança (cf. 1Pd 3,15). Nós estamos convictos, com efeito, de que esta palavra não está longe deles; não está no céu nem além do mar, mas, como diz São Paulo, ao seu alcance, em sua boca e em seu coração (cf. Rm 10,8) e só espera, talvez, ser despertada mediante a escuta.

Tendo acabado quase todas as outras formas tradicionais de anúncio cristão, a liturgia dominical permaneceu, para a maior parte dos cristãos, como a única ocasião para tomar contato vivo com a Palavra de Deus. Por isso a necessidade de fazer passar por meio dela todos os conteúdos essenciais da fé, sem excluir aqueles teológica e espiritualmente mais eleva-dos que, sem razão, normalmente são deixados fora da pregação dominical (como se não fosse possível, usando uma linguagem adequada, explicar a todo o povo cristão algum aspecto de fé, por mais sublime que seja!). Isto, de resto, é muito facilitado pela atual estrutura da Liturgia da Palavra que, ao longo de três ciclos, permite tocar com facilidade todos os temas da fé e os problemas do homem, dando-lhes uma resposta fundada sobre o melhor da revelação bíblica.

Esforcei-me por libertar a Palavra de Deus de tantos condicionamen-tos que a mantêm “amarrada”, convencido de que, liberta, ela tem, por sua vez, um extraordinário e divino poder de libertar o homem: procurei, enfim, que a Palavra agisse na vida e a vida na Palavra.

Celebrados nos tempos fortes do ano (Encarnação, Páscoa, Pentecostes, Trindade, Corpus Christi etc.), os mistérios obedecem a certa catequese progressiva no decurso dos três ciclos litúrgicos.

Há remissões no final de algumas homilias, de modo a possibilitar a liberdade de escolha de temas e leituras que se repetem ao longo da obra.

O índice dos principais temas abordados, que se encontra no final da obra, deverá permitir que seu conteúdo também seja utilizado fora do quadro litúrgico da missa dominical, para outras formas de anúncio e de catequese, ou, simplesmente, como leitura.

O material pode ser utilizado também por sacerdotes e fiéis de rito am-brosiano, visto que, salvo poucas exceções (1º e 2º Domingos de Advento;

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Premissa

2º e 3º Domingos de Quaresma), as leituras evangélicas correspondem àquelas do rito romano.

Os trechos da Escritura citados ao longo do texto sem referência ao livro, ao capítulo e aos versículos, foram extraídos das leituras do dia.

Raniero Cantalamessa

Nota à edição brasileira: Este livro, ao contrário do original, que foi publicado em três volumes,

reúne em um só volume o ciclo trienal (Anos A, B e C) do Tempo Litúrgico.

Os textos bíblicos são da Bíblia Ave-Maria.

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Ano AMateus

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Tempo do Advento e do

Natal

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1o Domingo Do ADvento: Ao encontro De Deus

Leituras: is 2,1-5; rm 13,11-14; mt 24,37-44

Nas leituras deste primeiro domingo do ano litúrgico predominam dois temas: A vinda do Senhor e o tema da Vigilância. Mais do que dois temas, trata-se, antes, de dois “movimentos”: O Senhor vem – vamos a seu encontro; Deus vem ao homem, mas só o encontra quem se coloca ao encontro dele, quem “está pronto”. São os dois movimentos também descritos eficazmente na parábola das dez virgens, que é a parábola por ex-celência do tempo do Advento: Eis o esposo, ide-lhe ao encontro! (Mt 25,6).

O primeiro movimento é sempre de Deus: ele é por definição “Aquele que vem”. Não só neste caso, mas sempre. A história da salvação, que a Liturgia começa hoje a percorrer, é essencialmente história de iniciativa de Deus, memória de tantas suas “vindas” ao homem que, reunidas, formam o grande Advento que se estende desde a criação à parusia.

Hoje, porém, mais do que recordar as vindas passadas de Deus, predomi-na o pensamento de sua vinda futura. De um futuro extraordinário, interven-ção de Deus, como fala Isaías na primeira leitura. Ele parece quase querer dis-trair a atenção de seus contemporâneos dos grandes fatos do passado (Abraão, o Êxodo, a Aliança), para volver o olhar para frente: No fim dos tempos acontecerá que o monte da casa do Senhor (isto é, o conhecimento e o culto do verdadeiro Deus) estará colocado à frente das montanhas (isto é, triunfará sobre todos os falsos ídolos). De suas espadas forjarão relhas de arados (isto é, haverá uma era de justiça e de paz). Era a maneira de representar o tempo messiânico.

Nós não evocamos esta espera do Antigo Testamento somente por um motivo apologético (para mostrar que ela se realizou com a vinda de Cristo), mas também por um motivo espiritual. Ela, com efeito, é um “sinal para nós”: fala-nos da fidelidade de Deus às promessas e, sobretudo, nos ensina a esperar. Das palavras de Jesus ouvidas no Evangelho compreendemos, com efeito, que também nós somos homens que esperam alguma coisa.

Jesus, realmente, não insiste tanto no fato de que haverá uma vinda do Filho do homem quanto sobre o “como” será tal vinda: Assim (isto é,

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improvisa como aquela do ladrão, terrível como o dilúvio) será a vinda do Filho do homem. Quase todas as parábolas de Jesus visam pôr o ouvinte diante desta perspectiva escatológica, depois de ter-lhe fechado todas as sa-ídas e todas as falsas seguranças às quais está acostumado recorrer quando quer fugir da urgência de uma decisão. Pouca importância têm para nós, neste momento, as disputas dos exegetas: se Jesus pensava numa sua volta dentro de um prazo curto – estando ainda viva sua geração – ou, ao invés, num retorno distante; se se enganou no tempo, ou se não se interessou absolutamente pelo tempo, como parece mais certo pensar. A decisão que ele pede ao homem – motivando-a com sua volta – é uma decisão pessoal; refere-se a ele, não ao mundo ou à história em abstrato; por isso é sempre atual e iminente para qualquer pessoa – como nós agora, que estamos escu-tando sua palavra. Em cada expressão da Escritura repercute a advertência dirigida a Davi pelo profeta: Tu és esse homem (2Sm 12,7): é de ti que se está falando. O que será de mim ao vir o Senhor decide-se agora, com a resposta que der à sua palavra que me diz de vigiar, de ficar pronto, de agir como se ele estivesse já à porta: porque, de fato, ele já está à porta!

E eis-nos preparados, assim, para o segundo “movimento”: nossa ida ao encontro do Esposo que vem. De diversas formas, este pensamento ocu-pa toda a Liturgia da Palavra deste domingo. Isaías diz: Vinde, subamos à montanha do Senhor [...]. Ele nos ensinará seus caminhos, e nós trilharemos as suas veredas, e no salmo responsorial repetimos juntos: “Vamos alegre-mente ao encontro do Senhor”. A Paulo, na segunda leitura, é confiada a tarefa de traduzir este convite em fatos concretos de vida, e isto porque a ideia escatológica da Bíblia não se esgota (como tende inculcar uma certa corrente teológica radical) num puro e abstrato “convite à decisão”, mas diz também que orientação deve tomar tal decisão, que conteúdos assumir, que modalidades abraçar.

Primeiramente Paulo recomenda: acordai do sono. Um modo diferen-te e muito sugestivo de dizer: “convertei-vos!”. Santo Agostinho compara seu estado na vigília da conversão a um sono semidesperto, em que metade de sua vontade, acordada e ao lado de Deus, mandava que a outra metade despertasse e se decidisse. Sono profundo ou sono semidesperto, não é somente o estado de quem está em pecado ou vive esquecido de Deus, mas também a tibieza, a incoerência, a indecisão: um cristianismo “implícito”

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que seria melhor chamar cristianismo apagado. A quem se encontra neste estado, o Apóstolo dirige, em outro lugar, seu veemente apelo: Desperta, tu que dormes! Levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará! (Ef 5,14). Estar despertos, em plena posse de si mesmos, com olhos abertos para receber e irradiar a luz, como quando é dia: não há melhor comentário da Palavra de Jesus lida no evangelho de hoje: “Vigiai!”.

A metáfora que se segue, no texto de Paulo, é, aparentemente, muito estranha: Vistamos-nos das armas da luz. Mas ela é explicada um pouco adiante, quando diz: Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites. A arma, por excelência, da luz é o Espírito de Jesus ressuscitado, o único que pode ajudar a vencer as obras tenebrosas da carne aí elencadas: comilanças e bebedeiras, orgias e liberti-nagem, brigas e contendas. Se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis (Rm 8,13).

Foram precisamente as últimas palavras de Paulo que acabamos de ouvir que levaram Agostinho a dar o último passo para a conversão. Encontrava-se num jardim em Milão, no ápice daquela luta entre “as duas vontades”, quando ouviu uma voz misteriosa que cantava: “Pega e lê”. Pegou a Bíblia e abriu-a, leu as palavras de Paulo que diziam para que se despertasse do sono, e dessa forma encontrou luz e paz no coração. Havia, enfim, tomado sua decisão diante de Deus.

Falamos de nossa espera. Não devemos, porém, nos enganar sobre seu significado: a nossa não é mais uma “espera” como aquela do Antigo Testamento; não é somente espera, mas também “memória e presença”. Memória, porque aquele que esperamos já veio (como estamos nos prepa-rando para a festa do Natal); presença, porque ele está desde agora conosco; sua Eucaristia, que agora celebramos, é ele conosco. Advento cristão é uma ida com alegria ao encontro de alguém que caminha conosco, a nosso lado.

1o Domingo do Advento: Ao encontro de Deus

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2o Domingo Do ADvento: os precursores

Leituras: is 11,1-10; rm 15,4-9; mt 3,1-12

A Liturgia nos faz ouvir hoje as vozes dos dois maiores pregadores do Advento: Isaías e João Batista. Isaías pregou a vinda do Senhor muito tempo antes. Seu anúncio alimentou a expectativa de gerações: Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho. João Batista foi aquele que anunciou a vinda iminente e já em ato do Senhor: Está para chegar alguém [...]. O vínculo entre os dois precursores está na profecia de Isaías que Mateus aplica a João: Uma voz clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas!”.

Todo advento quer seu precursor, o arauto prepara os ânimos, desper-ta a atenção, para que aquele que venha seja esperado, desejado e acolhido, e que sua vinda não passe despercebida. Na Antiguidade, quando um per-sonagem (geralmente um imperador), estava para chegar numa cidade em visita oficial, precisava que houvesse um enviado para precedê-lo e convidar a população para sair-lhe ao encontro, arrumar estradas e pontes para sua passagem. Haverá precursores (a Lua, os astros, os sinais no céu) da últi-ma vinda. Mas há uma vinda de Jesus que está acontecendo na história. É aquela vinda do esposo, no momento presente, na Igreja e nos crentes dos quais se falava domingo passado, que está no centro entre a vinda histórica do Redentor e aquela futura que esperamos. É a vinda de Jesus, real se for sacramental, que se realiza no culto eucarístico, a vinda pessoal de Jesus para cada pessoa através de seu amor, de sua palavra, de sua graça, através dos eventos do mundo. A vinda à qual é preciso ir ao encontro com nossa resposta e com nossa decisão de cada dia.

Também por esta vinda silenciosa e contínua ao mundo e aos ho-mens, Jesus tem necessidade de precursores. Para essa tarefa fomos todos consagrados no dia do batismo. Jesus foi à casa de João e o santificou desde a origem, diretamente no seio materno, para que ele fosse depois seu co-rajoso arauto e anunciador. Assim fez também conosco. Com o batismo, escolheu-nos, remiu-nos e santificou-nos no alvorecer da vida, para que fôssemos seus precursores no mundo. Devemos, portanto, ser dele precur-sores, gente que aplaina a estrada e suscita uma espera.

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João Batista, o precursor por excelência, nos ajudará a compreender de que modo também podemos ser precursores para Jesus. Nossa próxima leitura começa assim: Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia. Dizia ele: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus”. Eis o que nós também devemos dizer ao mundo: o reino dos céus está próximo; aliás, nós devemos acentuar com força, como fez o próprio Jesus depois de João: O Reino dos céus já está no meio de vós; está acontecendo, está caminhando no mundo. A coisa mais importante não é mais esperá-lo e preparar-se, mas entrar nele, mesmo a custo de renúncias e sacrifícios: O Reino dos Céus é arrebatado à força e são os violentos que o conquistam (Mt 11,12).

Anunciando a missão de João, no momento de seu nascimento, o Pai Zacarias cantou no Benedictus: E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor e lhe prepararás o caminho, para dar ao seu povo conhecer a salvação, pelo perdão dos pecados. Graças à ternura e misericórdia de nosso Deus (Lc 1,76-78). A quem lhe pedia: Tu quem és? – João respon-dia: Eu sou a voz daquele que grita no deserto. A vida de João foi toda voz para gritar a seus contemporâneos esta maravilhosa notícia da salvação mediante a remissão dos pecados: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Ele se inflamava ao apresentar Jesus, fazendo que o povo o desejasse, suscitando a espera e a necessidade dele: Depois vem alguém que é mais do que eu; eu vos batizei com água, mas ele vos batizará no Espírito Santo. O arauto e “amigo do esposo” vive todo para ele e quando o esposo entra em cena se retira, desapare-ce, para que todos ouçam a ele: Ele deve crescer, eu diminuir. A voz cala, depois de ter transmitido a Palavra; o amigo do esposo se retira após sua chegada: Eu não sou digno de desatar-lhe os cadarços das sandálias.

Agostinho explicou bem o papel da voz: ela é um meio, serve para transmitir a palavra, a ideia que se formou dentro dele. Quando esta pa-lavra entrou no coração do outro, comunicou-se ao outro, a voz cala, se apaga. Assim é do precursor: quando a Palavra, isto é, Cristo, faz seu com-parecimento, retira-se. Sua presença tornar-se-ia um estorvo. O precursor deve saber retirar-se em tempo; não deve permitir que se apeguem a ele, que fiquem com ele, sabendo que ele não é o salvador de ninguém.

Missão maravilhosa para os discípulos de Cristo é comunicar ao mun-do o conhecimento, ou melhor, a certeza da salvação! Dizer aos homens:

2o Domingo do Advento: Os precursores

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No meio de vós encontra-se alguém que vós não conheceis: alguém que vos procura e vos pode tornar felizes, o único que tem palavras de vida eterna e nunca engana!

Deveremos então todos colocar-nos a pregar, a gritar como João Batista: Convertei-vos? Sim, todos pregadores, mas não necessariamente com as pala-vras. Antes de começar a pregar aos outros a conversão e a penitência, João realizou e viveu este estado de conversão. Antes de começar a “clamar” no deserto, ele “viveu” em silêncio no deserto; preparou os caminhos do Senhor em si mesmo e lhe aplainou a estrada para o interior de seu coração, antes de exortar os outros a fazer a mesma coisa: O menino foi crescendo e fortificava--se em espírito, e viveu nos desertos até o dia em que se apresentou diante de Israel (Lc 1,80). Exatamente como fez Jesus de Nazaré. Também nós, antes de nos colocar em “estado de confissão”, devemos colocar-nos em “estado de conversão”. Devemos, enfim, converter-nos, antes de falar aos outros da necessidade da conversão.

O momento mais lindo da vida do precursor foi quando se encontrou com o Mestre, quando o viu aproximar-se dele e exclamou: Eis o Cordeiro de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo, eis aquele do qual eu vos fala-va. Também para nós está para se realizar este encontro. Na comunhão, o acolhemos com as mesmas palavras de João Batista: Eis o Cordeiro de Deus [...]. Que ele nos encha o coração de alegria e de coragem para podermos ser seus precursores no mundo.

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3o Domingo Do ADvento: sois vós Aquele que Deve vir,

ou Devemos esperAr por outro?Leituras: is 35,1-6a.8a.10; tg 5,7-10; mt 11,2-11

A primeira leitura de hoje faz reviver a espera que precedeu a primeira vinda de Cristo e as esperanças que a animaram. Eram esperanças de luz, de salvação, de alegria. A alegria messiânica é a nota dominante, e é por causa disto, certa-mente, que foi escolhido este tópico para o terceiro domingo do Advento, dedica-do tradicionalmente ao tema da alegria cristã. Do início ao fim, há um convite à alegria: Alegre-se, exulte, floresça, cante-se com alegria e com júbilo.

As outras duas leituras do NT nos fazem sair do clima de expectativa, pre-sente no Antigo Testamento, para nos introduzir no tempo do cumprimento: Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro? – pedem a Jesus os emissários de João Batista. A resposta de Jesus é clara; ele mostra que nele estão se cumprin-do as profecias: Naquele tempo – diz Isaías – abrir-se-ão os olhos dos cegos; os coxos saltarão [...]. E Jesus afirma que todos estes “tempos futuros”estão acontecendo agora no presente: Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres. É chegada, por-tanto, a hora do cumprimento. Bem-aventurado aquele para quem eu não for ocasião de queda! – acrescenta Jesus – isto é, quem não encontra demais modesta e pouco vistosa a minha origem e a minha pessoa para uma hora tão grande e tão esperada.

Com Tiago, na segunda leitura, nós deixamos também este tempo de Jesus e nos encontramos imersos em nosso tempo. É o tempo que está no meio, entre a vinda de Cristo e sua volta. Aquele que devia vir já veio; o objeto da espera se tornou recordação: recordação, precisamente, a que nos estamos preparando para celebrar no Natal já próximo. Mas a recordação gera e alimenta uma nova espera. Diz Tiago –, tende, pois, paciência, meus irmãos, até a vinda do Senhor [...] fortalecei os vossos corações, porque a vinda do Senhor está próxima. É a espera da volta de Cristo que proclamamos em cada uma de nossas missas. Esta espera é o verdadeiro tema dominante da Liturgia da Palavra de hoje. Mas não é mais uma espera como aquela do Antigo Testamento. Como os profetas outrora esperaram a Cristo, Tiago, no fim da leitura nos exorta a imitar-lhes a paciência e a constância na

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espera, e não seu conteúdo. Nossa espera não é mais a do novo, mas é a espera do escatológico, isto é, do definitivo. O novo já chegou com Jesus Cristo. Ele trouxe toda a novidade ao mundo, trazendo a si mesmo (Santo Ireneu). Tiago comparou essa nossa expectativa àquela do agricultor que plantou sua semente e agora espera somente o tempo da colheita.

Devemos insistir nestas coisas aparentemente tão claras, porque delas depende o bem-estar da consciência cristã e o lugar certo do crente na história.

Há cristãos cultos que são dominados por ideias de uma filosofia muito em voga em nossos dias, a qual identifica o Deus bíblico com o futuro, isto é, com um Deus cuja natureza é ter sempre de vir, mas não vir nunca: o deus-uto-pia. Neste caminho, sem que percebamos, eles acabam por situar os homens antes de Cristo, nos tempos de Isaías, restabelecendo neles uma mentalidade de homens do Antigo Testamento. Homens que aguardam ainda que se produza na história o evento realmente importante, a virada decisiva, a transformação que desde sempre se espera. Como se esta virada decisiva não tivesse já sido realizada em Cristo; como se nele todas as promessas de Deus ao homem não tivessem já encontrado seu “sim” para sempre (cf. 2Cor 1,20). Certo mesmo é Deus, que no Antigo Testamento disse: Não vos lembreis mais dos acontecimen-tos de outrora, não recordeis mais as coisas antigas, porque eis que vou fazer obra nova, a qual já surge: não a vedes? (Is 43,18-19). Mas a coisa nova e definitiva que Deus preparava o que era senão exatamente Jesus Cristo?

Não me deteria para falar-lhes destas coisas um pouco altas e filosó-ficas se elas não tivessem reflexos muito concretos nas escolhas práticas dos cristãos. Há hoje cristãos comprometidos com a cultura e com a práxis social que, motivados por essas ideias, são levados a crer que seu papel de discípulos de Jesus se esgota colocando-se à procura e à preparação do futuro, no mesmo plano e quase com o mesmo espírito de outros que professam uma concepção de homem muito diferente da deles. Nasceram novas definições: o cristão é o homem aberto ao futuro; a fé consiste na possibilidade de poder continuar a crer também no futuro. Este tipo de cristão se apresenta aos irmãos como alguém que quer procurar com eles, mas não como alguém que já encontrou em Cristo ao menos uma resposta definitiva: aquela que se refere ao seu des-tino. Atualmente, ter certezas seria, para alguns, algo indigno e passível de suspeita num cristão. Tal atitude é bem aceita hoje; está de acordo com um cristianismo voltado a ser humilde depois da renúncia ao triunfalismo e que

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pede apenas o direito de existir, como na era pré-cristã. Essa postura contém sem dúvida um valor precioso. Mas talvez já tenha chegado a hora de ser crítico também em relação a esta forma de ser cristão, exatamente para que se evite cair num autolesionismo e num conformismo às avessas: em outras palavras, que se evite a culpa por aquilo que Jesus acenava quando falava de discípulos que se envergonham dele nessa geração.

Devemos por isso fazer uma ressalva à mensagem, embora muito linda e cristã de abertura ao futuro, contida em algumas correntes da teo-logia mais recente. Se esse futuro não é radicado no evento Jesus Cristo, se não apresenta em seu horizonte último a Jerusalém celeste, mas, ainda e sempre, a Jerusalém daqui de baixo – isto é, uma cidade bem-ordenada, cheia de fervor operativo, sem injustiça, habitada por homens libertos das alienações – então nosso advento não é cristão. É um daqueles infinitos ad-ventos políticos que marcaram a história humana, primeiro, durante e, por alguns séculos, depois da vinda de Cristo. Adventos que tornaram crônica a desilusão dos povos, constrangendo-os, pela insistência de propaganda, à volta pela espera depois de cada desilusão.

Eu creio que o tempo litúrgico do Advento que estamos vivendo seja o clima ideal para a comunidade cristã reencontrar o esquema fundamental de sua visão de mundo, para descobrir, sob as estratificações arenosas das modas passageiras e dos falsos sincretismos, a planta do edifício da própria fé.

A confusão atual já é bastante grave, e não é possível permanecer nela por mais tempo. É um dever do cristão para consigo e para com a sua fé, mas talvez ainda mais uma responsabilidade que tem para com o mundo. Este não pode, com efeito, ser privado da autêntica alternativa cristã, sem perder a possibilidade do confronto e da própria superação crítica. Ao longo do ano litúrgico teremos ocasião de aprofundar em que consiste esta alter-nativa cristã. Veremos que não é legítimo o apego ao passado e o fechamen-to ao futuro (a última definição de Deus que se lê no Novo Testamento é: Eis que eu renovo todas as coisas (Ap 21,5). Nem, tampouco, é indiferença para com os pobres, que são, geralmente, aqueles que têm mais motivos para ficar descontentes com o presente e que olham com confiança o futuro.

O futuro esperado pelo cristão se distingue daquele do não-crente não por algo a menos, mas por algo a mais que possui. Bem-aventurado – repete também a nós, homens de hoje, Jesus – aquele que não se escandaliza por causa de mim.

3o Domingo do Advento: Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?

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O Verbo se faz carne

4o Domingo Do ADvento: será chAmADo “Deus conosco”

Leituras: is 7,10-14; rm 1,1-7; mt 1,18-24

A Liturgia da Palavra desta missa abre-se com a célebre profecia de Isaías: O próprio Senhor vos dará um sinal: uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará “Deus Conosco”. O trecho lido do Evangelho nos descreveu que a profecia se cumpriu em Maria, que em sua virgindade deu à luz Jesus Cristo. Tudo isto – comenta o Evangelista – aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta.

Com esses dois tópicos da Escritura somos introduzidos no coração do Natal. No Natal celebramos o acontecimento histórico do nascimento de Jesus. Mas antes devemos celebrar um natal teológico, isto é, o significa-do profundo do Natal. O mistério do Natal é este: Deus, em Jesus Cristo, se fez Emanuel, o Deus conosco. De “Deus altíssimo” se tornou um Deus próximo, um Deus para os homens. E esse é o novo nome com que será co-nhecido: Emanuel. O que significa tudo isso? Deus estava com o homem desde a criação. Mas era um diálogo a distância, feito por meio dos profe-tas. Havia entre Deus e o homem uma aliança, mas difícil e precária. Em Cristo, Deus entrou pessoalmente na humanidade, em carne e osso; fez-se um de nós, para nos falar e nos salvar por meio de nossa situação de pecado. A aliança se tornou nova e eterna: eterna, porque as duas partes – Deus e o homem – já são uma só pessoa, um ser não mais divisível: Jesus Cristo.

Jesus Cristo é o Emanuel, o Deus conosco. Aprendamos a conhecer bem este nome de nosso Salvador; ele encerra em síntese toda a nossa fé nele. Jesus é Emmanu, isto é, conosco; é um de nós, nosso irmão, descen-dente de Davi quanto à carne, como diz São Paulo na segunda carta de hoje. Mas Jesus é também El, isto é, “Deus”. Ele é filho do homem, mas também filho de Deus. Se fosse só “conosco”, mas não fosse com “Deus”, não nos poderia salvar, não seria o Senhor do mundo e da história. Se fosse somen-te “Deus”, mas não “conosco”, a sua salvação não nos interessaria; teria ficado também ele um Deus desconhecido, difícil de ser reconhecido e de satisfazer as expectativas humanas. Eis o verdadeiro mistério cristão que no Natal devemos reafirmar com clareza.

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Houve um tempo na Igreja em que a cultura dificultava aceitar que Jesus fosse realmente “conosco”, isto é, homem com os homens, submetido ao nascimento, à dor e à morte (heresia docetista). Agora a situação inver-teu-se. Os homens de hoje se apaixonam pelo homem Jesus. “Contudo é um homem; é somente um homem”, canta Madalena no filme Jesus Christ Superstar, expressando os sentimentos de tantos leitores modernos do Evangelho. Estes acham difícil aceitar que ele, além de homem, seja Deus.

Nós cristãos não devemos nem nos escandalizar nem nos ofender por estas incompreensões. Quem ama e admira Jesus como homem não tardará a descobrir que ele é mais do que um homem ou um profeta. Não devemos recuar diante do reconhecimento da plena humanidade em nosso Salvador somente porque alguns limitam-se a ela. Mais do que os outros, cremos que ele foi homem como nós, também se sem pecado: homem que conheceu a privação, o tédio, o medo, talvez a dúvida, certamente a angústia e a dor. Mas não podemos parar aqui. Também durante a vida de Jesus havia quem o tomava como um simples “profeta”. Mas de seus discípulos ele exigiu algo mais: Vós, quem dizeis que eu sou?

A esta eterna pergunta a Igreja responde com as palavras de Pedro: Tu és o Cristo, o Filho de Deus, isto é, tu és o Deus conosco.

Mas Jesus é hoje ainda o Deus conosco ou o foi apenas por um breve pe-ríodo de trinta anos, desde seu nascimento de Maria, em Belém, até sua morte na cruz? Sim; o é também hoje. Eu fico convosco até o fim do mundo – disse ele. Ele colocou sua tenda entre nós – escreveu João (cf. Jo 1,14). Jesus é ainda Deus conosco. Com a ressurreição, ele inaugurou um modo novo de estar no mun-do: um modo espiritual, invisível, mas real. Jesus é um companheiro nosso.

Diante desta certeza de fé, a única resposta do homem é o grito feliz de Paulo: Se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem nos separará de seu amor? (cf. Rm 8,35). É verdade: há alguém que nos pode separar dele e este alguém somos nós mesmos. Nós podemos, infelizmente, virar as costas a Jesus, viver como se ele nunca tivesse vindo, como se não tivesse falado. Viver para nós mesmos, como diz Paulo, e não para ele que morreu e ressuscitou por nós (cf. 2Cor 5,15). Não adianta que Deus esteja conosco se nos recusamos a estar com ele, do lado dele. Por isso, o tempo de Natal é também uma ocasião para lembrar ao cristão seu compromisso moral: Eis agora o tempo propício, nos diz ainda o apóstolo.

4o Domingo do Advento: Será chamado “Deus conosco”

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Jesus Cristo é sempre Emanuel, o Deus conosco. Mas há um mo-mento em que ele está conosco de uma maneira diferente: sacramental e real. É isto que acontece agora na celebração eucarística. Torna-se presente para ser nosso alimento. No salmo responsorial rezamos: “Quem subirá até o monte do Senhor, quem ficará em sua santa habitação?”. E respon-demos com o salmista: “Quem tem mãos puras e inocente coração”. Nós não temos talvez um coração puro e inocente para nos aproximar do altar do Senhor, mas oferecemos-lhe em contrapartida um coração humilde e contrito, e ele não nos rejeitará.

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25 De Dezembro: nAtAl Do senhor (missA DA noite)

este será pArA vós um sinAl – um menino numA mAnjeDourA

Leituras: is 9,2-4.6-7; tt 2,11-14; Lc 2,1-14

Nesta liturgia noturna de Natal, uma coisa é, sobretudo, necessária: uma grande simplicidade. Somente quem tem, ou sabe dar-se, olhos de criança é capaz de encantar-se sempre de novo com aquilo que ouve nesta noite. O estupor é a porta para entrar na adoração e na alegria do Natal. Quem quiser portar-se como o grande, o adulto, o racionalista, também diante de seu Deus que se torna criança, não compreenderá nada. Esta pessoa pode estar aqui conosco no banquete eucarístico, mas como aquele convidado que não tinha a veste nupcial.

Rejubilam-se diante de vós como na alegria da colheita, nos sugeriu Isaías na primeira leitura. Por que rejubilar? “Porque um menino nasceu para nós, foi-nos dado um filho”. Mas crianças não nascem todos os dias e todas as horas? Sim: e efetivamente cada nascimento é um motivo de alegria e de esperança: primeiro para a mãe que o esperou, como dirá Jesus um dia; depois para o mundo e para Deus. Cada bebê que nasce nesta terra é um sinal de que Deus não desespera ainda dos homens. Mas a criança da qual comemoramos o nascimento nesta noite traz outros motivos de esperança e de alegria. Sobre seus ombros está o sinal da soberania [...]. Grande será o seu domínio e a paz não terá fim [...]. Ele vem consolidar a justiça. Com ele, continuou São Paulo na segunda leitura, apareceu a benignidade de Deus, mensageira de salvação para todos os homens. Vimos todos esses motivos depois resumidos no primeiro anúncio do Natal, aquele feito aos pastores: Não temais, eis que vos anuncio uma Boa-Nova que será alegria para todo o povo: hoje vos nasceu na Cidade de Davi um Salvador, que é Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura.

Podemos parar aqui. O paradoxo do Natal (e do Evangelho) está todo contido nestas palavras. Grandes coisas eram esperadas com este nasci-mento, como escutamos: alegria, paz, justiça, salvação. E depois eis-nos levados diante de um menino numa estrebaria, diante do espetáculo mais

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impregnado de fraqueza, de impotência e de pobreza como nunca a huma-nidade teria imaginado. Completam este quadro Maria e José, duas daque-las criaturas para as quais nunca há lugar na hospedaria. A paz e a justiça para todo o mundo vêm de alguém que não teve sequer casa para nascer.

Naquele tempo, outros falavam de paz e de justiça para o mundo. Assim procedia César Augusto, que ouvimos mencionar no começo do tó-pico evangélico. O evangelista o nomeou aqui, evocando o poderio e o esplendor da Roma imperial, a fim de criar o mais forte contraste com a criança que nasce num obscuro vilarejo da Judeia. Também César Augusto se fazia chamar salvador e príncipe da paz. Depois dele, cada imperador que subia ao trono era saudado com inscrições entalhadas nas moedas que o chamavam “restaurador do mundo”, “esperado do povo”, “restituidor da luz”. E, na verdade, os homens até aquele dia tinham sempre pensado assim: “somente quem é forte, quem tem exércitos, quem tem o comando pode impor aos outros a paz e levar a salvação”. Deus derrubou com o Natal de Cristo todas essas falsas certezas dos homens. O que é estulto no mundo – escreveu São Paulo –, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes (1Cor 1,27). E o que há no mundo mais estulto do que a pobreza; o que há de mais frágil do que uma criança? Por isso ele escolheu dar-nos este sinal: uma criança numa manjedoura.

Somente Deus podia pensar numa mudança tão radical da lógica humana; somente ele podia pronunciar um “não” tão radical àquilo que os homens colocaram sempre acima em sua escala de valores: um não à rique-za, ao poder, às honras, à autoridade. Nós, sozinhos, não teríamos nunca cogitado nisso: mas agora que o sabemos nos alegramos e jubilosos dizemos a Deus o nosso “sim”. Tu escondeste estas coisas aos grandes e as revelaste aos pequenos: sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado (cf. Mt 11,26). Os grandes, os poderosos, os fortes doravante não nos amedrontam como outrora. Tu confundiste os sábios, os fortes e, doravante, este é o sinal: um menino numa manjedoura. Terias podido nascer em Roma, no berço imperial, como o filho do mais poderoso da terra. Ali tinha imaginado teu nascimento o poeta pagão na célebre Quarta Écloga. Teria sido tam-bém aquela uma encarnação teologicamente perfeita; teria sido “verdadeiro Deus e verdadeiro homem” mesmo assim. Mas agora sabemos como teria

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25 de dezembro: Natal do Senhor

sido diferente. Terias dito “sim” àquilo que os homens tinham sempre pen-sado. Nada de realmente novo teria começado, nenhum rumo novo para o mundo. Para ti, porém, mais do que te tornares homem, era importante tornar-te pobre e humilde. Assim tu deste de verdade uma esperança aos pobres da terra, aos abandonados, àqueles que não têm vez. Deste uma es-perança “a todo o povo”, porque nem todos podem ser ricos, sábios e fortes neste mundo, mas todos podem se tornar humildes.

Uma coisa ainda resta a compreender como conclusão de tudo: que a esperança de paz e de justiça que tu procuras para os pobres não é sedativo para ninguém; não é “um ópio do povo”; ou seja, não é um substituto da-quela outra paz e daquela outra justiça que tanto atormentam os homens de hoje, mas é a premissa e seu fundamento.

Agora nosso pensamento se dirige à Eucaristia que estamos para cele-brar. O sinal do menino na manjedoura se faz presente no sinal, não menos humilde, do pão sobre o altar. O que diremos a Jesus nesta noite, nós, co-munidade unida em seu nome? Uma palavra somente: Obrigado, Senhor.

Para as homilias sobre a missa da aurora e do dia, veja respectivamente Ano B e Ano C.

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Domingo nA oitAvA Do nAtAl (ou 30 De Dezembro): sAgrADA FAmíliA – heroDes está procurAnDo

o menino pArA o mAtAr

Leituras: ecLo 3,3-7.14-17a; cL 3,12-21; mt 2,13-15.19-23

O primeiro domingo após o Natal é dedicado à Sagrada Família. Em primeiro plano está hoje a lembrança e a veneração à Família de Nazaré. Esta nos é apresentada na antífona de entrada da missa: foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o menino deitado na manjedoura (Lc 2,16). O trecho evangélico nos faz seguir esta família em suas vicissitudes: a fuga para o Egito, depois a volta e sua permanência em Nazaré.

Mas já a primeira e a segunda leitura nos mostram claramente que a intenção da Liturgia não se esgota aqui. A história da Sagrada Família é oca-sião para uma reflexão sobre a família em geral, feita à luz da Palavra de Deus.

A primeira leitura fixa a atenção sobre o respeito e a honra que devem caracterizar as relações entre os membros de uma mesma família, sobretu-do entre pais e filhos. Trata-se, praticamente, de um comentário ao quarto mandamento: Honrar pai e mãe. E, mais, há aquela veemente exortação a respeitar o ancião, que é, sem dúvida, uma das atitudes que precisam ser repetidas com mais insistência na sociedade atual: Meu filho, ajuda a velhice de teu pai, não o desgostes durante a sua vida. Se seu espírito desfalecer, sê indulgente, não o desprezes porque te sentes forte. Quantas reflexões deve-ríamos fazer sobre essas advertências se o Evangelho não apresentasse um problema ainda mais urgente e preocupante.

No trecho do evangelho de hoje lemos frases como estas: Herodes vai procurar o menino para o matar, e ainda (na parte omitida pela litur-gia), Herodes fez matar todos os meninos de Belém dos dois anos para baixo. Depois aquela espécie de elegia fúnebre sobre os meninos mortos: Em Ramá se ouviu uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar seus filhos; não quer consolação, porque já não existem (Mt 2,18). Enfim, o anún-cio libertador: Morreram os que atentavam contra a vida do menino.

Não tenho nenhuma intenção de adulterar o sentido destas frases evangélicas. Elas descrevem um fato histórico bem conhecido. Mas ouvidas

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hoje, no âmbito de uma reflexão sobre a família, nos levam quase que ir-resistivelmente a pensar em outros Herodes, em outros meninos mortos...

O Evangelho nos apresenta hoje Jesus como o protótipo da vida per-seguida pela política e pela razão de Estado e nós, ao comentarmos sobre isso, não podemos deixar de falar daquela forma particular e crescente de sacrificar a vida humana pela razão de Estado (ou de partido) que se chama aborto. Não costumo lançar-me em discursos unilaterais e em simplifica-ções injustas e não o farei nem desta vez. Comecemos, por isso, reconhe-cendo nossas responsabilidades, antes de denunciar as dos outros, como nos ensina a fazer nosso Mestre. Se nós, que lutamos contra o flagelo do abor-to “livre e gratuito”, tivéssemos em primeiro lugar sempre mostrado com atitudes a defesa da vida – de toda forma de vida e contra toda espécie de violência à vida humana –, hoje teríamos maior credibilidade e poderíamos talvez nos fazer ouvir melhor, enquanto pressionamos nossos irmãos a não se macularem com esta culpa. Mea culpa, portanto, pelos abortos clandesti-nos não denunciados e não impedidos; mea culpa pela vida de crianças que deixamos decepar ou entristecer com as guerras, pela fome e pela especula-ção, sem procurar impedi-lo com todas as forças.

Que nunca aconteça, todavia, que as omissões do passado e do pre-sente nos levem a uma omissão ainda mais grave pela sua deliberação: aquela de calar diante da legalização e da liberação do aborto.

Porque hoje ninguém pode mais, em boa-fé, sustentar que o aborto não seja realmente e plenamente um homicídio. “É um homem também quem está se tornando” (Tertuliano). Ninguém, em toda a longa polêmica destes anos, pôde contestar os dados da ciência: o embrião, desde a con-cepção, tem todo o necessário, se não for impedido por agentes externos, a levar a termo o seu desenvolvimento; o menino de amanhã tem tudo programado nos mínimos detalhes, inclusive a cor de seus cabelos. Não se suprime, portanto, um amontoado informe de células, como se ouve dizer cinicamente por vezes, mas uma vida humana em devir, um destino e, por-tanto, uma pessoa. Não tem ainda a consciência, mas, se é por isso, não a tem nem um menino de um ano!

É curiosa e impressionante, ao mesmo tempo, a má-fé que constata-mos em nossa sociedade atual: estamos prontos a nos comover e a levantar--nos indignados por um menino recém-nascido abandonado numa lixeira,

Domingo na Oitava do Natal (ou 30 de dezembro): Sagrada Família

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por meninos doentes, por crianças vendidas; prontos para pagar resgates vultosos por uma menina raptada. Mas antes da fatalidade a vida humana parece não valer um centavo. E isso acontece dessa forma somente porque não vemos com nossos olhos! Contudo, não é um agressor contra o qual se possa apelar para a legítima defesa; nenhuma criança vem ao mundo sem que ninguém o saiba, por sua própria iniciativa; é pelo ato e pela vontade clara de duas criaturas a chamá-la à vida, e por um ato que se define como “amor”. Shakespeare narrou num drama imortal a história de Macbeth e sua mulher, que acolhem com festa, no castelo deles, seu rei como hóspede, e na noite sucessiva o matam durante o sono, acabando ambos depois por enlouquecer de remorso.

Há algo que não cessa de me surpreender na legislação sobre o aborto (feita, em geral, por homens): é a recusa em reconhecer qualquer direito ao próprio pai de exercer a paternidade, ainda que se trate de casais devidamen-te casados e que de comum acordo quiseram e geraram a vida e dela são os responsáveis. Estabelece-se, assim um princípio do qual pode originar-se, e muito concretamente, que um homem se veja privado de um dos seus di-reitos fundamentais: aquele de se tornar pai. No caso do aborto, diz-se ser a mulher a única a decidir. Assim como Pilatos, o homem lava suas mãos, pensando talvez em reparar uma injustiça, não percebendo que está, ao invés, cometendo outra pior: a de deixar para sua companheira todo o peso de uma decisão (e de um remorso) terrível. Como Pilatos, ele diz: Toma-a e mata-a você; eu não quero ter implicações com o sangue deste justo.

Para quem crê, há outra coisa; há os direitos do outro “Pai” que são espezinhados. A alma, não são os pais a infundi-la em seu filho, mas é Deus que para cada criatura humana renova o prodígio da criação. Pode-se prescin-dir deste pensamento falando-se de aborto e da avaliação de sua gravidade?

Por sorte a teologia superou a ideia do Limbo no qual iam acabar as crianças mortas sem batismo! Elas, podemos ficar certos, vão junto a Deus. Ele, em sua onipotência, saberá assegurar-lhes aquela maturação de criaturas humanas completas que lhes foi negada pelos homens. João, no Apocalipse, nos ajuda a imaginá-las ao redor do trono de Deus (Ap 14), enquanto – como diz o poeta cristão Prudêncio dos Santos Inocentes – brincam com suas pequenas coroas de mártires. São mártires, efetivamen-te, eles também, e por uma causa santíssima: a da vida.

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Antes de tudo, o que nos deve preocupar é a sorte de quem as matou e de quem sancionou com tanta facilidade a lei que permite matá-las. Não é, portanto, sobre elas que devemos chorar, mas sobre nossos pecados. Se há Deus, como nós cremos, há um mundo além, e se há um mundo além desta vida um dia alguém deverá suportar o olhar destes cordeirinhos conduzidos antes do tempo para o matadouro. Deus tenha então misericórdia de quem deverá suportar aquele olhar. Estes inocentes bem saberão, naquele dia, quem é culpado por sua morte e quem não o é; quem agiu por desespero e quem com uma fria lucidez, seguindo o instinto do mal, ou colocando a causa do partido diante da de Deus e da consciência.

Como se explica que se tenha chegado a esta moral louca povos que têm fundamentado seus códigos sob o princípio: “Quinto: não matar”? Talvez haja em seus ombros uma longa corrente de capitulações em rela-ção à vida: guerras infindas, exploração do homem pelo homem, violência, não a última delas aquelas do homem sobre a mulher. Depois, há aquele equívoco singular que se verificou também entre nós. No interior de forças declaradamente ateias e materialistas se elaboram argumentações e justi-ficações em favor do aborto que supõem a negação clara de Deus, autor e juiz da vida humana. Quando, porém, tais razões chegam aos ouvidos dos cristãos, estes, como que alucinados pela propaganda, não fazem caso se tais argumentos vêm de pessoas que compartilham a própria visão de vida, mas somente se vêm de pessoas que partilham a própria ideologia política. Assim a política é anteposta tranquilamente à fé e à consciência e, sem se perceber, se desposa a causa do ateísmo e do materialismo. Uma causa que tem a petulância de se definir como “causa do homem”, ou “libertação hu-mana”, enquanto não passa da enésima demonstração do fato de que onde se nega a Deus, acaba-se por negar e pisar em seguida também o homem.

O evangelho de hoje não nos falou somente daqueles “que perseguem a vida do menino”, mas também daqueles que a defendem. Maria e José, que enfrentam os incômodos do exílio para salvar seu menino, em seu sofri-do silêncio, são o modelo de todos aqueles que sentem o dever de proteger e defender a vida dos indefesos: toda vida, a da mãe e a do bebê: Levanta-te, toma o menino e sua mãe.

Abre-se aqui o tema sobre o que deve fazer positivamente o cristão neste campo; porque está claro que não basta limitar-se ao “não”, ou às denúncias,

Domingo na Oitava do Natal (ou 30 de dezembro): Sagrada Família

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diante da complexidade do problema. Propostas positivas, os cristãos as têm. A começar pela primeira e mais urgente de todas, que é educar de forma a le-var ao conhecimento e à valorização da sexualidade. Quem recorre ao aborto é, em geral, alguém que não soube lidar adequadamente com sua sexualidade; alguém que pensou poder tratar com ela sem responsabilidade, separando-a implicitamente de um verdadeiro amor; ou alguém que não tomou nunca a sério o dever da paternidade e da maternidade responsáveis.

O cristão sabe que esta última carência nem sempre depende dos indiví-duos, e por isso sente-se comprometido, com a Igreja e com a ciência, em resol-ver o problema moral da limitação dos nascimentos de modo honesto e eficaz. Haverá menos abortos se houver menos vidas não esperadas e não queridas.

Muitos, especialmente nas classes mais abastadas da sociedade, re-correm ao aborto por puro egoísmo, porque presos por uma concepção hedonista e absolutamente ateia da vida. Mas muitos são impelidos a re-correr ao aborto por causa de graves situações sociais. A estes últimos de-vemos procurar compreender, tomando a sério o problema habitacional, do desemprego, da mãe solteira. Compreender para ajudá-los a não ter de recorrer à solução extrema do aborto, que significa autocondenação, antes mesmo de condenar a vida da criança. Considerar-se-á inocente do aborto aquele construtor ou aquele locatário que alugando um apartamento põe como condição que não haja crianças, ou que não haja mais do que uma. Se a política de habitação diz respeito, sobretudo, aos governantes, qual-quer um, também entre vocês, pode encontrar-se tendo de enfrentar na própria família o problema de uma mãe solteira; é aí que se deve notar se os pais são verdadeiros cristãos, se prezam mais a vida ou a assim chamada “boa reputação”. Muito se faz já por parte dos cristãos e seria injusto negar este reconhecimento a tantas pessoas e instituições. Devemos fazer mais e, talvez, fazê-lo de modo novo, quer como cristãos, quer como cidadãos.

A Palavra de Deus nos levou hoje a refletir sobre um problema dos mais preocupantes. A oração deve ser o sinal de que nós não procuramos pôr-nos acima dos outros, mas somente acima do mal. Não pediremos por isso que morram “aqueles que tramam contra a vida do menino”, mas que se convertam e vivam. Vivam eles e vivam todas as vidas escondidas ainda no seio materno. Que se ouça sempre menos o pranto de Raquel que chora seus filhos que não existem mais.

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1o De jAneiro: soleniDADe DA sAntA mãe De Deus

pArAbéns A mAriA

Leituras: Nm 6,22-27; gL 4,4-7; Lc 2,16-21

Hoje a liturgia celebra a festa de Maria Santíssima Mãe de Deus. Nossos irmãos orientais de rito siríaco denominam a festa de hoje Parabéns a Maria. Nós nos achegamos a ela hoje com os sentimentos de quem se aproxima de uma mulher que há poucos dias gerou o seu primogênito.

Duas coisas, porém, distinguem nossa homenagem a Maria acima de qualquer homenagem humana. Aquele a quem ela deu à luz é o Filho de Deus. Ela é, portanto, verdadeira Mãe de Deus: Theotokos, como dizem os cristãos ortodoxos. A Igreja definiu esta verdade num de seus primeiros concílios ecu-mênicos: aquele que teve lugar em Éfeso no ano de 431. Santo Inácio de Antioquia, um dos mais ilustres mártires da antiguidade cristã, chama a Jesus “o filho de Deus e de Maria”. Isto coloca Maria em um patamar altíssimo: nada mais e nada menos do que junto ao Pai celeste. Mas a coloca, ao mesmo tempo, tão próxima de nós de modo a torná-la nossa mãe: a mãe da Igreja. O Jesus que ela gerou nos assumiu como irmãos; uniu-nos a si tão profundamente de modo a formar um só corpo; fez-se nossa cabeça, mas também nosso irmão: primogênito entre uma multidão de irmãos, como o chama São Paulo (Rm 8,29).

É aquilo que o apóstolo nos recordou com as palavras sublimes de sua carta aos gálatas que acabamos de ouvir há pouco: Deus enviou seu Filho, que nasceu de uma mulher [...] para que recebêssemos a sua adoção. No momento em que Jesus, em Maria, se torna filho do homem, nós, filhos dos homens, nos tornamos filhos de Deus. Uma vez que ele de filho se faz servo, nós que éramos servos nos tornamos filhos: Já não és mais escravo, mas filho, nos re-cordou São Paulo na mesma carta. É a admirável permuta, diante da qual se encanta hoje toda a Liturgia da Igreja. Dessa permuta ,Maria foi “o lugar” e a mediadora. Tornados filhos de Deus por meio do Espírito, nós adquirimos o direito de usar também a linguagem e a confiança dos filhos em relação a Deus, chamando-o como Jesus: Abba! Pai nosso! É uma espécie de relíquia viva do Cristo esta palavra: é sua “ipsissima voz”, isto é, sua mesma voz, chegada a nós sem passar por nenhuma tradução. Abba! Assim rezou Jesus Cristo.

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O Verbo se faz carne

Talvez devêssemos recordar-nos mais frequentemente deste nosso in-crível e dulcíssimo direito; deveríamos imitar nosso irmão Jesus, o qual na angústia do horto das oliveiras, como no ímpeto da alegria, sempre se diri-gia ao Pai: Pai, se é possível... Agradeço-te, ó Pai... Pai, em tuas mãos entrego meu espírito. Nossa vida cristã tem necessidade deste amplo respiro para não viver na tristeza e não definhar na aridez do formalismo. Se nós aprender-mos a estruturar toda nossa vida cristã nesse relacionamento filial com o Pai, nele encontraremos a unidade de toda a fé; descobriremos a relação que nos une com cada uma das três pessoas divinas: nós vamos ao Pai por meio de Jesus Cristo, no Espírito Santo. E vamos a ele não individualmente, ou até por grupos, mas como comunidade de pessoas salvas, como Igreja da qual Maria é a mãe, o modelo.

Até aqui as reflexões sugeridas pela linda carta de São Paulo: “guar-dava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração”. “Todos esses fatos”. De que fatos se trata exatamente? As palavras e os acontecimentos daqueles dias. Tudo o que acontecera por ocasião do nascimento de Jesus. O Natal foi para ela algo que conservou no coração, que meditou: foi uma escola da fé. Por quantas vezes Maria talvez tenha voltado o pensamento àqueles fatos, “às coisas ditas pelos pastores”, para haurir deles luz e cora-gem durante aqueles trinta longos anos de Nazaré, anos de fadiga e silên-cio. Porque – é importante sabê-lo – também Maria viveu de fé, cresceu na fé, foi provada na fé. E nesse crescimento na fé seu alimento foi, como é para nós, a Palavra de Deus. A Palavra de Deus nela se fez carne duas vezes: primeiro fisicamente, quando por nove meses ela o carregou no seio e o ali-mentou; depois se fez carne no resto de sua vida, no sentido de que cada um de seus gestos e cada momento tenha sido inspirado pela Palavra de Deus, que atuou com fidelidade. Maria é a Palavra de Deus feita silêncio. Ela fica silenciosa debaixo da Cruz e silenciosa no cenáculo.

Nós não podemos imitá-la na primeira encarnação, mas podemos fazer isto na segunda. Podemos como ela “conceber o Verbo com a mente” (Santo Agostinho). Podemos, sim, acolher a Palavra, guardá-la no coração, torná-la “luz para os nossos passos”, alimento de nossa vida. Até merecer aquela bem-aventurança que o Senhor pronunciou um dia, por ocasião de uma visita de sua mãe: Bem-aventurados aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a observam (Lc 11,28).

Page 32: O Verbo se faz carne - avemaria.com.br · de esperança: primeiro para a mãe que o esperou, como dirá Jesus um dia; depois para o mundo e para Deus. Cada bebê que nasce nesta terra

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A N O A

1o de janeiro: Maria Santíssima Mãe de Deus

Terminemos voltando à ideia de permuta da qual falamos no início de nossa reflexão. À luz da festa de hoje, Maria apresenta-se como o dom maravilhoso que se trocaram, no Natal, Deus e o gênero humano. Nossos irmãos de rito bizantino assim falam a Jesus na festa de Natal: “O que podemos vos oferecer, ó Cristo, por vos terdes feito homem sobre a terra? Cada criatura vos apresenta o sinal do seu reconhecimento: os anjos, os seus cantos; os céus, a sua estrela; a terra, uma gruta; o deserto, um presépio. Mas nós vos oferecemos uma mãe virgem!” (Idiomelon nas grandes vésperas de Natal). O gênero humano deu a Jesus, Maria, sua mais bela criatura, por mãe. E Jesus, no ocaso da vida, nos devolveu o presente, dando-nos Maria por nossa mãe: Filho, eis tua mãe.

Para os temas da paz e do ano novo, veja respectivamente o Ano B e o Ano C.