OBITUÁRIO EDIFICADO: AS PERDAS REFERENCIAIS NA...
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OBITUÁRIO EDIFICADO: AS PERDAS REFERENCIAIS NA PAISAGEM
URBANA DE SANTO ÂNGELO1
Amilcar Guidolim Vitor2
Fernando Edgar Rieck3
Paula Fernanda Batista4
Fiama Piltz5
RESUMO: O artigo enfoca, a partir do obituário edificado, a arquitetura - constituinte do
espaço e tempo - considerando as perdas referenciais, através das transformações no espaço,
da paisagem urbana santo-angelense. Esta, apresenta a trajetória do ambiente construído,
estabelecendo valores, imagens, identidade, memória quanto ao imaginário coletivo,
representadas por bens culturais imóveis significativos. A arquitetura pretérita, lentamente,
desaparece, na cidade de Santo Ângelo, modificando a paisagem urbana. Consequência disso,
o óbito arquitetônico a partir do desaparecimento de edificações com caráter histórico,
artístico e cultural. Estas, que, em épocas passadas, foram referências no espaço urbano do
município. Reconhecer tais bens imóveis referenciais, nesta transformação do espaço, remete,
perante a sociedade/comunidade local, a relação entre cidadão e arquitetura, bem como com
seu patrimônio cultural. Tal relação, revela a importância da preservação do patrimônio
histórico cultural edificado, onde, a representação física (atualmente não mais) destes bens na
paisagem do município apresentaria a apropriação do espaço, enquanto referências no
pertencimento patrimonial pelo cidadão.
PALAVRAS-CHAVE: Obituário Edificado, Paisagem Urbana, Bens Culturais Imóveis,
Educação Patrimonial, Imaginário Coletivo.
1 História e Patrimônio 2 Professor do Departamento de Ciências Humanas da URI – Campus Santo Ângelo; Membro do Grupo de
Estudos e Pesquisa em Patrimônio Cultural e Arquitetura - GEEPARq da URI – Campus Santo Ângelo.
Contato: [email protected] 3 Professor do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da URI – Campus Santo Ângelo; Membro do Grupo
de Estudos e Pesquisa em Patrimônio Cultural e Arquitetura - GEEPARq da URI – Campus Santo Ângelo.
Contato: [email protected] 4 Graduada em Arquitetura e Urbanismo; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio Cultural e
Arquitetura - GEEPARq da URI – Campus Santo Ângelo. Contato: [email protected] 5 Acadêmica do curso de Arquitetura e Urbanismo; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio
Cultural e Arquitetura - GEEPARq da URI – Campus Santo Ângelo. Contato: [email protected]
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INTRODUÇÃO
A pesquisa, desenvolvida pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural e
Arquitetura (GEPPArq) da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões –
URI – Campus Santo Ângelo, aborda em seu recorte sobre o desaparecimento e
descaracterização de edificações pretéritas significativas que pertenceram ou ainda pertencem
à paisagem urbana do município de Santo Ângelo, na região noroeste do Rio Grande do Sul.
O obituário do patrimônio construído visa mostrar a subtração destes bens imóveis do
conjunto edificado, incluindo diferentes tipologias, usos e funções e, também, aquelas ainda
existentes, porém descaracterizadas.
Apresentar tais edificações revela as perdas significativas no conjunto arquitetônico e
tecido urbano consolidado. Isto, a partir da transformação da paisagem/espaço urbano, da
descaracterização, dos novos edifícios/espaços construídos (muitas vezes de qualidade
arquitetônica duvidosa/inferior) no mesmo lote, do prejuízo, enquanto linguagem
arquitetônica, principalmente do núcleo primitivo da cidade.
O desaparecimento destas edificações mostra o grau de consciência – de cidadãos e
gestores – sobre o tema, sob a ótica da preservação, conservação e manutenção de tais bens
imóveis ao longo da evolução urbana do município. Estes, foram referências como parte da
paisagem cultural da cidade.
A descaracterização remete aos novos usos e funções do bem imóvel, ocorrendo
intervenções, muitas vezes danosas e irreversíveis, comprometendo a leitura da edificação,
considerando a autenticidade e integridade do bem, conceitos importantes no que tange às
edificações pretéritas, considerando: volumetria, partido arquitetônico, técnicas construtivas e
materiais empregados.
Ter ciência sobre o tema significa o contraponto da demolição e descaracterização
destas edificações: conscientizar e apropriar-se dos remanescentes edilícios significativos,
ainda existentes, pela sociedade civil e gestores públicos, a partir da preservação e proteção
legal deste acervo arquitetônico. Recentemente, no ano de 2015, o município de Santo
Ângelo regulamentou a situação do seu patrimônio cultural material e imaterial através de lei
especifica, o que contribuiu para anos de subtrações ou modificações em seus prédios
históricos. Muitos foram a óbito, outros ainda resistem com significativas alterações em seus
usos e funções.
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A documentação, o registro, através da produção de um obituário do patrimônio
material edificado de Santo Ângelo, constitui-se ferramenta fundamental na preservação se
não do bem em si, mas da memória destes bens culturais, suprindo lacuna quanto ao tema,
considerando o descaso e esquecimento da sociedade e gestores daqueles edifícios com
importância na paisagem urbana. Esta documentação servirá de fonte de pesquisa para
futuras ações, considerando diferentes atores, desde o meio acadêmico até as esferas públicas
– municipais, estadual e federal.
SANTO ÂNGELO: SUAS HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E DISPUTAS EM TORNO DO
PATRIMÔNIO EDIFICADO.
Santo Ângelo está inserido entre os sete povos das Missões, integrantes de um
conjunto urbanístico maior, os 30 povos, que se estruturaram e se desenvolveram durante o
final do século XVII até meados do século XVIII6. A experiência Jesuítico-indígena durou
até meados do século XVIII, quando a disputa pelos territórios platinos, impõem aos
indígenas reduzidos, por razões políticas e econômicas no ano de 1750, o Tratado de Madrid;
isso implicava na retirada das populações indígenas dos sete povos. O Tratado não é aceito
pela grande maioria dos indígenas que habitavam o local, o que acaba por desencadear a
Guerra Guaranítica, tendo como ápice a batalha de Caiboaté, que leva a derrota missioneira
no ano de 17567.
Posterior a expulsão dos jesuítas do território, inicialmente denominado sete povos
das missões com o Tratado de Madrid em 1750, é decretado o fim de uma experiência nunca
antes vivenciada na história. Sem o cuidado dos padres, o território chega ao século XIX com
as estruturas decadentes e desprovidas de qualquer forma de cuidado administrativo.8
A efetiva reocupação do espaço da antiga redução ocorreu por volta do ano de 1859
quando Antônio Manoel de Oliveira e Antônio Gomes Pinheiro Machado principiaram a
ocupação do local, para fazer dele sede da paróquia da nova Freguesia. Nesse período foi
erguida a primeira casa nas proximidades da antiga igreja, reaproveitando as estruturas da
Missão de Santo Ângelo Custódio. O novo povoado, que surge também nas imediações da
Praça Pinheiro Machado, é habitado por paulistas e açorianos9. Segundo Costa (2007)
6 SCHALLENBERGER, 2006. 7 GOLIN, 1999. 8 BAPTISTA; BAUER; PRESA; 2006. 9 FINOKIET, 2007.
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algumas correntes migratórias destacaram-se nesta fase inicial de formação do município,
com forte influência na formação de seu espaço urbano, tais como a alemã e a italiana.
Com o estabelecimento de sedes de regimentos militares, a cidade se desenvolveu e se
expandiu para o norte. Os imigrantes alemães, recém chegados, formaram um novo núcleo
comercial a partir da Rua 25 de Julho, por onde passava os trilhos do ramal ferroviário. A
Estação Ferroviária foi inaugurada em 16 de outubro de 1921. A instalação da estação
marcou o desenvolvimento da cidade e incentivou a vinda dos imigrantes, que vieram residir
na zona norte da cidade10.
Muitas indústrias como a Companhia de Fumo em Folha, a Companhia Algodoeira
Sul Rio Grandense e a Fábrica de Banha se desenvolveram ao longo dos trilhos do trem em
volta da Estação. Produtos coloniais vindos dos distritos próximos eram embarcados nos
trens. Dessa forma, a antiga Gare que gerou um novo núcleo urbano construído na zona norte
ativou o comércio, favoreceu a construção de hotéis e boas residências.11
Aos poucos, o espaço urbano que já foi ocupado por uma aldeia indígena pré-histórica
e depois por uma redução Jesuítico-indígena, deu lugar a vários imigrantes vindos de locais
distintos, formando uma vila, tornando-se um município com uma grande mistura étnica e
cultural facilmente vista nos atuais habitantes da cidade. Estes imigrantes, seguindo a lógica
da reocupação do local, reutilizaram as pedras da antiga redução e construíram o seu legado
arquitetônico à sociedade atual. Assim, o espaço que atualmente é ocupado pelo município de
Santo Ângelo traz consigo, imagens, histórias, monumentos, registros de um grande processo
de modificações e transformações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Todavia, o que é de se preservar para um determinado grupo social, não tem a mesma
importância para outro, e, ligados a isso, muitas vezes, existem grandes conflitos de
interesses, boa parte deles políticos e econômicos. Nesse sentido, Funari e Carvalho (2011, p.
48) fazem um questionamento; “seria possível a preservação de um patrimônio por parte de
pessoas que não se reconhecem nele?”. O autor afirma que esta questão divide as opiniões
dos especialistas, mas, afirma que, sem educação patrimonial poucas serão as mudanças
implantadas no que se refere a cidadania. Segundo Unes (2008, p. 28), “(...) reconhecemos e
aceitamos apenas aqueles monumentos do passado para os quais estamos hoje
programados”. Ou seja, reconhecemos como patrimônio aquilo que nos foi ensinado a 10 BRAATZ, 1979. 11 Idem.
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reconhecer como tal. No caso de Santo Ângelo, essas interpretações distintas do que se
constitui em expressão do patrimônio cultural e, portanto, é passível de preservação,
promoveu e ainda promove muitos debates acirrados, principalmente em torno do patrimônio
edificado.
Entretanto, a multiplicidade de expressões patrimoniais acaba ocupando uma posição
secundária naquilo que se pode designar como patrimônio cultural santo-angelense. Pelo
menos em relação ao discurso dominante na cidade em torno de seu passado reducional.
Durante o mês de setembro de 2011, um dos poucos exemplares de prédios do início
do século XX (FIGURA 1) que restam no município foi parcialmente demolido, o que gerou
mobilização na cidade tanto entre aqueles que reivindicam a preservação quanto daqueles que
defendem o direito de propriedade. Atualmente o espaço que era ocupado pelo prédio está
ocioso (FIGURA 2) e inviabilizado em função de questões legais provocadas pela demolição
do mesmo.
FIGURA 1: Edifício localizado na esquina das ruas Florêncio de Abreu e Antônio Manoel.
Santo Ângelo/RS12.
12 Arquivo Histórico de Santo Ângelo.
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FIGURA 2: Terreno na esquina das ruas Florêncio de Abreu e Antônio Manoel. Santo
Ângelo/RS13.
A polêmica chegou à Câmara de Vereadores do município em sessão realizada em 05
de setembro de 2011. Conforme se noticiou:
Na sessão da câmara desta segunda-feira, um grupo de santo-angelenses em nome
do recém criado “Movimento em Defesa do Patrimônio Cultural de Santo Ângelo!
Amo Minha cidade e quero sua História Viva!” fez a entrega de uma carta
reivindicando a criação de leis que protejam o patrimônio do município. “Estamos
sempre falando no orgulho de ser missioneiro, mas estamos demolindo prédios que
ajudam contar a nossa história. Nem sequer a Catedral Angelopolitana é amparada
por uma lei que a proteja”, diz Darlan Marchi representante do movimento. A
discussão chegou à Câmara depois que um prédio da esquina das ruas Florêncio de
Abreu com a Antônio Manoel começou a ser demolido. A construção, segundo
Marchi, é de 1924 e serviu de pousada no auge do transporte ferroviário e da
colonização alemã do município. 14
Em outra sessão realizada na Câmara de Vereadores de Santo Ângelo, uma semana
depois da manifestação do grupo que reivindicava a preservação dos prédios históricos, os
proprietários de alguns imóveis considerados de valor histórico para o município
acompanharam a sessão e se manifestaram com relação ao tema da preservação desses
prédios. Os proprietários foram representados por um advogado. Segundo se noticiou na
imprensa local:
13 Foto: Fernando Edgar Rieck, setembro de 2015. 14 GOMES, Juliana. Reivindicação pela proteção patrimonial chega à câmara. Disponível em:
<http://wp.clicrbs.com.br/santoangelo/2011/09/06/reivindicacao-pela-protecao-patrimonial-chega-a-camara-de-vereadores>.
Acesso em: 15.out.2011.
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Proprietários de imóveis considerados de relevância histórica e cultural em Santo
Ângelo estiveram nesta segunda-feira, 12, acompanhando a sessão ordinária da
Câmara Municipal. O advogado Nelmo Costa foi quem falou em nome dos
proprietários. Em seu pronunciamento, mostrou-se contrário à aprovação do projeto
de lei encaminhado pelo Executivo Municipal no ano de 2009 que tratava sobre a
proteção do patrimônio histórico-cultural no município.15
Recentemente, no mês de setembro de 2015, o município de Santo Ângelo, através de
sua Câmara de Vereadores, aprovou uma lei que regulamenta a preservação do patrimônio
histórico e cultural da cidade16. Porém, a aprovação desta lei não se deu de maneira unânime.
Foram anos de debates, ações na justiça e até mesmo outras votações na Câmara de
Vereadores onde se rejeitou o projeto de lei, para que finalmente fosse aprovada uma
proposta em 2015. Proprietários de prédios com valor histórico cultural se uniram para
legitimar e defender aquilo que acreditavam ser seu direito à propriedade contestando o fato
de que seus prédios teriam relevância histórica e cultural para o município e, portanto,
passíveis de serem preservados através de legislação específica.
Para tentar dar uma resposta, tanto aos proprietários dos imóveis, quanto a
movimentos sociais que atuam em defesa do patrimônio, o executivo municipal de Santo
Ângelo criou no ano de 2012 uma equipe interdisciplinar17 formada por Arquitetos e
Historiadores para que fosse realizado um novo inventário dos prédios históricos de Santo
Ângelo. O município também possui conselho do patrimônio, órgão consultivo que chegou a
realizar um inventário dos prédios que poderiam ser passíveis de preservação e que acabaram
servindo de referência para a equipe multidisciplinar que iniciou um trabalho técnico de
análise das edificações.
Após três anos de trabalho da equipe multidisciplinar o inventário dos bens imóveis
de Santo Ângelo foi concluído. De uma lista com mais de 118 prédios, 58 foram indicados
para fins de preservação. Durante o processo de realização deste inventário foram sendo
15 GOMES, Juliana. Proprietários de imóveis de relevância histórica acompanham sessão da Câmara. Disponível em:
<http://wp.clicrbs.com.br/santoangelo/2011/09/13/proprietarios-de-imoveis-derelevancia-historica-acompanham-sessao-da-
camara/>. Acesso em: 15out.2011. 16 Câmara de Vereadores de Santo Ângelo. PL que dispõe sobre a proteção do patrimônio arquitetônico, histórico e cultural
é novamente apreciado pelo Legislativo de Santo Ângelo. Disponível em: <http://www.camarasa.rs.gov.br/pl-que-dispoe-
sobre-a-protecao-do-patrimonio-arquitetonico-historico-e-cultural-e-novamente-apreciado-pelo-legislativo-de-santo-
angelo>. Acesso em: 27 set. 2015. 17 ClickRBS. Câmara aprova contratação de historiador para estudo de bens considerados patrimônio histórico. Disponível
em: <http://wp.clicrbs.com.br/santoangelo/2011/10/18/camara-aprova-contratacao-de-historiador-para-estudo-de-bens-
considerados-patrimonio-historico/>. Acesso em: 27 set. 2015.
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elaborados graus de preservação para os prédios conforme sua relevância histórica e
arquitetônica. Apesar de a condição estrutural dos prédios não ser argumento válido para a
desconsideração do bem enquanto patrimônio ou até mesmo a demolição da edificação,
levou-se em consideração o processo de descaracterização interna e externa dos imóveis.
Dessa forma, foram elaborados graus de preservação dos edifícios conforme sua relevância
histórica e arquitetônica, bem como sua caracterização e manutenção de volumetria e
fachada.
OBITUÁRIO: O DESAPARECIMENTO E DESCARACTERIZAÇÃO FÍSICA NA
PAISAGEM URBANA.
A cidade, organismo vivo, dinâmico, inevitavelmente transforma-se ao longo de sua
trajetória histórico-temporal, a partir da evolução urbana, refletindo no ambiente construído
do território ocupado.
A mudança da leitura do ambiente construído, com a substituição e/ou
descaracterização das edificações torna o espaço distinto daquele primitivo. Esta distinção
apresenta mudança na paisagem urbana, perdendo-se as referências e, também, a apropriação
do espaço pelos moradores, considerando a identidade, a memória e o imaginário coletivo.
Tais conceitos são importantes quanto a conscientização e, a necessidade, da preservação por
parte dos usuários – cidadãos e também gestores.
Esta dinâmica, transformação e conceitos estão atrelados ao patrimônio cultural, tanto
material quanto imaterial. Pelo recorte do artigo, considerando as edificações de significância
histórica, artística e cultural, tais bens culturais são classificados como imóveis, sendo esta
categoria vinculada ao patrimônio cultural material.
O obituário do patrimônio construído de Santo Ângelo, apresenta a transformação do
território, fisicamente. Para isso, considera-se o espaço, o ambiente construído, através destes
bens, como documento histórico, retratando a trajetória histórico-temporal e físico-ambiental.
Bens de tipologias e usos/funções distintos, mas referências no ambiente construído, quanto à
qualidade arquitetônica (e perda desta) e leitura do conjunto arquitetônico dos espaços, em
tecido urbano consolidado, principalmente na área/núcleo primitivo de ocupação do território.
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Por serem referência na paisagem urbana estão atreladas à identidade, memória e imaginário
coletivo da população.
O Obituário arquitetônico: Pernambuco modernista (AMORIM, 2007), trata da
questão sob a ótica da demolição e descaracterização dos exemplares significativos do
período da arquitetura moderna pernambucana; ênfase para a cidade de Recife. No caso da
pesquisa, não há recorte temporal de estilos, mas sim a inclusão de exemplares demolidos e
descaracterizados.
Conforme Amorim (2007), a perda destes exemplares é interpretada como a morte
arquitetônica, revelada em diferentes faces: a prematura, a de nascença, por vaidade, por
parasitas, por abandono e a anunciada (pela especulação imobiliária, presente fortemente em
Santo Ângelo). Neste panorama, contribui de forma decisiva para a classificação dos edifícios
em Santo Ângelo, onde revelará o que já se perdeu, o que existe (de forma descaracterizada),
e as novas edificações - transformação do espaço, com perda da identidade, memória e
imaginário coletivo, contribuindo na modificação do ambiente construído/paisagem urbana.
Assim, bens imóveis desapareceram, foram demolidos – morte arquitetônica
anunciada - e descaracterizados, a partir, principalmente, dos novos usos/funções dos
mesmos. Classificados em desaparecidos e descaracterizados, alguns exemplos (de vários)
apresentam esta modificação, refletindo no ambiente construído, na paisagem urbana -
transformação física - muitas vezes de qualidade arquitetônica duvidosa, na leitura do
conjunto (desaparecimento/descaracterização) ou do próprio bem (descaracterizado).
BENS CULTURAIS IMÓVEIS DESAPARECIDOS OU DESCARACTERIZADOS:
OS CASOS DO HOSPITAL GATZ, DO CLUBE GAÚCHO E DA FARMÁCIA
LICHT.
O Hospital Gatz, demolido em 2005, localizado na área central do município,
ocupava, no quarteirão, uma das faces, de esquina a esquina, na Rua dos Andradas.
Atualmente, do conjunto edificado, apenas o bem imóvel da esquina da rua citada com a Rua
Antunes Ribas permanece. O lote único foi parcelado, com a construção de outros edifícios
de uso e funções distintas, assim como os gabaritos, perdendo a leitura e unidade do conjunto,
na paisagem urbana/ambiente construído, pretendidos pelo antigo Hospital. Ainda, pela
10
função do Hospital, este, como referência na paisagem pelos moradores. Houve a
transformação do espaço (FIGURA 3), alterado a partir da planimetria – parcelamento e
ocupação do solo.
Também se percebe a alteração de altimetria – gabarito.do novo edifício (FIGURAS 4
e 5) (uso misto – residencial e comercial), em fase de acabamento, extrapolando, e muito, o
gabarito do antigo hospital, acarretando modificação na questão da percepção do ambiente
construído, transformando a paisagem urbana. Ainda, a modificação do uso com a nova
edificação – residência multifamiliar. O uso e parcelamento do solo, contribui para a leitura
fragmentada, enquanto conjunto, arquitetura, volumetria e espacialidade. Da ocupação inicial
– Hospital Gatz, apenas resiste a, então, residência do Dr. Willy Gatz.
FIGURA 3: Lote ocupado pelo Hospital Gatz, em amarelo, até sua demolição em 2005. Em
vermelho (contorno) o atual parcelamento e ocupação do solo, com edificações de distintos
usos. Em azul (contorno) único bem remanescente do conjunto edificado – residência do Dr.
Willy Gatz18.
18 Fonte: Google Earth.
11
FIGURAS 4 e 5: Diferença entre gabaritos – antigo x novo. Hospital Gatz x edifício residencial.
Alteração da paisagem urbana, fisicamente, a partir das novas massas/volumetrias propostas
pela inserção do novo edifício19.
Outra situação de bem desaparecido, porém permanecendo o mesmo uso e função,
com o novo edifício implantado no mesmo lote: o Clube Gaúcho (FIGURA 6). Implantado
no entorno imediato da Praça Pinheiro Machado – núcleo de ocupação territorial primitivo. A
figura 6 mostra a antiga sede do Clube Gaúcho, considerando a relação entre a praça e
edificações do entorno.
Figura 6: Edifício do Clube Gaúcho, construído em 1920, considerando o entorno imediato,
onde o ambiente construído apresenta homogeneidade, na leitura do conjunto, estilo e gabarito.
Na imagem à esquerda, edificações (indicadas) ainda existentes. Na imagem à direita o edifício
do Clube Gaúcho e o sobrado do Sr. Cortes (este, atualmente com novo uso)20.
19 Fonte: Figura 4 – Arquivo Histórico Municipal. Figura 5 – Fernando Edgar Rieck, setembro de 2015. 20 Fonte: Arquivo Histórico Municipal.
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A antiga sede do Clube Gaúcho, de 1920, foi demolida na década de 60, substituída
pelo atual edifício, denominado Palácio Metálico. Este, de arquitetura, volumetria e gabarito
sem nenhuma relação com o entorno imediato, considerando os bens imóveis
contemporâneos à antiga sede do clube – sobrado e Escola Estadual Onofre Pires, existentes
até hoje, como remanescentes da ocupação e conjunto pretérito. As figuras 7 e 8 mostram a
antiga sede demolida e a atual sede, respectivamente.
A Farmácia Licht (FIGURAS 9 e 10), sobrado eclético do início do século XX
apresenta uso misto: térreo com a farmácia e comércio, com espaço distinto daquela. No
pavimento superior residência. Mesmo com a caracterização do uso e função quase
primitivos, houve descaracterização no bem imóvel, com intervenções que comprometem a
leitura da edificação.
FIGURAS 7 e 8: Antiga sede e a atual do Clube Gaúcho, denominado Palácio Metálico21.
FIGURAS 9 E 10: O bem sem intervenções e prejuízos quanto à leitura de volumetria e
composição e atualmente, com intervenções reversíveis22.
21 Fonte: Figura 7 - Arquivo Histórico Municipal. Figura 8 - Fernando Edgar Rieck, setembro, 2015. 22 Fonte: Figura 9 - Arquivo Histórico Municipal. Figura 10 - Fernando Edgar Rieck, setembro, 2015.
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Tais intervenções afetam a autenticidade e integridade do bem, considerando adições
de elementos às fachadas, com materiais distintos dos primitivos, alteração nos vãos (trocas
das portas do térreo), ocasionado mudanças na composição e volumetria (intervenções de
adição). Ainda, alteração de partido arquitetônico na espacialidade interna do edifício. Placa e
toldos que comprometem, além da leitura, a autenticidade e integridade. Ainda, em função do
novo uso, para identificação, a pintura foi modificada por outra cor, no espaço onde há a
venda de loterias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Obviamente, existem diversos outros exemplos de bens imóveis passiveis de terem
sido preservados por uma legislação especifica que regulamentasse o patrimônio cultural do
município. Porém, como já exposto anteriormente, esta lei chega apenas durante o ano de
2015. Neste pequeno ensaio não haveria espaço para realizarmos discussões mais
aprofundadas e discutir caso a caso.
A proposta do GEPPArq é socializar uma iniciativa que vem sendo amadurecida há
alguns anos, mas que agora está sendo efetivada e desenvolvida através dos editais internos
de fomento a projetos de pesquisa da URI – Campus Santo Ângelo. Envolvendo professores
dos departamentos de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e também acadêmicos do curso
de arquitetura da URI. Como apresentado, foram e são muitas as disputas e interesses nas
expressões do patrimônio cultural material e imaterial da cidade e cabe à academia promover
a pesquisa e levar ao conhecimento da população local e a quem interessar parte desta
história e memória.
A construção do Obituário, através do projeto de pesquisa do GEPPArq, traz à tona
questões relevantes. A conscientização da população enquanto entendimento à preservação
de bens culturais imóveis, sendo referências na paisagem urbana/ambiente construído,
atrelados a identidade, a memória e o imaginário coletivo. Aspectos estes, relacionados a
apropriação do espaço pelos cidadãos. A transformação do espaço - relacionada a destruição
e descaracterização destes bens, considerando as questões supracitadas, faz com que as
gerações presentes e, principalmente, às futuras, não conheçam, e se reconheçam, no
ambiente construído habitado.
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A qualidade do espaço, principalmente pela destruição (também pela
descaracterização), de núcleos primitivos de ocupação merecem respeito. Respeito este,
porque bens culturais imóveis – preexistências, enquanto documento histórico, contribuem na
trajetória de tempo histórico de formação/evolução da cidade. Cidade sem passado, sem
identidade, sem memória não tem futuro!
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