Obrigatoriedade e ensino de espanhol no arquivo jurídico e ... · Capítulo 2 – As LDB’s e uma...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA LÍNGUA VIVA, LETRA MORTA Obrigatoriedade e ensino de espanhol no arquivo jurídico e legislativo brasileiro Fernanda Dos Santos Castelano Rodrigues Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras Orientadora: Profa. Dra. María Teresa Celada São Paulo 2010

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA ESPANHOLA E

LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA

LNGUA VIVA, LETRA MORTA

Obrigatoriedade e ensino de espanhol

no arquivo jurdico e legislativo brasileiro

Fernanda Dos Santos Castelano Rodrigues

Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Lngua Espanhola

e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana

da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

da Universidade de So Paulo,

para a obteno do ttulo de Doutor em Letras

Orientadora: Profa. Dra. Mara Teresa Celada

So Paulo

2010

2

Catalogao na Publicao Servio de Biblioteca e Documentao

Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

Rodrigues, Fernanda dos Santos Castelano

Lngua viva, letra morta: obrigatoriedade e ensino de espanhol no arquivo jurdico e legislativo brasileiro / Fernanda dos Santos Castelano Rodrigues; orientadora Mara Teresa Celada. -- So Paulo, 2010.

342 f.

Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Lngua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

1. Ensino de lngua estrangeira - Legislao. 2. Lngua espanhola Ensino. 3. Documentao Jurdica (1757-1996) - Brasil. I. Ttulo. II. Celada, Mara Teresa.

3

Banca Examinadora

____________________________________________________

Profa. Dra. Mara Teresa Celada

(orientadora)

____________________________________________________

Prof. Dr. Adrin Pablo Fanjul (USP)

____________________________________________________

Profa. Dra. Elvira Narvaja de Arnoux (UBA/Argentina)

____________________________________________________

Profa. Dra. Mara del Carmen Ftima Gonzlez Daher (UFF)

____________________________________________________

Profa. Dra. Mnica Graciela Zoppi-Fontana (UNICAMP)

Suplentes:

Profa. Dra. Neide Therezinha Maia Gonzlez (DLM/USP)

Profa. Dra. Mara Zulma Moriondo Kulikowski (DLM/USP)

Profa. Dra. Walkyria Maria Monte Mr (DLM/USP)

Dra. La Noemi Varela (Ministerio de Educacin/Argentina)

Prof. Dr. Adalton Franciozo Diniz (PUC/SP)

4

Para Marco

e para Wellington

5

Agradecimentos

Agradeo muito especialmente a Maite Celada. No apenas pela dedicada

orientao deste trabalho, mas sobretudo pela generosidade, a confiana, o respeito e o

carinho que marcam sua presena neste trabalho e em minha vida.

Escrever esta tese no teria sido possvel sem a contribuio de algumas pessoas e

instituies. Quero agradecer particularmente

aos professores e pesquisadores

Adrin Fanjul,

La Varela,

Elvira Narvaja de Arnoux,

Mnica Zoppi-Fontana,

Roberto Bein

e muito especialmente a

Adalton Francioso Diniz;

aos colegas do DL/UFSCar,

a Fernando H. Rossit e,

especialmente aos amigos

Rosa Yokota, Nelson Viana, Sandra

Gattolin e Wilson Alves-Bezerra;

aos alunos de Letras/Espanhol da

UFSCar, especialmente s turmas

2007, 2008 e 2009;

a CAPES e ProPG/UFSCar;

aos funcionrios do Sistema de

Informao do Congresso Nacional;

aos amigos de/em Buenos Aires,

Paula Wendel, Juan David, Maria Paula,

Leandro e Adilson;

aos companheiros da COPESBRA,

especialmente a Luciana M. A. Freitas;

a Antn Castro Mguez, tambm pela

reviso;

a Ccero Oliveira, pelas gauchadas todas;

aos amigos de longe e de sempre,

Andra Ricupero, Joo Paim e

Carlos Bonfim;

aos amigos entre contextos,

Greice Nbrega e Marcos Maurcio;

a meus Castellano,

Mnica, Rodolfo, Preta, Joyce e Thas;

aos Ramalhoso e Ramalhoso Alves;

ao Welli, pela reviso,

pela compreenso e tudo mais.

Para cada um de vocs, minha gratido e meu carinho.

Grazie desistire.

6

em um mundo datado como o nosso,

a explicao do acontecer pode ser feita

a partir de categorias de uma histria

concreta. isso, tambm, o que permite

conhecer as posibilidades existentes

e escrever uma nova histria.

Milton Santos

7

Sumrio

Resumo 11

Abstract 12

Rsum 13

Apresentao 14

PARTE I ARQUIVO JURDICO & LNGUAS NO BRASIL

Captulo 1 Leis e lnguas no ensino brasileiro de 1757 a 1942

1. Introduo 22

2. Algumas noes tericas fundamentais: arquivo e condies de produo 23

2.1. O arquivo 23

2.2. As condies de produo 26

3. O arquivo jurdico sobre as lnguas na educao brasileira: da Colnia

primeira metade do sculo XX 29

3.1. A constituio do arquivo 31

4. A presena das lnguas no arquivo jurdico de 1757 a 1942 35

4.1. Diretrio dos ndios, 1757 35

4.2. Estatutos do Collegio de Pedro Segundo, 1838 46

4.3. Decreto No 981, 1890 52

4.4. Decreto No 19.890, 1931 63

4.5. Decreto Lei No 4.244, 1942 71

5. Algumas consideraes acerca do arquivo jurdico sobre as lnguas no

ensino brasileiro entre 1757 e 1942 80

Captulo 2 As LDBs e uma ruptura na memria discursiva

1. Introduo 83

2. As Leis de Diretrizes e Bases de 1961, 1971 e 1996 84

2.1. LDB de 1961 85

2.2. LDB de 1971 93

2.2.1. A Resoluo de 1976 97

2.3. LDB de 1996 99

3. Algumas consideraes sobre o lugar das lnguas estrangeiras nas LDBs 104

3.1. O processo de desoficializao da lnguas estrangeiras e a disjuno

entre lngua estrangeira da escola e lngua estrangeira de cursos livres 105

3.1.1. A capitalizao lingustica 107

3.1.2. Os impactos da Lei 11.161 sobre a memria discursiva acerca do ensino de

lnguas no Brasil 109

8

Captulo 3 A Lei N 11.161/2005 1. Introduo 111

2. Acerca da interpretao 113

2.1. A interpretao no Direito 115

2.2. A interpretao AD 119

2.2.1. Do religioso ao jurdico: a interpretao no Estado de Direito 121

2.2.2. Contribuies da AD para a interpretao do texto legal 124

3. Corpo e alma da Lei No 11.161/2005 126

3.1. Cabealho 127

3.1.1. Breves consideraes sobre os efeitos de sentido dos cabealhos 135

3.2. Ementa 138

3.3. Artigos e pargrafos 139

3.3.1. Artigos 1o e 7

o: oferta obrigatria, matrcula optativa e no prazo

de cinco anos 141

3.3.2. Artigos 2o, 3

o e 4

o: horrio regular, rede pblica vs. rede privada

e Centros de Ensino de Lngua Estrangeira 147

3.3.3. Artigos 5o e 6

o: os Conselhos Estaduais de Educao e a execuo da Lei 153

4. Consideraes finais acerca da interpretao da Lei 11.161 154

PARTE II ARQUIVO LEGISLATIVO & LNGUA ESPANHOLA NO BRASIL

Captulo 4 Processo legislativo e projetos de lei para a incluso do espanhol na

escola brasileira

1. Introduo 160

2. O processo legislativo 161

2.1. O processo legislativo e os tipos de lei 162

2.2. A composio do PL, o regime de tramitao e a forma de apreciao 163

2.3. A votao em plenrio e a possibilidade de emenda 168

3. A abertura do arquivo e a formao do corpus 170

3.1. Escarafunchando o arquivo 172

3.1.1. Projetos para a incluso da lngua espanhola 173

3.1.1.1. Projetos de Lei encaminhados Cmara dos Deputados 174

3.1.1.2. Projetos de lei apresentados ao Senado Federal 178

3.1.2. Projetos para a incluso de outras lnguas estrangeiras na Cmara e no Senado 181

3.2. Algumas consideraes sobre as lnguas estrangeiras nos PLs 182

4. Acerca do corpus de anlise: quatro PLs e seus processos legislativos 184

4.1. Projeto de Lei No 3987/2000, do Deputado tila Lira 186

4.2. Projeto de Lei No 4004/1993, do Poder Executivo, Presidente Itamar Franco 188

4.3. Projeto de Lei No 35/1987, do Senador Fernando Henrique Cardoso 191

4.4. Projeto de Lei No 4606/1958, do Poder Executivo, Pres. Juscelino Kubitschek 193

5. O funcionamento do arquivo legislativo 194

5.1. Entre arquivo legislativo e arquivo jurdico 194

5.1.1. Um discurso sobre 199

5.1.2. Circularidade e completude 202

5.1.3. Relaes com o exterior e historicidade 205

5.2. Breves consideraes acerca do funcionamento do arquivo legislativo 208

9

Captulo 5 Tentativas de integrao da Ilha-Brasil: anlise de proposies e

justificaes de projetos de lei para a incluso do espanhol

1. Introduo 210

2. As proposies dos PLs 1958, 1987 e 1993 211

2.1. A proposio do PL 1958 212

2.2. A proposio do PL 1987 216

2.3. A proposio do PL 4.004, de 1993 220

2.4. Algumas consideraes sobre as proposies dos PLs 1958, 1987 e 1993 222

3. As justificaes dos PLs 1958, 1987, 1993 e 2000 224

3.1. Tomada de posio e direo do dizer nas justificaes 226

3.1.1. O foco na integrao 230

3.1.2. O foco na importncia da lngua 235

4. Determinao discursiva nos PLs: territrios objeto de integrao 238

4.1. Sobre a determinao discursiva e co-texto 239

4.2. A determinao dos territrios objeto da integrao nos

PLs 1958, 1987, 1993 e 2000 241

4.2.1. A determinao dos territrios objeto da integrao no PL 1993 242

4.2.1.1. Amrica e americano 243

4.2.1.2. Naes co-irms 245

4.2.1.3. Co-textos dos sintagmas determinados da justificao do PL 1993 246

4.2.1.4. Interpretao da conjuntura PL 1993 248

4.3. A determinao dos territrios objeto da integrao no PL 1987 252

4.3.1. Interpretao da conjuntura PL 1987 253

4.4. A determinao dos territrios objeto da integrao no PL 1958 257

4.4.1. Interpretao da conjuntura PL 1958 258

4.5. Breves consideraes acerca dos PLs 1993, 1987 e 1958 263

4.6. A determinao dos territrios objeto da integrao no PL 2000 264

4.6.1. Os co-textos das designaes dos territrios objeto de integrao no PL 2000 265

4.6.2. Naes hispnicas e pases latino-americanos 266

4.6.3. Demais pases 267

4.5.4. Interpretao da conjuntura PL 2000 270

5. Imagens do Brasil e da lngua portuguesa nas justificaes dos

PLs 1958, 1987, 1993 e 2000 272

5.1. O Brasil tornou-se uma ilha 276

5.1.1. A Ilha-Brasil na mitologia celta 277

5.1.2. A Ilha-Brasil e o territrio colonial 278

5.1.3. O elemento indgena no mito da Ilha-Brasil 280

5.1.4. A Ilha-Brasil, o Tratado de Madri e a teoria das fronteiras naturais 285

5.1.4.1. O Tratado de Madri e o Diretrio dos ndios: colonizao

e institucionalizao lingusticas 287

5.1.5. A Ilha-Brasil e o imaginrio nacional 289

5.1.6. O Brasil-Ilha do sculo XXI 292

Consideraes finais 296

10

Referncias bibliogrficas 1. Legislao e documentos oficiais 306

2. Livros e artigos 308

3. Reportagens e artigos jornalsticos 318

Anexos impressos

1. Lei No 11.161, de 2005 320 2. Tela de busca do Portal da Cmara dos Deputados 321 3. Tela de busca do Portal do Senado Federal 322 4. PL No 4.606/1958 Presidente Juscelino Kubitschek 323 5. PL No 35/1987 Senador Fernando Henrique Cardoso 327 6. PL No 4.004/1993 Presidente Itamar Franco 329 7. PL No 3.987/2000 Deputado tila Lira 331 8. Apresentao (LIRA, 2005) 334 9. Mapas da Ilha Brasil

9.1. Lopo Homem (1519) 337 9.2. Bartolomeu Velho (1562) 338 9.3. Gerardus Mercator (1621) 339 9.4. J. Teixeira Alberns (1640) 340 9.5. Mapa ingls (1685) 341

Detalhamento dos Anexos em CD 342

11

Resumo

Este trabalho analisa a memria discursiva sobre o ensino de lnguas estrangeiras

em contexto escolar no arquivo jurdico e legislativo brasileiro, com nfase na lngua

espanhola. Das duas partes que compem esta tese, a primeira compreende a anlise de

documentos do arquivo jurdico brasileiro, produzidos entre 1757 a 1996, sobre a questo

do ensino de lnguas; tais documentos entram em relao com a Lei No 11.161/2005, que

prev a oferta obrigatria do espanhol nas escolas de Ensino Mdio a partir de 2010,

tambm objeto de anlise dessa Parte I. J a segunda parte mobiliza documentos do

arquivo legislativo por meio da anlise das proposies e justificaes de quatro Projetos

de Lei (PLs) de 1958, 1987, 1993 e 2000 apresentados ao Congresso Nacional com o

objetivo de incluir o espanhol como disciplina obrigatria no sistema educacional

brasileiro; em tal anlise, detectam-se aspectos das condies de produo desses PLs

mediante a observao dos processos de determinao dos territrios objetos da

integrao que neles se enunciam e da projeo da imagem de isolamento do territrio

nacional no contexto sul-americano.

Palavras chaves: arquivo, memria discursiva, lnguas estrangeiras modernas, lngua

espanhola, projeto de lei.

12

Abstract

This study, composed of two parts, analyses the discursive memory about foreign

languages teaching in school context in the Brazilian juridical and legislative archive,

with an emphasis on the Spanish language. The first part of the thesis comprehends the

analysis of documents of the Brazilian juridical archive, produced between 1757 and

1996, about languages teaching; these documents are concerned with the Law

11.161/2005, which sets the obligatory offer of Spanish to high schools (escolas de

Ensino Mdio), and which is also an object of analysis in this first part of the study. The

second part of the thesis deals with documents of the legislative archive through the

analysis of the proposies and justificaes of four Bills of 1958, 1987, 1993 and

2000 presented to the National Congress with the purpose of including the Spanish

language as an obligatory discipline in the Brazilian Educational System; results of this

analysis point to the detection of aspects of the conditions of production of these Bills by

the observation of the processes of determination of the territories that were objects of the

integration which is stated in them and of the projection of isolation of the national

territory in the South American context.

Key-words: archive, discursive memory, modern foreign languages, Spanish language,

Bill.

13

Rsum

Ce document analyse la mmoire discursive de l'enseignement de langues

trangres en contexte scolaire dans l'archive juridique et lgislatif brsilien mettant

l'accent sur la langue espagnole. Des deux parties qui composent cette thse, la premire

comprend l'analyse de documents de l'archive juridique brsilien produits entre 1757 et

1996 en ce qui concerne la question de l'enseignement des langues; ces documents sont

mis en rapport avec la Loi 11.161/2005, qui prvoit l'offre obligatoire de l'espagnol dans

les lyces (escolas de Ensino Mdio) partir de 2010, objet aussi de l'analyse de cette

premire partie. La deuxime partie mobilise des documents de l'archive lgislatif

travers l'analyse des proposies et des justificaes de quatre Projets de Loi (PL's)

de 1958, 1987, 1993 et 2000 - soumis au Congrs ayant en vue l'inclusion de l'espagnol

comme discipline obligatoire dans le systme ducatif brsilien; dans cette analyse, on

relve des aspects des conditions de production de ces PL's tout en observant les procs

de dtermination des territoires objets d'intgration que s'y noncent et la projection de

l'image de l'isolement du territoire national dans le contexte sud-amricain.

Mots-cls: archive, mmoire discursive, langues vivantes trangres, langue espagnole,

projet de loi.

14

APRESENTAO

I A LEI, ORA A LEI 1: MEMRIA E ACONTECIMENTO

A Lei No 11.161/2005, sancionada em 05 de agosto de 2005 pelo presidente Luiz

Incio Lula da Silva, se constitui no acontecimento que desencadeou as reflexes que

elaboramos nesta pesquisa. O gesto de interpretao dessa lei nos levar, ao longo deste

trabalho, a construir e delimitar um recorte do que chamaremos de arquivo jurdico e de

arquivo legislativo sobre o ensino de lnguas estrangeiras, particularmente da lngua

espanhola, em contexto escolar no Brasil. Na anlise a que procederemos, sero

estudadas tanto a constituio de uma memria discursiva sobre essas lnguas, quanto a

forma como as condies de produo operam nas textualidades desse arquivo, fazendo

sentido.

Aps um primeiro contato com o arquivo, passamos a considerar a referida lei

como efeito de um gesto que significa, nos mbitos jurdico e legislativo que

focalizamos, uma interferncia na memria discursiva sobre o ensino de lnguas nas

escolas brasileiras. Isto se deve ao fato de que, a partir de sua implantao inicialmente

prevista para o ano de 2010 , uma lngua estrangeira especfica, o espanhol, passar a

estar presente no espao de todos os estabelecimentos de Ensino Mdio do pas, j que a

Lei No 11.161/2005 prev a oferta obrigatria dessa disciplina pela escola e a

matrcula facultativa pelo aluno.

1 Em discurso comemorativo ao 1 de maio de 1947, no Vale do Anhangaba, em So Paulo, o ento ex presidente Gettlio Vargas, ironizando aqueles que do as costas para a Justia, referindo-se

especificamente ao modo de pensar e atuar de empresrios que tentavam burlar leis trabalhistas aprovadas

durante seu governo (FRANCIULLI NETTO, 2003). Esta frase tem percorrido o imaginrio nacional

quando se trata de comentar o descumprimento de alguma lei e j foi enunciada em diversas ocasies em

que se tratava o processo de implantao da Lei No 11.161/2005, como, por exemplo, em Gonzlez (2008).

15

Por funcionar, no arquivo que recortamos, alterando as rotinas dessa memria

discursiva sobre as lnguas, consideramos essa lei como um acontecimento discursivo.

Com base em Achard, Pcheux explica que uma regularizao discursiva (...) sempre

suscetvel de ruir sob o peso do acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a

memria; por isso, o acontecimento discursivo, provocando interrupo, pode

desmanchar essa regularizao e produzir retrospectivamente uma outra srie sob a

primeira ou pode ainda desmascarar o aparecimento de uma nova srie que no estava

construda enquanto tal (1983a: 52). Esta forma de conceber o acontecimento discursivo

supem que ele desloca, desregula a memria constituda, provocando, portanto, a

criao de novas rotinas a serem seguidas (em processos de regularizao) por essa

memria (ibid.).

Nossa anlise indica que, para que a especificao da obrigatoriedade de oferta

do espanhol se tornasse possvel na textualidade jurdica da Lei No 11.161, foi necessrio

um trabalho legislativo que funcionou no sentido de provocar uma ruptura na memria

discursiva sobre o ensino de lnguas nas escolas brasileiras no interior do arquivo

jurdico. Da nossa interpretao dessa lei como um acontecimento discursivo: ela tanto

desloca os sentidos da memria discursiva constituda quanto provoca a produo de

novos/outros discursos, diferentes dos anteriores. E tanto interfere nas rotinas da memria

discursiva do arquivo jurdico quanto naquelas do arquivo legislativo.

II DA FILIAO TERICA

De maneira fundamental, este trabalho se vincula Anlise do Discurso francesa

(AD) e, pelo fato desta teoria ter sido fundada entre disciplinas e de se formar nas

16

contradies entre elas no que Orlandi (2004) define como entremeio , se apoia em

estudos produzidos na rea da Histria do Brasil, da Histria da Educao e da Geografia.

Ademais, nossa reflexo tambm se encontra num ponto de interseco com o campo das

polticas lingusticas, j que nosso objeto especfico de anlise um recorte do que

designamos como arquivo jurdico e arquivo legislativo se constitui em instrumento

primordial no jogo de foras instaurado por essas polticas.

Optamos por no condensar os conceitos do dispositivo terico sobre os quais

fundamentamos este trabalho num nico captulo, mas sim por mobiliz-los

oportunamente, de acordo com as necessidades que forem surgindo a partir do confronto

com nossos objetos de anlise. Neste sentido, duas noes centrais que percorrem a

totalidade desta tese, arquivo e condies de produo, sero explicitadas j no primeiro

captulo do trabalho, enquanto que a discusso em torno da noo de interpretao

aparecer apenas no terceiro e os conceitos de tomada de posio e de determinao

discursiva, no quinto. Algumas outras noes tambm sero desenvolvidas pontualmente

na trama dos captulos.

III DA ORGANIZAO DAS PARTES E CAPTULOS DESTA TESE

Considerando que a presena do espanhol no sistema educacional do pas no

recente j que, tal como esclarece Daher (2006), data de 1919 a primeira meno a seu

ensino, no Colgio Pedro II no Rio de Janeiro, com la aprobacin del Prof. Antenor

Nascente a titular de la ctedra2 , a Parte I deste trabalho, intitulada Arquivo Jurdico

& Lnguas no Brasil, procura estabelecer relaes entre a Lei No 11.161/2005 e uma

2 A lngua espanhola, no entanto, tal como nossa pesquisa constata, no fazia parte das disciplinas

obrigatrias do currculo escolar daquele perodo.

17

memria discursiva, constituda no interior do arquivo jurdico, sobre as lnguas

estrangeiras no contexto escolar brasileiro.

Com esse objetivo, o Captulo 1 traz a anlise de decretos que normalizaram o

ensino de lnguas em contexto formal de 1757 a 1942, enquanto que o Captulo 2 se

ocupa das Leis de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBs) em todas as suas

edies (1961, 1971 e 1996).

Esse recorte a que procedemos no arquivo jurdico enquanto objeto de anlise se

deve a que identificamos uma regularidade nas condies de produo de cada um dos

dois grupos de documentos legais observados e explorados nesses captulos inicias: no

primeiro grupo, analisado no Captulo 1, nosso foco se centrar sobre decretos, ou seja,

textos legais que no passaram pela tramitao regular das instncias legislativas isto ,

no so aprovados pelo Congresso Nacional , mas sim eram elaborados por secretrios

ou ministros de governo e convertidos em decretos pelo representante mximo do Poder

Executivo e, no caso do perodo colonial ou imperial (das leis que vigoraram at 1889)

ou por presidentes da Repblica (para as que estiveram vigentes entre 1889 e 1942); j no

segundo grupo, analisado no Captulo 2, trataremos das LDBs, que sim passaram pelo

processo legislativo regulamentar, ou seja, tramitaram e foram aprovadas no Congresso

Nacional e receberam a sano presidencial.

No Captulo 3, ainda nessa Parte I, nos centramos na anlise da textualidade da

Lei N 11.161/2005. Para isto, mobilizaremos o conceito de interpretao com o objetivo

de discutir a forma como essa lei foi e tem sido divulgada pela mdia e regulamentada

pelos rgos governamentais competentes. Ademais, a partir do ponto de vista da AD,

realizaremos nossa interpretao dessa lei, tentando tornar visveis suas fissuras, ou seja,

18

os lugares que se constituem em stios de significao a partir dos quais a textualidade

legal se abre de maneira singular equivocidade, produo dos sentidos e, portanto,

interpretao.

Os deslocamentos que, como j antecipamos, a Lei No 11.161/2005 provocou no

arquivo jurdico s foram possveis, e isto ficar claro em nossa anlise, graas s

rupturas que as textualidades do projeto de lei (PL 3.987/2000) provocaram na memria

discursiva a instaurada, por ocasio do processo legislativo pelo qual tramitou esse PL

at se converter em norma jurdica.

O trabalho com esse arquivo legislativo ser o foco central da Parte II desta tese

Arquivo Legislativo & Lngua Espanhola no Brasil , pois nela analisamos as

textualidades produzidas durante o processo de tramitao de quatro projetos de lei

apresentados ao Congresso Nacional entre 1958 e 2000 que tinham o objetivo de incluir

o espanhol como disciplina obrigatria ou de oferta obrigatria no currculo das escolas

brasileiras.

No Captulo 4, apresentamos esses projetos de lei, mas, primeiramente,

explicamos aspectos bsicos do processo legislativo que nos ajudaro a compreender as

condies de produo das textualidades do arquivo legislativo. Neste sentido, tambm

teceremos algumas consideraes acerca das regularidades do funcionamento do arquivo

jurdico que nos permitiro traar algumas delimitaes que faam surgir a fronteira a

partir da qual se situaro as textualidades do que designaremos como arquivo legislativo.

E como, com base em Foucault (1969), pensamos fronteira como (des)continuidade,

os funcionamentos desses arquivos dividiro pontos de interseco e de distino.

19

No Captulo 5, procedemos anlise das textualidades dos quatro PLs

selecionados. Analisaremos, num primeiro momento, as proposies desses PLs e, em

seguida, suas justificaes. Nestas ltimas, nosso foco se centrar sobre dois objetos

discursivos: o primeiro a designao de territrios objeto de uma integrao que se

enuncia como desejada nessas textualidades; e o segundo a imagem do territrio

nacional, que surge nessas justificaes a partir de relaes que se estabelecem na

textualidade com um imaginrio de isolamento do Brasil com respeito aos demais pases

da Amrica.

Finalmente, as Consideraes Finais retomaro os aspectos centrais desta tese e

nos permitiro enunciar algumas concluses.

IV DA ORGANIZAO DOS ANEXOS

Operar com o arquivo jurdico e legislativo que mobilizamos para este trabalho

sups a necessidade de organizar um grande volume de documentos que deve ser

consultado para a compreenso das anlises que elaboramos.

Nossa opo, para tornar possvel o acesso totalidade da legislao com que

operamos, foi a seguinte: em arquivos gravados no CD que acompanha o volume

impresso desta tese, encontra-se a legislao que mobilizamos nos Captulos 1 e 2 ou

seja, decretos de 1838, 1890, 1931, 1942, e as LDBs de 1961, 1971 e 1996, alm da

Resoluo de 1976 e tambm aquela a que nos referimos na anlise da Lei No

11.161/2005, no Captulo 3. Na pgina final desta tese, est o detalhamento dos anexos

do CD.

20

No final deste trabalho, encontram-se impressos aqueles documentos cuja

visualizao e manuseio nos parecem cruciais para a compreenso das anlises que

realizamos, que correspondem fundamentalmente Lei No 11.161/2005, analisada no

Captulo 3, aos PLs apresentados e analisados nos Captulos 4 e 5, e alguns mapas que

ilustram um conceito central que articulamos anlise dos PLs nesse ltimo captulo. A

organizao desses anexos pode ser consultada no sumrio deste trabalho.

21

PARTE I

_______________

ARQUIVO JURDICO

&

LNGUAS NO BRASIL

_______________

22

CAPTULO 1

LEIS E LNGUAS NO ENSINO BRASILEIRO DE 1757 A 1942

a evoluo do ensino de lnguas no Brasil confunde-se

com a histria da prpria escola secundria brasileira

Valnir Chagas

1. INTRODUO

Este primeiro captulo estrutura-se em torno de dois objetivos, que configuram

dois diferentes momentos.

No primeiro, apresentaremos e teceremos algumas consideraes acerca das

noes tericas que norteiam este trabalho. Iremos nos referir fundamentalmente aos

conceitos de arquivo e condies de produo tal como os concebe a AD, por serem os

dois eixos que organizam o corpus das anlises a que procederemos nas duas partes que

constituem esta tese e, ao mesmo tempo, direcionam os focos sobre os que se centraro

essas anlises, que j tm incio neste captulo.

No segundo momento, tendo em conta o que expusemos em nossa Introduo

acerca da existncia de uma histria do ensino de espanhol no sistema educacional

brasileiro que remonta oferta dessa disciplina no Colgio Pedro II (Rio de Janeiro) na

primeira metade do sculo XX , analisaremos uma srie de decretos que normalizaram o

ensino de lnguas neste contexto desde 1757, portanto ainda no perodo colonial, at

1942, durante o governo de Getlio Vargas. Nosso objetivo ser estabelecer relaes

entre essas textualidades que compem o arquivo jurdico selecionado e a construo de

uma memria discursiva sobre o ensino de lnguas no interior desse prprio arquivo.

23

Cabe destacar que um decreto se constitui numa norma jurdica que colocada

em funcionamento diretamente pelo Poder Executivo, ou seja, sem que seja necessria

sua tramitao pelas instncias legislativas, como o caso do Congresso Nacional,

composto pela Cmara dos Deputados e pelo Senado Federal.

2. ALGUMAS NOES TERICAS FUNDAMENTAIS: ARQUIVO E CONDIES DE PRODUO

Tendo em conta a especificidade da noo de arquivo com a qual operamos

baseando-nos na forma como AD o define , assim como o papel fundamental que esse

conceito adquire em nosso trabalho, acreditamos que seja necessrio definir essa noo

de modo a contribuir para a compreenso do procedimento de organizao do arquivo

que realizamos nesta tese. Ser tambm fundamental a definio de outra noo da AD

que se faz presente tanto na composio deste arquivo quanto na anlise que dele

fazemos: a de condies de produo. Trataremos de definir ambas neste item.

2.1. O arquivo

A noo de arquivo na AD parte das definies que Foucault d ao termo em A

Arqueologia do Saber (1969), trabalho no qual ocupa lugar central na reflexo do autor

sobre as relaes entre histria e estrutura na lngua.

De acordo com Foucault,

O arquivo , de incio, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o

aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo

, tambm, o que faz com que todas as coisas ditas no se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, (...) mas que se agrupem em figuras

distintas, se componham umas com as outras segundo relaes mltiplas, se

mantenham ou se esfumem segundo regularidades especficas. (id.: 147).

24

Isto implica dizer que o arquivo no reduz sua ordem da organizao linear dos

enunciados; na verdade, essa ordem pode se vincular s regularidades especficas

passveis de serem detectadas pelo analista. Neste sentido, a definio de Pcheux nos

ajuda a compreender essa organizao. O autor define o arquivo no sentido amplo de

campo de documentos pertinentes e disponveis sobre uma questo (1982: 57) questo

esta que, enfatizamos, sempre colocada pelo analista em seu trabalho de interpretaco3.

Guilhaumou & Maldidier explicam que se deve considerar a complexidade do

fato arquivista, j que o arquivo nunca dado a priori, e em uma primeira leitura, seu

funcionamento opaco (1986: 163-164, grifos dos autores). Segundo os analistas, uma

identificao puramente institucional do arquivo insuficiente para a compreenso de

seu funcionamento. Problematizando o papel da instituio na classificao arquivista, os

autores afirmam que

O arquivo no o reflexo passivo de uma realidade institucional, ele , dentro

de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua abrangncia social. O

arquivo no um simples documento no qual se encontram referncias; ele

permite uma leitura que traz tona dispositivos e configuraes significantes

(id.: 164).

Este modo de compreenso do arquivo, de acordo com os autores, uma das

caractersticas importantes que diferenciam a anlise do discurso clssica, cujos

corpora se constituem a partir de sries textuais impressas, da prtica atual de anlise

de discurso, que permite pela confrontao de sries arquivistas, regimes mltiplos de

produo, circulao e leitura de texto (ibid.).

3 Como exemplo desse procedimento de organizao do arquivo, Pcheux & Fuchs citam o historiador G.

Gayot, quem, ao operar com a anlise automtica do discurso (AAD), observou que na forma de

processamento de arquivos, o corpus constitudo pelas seqncias extradas de um conjunto

determinado que contm o termo escolhido em razo do papel determinante que eu lhe atribuo

hipoteticamente enquanto historiador (GAYOT, G. apud PCHEUX & FUCHS, 1975: 240).

25

Ao afirmarem a disperso mxima do arquivo, os analistas colocam que

do trajeto temtico ao momento de corpus passando pela anlise contextual, a

explorao arquivstica mergulha o pesquisador na materialidade dos textos;

aquilo que poderia aparecer como desvio, de que fazamos economia atravs de

julgamentos de saber, se confunde com o prprio procedimento e impe o

encontro da lngua (id.: 181).

No se trata, portanto, de realizar um trabalho de contextualizao utilizando o

procedimento arquivstico, mas sim de desenvolver um gesto de leitura que, partindo da

formulao de uma questo elaborada pelo analista, possibilite a construo de um corpus

que tenha em conta no apenas o tema escolhido, mas principalmente a materialidade

lingustica do arquivo como foco central.

Esta srie de consideraes explicam o movimento de abertura do arquivo que

efetuamos neste trabalho. Esse movimento nos possibilita determinar um corpus de

anlise composto de documentos do arquivo jurdico e do arquivo legistativo e, ao

mesmo tempo, reconhecer que o prprio processo de constituio deste arquivo, com as

textualidades que o comporo e a identificao de seus stios significantes, j se constitui

em um trabalho de interpretao de nossa parte. Admitimos, portanto, a existncia de

maneiras diferentes, ou mesmo contraditrias, de ler o arquivo (PCHEUX, 1982, op.

cit.: 57) e inscrevemos nosso gesto de interpretao nessa trama, reconhecendo-o como

uma forma de abordar o arquivo.

Este gesto de abertura do arquivo que realizamos se expressa nas duas partes que

compem este trabalho: para observar a constituio de uma memria discursiva sobre o

ensino de lnguas estrangeiras em contexto escolar, na primeira parte, mobilizamos

documentos do arquivo jurdico enquanto que, na segunda, os documentos a serem

analisados compem o arquivo legislativo.

26

Neste sentido, a organizao do arquivo jurdico que realizamos neste Captulo 1 j

se constitui em nossa interpretao da Lei 11.161 e esta interpretao que nos leva a

colocar em relao textos que, tal como esto institucionalmente organizados, no se

vinculam a priori questo que nossa anlise coloca.

Explicitada a noo de arquivo com que operamos, passaremos agora

apresentao de outro conceito da AD que tambm central nas reflexes que

desenvolvemos nesta tese.

2.2. As condies de produo

o deputado pertence a um partido poltico que

participa do governo ou a um partido de oposio; porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou

tal interesse, ou ento est isolado etc. Ele est,

pois, bem ou mal, situado no interior da relao de foras existentes entre os elementos antagonistas de

um campo poltico dado: o que diz, o que anuncia,

promete ou denuncia no tem o mesmo estatuto

conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declarao pode ser uma arma temvel ou uma

comdia ridcula segundo a posio do orador e do

que ele representa, em relao ao que diz

Michel Pcheux

Esclarecemos que no nosso objetivo, neste momento, apresentar uma discusso

exaustiva acerca dessa noo no interior da AD, mas apenas selecionar, dentro do

dispositivo terico, os seus aspectos mais significativos para este trabalho. Por isso, nos

limitaremos a explicitar as definies de condies de produo de Pcheux (1969) e

Orlandi (1996), assim como algumas relativizaes que Courtine (1981) elaborou desse

conceito.

27

O fragmento que colocamos como epgrafe deste item4 utilizado por Pcheux

para explicar que um discurso sempre pronunciado a partir de condies de produo

dadas (1969, op.cit.: 77). Para definir condies de produo (CP), o autor afirma que

os fenmenos lingsticos de dimenso superior frase podem efetivamente

ser concebidos como um funcionamento mas com a condio de acrescentar

imediatamente que este funcionamento no integralmente lingstico, no

sentido atual desse termo e que no podemos defini-lo seno em referncia ao

mecanismo de colocao dos protagonistas e do objeto de discurso (id.: 78, grifos do autor).

Esta concepo evoca, por sua vez, a noo de funcionamento discursivo, definida

por Orlandi como a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante

determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades especficas, o que

equivale a dizer que, em um discurso, h marcas no e pelo funcionamento discursivo

no apenas da representao de seus interlocutores, mas tambm da relao que eles

mantm com a formao ideolgica que os assujeita (1996: 125).

Dentro dessa dimenso ideolgica das condies de produo, Pcheux considera

que tambm existem nos mecanismos de qualquer formao social regras de projeo,

que estabelecem as relaes entre as situaes (objetivamente definveis) e as posies

(representaes dessas situaes) (PCHEUX, 1969, op.cit.: 82, grifos do autor). Uma

dessas projees consiste na antecipao do que o outro vai pensar, que o analista

considera constitutiva de qualquer discurso (id: 77). As antecipaes formam o que, na

AD, chamam-se formaes imaginrias, aquelas que designam o lugar que enunciador e

enunciatrio se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu

prprio lugar e do lugar do outro (id.: 82).

4 Gostaramos de chamar a ateno para os significados que esta epgrafe adquire em nosso trabalho, dada a

coincidncia dos sujeitos entre aqueles aos quais Pcheux se refere deputados e aqueles que constituem

parte do arquivo legislativo que apresentaremos e analisaremos na Parte II desta Tese.

28

A partir das formulaes de Pcheux e Orlandi, podemos perceber que o conceito

de condies de produo articula vrias noes compreendidas a partir do ponto de vista

da AD, entre as quais destacamos formao social, formao ideolgica, posio,

antecipaes e formaes imaginrias algumas delas j apareceram neste item de nosso

trabalho.

Em um trabalho de 1981, Courtine se posiciona criticamente diante da concepo

de condies de produo tal como a elaborou Pcheux em 1969 e explica as

transformaes pelas quais passou essa noo a partir da anlise do que considera como

os trs diferentes planos que estiveram presentes em suas origens: o psicossociolgico, o

histrico e o lingustico. Segundo o autor, estes planos carecem de uma hierarquizao

terica na AD, o que implica, do seu ponto de vista, que a noo de CP do discurso

apresenta um contedo ao mesmo tempo emprico e heterogneo, alm de igualmente

instvel (1981, op. cit.: 51). Courtine considera que o plano psicossociolgico foi

privilegiado tanto no quadro terico elaborado por Pcheux sobretudo na nfase que se

deu questo das formaes imaginrias e das antecipaes quanto no uso dessa noo

em trabalhos da AD.

Argumentando em prol de uma redefinio da noo que a reordene anlise

histrica das contradies ideolgicas no conceito de formao discursiva (id.: 52), o

autor afirma que:

O carter heterogneo e instvel da noo de CP de um discurso faz dela, nessa

perspectiva, o lugar onde se opera uma psicologizao espontnea das

determinaes propriamente histricas do discurso (o estado das contradies de classe em uma conjuntura determinada, a existncia de relaes de lugar a

partir das quais o discurso considerado no centro de um aparelho, o que

remete a situaes de classe) que ameaa continuamente transformar essas

determinaes em simples circunstncias em que interajam os sujeitos do

discurso, o que equivale tambm a situar no sujeito do discurso a fonte de

relaes de que ele apenas o portador ou o efeito (ibid.).

29

As condies de produo ocupam um lugar central nas anlises que realizaremos,

posto que permanentemente o que estar em jogo no arquivo que analisaremos sero as

relaes que se estabelecem, no processo de produo do discurso, entre, por um lado, os

aspectos vinculados s determinaes scio-histricas e ideolgicas, assim como aqueles

que dizem respeito aos sujeitos e prpria enunciao, e, por outro lado, as marcas

dessas determinaes que podemos encontrar, por meio da anlise, na textualidade dos

enunciados.

Explicitadas essas duas noes fundamentais para nosso trabalho, daremos incio

anlise do arquivo jurdico.

3. O ARQUIVO JURDICO SOBRE AS LNGUAS NA EDUCAO BRASILEIRA: DA COLNIA

PRIMEIRA METADE DO SCULO XX

Este item de nosso trabalho d incio ao segundo momento deste captulo, no qual,

a partir de nossa interpretao do arquivo jurdico, procederemos a um recorte para

analisar a presena das lnguas (nacional e estrangeiras) na educao brasileira expressas

nos decretos selecionados5.

Ao tratar a questo das lnguas especificamente no arquivo jurdico, analisando a

materialidade dos textos legais que as institui, designa ou especifica ao longo da histria

da educao no Brasil, no nos interessar a implantao ou no das normas jurdicas s

quais faremos referncia, o que significa que no incidir sobre nossa anlise o fato de tal

ou qual lngua estrangeira ter sido ou no verdadeiramente oferecida (ensinada) na

5 Como j comentamos, os decretos so normas jurdicas impostas pelo Poder Executivo, que no passam

pela instncia legislativa

30

escola, assim como no detalharemos os processo pelos quais esse processo pode ter se

realizado6.

Esta opo se deve ao fato de que concordamos com Lagazzi, quem afirma que a

instncia jurdica uma ordem de sentidos constitutiva da memria do dizer, portanto

determinante das relaes sociais e por essas determinada (1998: 52). Neste sentido, ao

escolher restringir nosso campo de anlise neste captulo ao do arquivo jurdico, optamos

por trabalhar num espao de construo de uma memria institucionalizada, oficial e

oficializada, que, como poderemos ver nos captulos subsequentes, se encontra em

permanentemente deslocamento, submetida a movimentos de (re)construo, justamente

por conta de sua interseco com as relaes histricas, polticas, econmicas, sociais e

culturais.

Neste sentido, mobilizaremos aspectos constitutivos das condies de produo

desses decretos, o que nos permitir estabelecer relaes entre as textualidades do

arquivo jurdico e a construo de uma memria discursiva sobre o ensino de lnguas

nesse arquivo. Para isto, apresentaremos algumas reflexes desenvolvidas por

pesquisadores de diferentes reas do conhecimento, como a Histria do Brasil ou da

Educao brasileira (Ribeiro, Oliveira, Picano e Francisco Filho), alm da Anlise do

Discurso (Mariani, Celada e Souza).

6 Diversos autores, e com diferentes objetivos e pontos de vista, j contaram suas verses dessa histria,

desde o Perodo Colonial at os nossos dias, tendo como foco principal a prtica pedaggica dessas lnguas

na escola. Esses estudos, no entanto, nem sempre analisam a presena das lnguas estrangeiras no sistema

escolar brasileiro considerando a legislao que a implementou. Em alguns deles, inclusive, nota-se uma

clara ausncia de contato direto com os textos das leis, mesmo quando fazem referncias a eles. Cf.

especialmente Chagas (1957), Celada (2002), Picano (2003), Rodrigues (2004), Celada & Gonzlez

(2005), Souza (2005).

31

3.1. A constituio do arquivo

Apesar de ter sido tardia a criao de um ministrio que se ocupasse de realizar

um projeto educacional para o pas j que o Ministrio da Educao e Sade Pblica foi

criado apenas em 1930, no governo de Getlio Vargas7 , no se pode dizer que

anteriormente no tenham existido no Brasil diferentes normas que forneciam diretrizes

para regulamentar o funcionamento da educao, ou seja, das escolas e seus currculos e,

num determinado momento dos sculos XVIII e XIX, como veremos, das aulas rgias.

Durante o perodo colonial, quando os jesutas eram os responsveis pela

educao no Brasil, o documento que regulamentava o funcionamento de suas escolas, o

mtodo de ensino a ser empregado e as disciplinas a serem ensinadas era o Ratio

Studiorum, escrito por Incio de Loyola. Para Souza, o Ratio, introduzindo e

consolidando um sistema integrado para seus colgios [dos jesutas], criou o primeiro

sistema educacional unificado que o mundo conheceu (2005: 80).

comum, nas menes falta de normativas nacionais para a educao pblica,

que o Collegio de Pedro Segundo, fundado em 1837, aparea como padro de ensino

secundrio oferecido no Brasil8. Vrios autores afirmam que os estabelecimentos de

ensino brasileiros se pautavam, de modo geral, pelas normativas emitidas no perodo

Imperial para o Collegio e, no incio da Repblica, para o Gymnasio Nacional9. Porm, j

7 Ribeiro ressalta a importncia do Manifesto dos Pioneiros da Educao-Nova que, no mesmo ano em que

se cria o Ministrio da Educao e da Sade Pblica, insistia na necessidade e convenincia de que as

medidas fossem tomadas em decorrncia de um programa educacional mais amplo e, portanto, que

tivessem uma unidade de propsito e uma seqncia bem determinada de legalizao (1978: 76). A

criao desse Ministrio, portanto, o que d incio a uma poltica nacional de educao. 8 Alguns dos trabalhos que o fazem so, por exemplo, Ribeiro (1978, op. cit.), na rea da histria da

educao brasileira, e Chagas (1957, op. cit.), Celada (2002, op. cit.), Souza (2005, op. cit.) e Daher (2006),

j no campo dos estudos sobre as lnguas estrangeiras na escola brasileira. 9 O Collegio de Pedro Segundo, nome que recebeu quando de sua criao, em 1837, passou a se chamar

Gymnasio Nacional a partir da publicao do Decreto No 981, de 8 de novembro de 1890. Alves (2004)

32

no ano seguinte ao da Proclamao da Repblica, o Decreto No 981, de 8 de novembro de

1890, normalizava o ensino primrio e secundrio do Distrito Federal (BRASIL, 1890).

Desta norma derivou o Decreto No 1.075, de 22 de novembro, que especificava as

diretrizes para o Gymnasio Nacional (id.). A existncia dos dois decretos de 1890

comprova que o regulamento do Gymnasio j no se constitua na nica normativa

existente, havendo pelo menos uma legislao geral para toda a cidade do Rio de Janeiro

capital da Repblica poca.

Em 1931, o Decreto No 19.890, de 18 de abril, afirma dispor sobre a organizao

do ensino secundrio no Colgio Pedro II e em estabelecimentos sob o regime de

inspeo oficial (BRASIL, 1931). Nele, portanto, o Colgio e as demais escolas desse

nvel do pas passaram a ser regidos pela mesma regulamentao, ambos fazendo parte de

um nico decreto lei, ou seja, uma mesma normativa.

Apenas em 1942, quando passa a vigorar a Lei No

4.244 (Lei Orgnica do Ensino

Secundrio), a legislao do ensino secundrio brasileiro deixa de referir nominalmente o

Colgio Pedro II (BRASIL, 1942).

Ao colocarmos em relao estas diferentes normativas que compem o arquivo

jurdico sobre as lnguas na educao brasileira inseridas tambm em momentos

histricos diferentes (Colnia, Imprio e Repblica) , acreditamos que nossa anlise

pode mostrar o modo como as discursividades jurdicas contriburam para a formao de

UMA memria oficial (MARIANI, 2001: 114) sobre as lnguas, tanto no interior do

explica que a denominao original, Colgio Pedro II (mas sem o de), foi retomada em 1911, com o

Decreto No 8.660, de 5 de abril.

33

arquivo jurdico do qual fazem parte essas leis quanto no espao de enunciao

brasileiro de modo mais geral10

.

Para a anlise que desejamos realizar, colocaremos em relao algumas

textualidades legais que, de acordo com a interpretao que realizamos do recorte com

que operamos em nossa reflexo, representam documentos chaves no apenas na histria

social e poltica da educao no Brasil, mas particularmente na constituio de uma

memria discursiva sobre o ensino de lnguas no arquivo jurdico que nos interessa

explorar.

Os textos analisados neste Captulo 1 sero os seguintes:

- o Diretrio que se deve observar nas povoaes dos ndios do Par e Maranho,

que chamaremos daqui em diante de Diretrio dos ndios, de 3 de maio de

1757, que obrigava o uso e o ensino da lngua portuguesa na colnia;

- os Estatutos para o Collegio de Pedro II, de 31 de janeiro de 1838, que fundaram

um modelo de ensino para as escolas secundrias do Brasil independente e

instituram o ensino de lnguas no currculo desse nvel escolar;

- o Decreto No 981, de 8 de novembro de 1890, assinado pelo presidente do

Governo Provisrio da Repblica, General Manoel Deodoro da Fonseca,

endossando a proposta de Benjamin Constant, Ministro e Secretrio de Estado dos

Negcios da Instrucco Publica, Correios e Telegraphos, que regulamentava os

nveis de ensino primrio e secundrio no Distrito Federal (Rio de Janeiro);

10 Guimares define os espaos de enunciao como espaos de funcionamento de lnguas, que se

dividem, redividem, se misturam, desfazem, transforma por uma disputa incessante; para ele, estes

espaos habitados por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de

dizer so espaos polticos (2002, op. cit.: 18-19).

34

- o Decreto No 19.890, de 18 de abril de 1931, que organizava o ensino secundrio

no Colgio Pedro II e nos demais estabelecimentos oficiais, texto que se insere

num bloco de decretos com os quais forma o que se conhece como a Reforma de

Francisco Campos;

- o Decreto No 4.244, de 9 de abril de 1942, ou Lei Orgnica do Ensino

Secundrio, que, tambm juntamente com outros decretos, faz parte da chamada

Reforma Capanema11

.

Nossa anlise se centrar fundamentalmente sobre o modo como as lnguas se

fizeram presentes nessas textualidades legais. Observaremos fundamentalmente os

processos de designao das lnguas nas normas jurdicas que organizavam o currculo de

disciplinas na educao no pas e, a partir dessa anlise, poderemos elaborar nossa

interpretao sobre os motivos da incluso dessas lnguas e as relaes que elas

estabelecem entre si no interior do arquivo jurdico.

Acreditamos que o lugar que as lnguas ocupam nos textos legais com que

trabalhamos reflete o papel que desempenham, enquanto contedo a ser oferecido no

ensino regular, no apenas dentro do modelo de educao de cada perodo analisado

como tambm, de um modo mais geral, como elemento constitutivo de imaginrios que,

como tentaremos demonstrar ao longo deste trabalho, colaboraram para a construo de

uma memria nacional que tem como na questo da identidade lingustica um de seus

aspectos centrais.

11 A legislao que analisaremos neste Captulo 1 est disponvel no CD de Anexos que acompanha o

volume desta tese, exceto a de 1757 (Diretrio dos ndios). A organizao das normas jurdicas no referido

CD se d por ano de publicao: 1838 (Estatutos do Collegio de Pedro II), 1890 (Decreto No 981), 1931

(Decreto No 19.890) e 1942 (Decreto No 4.244).

35

4. A PRESENA DAS LNGUAS NO ARQUIVO JURDICO DE 1757 A 1942

Na anlise que faremos da questo da presena por meio da designao das

lnguas em cada um dos documentos legais que colocaremos em relao, ser

fundamental considerar, como parte das condies de produo dessas normativas, a

conjuntura scio-histrica de cada perodo, o que contribuir para a compreenso do

impacto de cada uma dessas leis sobre a memria discursiva sobre o ensino de lnguas no

arquivo jurdico que regulamenta a educao brasileira.

4.1. Diretrio dos ndios, 1757

Para compreender os efeitos que o Diretrio dos ndios de 1757 provocou sobre

as lnguas que circulavam durante o perodo colonial no territrio que hoje corresponde

ao Brasil preciso primeiramente entender, por um lado, o papel dos jesutas naquela

estrutura social e particularmente na educao formal naquele momento e, por outro lado,

a configurao das relaes entre as lnguas que habitavam este espao (GUIMARES,

2003)12

.

Francisco Filho explica que desde a criao do sistema de capitanias hereditrias

por D. Joo III, rei de Portugal, em 1548, os jesutas se encarregaram da catequizao dos

12

De acordo com a definio de Guimares (2003) para as relaes entre lnguas, formulada como verbete da Enciclopdia das Lnguas no Brasil (ELB), que leva em conta, sobretudo, as relaes que se

constrem histrica e politicamente em torno das lnguas no Brasil, as relaes entre as lnguas no espao

de enunciao brasileiro so bastante particulares quando comparadas s relaes que se do entre as

lnguas na Europa. Isto porque o portugus, lngua oficial do Estado brasileiro, no possui relaes de

parentesco nomenclatura da lingstica comparada com as lnguas que pr-existiam colonizao, fato que leva o autor a concluir que o que interessa, ento, no quadro das lnguas do Brasil so as relaes que

elas tm enquanto relaes histricas e polticas

http://www.labeurb.unicamp.br/elb/portugues/relacoes_linguas.htm, acesso em 28/01/2010. Neste trabalho,

retomamos esse conceito, mas lhe conferimos novos sentidos, pensando sobretudo nas condies de

produo nas quais essas relaes entre lnguas se inscrevem.

http://www.labeurb.unicamp.br/elb/portugues/relacoes_linguas.htm

36

indgenas e da promoo da educao bsica aos filhos da elite rural aqui estabelecida,

que deveriam completar seus estudos na Europa (2001: 21).

Com o aumento da populao colonial, no entanto, o trabalho dos padres da

Companhia de Jesus cobrou importncia e grandes colgios foram fundados. De acordo

com Souza, a obra jesutica em 1570, vinte e um anos aps sua chegada, j era composta

por cinco escolas de instruo elementar (Porto Seguro, Ilhus, So Vicente, Esprito

Santo e So Paulo de Piratininga) e trs colgios (Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia)

(2005, op. cit.: 80).

No que se refere questo das lnguas que habitavam o espao colonial nos trs

primeiros sculos a partir da chegada dos portugueses, considerar apenas os aspectos

vinculados histria da educao nas escolas e colgios jesuticos no suficiente para

dar conta de explicar as condies de produo em que essas lnguas circulavam e se

relacionavam neste espao.

Analisando relatos de historiadores e cronistas com o objetivo de identificar como

se constri e a que se filia o conceito de lngua braslica na produo de uma ideologia

colonial, Mariani detecta quatro situaes em que se dava o uso das diferentes lnguas

que circulavam naquele perodo na colnia:

I. Situao formal do ensino de lnguas em colgios jesuticos ou em aldeias controladas pelos jesutas;

II. Situao em que so estabelecidas etimologias ou em que so construdas significaes [em lngua portuguesa] para as palavras

indgenas;

III. Situao em que vrias lnguas so citadas; IV. Situao em que h um estranhamento lingstico (2004: 87).

37

A primeira dessas situaes, que nos interessa particularmente por se referir ao espao da

escolarizao formal, se diferencia das demais, todas relacionadas com a circulao das

lnguas no espao colonial fora do contexto escolar.

Mariani afirma, quando descreve essa primeira situao do ensino de lnguas no

perodo colonial, que percebe-se uma poltica lingstica em curso apesar de no haver

explicitamente meno a nenhuma poltica imperial ou papal (ibid.). A autora sustenta

ainda que, no modelo de escola daquele perodo, parece ser bvio que se deve ensinar

latim e portugus (ibid.)13

.

Pretendendo promover uma inverso de vetor numa lgica segundo a qual essas

duas lnguas ocupariam respectivamente os papis que, na atualidade, seriam os

desempenhados por lngua estrangeira e lngua materna ou nacional na escola,

Souza afirma, a partir de uma viso discursiva, que a lngua portuguesa estrangeira na

colnia, assim como o latim e as lnguas de invasores holandeses e franceses (2005, op.

cit.: 77)14

. Neste sentido, no podemos deixar de reconhecer que todas essas lnguas

encontravam-se em disputa, nesse momento, como supe a relao entre lnguas que

habitam um mesmo espao (GUIMARES: 2002, op. cit.: 18-19). Ademais, alm das

lnguas mencionadas por Souza, devemos tambm considerar essa relao de disputa

13 Parece-nos interessante que a autora detecte, j no perodo colonial, o funcionamento de um pr-

construdo segundo o qual o latim se constitui numa lngua cuja presena no currculo escolar

indiscutvel. Esse pr-construdo marca a permanncia dessa lngua na legislao educacional brasileira,

vigorando at a dcada de 60 do sculo XX, como teremos oportunidade de mostrar com a anlise dos

demais decretos neste captulo. A circulao desse pr-construdo tambm o que permite que, na histria

do ensino das lnguas estrangeiras no Brasil, seja frequente encontrar aluses ao latim como lngua culta

(PICANO, 2003: 27) ou como nica lngua estrangeira ensinada na colnia pelas escolas jesuticas. 14 O mesmo j havia sido afirmado por Celani (2000), considerando o ensino do portugus aos ndios e o do

tupi aos portugueses; em Rodrigues (2004) tambm observamos que a interveno de Pombal imps, a

todos aqueles que no Brasil j seguiam rumos lingusticos bastante diferentes dos que foram ideados em e

impostos por seu Diretrio, o que naquele momento se consistia numa lngua estrangeira no territrio

brasileiro: a lngua portuguesa de Portugal.

38

incluindo as diferentes lnguas indgenas e a lngua geral, em uso crescente

(MARIANI, 2004, op. cit.: 62) 15

.

Borges explica que a coroa portuguesa, sob o forte impacto de um imaginrio

europeu que defendia a unidade lingustica como fator imprescindvel para o sucesso da

empresa colonial, diante da dificuldade de lidar com a diversidade de lnguas utilizadas

na colnia, julgou necessrio estabelecer uma lngua comum, a lngua geral (2003: 114).

Considerando que no territrio que compreendia o Estado do Brasil o guarani

predominava ao sul e o tupinamb, ao longo da costa regio na qual o processo de

eliminao fsica das lnguas indgenas foi mais intenso que em outras localidades,

enquanto que no Estado do Gro-Par e Maranho, o tupi era tambm a lngua de vrios

grupos indgenas, esta ltima foi a escolhida para ser a lngua deste espao nos primeiros

tempos da colonizao, tendo servido, assim, como base material para a lngua geral (id.:

114-115) 16

.

A expanso da lngua geral eleita como geral pelos jesutas (MARIANI, 2004,

op. cit.: 95) e, portanto, pelo sistema de educao por eles implementado entre os

habitantes brancos e indgenas do territrio colonial acabou por torn-la uma espcie de

15 Segundo Borges (2001:211), a expresso lngua geral refere-se ao processo lingustico e tnico

instaurado no Brasil pelo complexo catequtico-colonizado, cujo emprego aponta para trs acepes: a) em

sentido genrico, diz respeito s lnguas surgidas na Amrica do Sul em consequncia dos contatos entre

agentes das frentes de colonizao e os grupos indgenas; b) especificamente, designa as lnguas, de base

indgena, desenvolvidas e institudas em So Paulo e na Amaznia, e faladas por uma populao

supratnica; c) refere-se tambm gramatizao dessas lnguas ditas gerais. Neste trabalho, interessam-

nos sobretudo as acepes expostas em (b) e (c). 16 importante ressaltar que, apesar do imaginrio de unidade geogrfica colonial que a historiografia

oficial brasileira produziu, os territrios portugueses na Amrica foram divididos, em 1621 perodo de

unio das coroas espanhola e portuguesa em dois Estados (ou Provncias), no interior dos quais existiam

as Capitanias: o Estado do Gro-Par e Maranho (criado durante o perodo de unidade entre as Coroas portuguesa e espanhola, que ocupava uma rea que compreenderia, grosso modo, o que hoje representa a

Regio Norte e parte do Nordeste) e o Estado do Brasil (territrios do Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e

Sul) (FAUSTO, 1999: 90). O difcil processo de acomodao do primeiro no interior do segundo se deu

por meio de aes de representantes do Gro-Par no Parlamento do Imprio do Brasil entre 1826 e 1840,

portanto, aps a independncia (cf. MACHADO, 2007).

39

lngua franca, relativamente estabilizada pela simplificao e pela gramatizao levada a

cabo pelos jesutas, fatores que contriburam para que ela se tornasse uma lngua de

comunicao em vrias partes do Brasil (id.: 98), principalmente em regies da

Amaznia e de So Paulo, importantes centros difusores das lnguas gerais17

nas duas

colnias portuguesas na Amrica18

.

portanto sobre esse panorama de homogeneizao da lngua tupi pelos jesutas,

de sua uniformizao modelar e imaginria pelo colonizador (BORGES, 2003, op. cit.:

118) e de sua adoo como lngua de colonizao que o Diretrio dos ndios produzir

seus efeitos.

O Directorio que se deve observar nas povoaes dos ndios do Par, e

Maranha em quanto sua Magestade na mandar o contrario, de 3 de maio 1757, se

constitui numa normativa escrita por Sebastio Jos de Carvalho e Melo (que mais tarde

receberia o ttulo de Marqus de Pombal), ento ministro de D. Jos I de 1750 a 177719

.

O documento se insere num projeto poltico mais amplo implementado pelo ministro, que

pretendia, entre outras coisas, ampliar a participao do Estado do Gro-Par e Maranho

na economia colonial do Atlntico Sul20

.

O documento possui noventa e cinco pargrafos, sendo que logo no incio, nos

quinze primeiros, trata da importncia do ensino da lngua portuguesa, da concesso e

17 Freire coloca que esta lngua supra-tnica, vlida para todas as etnias que eram compulsoriamente

integradas ao sistema colonial estendeu-se pelo territrio e que, recentemente, alguns linguistas passaram

a usar a denominao tcnica de Lngua Geral Amaznica (LGA), para distingui-la da Lngua Geral

Paulista (LGP) (2003: 206-207). 18 No Captulo 5 desta tese voltaremos a abordar a questo da lngua geral como elemento constitutivo do

imaginrio de unidade colonial. 19 Sobre a vida pblica e privada de Sebastio Jos de Carvalho, cf. Azevedo (2004). 20 Para mais detalhes sobre o significado do Diretrio no conjunto de aes da poltica pombalina nos

territrios coloniais, em especial o Estado do Gro-Par e Maranho, cf. Raymundo, 2006.

40

respeito de honras e privilgios, da utilizao de nomes e sobrenomes portugueses, e do

modo de habitar e de vestir dos ndios (id.: 130).

A imposio da lngua portuguesa no processo colonial e a declarao de sua

obrigatoriedade se d no sexto pargrafo:

6. Sempre foi maxima inalteravelmente praticada em todas as naes, que conquistra novos Dominios, introduzir logo nos Pvos conquistados seu proprio idioma, por ser indisputavel, que esse he hum dos meios mais eficazes

para desterrar dos Pvos rsticos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter

mostrado a experiencia, que ao mesmo passo, que se introduz nelles o uso da

Lingua do Prncipe, que os conquistou, se lhes radca tambem o affecto, a

veneraa, e a obediencia ao mesmo Principe. Observando pois todas as

Naes polidas do Mundo este prudente, e solido systema, nesta Conquista se

praticou tanto pelo contrario, que s cuidra os primeiros Conquistadores

estabelecer nella o uso da Lingua, que chamara geral; invena

verdadeiramente abominavel e diabolica, para que privados os Indios de todos

aquelles meios, que os podia civilizar, permanecessem na rustica, e barbara

sujeia, em que at agora se conservva. Para desterrar este perniciosssimo abuso, ser hum dos principaes cuidados dos Directores, estabelecer nas suas

respectivas Povoaes o uso da Lingua Portugueza, na consentindo por modo

algum, que os Meninos, e Meninas, que pertencerem s Escolas, e todos

aquelles Indios, que forem capazes de instruca nesta materia, usem da

Lingua propria de suas Naes, ou da chamada Geral; mas unicamente da

Portugueza na frma, que sua Magestade tem recommendado em repetidas

Ordens, que at agora se na observra com total ruina Espiritual, e Temporal

do Estado (grifos nossos)21.

Interessa-nos, neste momento, refletir sobre os movimentos do que Mariani define

como parte da colonizao lingustica do Brasil, que, segundo a autora, se constitui

num processo que deve ser pensado a partir da tenso entre uma heterogeneidade

lingustica de fato, e uma homogeneidade produzida pelo conquistador, materializada seja

na lngua da metrpole, seja na lngua indgena em funo da gramatizao (op.cit.,

2004: 39).

21 Transcrevemos o texto do Diretrio a partir da cpia fac-similar disponvel em Beozzo (1983: 129-167),

mantendo a ortografia do original.

41

Para explicar essa alterao da poltica colonial que passou da inveno da

lngua geral (do sculo XVII at a segunda metade do XVIII)22

imposio da lngua

portuguesa (a partir do dito de Pombal) , Borges, partindo de consideraes de Freire,

afirma que a

passagem poltico-administrativa de Estado dinstico para Estado nacional que melhor explica a radical mudana de poltica lingustica. Trata-se

explicitamente da necessidade de criar uma unidade nacional, reunindo

lingustica e politicamente as duas colnias portuguesas na Amrica, e a sua

submisso lngua do prncipe, com a qual se identificava essa idia de nao

unitria. A partir do sculo XVIII, o Estado-nao, para se constituir em uma

unidade governvel, deve se tornar monolnge (2003, op. cit.: 116).

No primeiro momento, que corresponde ao Estado dinstico, a Igreja e no o

Estado que toma a deciso de impor uma lngua geral; isto se deveu falta de interesse

por parte do dinasta em impor a lngua de seu imprio s populaes submetidas, j que a

continuidade de sua dinastia no dependia de smbolos de unidade nacional como os que

as lnguas podem representar. No segundo momento, no entanto, o Estado moderno toma

para si o controle sobre as lnguas da colnia, pois nele a lngua adquire valor enquanto

smbolo de uma conscincia nacional abstrata (ibid.). Neste sentido, destacamos a

designao Lingua do Principe no Diretrio como uma das parfrases utilizadas para

fazer referncia lngua da metrpole que, segundo esse documento, deveria ser

introduzida logo nos Pvos conquistados como a emergncia, nessa textualidade

jurdica, da relao que se estabelecia entre o Estado moderno e a lngua (uma lngua)

que comeava a se configurava como nacional.

22 Utilizamos inveno para nos referirmos ao processo que descrevemos, de desenvolvimento de uma

poltica de colonizao lingustica que culminou na expanso da lngua geral no territrio colonial e nas

escolas jesuticas.

42

A partir da anlise que fazemos da textualidade do Diretrio dos ndios, podemos

destacar trs aspectos da forma como esse documento impe a lngua portuguesa

colnia: o primeiro o reconhecimento da existncia de uma poltica lingustica anterior

(s cuidra os primeiros Conquistadores estabelecer nella o uso da Lingua, que

chamara geral; invena verdadeiramente abominavel e diabolica), que no havia sido

determinada oficialmente pelo governo colonial, mas que funcionava nas prticas sociais

linguajeiras da colnia, a partir da qual outra lngua que no a Lingua do Principe havia

se expandido pelo territrio colonial; o segundo o reconhecimento de que, ao lado da

lngua geral, outras lnguas indgenas circulavam nesse espao (na consentindo por

modo algum, que os Meninos, e Meninas, que pertencerem s Escolas, e todos aquelles

Indios, que forem capazes de instruca nesta materia, usem da Lingua propria de suas

Naes, ou da chamada Geral), num gesto de reconhecimento da heterogeneidade

lingustica que caracterizava a relao entre as lnguas naquele momento; e, finalmente, o

terceiro o vnculo entre o conhecimento da Lingua do Principe e a submisso do

indgena figura real e no mais a Deus , explicitando a relao entre Estado e lngua,

esta ltima funcionando como smbolo de unidade e poder.

Por meio das reformas que o ministro Sebastio Jos de Carvalho e Melo leva a

cabo durante seu governo, Portugal pretende se colocar entre as naes iluministas da

Europa, utilizando noes e conceitos dessa corrente para justificar as mudanas que

realiza no sistema de explorao colonial (RAYMUNDO, op.cit.: 134). neste sentido

que queremos marcar a relevncia do Diretrio dos ndios enquanto norma jurdica que

inaugura a poltica lingustica de um Estado moderno (Portugal) em suas colnias na

43

Amrica (territrio que hoje praticamente equivale ao do Estado brasileiro), que impe

uma lngua j valorizada enquanto objeto simblico dotado de nacionalidade.

Como o prprio Diretrio reconhece, este no o primeiro documento legal da

Coroa portuguesa que tentava promover o uso da lngua portuguesa na colnia (sua

Magestade tem recomendado em repetidas Ordens, que at agora no se observaram).

Porm, diferentemente das Ordens anteriores, os efeitos produzidos pelo dito de

Pombal no que tange poltica lingustica imposta pela metrpole foram efetivos. Tal

como as investigaes que aqui citamos deixam claro, o apagamento da diversidade e o

ideal da homogeneizao que foram os princpios que nortearam a poltica lingustica

no perodo colonial funcionaram de modo exemplar a partir da execuo do Diretrio,

com a imposio do portugus como lngua nacional (da nao portuguesa, da qual os

Estados do Brasil e do Gro-Par e Maranho faziam parte) e o apagamento da lngua

geral e das lnguas indgenas enquanto constitutivas deste territrio, marcado por uma

heterogeneidade que se desejou ocultar.

Os efeitos do Diretrio sobre as relaes entre as lnguas na colnia nos levam a

reafirmar a importncia dessa normativa no arquivo jurdico sobre essa disciplina no

ensino brasileiro. Isto porque, por meio de um movimento cuja direo parecia apontar

justamente para outro lado pois, com a expulso dos jesutas, ocorreu o

desmantelamento da nica estrutura de ensino existente , o Diretrio obrigou o Estado

portugus a reorganizar a educao em seus domnios, tanto na metrpole como em suas

colnias23

, dando lugar a um modelo de inspirao iluminista que marcaria o ensino no

23 Souza explica que Os jesutas permaneceram como mentores da educao brasileira durante duzentos e

dez anos, at 1759, quando foram expulsos de todas as colnias portuguesas (). No momento da

expulso, os jesutas tinham 25 residncias, 36 misses e 17 colgios e seminrios, alm de seminrios

44

apenas enquanto o Brasil era colnia portuguesa, mas tambm aps a independncia

como poderemos ver com detalhe mais adiante, quando analisarmos a legislao de 1838.

Para Ribeiro, em consequncia dessa poltica pombalina que surge o ensino pblico

propriamente dito. No mais aquele financiado pelo Estado mas que formava o indivduo

para a Igreja e sim o financiado pelo e para o Estado (RIBEIRO, 1978, op. cit.: 15).

Um dos principais efeitos do Diretrio nessa reorganizao foi a reformulao dos

Estudos Menores e a criao das aulas rgias atravs do Alvar de 28 de junho de

1759, como parte de um conjunto de reformas implementadas por Pombal que atingiam a

administrao do Estado de modo geral e, no que nos interessa particularmente, a

presena das lnguas na instruo pblica.

As aulas rgias representavam a forma que o Estado portugus encontrou para

manter algum controle sobre a educao, mas sem a criao de estabelecimentos

regulares de ensino. Consistiam, grosso modo, na contratao de Professores Rgios

pelo Estado a partir de um processo oficial de seleo e de nomeao. Esses professores

recebiam normativas sobre o currculo a ser desenvolvido e os materiais a serem

utilizados, por exemplo, mas as aulas ocorriam em suas residncias e cada professor

atuava de maneira independente, sem que houvesse uma organizao superior que os

congregasse.

De acordo com Oliveira (2002), com o Alvar de 1759 se procedeu diviso dos

Estudos Menores em dois nveis: o primeiro, representado pelas Aulas Rgias de Ler,

Escrever e Contar; o segundo pela Gramtica Latina, Grega, Hebraica e a Retrica

sendo que entre estas ltimas, a cadeira de Retrica tornou-se obrigatria para o ingresso

menores e escolas de primeiras letras instaladas em todas as cidades onde havia casas da Companhia de

Jesus (op.cit.: 84).

45

na Universidade de Coimbra24

. Citando a Geraldo Bastos Silva, estudioso da histria da

educao secundria no Brasil, o autor afirma que a fragmentao do ensino que sups

a expulso dos jesutas pode ser interpretada como um avano do ponto de vista do

currculo, graas incorporao de disciplinas como as lnguas francesa e inglesa que o

Alvar de 1759 possibilitou (id.).

Oliveira explica que a incluso dessas lnguas nesse segundo nvel do ensino

institucionalizou-se com a criao do Colgio dos Nobres em maro de 1761 em Lisboa,

pois alm das matrias usuais do ensino de humanidades (latim, grego, hebraico,

retrica, filosofia e teologia), estudavam-se algumas das lnguas vivas estrangeiras

(francesa, italiana e inglesa), assim com alguns elementos das matemticas, da

astronomia e da fsica (id.).

Outro fator que contribuiu para a insero e a permanncia dessas lnguas nos

currculos do ensino levado a cabo pelos professores rgios foi a reforma dos Estudos

Maiores, de 1772, a partir da qual se indicou que o francs e o ingls passaram a ser

matrias recomendadas pelos Estatutos para ingresso no Curso Mdico (CARVALHO,

1952: 145 apud OLIVEIRA, id.).

No entanto, apesar do lugar de destaque de que essas lnguas passaram a desfrutar

no ensino superior j no final do sculo XVIII, data apenas de 14 de julho de 1809 o

documento legal que institui as primeiras cadeiras de francs e ingls para professores

rgios no Rio de Janeiro: a Deciso No 29, assinada pelo rei D. Joo VI no perodo em

que a corte portuguesa se estabeleceu no Brasil.

24 A definio das disciplinas obrigatrias nos Estudos Menores, bem como a recomendao do estudo de

francs e ingls nos Estudos Maiores de Medicina sero elementos particularmente relevantes para a

anlise a que procederemos, a seguir, dos Estatutos do Collegio de Pedro Segundo, de 1838.

46

A partir das consideraes que expusemos acerca dos efeitos tanto do Diretrio

dos ndios sobre as relaes entre as lnguas que circulavam no espao colonial brasileiro

quanto das outras normativas que as reformas do Marqus de Pombal impuseram para a

organizao de um novo modelo de educao no Estado portugus, acreditamos poder

elaborar afirmaes tendo em conta, por um lado, o processo de implantao da lngua

portuguesa enquanto lngua nacional que se iniciou aps 1757 e, por outro lado, o lugar

que as demais lnguas sobretudo latim, grego, francs e ingls passam a ocupar no

modelo de ensino superior e, consequentemente, tambm no ensino das aulas rgias.

Do nosso ponto de vista, essas reformas procuraram produzir, no nvel do

imaginrio, a estabilizao dos sentidos nas relaes entre as lnguas no espao colonial

brasileiro a partir da identificao do portugus como lngua nacional e da valorizao de

determinados lnguas clssicas latim e grego ou vivas francs e ingls nos

currculos de ensino.

Tal como tentaremos demonstrar com a anlise dos Estatutos do Collegio de

Pedro Segundo a que procederemos a seguir, j no incio do sculo XIX, seriam sentidos

os efeitos dessas mudanas sobre as rotinas de uma memria discursiva do ensino dessas

lnguas no interior arquivo jurdico, com a reproduo de modelos que foram

determinados por essas normativas que acabamos de expor.

4.2. Estatutos do Collegio de Pedro Segundo, 1838

Apenas com a vinda da famlia real portuguesa para o Brasil, em 1808, iniciou-se

um lento processo de recuperao e de reorganizao da educao, aps a ruptura

provocada pelo Diretrio dos ndios de 1757, sendo que a organizao das aulas rgias,

47

como vimos, talvez tenha sido o primeiro passo de um processo mais longo que se

desenvolveu em seguida.

A inaugurao de estabelecimentos educativos ou a responsabilizao sobre seu

funcionamento por parte do Estado se deu apenas depois de declarada a independncia do

pas (1822), com a criao de escolas de ensino secundrio: o Ateneu, fundado em 1825

no Rio Grande do Norte, os Liceus da Bahia e Paraba, de 1836, e o Collegio de Pedro

Segundo, de 1837, no Rio de Janeiro (RIBEIRO, 1978, op. cit.: 29).

Entre esses colgios, o que adquiriu maior expresso no panorama educativo do

Brasil durante o perodo imperial e as primeiras quatro dcadas da Repblica foi o Pedro

II. Sua origem remonta fundao do Seminrio dos rfos de So Pedro em 1739, que

foi posteriormente denominado Seminrio de So Joaquim. Em 2 de dezembro de 1837,

um decreto assinado pelo Regente Pedro de Arajo e Lima, Marqus de Olinda,

reorganizou e promoveu a estatizao do estabelecimento, que passou a se chamar

Collegio de Pedro Segundo, em homenagem ao Prncipe Regente que contava, ento,

com doze anos de idade25

.

Picano explica que o Pedro II foi a primeira escola pblica de nvel mdio, que

passou a ser modelo para as demais escolas secundrias, instaurando seus programas

curriculares baseados no modelo francs de educao e se constituindo em exemplo a ser

seguido pelas demais escolas do Imprio (op.cit: 28)26

.

25 Disponvel em http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/criacao_pedroii.html, consulta em 23 de

setembro de 2009. 26 Vale comentar que o Colgio Pedro II atualmente a nica instituio federal de Ensino Bsico (Fundamental e Mdio) e possui aproximadamente quinze mil alunos matriculados em doze unidades

escolares, localizadas nas cidades do Rio de Janeiro e Niteri, nas quais funcionam dezesseis

departamentos pedaggicos; ademais, 75% de seu corpo docente possui ttulo de ps-graduao

especializao, mestrado ou doutorado (CAVALIERE, 2008). Portanto, pode-se notar que, apesar de o

Colgio Pedro II j no desempenhar um papel de escola padro para os demais estabelecimentos de ensino

http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/criacao_pedroii.html

48

O Regulamento no 8, de 31 de janeiro de 1838, que Contm os Estatutos para o

Collegio de Pedro Segundo, um documento extenso que, em seus 239 artigos estipula

as normas para o funcionamento detalhado do Collegio.

De acordo com seu artigo 46, no Ttulo II Dos Alumnos:

1o Idade, pelo menos, de 8 annos, e de 12 quando muito. Os que excederem

essa idade, no sero adimittidos, sem licena especial do Governo.

2o Saber ler, escrever, e contar as quatro primeiras operaes de Arithmetica

(BRASIL, 1838: 69).

Estes alunos seriam distribudos, segundo o artigo 49, em oito Aulas, a 8a, a 7

a, a

6a, a 5

a, a 4

a, a 3

a, a 2

a, e a 1

a (id.: 70)

27. As aulas referem-se aos anos escolares, o que

significa que o tempo total de ensino oferecido pelo Collegio era de oito anos letivos, ou

seja, os alunos que ingressavam entre 8 a 12 anos, concluam seus estudos entre 16 a 20

anos de idade.

A partir dessas observaes podemos constatar que a criao do Collegio de

Pedro Segundo se deu como uma alternativa de educao em nvel secundrio para a elite

da capital do Imprio que desejava realizar seus estudos no pas, tendo como modelo o

sistema francs de ensino e mirando sempre a formao posterior de seus egressos em

universidades europias de prestgio, sobretudo as portuguesas (OLIVEIRA, 2002).

No artigo 117, que trata Do objecto do ensino, os Estatutos do Pedro II

especificam as disciplinas a serem oferecidas em cada ano letivo (aula), bem como a

carga horria de aulas semanais (lies)28

:

do pas, seu funcionamento continua vinculado s noes de excelncia e qualidade, tanto docente quanto

discente. 27 Vale notar a representao numrica decrescente dos anos letivos a serem cursados naquele momento,

ordem inversa utilizada hoje em dia no sistema educacional brasileiro. 28 Destacamos com sombras as disciplinas relacionadas ao ensino de lnguas, nosso foco de interesse.

49

ANO

(AULA) DISCIPLINA

CARGA

HORRIA

SEMANAL

(LIES)

ANO

(AULA) DISCIPLINA

CARGA

HORRIA

SEMANAL

(LIES)

8o e 7

o

(24 lies

por semana)

Grammatica Nacional 5

3o

(25 lies

por semana)

Latinidade 10

________ Latina 5 Lngua Grega 5

Arithmetica 5 ________ Ingleza 1

Geographia 5 Historia 2

Desenho 2 Sciencias Physicas 2

Musica vocal 2 lgebra 5

6o

(24 lies

por semana)

Latinidade 10

2o

(30 lies

por semana)

Philosophia 10

Lingua Grega 3 Rhetorica e Poetica 10

_______ Franceza 1 Sciencias Physicas 2

Arithmetica 1 Historia 2

Geographia 1 Mathematica 6

Historia 2

1o

(30 lies

por semana)

Philosophia 10

Desenho 4 Rhetorica e Poetica 10

Musica 2 Historia 2

4o e 5

o

(25 lies

por semana)

Latinidade 10 Sciencias Physicas 2

Lingua Grega 5 Astronomia 3

_______ Franceza 2 Mathematica 3

________ Ingleza 2

Historia 2

Historia Natural 2

Geometria 2

A primeira observao a ser feita a partir da anlise do quadro de disciplinas que

compunham o currculo do Collegio de Pedro Segundo a relao de espelhamento que

encontramos entre esta lista de matrias e aquela que, como vimos, compunha as

normativas expressas pelo Diretrio dos ndios e pelas reformas pombalinas do ensino

secundrio e superior do Estado portugus.

No primeiro bloco que se configura Grammatica Nacional e Rhetorica e

Poetica , no aparece explicitamente na designao das disciplinas a que lngua se

50

referem seus contedos, o que comprova que o fato de que j se encontrava como um

pr-construdo a ideia de que a lngua do Brasil e, portanto, aquela qual se vincula o

adjetivo nacional era inequivocamente a lngua portuguesa.

Nas denominaes presentes no segundo bloco de disciplinas Grammatica

Latina, Latinidade, Lingua Grega, Lingua Franceza e Lingua Ingleza encontramos o

contraste com o nacional. Entre essas disciplinas, porm, h uma subdiviso, na qual

Lingua Grega, Lingua Franceza e Lingua Ingleza so claramente opostas a nacional

enquanto que o latim se menciona com certa familiaridade ou proximidade, por meio de

Grammatica Latina ou Latinidade.

Tambm a carga horria destinada a cada uma das disciplinas que compem tanto

o primeiro quanto o segundo blocos corrobora esta diviso que propomos, j que os anos

e as horas de estudos destinados a Grammatica Nacional e Rhetorica e Poetica so

bastante superiores com respeito s demais lnguas apenas Grammatica Latina e

Latinidade desfrutam de uma carga horria que poderamos interpretar como

intermediria ent